LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 4 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:42 am

Enquanto seu corpo físico continuava inconsciente, seu Espírito ao lado, ligado ao primeiro pelos laços de energia que mantêm a vida biológica, começava a dar sinais de despertamento, passando da inconsciência mais profunda ao nível da lucidez espiritual, percebendo as presenças amigas do plano da vida maior, o olhar generoso e amigo daquele Espírito conhecido seu de tantas jornadas, rememorando as promessas que fizera no campo preparatório para a reencarnação e, agora, observando o estado em que seu organismo físico se encontrava, com o corpo em desalinho e atirado, por sua deliberação, às portas do desastre.
A visão do corpo e a lembrança das tarefas de sacrifício por amor que houvera assumido lhe fizeram modificar as tendências da alma, naquele momento da decisão de seu Espírito, no sentido de continuar com a jornada e de compreender que não estava atirada ao abandono.
Que irmãos luminosos lhe desejavam a vitória e tudo fariam para que ela fosse o instrumento do sucesso do amor de que eles tanto necessitavam para erguer outras almas caídas.
Uma sensação de vergonha misturada com o desejo de corrigir seu comportamento, agora que lhe eram relembradas as tarefas que lhe cabia realizar e o preparo que seu Espírito tivera para seguir adiante, tomaram conta de si.
Não precisava dizer nenhuma palavra, pois o seu pensamento era imediatamente captado pelo espírito de Khufu que a ele se ligava pelas linhas magnéticas.
Percebendo-lhe o momento íntimo favorável, o espírito amigo imediatamente tratou de lhe apontar novos rumos.
— Não deixe que a vergonha lhe transtorne o caminho, Marnahan.
Isso não é fraqueza, mas, sim, saudade que todos sentimos da pátria espiritual que nos espera o retorno glorioso. Você não é diferente de nós que, igualmente, sentimos a falta que nos faz a compreensão irrestrita, o sorriso generoso e a harmonia do Criador.
Não se entregue, todavia, a sentimentos de derrota, de fraqueza, de abatimento íntimo, pois você possui todos os recursos para superar tudo isso e seguir adiante. Os homens de hoje não a entenderão porque não conhecem o que você já sabe. Para que possam conhecer, alguém precisa lhes mostrar e pagar o preço do sacrifício a fim de que, depois dele, uma alvorada nova possa pintar com as cores claras o horizonte de todos que passarão a compreender e a viver segundo os novos critérios, uma vida melhor.
Agora, precisamos de você na reedificação do património precioso que recebeu para desempenhar tão elevadas funções na Terra. Precisamos que nos ajude a reequilibrar o corpo físico que deve retornar ao normal sem encontrar qualquer obstáculo no seu desejo de partir antes do tempo.
Agora, pense que deseja viver, envolver todas as coisas num abraço de felicidade e gratidão. Pense no Amor que deve dedicar ao seu pai, que tanto precisa aprender aquilo que você já conhece, na sua mãe que, do mesmo modo, precisa de seus exemplos e se preocupa tanto com você. Pense em Kalmark, que lhe dedica tanto afecto e que precisa muito de você. Ame esta jovem que serve em seu aposento, ajudando-a a vestir-se, a se banhar, a se preparar para a vida. Agradeça a este leito que lhe recolheu o corpo e que lhe serve todas as noites como sagrado ninho, preservando a integridade de seu ser e dando-lhe conforto para o descanso da matéria.
Ao falar isso, Marnahan passou a fazer o que Khufu lhe pedia, com redobrada disciplina e vontade de auxiliar no conserto daquilo que havia desajustado pelo choque emocional que recebera.
Seu pensamento, em sintonia com o objectivo de reassumir o corpo, passou a reorganizar o campo celular que, ao influxo do regresso do proprietário à razão e ao controle dos centros directivos da organização biológica, passara a se coordenar de forma mais eficaz, mais diligente, como se os empregados de uma grande empresa voltassem à alegria pelo restabelecimento do dirigente bom e generoso, a quem deviam gratidão e o próprio emprego.
Com isso, o sistema endócrino pôde começar a trabalhar mais harmoniosamente, sem precisar estar sobrecarregado, tentando suprir as descargas deletérias que, antes, desorganizavam a harmonia das células, através da pressão psíquica dos sentimentos avariados e confusos.
Com a melhoria geral do equilíbrio biológico, os rins ganharam alguma trégua nos processos de filtragem acelerado a que eram submetidos, a circulação começou a voltar aos padrões antigos, o coração se acalmou lentamente e a respiração passou a ser menos agitada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:43 am

Os neurónios cerebrais, anteriormente submetidos a uma tensão elevada em sistema de quase curto-circuito, na rede intrincada de linhas que procuravam encontrar os processos de protecção mais eficazes contra os desejos auto-destrutivos, encontravam agora um momento de menor agitação, que propiciava ao cosmo cerebral diminuir as medidas de defesa com as quais tentava, o órgão, proteger-se ao máximo das desagregações e dos ataques de que era vítima.
Precisava, Khufu, que Marnahan voltasse à consciência, como sinal mais claro da retomada do autocontrole e da mais rápida melhora do estado geral.
— Agora, pense que você quer rever todas estas pessoas a quem ama e com quem se comprometeu a fazer o bem e reeducar. Pense neles e tenha a vontade de abrir os olhos e vê-los sorrir pela sua melhora. Vamos, Marnahan, tudo agora depende de você. Estamos aqui, ao seu lado. Vamos lá... — exortava o Espírito através das correntes mentais, infundindo-lhe o ânimo necessário a voltar à fortaleza orgânica que lhe cabia dirigir sem temor.
Assumindo como sua essa vontade que Khufu lhe sugeria, mas sentindo o peso das pálpebras que lhe pareciam como chumbo, Marnahan empenhou o maior esforço que sua vontade debilitada pôde reunir e, lentamente, começou a mover-se na cama, gemendo baixinho de dor, como se seu corpo estivesse moído por uma grande moenda e, levando os braços até o rosto, lentamente foi abrindo os olhos como que a despertar de uma profunda dimensão, da qual, agora, não conseguia guardar nítida lembrança, apesar de trazer no coração a certeza de que encontrara criaturas muito amadas que lhe estendiam as mãos e que traziam-na, novamente, à superfície.
Algumas horas já haviam se passado naquele procedimento e, por isso, era tão importante que Marnahan voltasse à consciência.
O gesto de abrir os olhos representou para Nekhefre e Kimnut a apoteose de suas esperanças.
Caíram em pranto convulsivo aos pés da cama da filha e buscavam, igualmente, reverenciar Hatsek que continuava envolvido por Khufu e que se esquivava de todo o tipo de reverência.
— Antes de vergarem suas cabeças a homens falhos como vocês mesmos, queridos filhos, elevemos o pensamento ao Soberano Poder a quem nos compete entregarmos todos os frutos de todos os actos de amor que tenhamos a possibilidade de semear.
A partir desta data, vocês possuem mais uma dívida com essa Força Infinita que não se fez surda aos seus apelos e reconheceu o merecimento desta jovem que aqui está para ensinar-lhes coisas que ainda não são capazes de compreender. Abram os olhos, elevem os seus corações, melhorem as suas vidas, porque dia chegará em que vocês também estarão presos a um leito de dor, aguardando a visita do barqueiro que os levará ao reino sombrio da morte. A palavra de Khufu, agora mais ligado a Hatsek do que a Marnahan, que ainda mantinha os fios magnéticos presos ao cérebro, fizera com que a própria voz do sacerdote se transformasse ao ponto de assustar os dois genuflexos e agradecidos pais, que puderam perceber não se tratar da personalidade de Hatsek que lhes falava e sim da presença de algum emissário dos deuses que se dirigia a eles com sabedoria, energia e afecto.
Abaixaram a cabeça e, mais reverentes ainda, ali ficaram esperando que tudo voltasse ao normal.
Abrindo os olhos, Marnahan passou a perceber as figuras de seus pais ajoelhados ao pé de seu leito, entre as lágrimas e o silêncio e, envolvida pelas luzes dos espíritos ali presentes, deixou-se sentir uma compaixão muito grande por aquelas duas almas presas ao lodo da terra, sem conseguirem alçar voos mais altos. Um sentimento de gratidão ao Criador, de ternura pela fragilidade daqueles a quem amava agora com mais amor, despertou nela o carinho que é a característica do perdão sincero que, desculpando todas as ofensas, ama e aceita o sofrimento e o sacrifício.
Marnahan estendeu suas mãos e tocou os cabelos dos dois, que choravam debruçados nos tecidos de seu leito, em soluços abafados:
— Papai,... mamãe...............obrigado ...por terem .... cuidado de mim — disse com a sua vozinha cansada e débil.
Com que emoção os dois escutaram aquelas palavras.
Muito tempo havia passado Hatsek em doação de energias, o que o debilitara fisicamente, assim que lograram trazer de volta o espírito de Marnahan ao controle de seu corpo.
Vendo que todas as coisas estavam tranquilas, em comparação com o estado anterior, Hatsek deu ordem para que fizessem a infusão com as folhas que havia trazido e dessem à jovem para beber, recomendando que, depois, se tivesse fome, comesse algo leve e se mantivesse no leito por mais dois dias, até recuperar-se plenamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:43 am

Dito isso, foi tomado de uma vertigem que só não o levou ao solo por ser disciplinado a ponto de superar as debilidades físicas que prostrariam outros homens fortes.
Imediatamente, entretanto, precisou sentar-se.
Vendo-se assim e sabendo que precisaria descansar, só teve tempo de pedir a Nekhefre:
— Nobre príncipe, solicito à generosidade de sua alma me acolha nesta casa até o dia de amanhã, pois não tenho condições de voltar ao templo. Preciso me deitar... — e reclinou o corpo inerte, esgotado pelo alto teor de forças físicas que havia doado ao refazimento de Marnahan.
De um salto, Nekhefre dirigiu-se em sua direcção e, envolvido pela gratidão e pela compaixão por aquele homem humilde e resignado, levantou-o em seus braços e levou-o ao quarto de hóspedes onde lençóis limpos e perfumados lhe esperavam o refazimento.
Às portas do templo de Amon-Rá, durante todo aquele dia, um casal se prostrara à espera do sacerdote Hatsek que havia saído logo pela manhã, sem dizer qual o destino que tomara.
Kaemy e Meldek, com as poucas coisas que puderam carregar, haviam se dirigido ao templo em busca de seu generoso coração e, para sua decepção, ali não o encontraram como queriam.
Resolveram esperar o seu regresso, pois não era comum ausentar-se ele por muito tempo. No entanto, as horas se passaram, o Sol chegou ao meio-dia e eles não tinham para onde ir. A fome apertou, procuraram alguma coisa para comer e uma sombra para se abrigarem do calor intenso.
Nada de o sacerdote chegar.
A tarde foi avançando, o Sol se tingira de vermelho no horizonte daquelas terras sempre tão marcadas pelo tom rubro de suas luzes e o casal se mantivera na esperança de encontrar o sacerdote que, para sua desdita, não chegara.
Sem terem para onde ir e com o pouco dinheiro que carregavam, precisavam se abrigar da noite que se avizinhava.
No íntimo de suas almas, ambos sentiam saudade de Kalmark, o jovem filho que, no dia anterior, tinha tomado o barco em direcção a Amarna para realizar o seu sonho.
Naquele período, apesar do tráfego de embarcações no Nilo ser intenso, não havia uma rota com barcos regulares para os diversos destinos. Quando o dono da embarcação conseguia o maior número de viajantes ou de carga para aproveitar a viagem, é que dava início ao trajecto.
Por isso, Kaemy e Meldek não poderiam seguir imediatamente para Amarna. Talvez demorasse mais de três dias, até que encontrassem o barco que os levasse embora dali.
Tebas, para eles, era lugar que pretendiam esquecer para sempre.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:44 am

21 — As angústias de Kaemy e Meldek
Kaemy e Meldek procuraram abrigo para enfrentar a noite difícil que teriam pela frente e, a muito custo, encontraram uma pequena hospedaria que os aceitou abrigar em troca de prestarem serviços ao seu proprietário.
Ajeitariam as coisas no seu interior, serviriam os hóspedes, tratariam das acomodações modestas, tudo isto para que pudessem ter onde dormir e o que comer durante o tempo em que esperavam a partida para Amarna, a caminho do encontro do filho amado.
Afinal, esse era o único trabalho que estavam afeiçoados a desempenhar e no qual gastaram muitos anos de suas vidas.
A pequena hospedaria se localizava bem distante da grande casa de Nekhefre, próxima da região dos embarcadouros junto ao rio Nilo e, assim, possuía um fluxo de pessoas bem activo, comerciantes mais pobres que pretendiam trocar suas mercadorias, pessoas sem recursos que vinham de longe esperar o momento da partida de barcos que os levariam a outros destinos, negociantes à espera de realizarem transacções, todos buscavam a região dos embarcadouros e, por isso, as acomodações eram sempre muito procuradas.
Sabendo de suas necessidades, o proprietário, hábil negociante, conseguira mão de obra barata a troco de pouca coisa, sem se preocupar com as condições pessoais dos dois indivíduos, desguarnecidos da sorte e, como tudo demonstrava, abatidos pelas últimas ocorrências.
Todavia, Meldek e Kaemy não desejavam ficar ali por muito tempo já que, dentro de alguns dias, pensavam tomar o rumo já mencionado. Por isso, suportariam todas estas dificuldades com paciência e com fé na protecção dos deuses, única maneira de o ser humano encontrar recursos decisivos para vencer todos os obstáculos.
Ao contacto com toda a sorte de pessoas que por ali transitavam, ambos tinham que dividir o trabalho para que pudessem dar conta de todas as responsabilidades que assumiram.
Enquanto Meldek fazia a parte mais árdua do serviço, com a arrumação e limpeza dos ambientes rústicos destinados ao repouso, Kaemy desempenhava o papel de ajudante da cozinha, no preparo das comidas simples que se ofereciam aos viajantes, hóspedes ou não daquele local.
Ainda assim, os dois não se haviam equilibrado emocionalmente depois da injusta despedida de que foram objecto e tudo faziam para sacudir de suas mentes a sensação de pessimismo que os invadia.
Desejavam reagir, redefinir as suas vidas, reencontrar os seus destinos, procurar esperança no amanhecer, mas tudo parecia estar conspirando contra seus desejos.
No dia seguinte ao de sua instalação na hospedagem, Meldek afastou-se por alguns instantes em direcção ao templo à procura de Hatsek e, para sua decepção, o mesmo ainda não havia regressado.
Voltara à hospedagem de cabeça baixa e sem conseguir melhorar o próprio ânimo debilitado. Kaemy o abraçava, dedicava-lhe palavras de estímulo, mas o marido insistia em permanecer num estado de fragilidade.
Na casa de Nekhefre, a alegria voltara a reinar no coração de seus donos. Marnahan havia-se alimentado e voltara a dormir para o refazimento de suas forças, conforme determinara Hatsek.
Depois do desmaio, o sacerdote foi levado por Nekhefre até o quarto de hóspedes onde adormeceu profundamente, sendo velado por um servo de confiança do príncipe, que pretendia oferecer ao sacerdote tudo o que estivesse à sua disposição, tanto em atendimento quanto em recursos, pois o mesmo lhe salvara a filha.
Nekhefre não conseguia entender que Hatsek não fora mais do que simples fio condutor de energias para que as forças divinas chegassem aos centros de energia da jovem e lhe alterassem o padrão negativo que neles se instalara. Não sabia, o príncipe, avaliar a decisiva participação de Khufu, Espírito amigo de todos, no processo de reerguimento da vontade abalada da jovem, única maneira de se conseguir a recuperação integral nos processos de reequilíbrio emocional.
Por isso, se dedicava em cuidar do sacerdote como se estivesse velando o próprio Rá ou o seu mais elevado representante na Terra.
O desgaste físico de Hatsek ocorreu devido à natureza específica das forças que havia transferido para a jovem, energias estas retiradas de sua estrutura física, transformadas pelo poder de sua vontade e pela acção decisiva do Espírito Khufu que, em circunstâncias específicas e obedecendo às leis do Universo pôde valer-se de tal concessão Superior para infundir um novo rumo ao estado de ânimo da moça, impregnando-lhe os centros de força com uma energia poderosa que a fez relembrar as próprias potencialidades e a capacidade de se reerguer para seguir cumprindo os seus compromissos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:44 am

Por isso, o sacerdote, que se desgastara daquela maneira, acabou entregue ao sono mais profundo, monitorado de perto pelos Espíritos guardiães que foram designados por Khufu para o trabalho de enfermagem espiritual daquele que lhe era o filho querido encarnado no meio dos homens, instrumento da vontade do Poder Soberano na consecução dos actos de Amor por meio dos quais se pretendia ensinar aos homens o verdadeiro caminho a ser trilhado.
Mais de um dia o sono demorou a ceder. Quando deu sinais de estar voltando a si mesmo, Hatsek pretendeu levantar-se do leito, mas trazia o corpo em um estado de fraqueza muito intenso, o que o impedia de erguer-se com firmeza.
Todavia, acordado, a partir daí poderia alimentar-se de forma a conseguir reassumir as forças anteriores e retornar aos seus afazeres no templo.
Ao final do segundo dia na casa de Nekhefre e à custa das alimentações naturais que iam refazendo a vitalidade de seu organismo, com a ingestão acentuada de frutas cruas e secas, leite e água em abundância, acompanhadas de pão e mel, Hatsekenká se sentia mais fortalecido para conseguir manter-se de pé.
De tempos em tempos, os Espíritos amigos lhe forneciam cotas de magnetismo através das energias que retiravam do mundo espiritual e que lhe eram transferidas como se estivessem realizando uma transfusão de sangue, como modernamente se conhece nas práticas da medicina actual.
Ao entardecer do segundo dia, pretendia regressar ao templo de Amon-Rá, mas Nekhefre conseguiu convencê-lo a dormir mais um dia ali e, na manhã seguinte seria levado de volta ao seu ambiente religioso, se acordasse em boas condições.
Realmente, essa era a solução mais aconselhada em face de que a recuperação do sacerdote ainda inspirava cuidados e, por outro lado, o próprio Hatsek, antes de voltar para o templo, poderia dar uma última olhada no estado físico de Marnahan, autorizando-lhe também o fim do repouso compulsório.
No entanto, no corpo dos jovens as energias atuam com uma proficiência vertiginosa e, por isso, Marnahan já se encontrava impaciente e desejosa de levantar-se havia algum tempo, não aguentando mais ficar confinada ao ambiente de seu quarto. Estava consciente de todas as coisas, com excepção da integralidade da conversa que havia tido com Khufu, durante o transe difícil por que havia passado. No entanto, relembrava-se da presença de um ser luminoso e amigo que, com muito carinho lhe havia falado ao coração e feito com que ela reassumisse a postura de desejar voltar à vida, no meio dos seus.
Lembrava-se de Kalmark com muita ternura e, longe de desistir de seu amor, aguardava a sequência das coisas sem buscar produzir qualquer modificação violenta na maneira de compreender de seus pais.
Afinal, tudo aquilo havia acontecido por força, tão somente, de uma frase pequena lançada ao ar pelo jovem amado com o intuito de atingir o orgulho do príncipe, seu pai.
Uma vez desencadeada a frase pela boca que deveria obedecer ao pensamento de prudência, as consequências daí decorrentes foram incontroláveis. Enquanto guardamos os pensamentos na elaboração mais sábia de nossas reflexões, amadurecendo-os com os temperos da calma, da intuição superior, da conveniência fraterna, do objectivo elevado, estamos burilando a pedra preciosa que pode encantar os olhos e ouvidos alheios pela beleza das luzes que reflicta.
Todavia, quando nos deixamos dominar pelos impulsos, notadamente nos momentos em que as discussões escravizam os sentimentos, quando nossa língua se transforma em uma arma para ferir os que estão do outro lado da fronteira do nosso eu, passamos a agir como delinquentes emocionais, mais preocupados em retribuir as ofensas em grau mais baixo do que a agressão recebida e, por isso, abdicamos da capacidade de controlar os nossos destinos e, ao invés de pensarmos com os neurónios cerebrais, passamos a raciocinar pelo fígado, com suas descargas amargas de fel, a saírem pelas nossas bocas dirigidas aos demais.
Nesses momentos, atirando a esmo sem a condição de equilíbrio que o pensamento controlado nos permitiria, acabamos por piorar todas as coisas, tornando mais cheio de buracos o caminho que tínhamos de percorrer, aumentando os antagonismos que já nos causavam problemas, ferindo aqueles de quem iremos precisar, cedo ou tarde, abrindo brechas de desequilíbrio nas nossas vibrações, a nos provocar enfermidades físicas e permitindo que se instalem em nós e à nossa volta, entidades necessitadas que partilharão das nossas emoções raivosas, das descargas de hormônios que os estimulam, mantendo o ambiente à nossa volta impregnado de densidade desagregadora.
Tudo isso por causa da palavra não controlada pelo raciocínio sereno, usada como veículo de agressão, de cinismo, de ironia, de sarcasmo, de divisão ou separação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:44 am

Controlar a maneira de expressar-se representará, para o homem evoluído, uma verdadeira vitória sobre si mesmo, fechando assim todas as brechas por meio das quais, ao invés de ser senhor das próprias emoções e de controlar as suas manifestações, tem sido ele escravo delas, usando-as de maneira irreflectida e percebendo, tardiamente, o quanto as suas explosões o fazem vítima de inúmeras desditas.
Marnahan trazia em seu espírito a consciência dessas coisas e, por isso, não iria deixar que as suas pretensões amorosas e as suas escolhas no terreno do afecto viessem a adulterar o equilíbrio da família, sem querer dizer, com isso, que estaria desistindo do sentimento por causa dos preconceitos de seus pais.
Saberia esperar a hora certa para fazer valer sua vontade.
Na hospedagem onde Kaemy e Meldek se encontravam, o processo de resgate dessas duas almas tinha o seu curso incessante.
Em face dos problemas suportados, seja com a separação do filho, seja com a perda do trabalho, seja pela fragilidade emocional, o certo é que, no terceiro dia de actividades fortes, Meldek não se apresentava em condições de manter a mesma dinâmica que exigira dele esforço intenso nos dias anteriores.
Seu corpo apresentava sinais de adoecimento que Kaemy identificara rapidamente pela coloração de sua epiderme. Ela se tingira de um amarelado intenso, com tendências para um verde que maculava inclusive a órbita de seus olhos, produzindo uma coceira forte por todo o corpo.
Meldek estava suportando uma reacção orgânica intensa pela força de enfermidade que lhe atingia as vias hepáticas, bombardeadas nos últimos dias por toda a sorte de contrariedades e, por isso, vulnerável a tais situações de agressão pelo pensamento do proprietário do corpo.
Vendo o estado de seu esposo, Kaemy dirigiu-se ao dono da estalagem para informá-lo das condições do marido as quais, uma vez constatadas por ele, causaram-lhe verdadeiro pânico, já que no Egipto eram comuns os surtos epidémicos que ceifavam vidas sem conta.
Vendo-o esverdeado e com medo de perder a freguesia em seu estabelecimento, além de temer estar exposto a alguma enfermidade que poderia tirar-lhe a vida, o proprietário não teve dúvidas em expulsá-los dali o mais rápido possível, antes que os hóspedes se dessem conta de seu estado orgânico e partissem em debandada por toda Tebas, contando do estado de seu empregado, o que, por certo, seria a ruína de seu negócio.
Por medo de perder a freguesia, o proprietário não se importava em perder a pouca humanidade que possuía e que, por certo, lhe aconselharia um outro procedimento para com uma pessoa doente.— A senhora trate de se retirar daqui imediatamente com o seu marido — falou-lhe ríspido, o dono da estalagem.
— Mas nós não temos para onde ir, meu senhor. Meu marido estava esperando a embarcação para nos levar para Amarna que deverá sair hoje do porto, mas neste estado, não o deixarão viajar — respondeu abatida a esposa do enfermo.
— Isso já não é problema meu. Que vocês se virem por aí, masque não venham a estragar meu negócio que, por si só, já está difícil de manter. Pensei que os estava ajudando com o abrigo e a dormida que lhes ofereci, mas creio que os deuses estão me castigando por tê-los acolhido aqui.
— Por favor, senhor, nós não podemos ficar ao relento, sem abrigo, ainda mais agora que Meldek não consegue sequer permanecer de pé — suplicava humilde a mulher, que não conseguia refrear as próprias lágrimas.
— Vão bater nas portas de qualquer templo pedindo ajuda, pois é lá que eles se dedicam a auxiliar os pobres. Aqui não é lugar para isso.
Aqui eu ganho meu dinheiro e não quero ficar no prejuízo de ver todos os meus hóspedes fugindo de medo. Além disso, também não quero ficar na companhia de. um pestoso que poderá me fazer pegar essa peste também. Vá embora já, pois se não sair agora com esse traste eu jogo tudo o que trouxeram pela janela. Fora... Fora... — gritava o homem, descontrolado.
Não lhe restou outra saída senão recolher os poucos pertences que tinham e, apoiando o marido que não conseguia quase manter-se de pé, deixaram a estalagem com mais este espinho cravado no coração.
Mesmo em um estado debilitado como aquele, Meldek falara à esposa para que buscassem o sacerdote Hatsek, único e decisivo apoio que, agora, possuíam.
Assim é que, no meio da manhã, os dois bateram à porta do templo de Amon-Rá pedindo para falar com Hatsek.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:44 am

— O sacerdote Hatsekenká não se encontra no templo — informou, secamente, um sacerdote incumbido de atender os pedidos dos que batiam à porta pedindo auxílio, não ocultando certa aversão em dirigir-se ao casal que não tinha como ocultar o estado alterado da saúde do enfermo.
— Iluminado sacerdote de Amon - falou-lhe Kaemy - aqui estamos eu e meu esposo buscando pelo sacerdote Hatsek como nossa última esperança, pois estamos abandonados no mundo, sem recursos e, agora, vítimas de uma enfermidade que, como os vossos olhos podem constatar, está tornando meu esposo um farrapo de gente. Por isso, peço humildemente, em nome de Rá, que o vosso coração generoso nos permita estar aqui, ocultos dos olhos do povo, em qualquer cantinho ensombrado deste santuário, aguardando a chegada do único conhecido que temos. Aquele pedido era feito com o mais sincero tom de humildade, de desespero e de angústia que seria capaz de fazer as pedras chorarem de piedade.
Vendo o silêncio do morador do templo, Kaemy continuou, completando:
— Não ousamos vos pedir sequer qualquer coisa para comer ou qualquer remédio para nossos males. Pedimos apenas que nos deixe abrigados da curiosidade pública que, com toda a certeza verá em meu marido e em mim uma manifestação de alguma peste que nos colocará em risco de vida, pois não será difícil que nos atirem nas águas do rio sagrado, como maneira de se livrarem do perigo de propagação de uma doença que não sabemos do que se trata. Por favor.... — e nessa altura, seus lábios não sabiam mais articular palavra, já que a emoção da dolorosa verdade lhe corroía o controlo das emoções e a levava às lágrimas incontidas, como selo final de sua petição desesperada.
Tocado em suas fibras mais profundas, o sacerdote, entretanto, pensava nas dificuldades que teria de enfrentar, caso se tratasse, realmente, de alguma doença contagiosa. Estaria expondo todo o templo e os demais sacerdotes e cooperadores a um risco muito grave.
Não poderia tomar aquela decisão sozinho.
— Para permitir qualquer acolhida de vocês aqui, preciso comunicar-me com o sacerdote responsável pelo templo que dará a palavra final sobre o que me pedem. Antes, porém, vou colocá-los aqui dentro, num ponto mais protegido, longe das vistas dos curiosos para que se sintam abrigados até que tenhamos uma resposta — falou o sacerdote tentando contemporizar as coisas enquanto não obtinha a autorização.
— Obrigado, nobre representante da bondade de Rá. Que Amon o recubra de favores — agradeciam ambos os pedintes, Kaemy e Meldek, ela, cada vez mais preocupada e ele, cada vez mais irritado pelas coceiras e pelo mal-estar que vinha sentindo, com um inchaço da região do fígado que tornava difícil a respiração.
Colocados no local mencionado pelo sacerdote, ali permaneceram entre angústias e preces, enquanto este se dirigia ao interior à procura do sacerdote chefe, a quem exporia os fatos e de quem obteria a autorização para acolhê-los ou não.
Enquanto isso, Hatsek, recuperado e mais fortalecido, depois de ter se despedido de todos os moradores da casa e autorizado a Marnahan que deixasse o leito, tomava a direcção do templo de onde houvera sido tirado três dias antes.
Voltava para casa, contudo, sem saber qual o motivo que havia gerado toda a situação que encontrara na casa de Nekhefre. Ainda que soubesse tratar-se de um dissabor muito sério, não tivera tempo de inteirar-se dos detalhes uma vez que a situação de Marnahan não permitia o luxo de conversação, nem a prostração a que foi conduzido pelo procedimento de auxílio lhe deixou espaço para poder conversar sobre os factos.
Desacordado por quase um dia e meio e, depois, prostrado à espera da recomposição de suas próprias forças, Hatsek havia sido poupado de todos os informes que não o auxiliariam na própria recuperação.
Ainda carregando as marcas do cansaço estampadas no rosto, conquanto já estivesse mais forte, deixou-se envolver pela alegria de rever a jovem restabelecida, considerando, com isso, encerrada a sua tarefa dentro daquele lar.
Em uma outra ocasião conversaria com Nekhefre para saber dos detalhes que haviam produzido aquele estado de dor intensa.
Com isso, voltava ao templo sem qualquer informação mais detalhada dos factos ocorridos naquele período, muito menos de que Nekhefre houvera expulsado os dois serviçais do interior de sua própria casa, sem qualquer motivo relevante.
Por serem velhos empregados de Nekhefre, Hatsek os conhecia e, usualmente, os atendia no templo quando algum problema de saúde os atingia o corpo ou feria a integridade de Kalmark, o único filho de Meldek e Kaemy.
Com isso, Hatsek afeiçoou-se pelo garoto e, por consequência, mantinha uma relação amistosa com os seus pais, ainda que soubesse manter-se à distância quando em presença de Nekhefre, para que o príncipe não se sentisse substituído em sua consideração por dois empregados de sua casa.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 4 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:45 am

Naquele dia, ao chegar ao templo, depois de todas as dificuldades encontradas na casa do príncipe, Hatsek não poderia dar-se ao luxo de voltar à normalidade de suas actividades.
Outra necessidade ainda maior e mais grave esperava por ele.
Ao seu lado, Khufu se postava para ser-lhe o anjo guardião dos sofredores que, por suas mãos encontravam algum tipo de alento.
Tão logo deu entrada no templo, foi visto por Kaemy que, em desabalada carreira, saiu de seu esconderijo e, com renovada esperança, corria em sua direcção, gritando-lhe o nome.
Para seu espanto, constatou tratar-se daquela que, inexplicavelmente para ele, estava ali quando deveria estar na casa de Nekhefre.
— Ora, Kaemy, que boas notícias a trazem até aqui, afinal, acabei de deixar a sua casa, onde estive estes três dias... — disse-lhe o sacerdote, entre a surpresa e a simpatia.
— Ah! Nobre amigo dos deserdados, antes fosse por motivo de alegria a minha vinda até aqui... — lamentou-se a mulher, já deixando que lágrimas molhassem os seus olhos, abaixando a cabeça para ocultá-las de Hatsek.
— Mas, então, conte-me o que acontece, Kaemy, para que eu veja o que posso fazer... — falou-lhe paternal o amigo dos que não tinham esperança.
— É uma longa história, meu senhor, mas antes de tudo, preciso de sua ajuda para Meldek, que está ali, escondido comigo, para não sermos mortos pelas pessoas. Ele está doente, muito grave, e está piorando a cada hora que passa. Não sei o que fazer mais. Só a sua ciência e a sua sensibilidade para as coisas da alma é que poderão fazer alguma coisa por meu infeliz esposo.
Hatsek seguia mais surpreso, levado pelas mãos de Kaemy até o local onde se prostrara Meldek, agora ainda mais irrequieto, levando as unhas à pele e dela extraindo o sangue que brotava dos arranhões produzidos pela coceira cada vez mais cruel.
Vendo o antigo serviçal de Nekhefre, o sacerdote foi tomado de compaixão pelo seu estado e, sem perda de tempo, decidiu levá-lo para o interior do santuário, no que foi alertado por Kaemy de que estavam ali esperando a volta do sacerdote com a resposta do superior, a fim de
permitir-lhe o ingresso ou não.
Para não ferir a disciplina a que estava submetido, esquecendo-se de suas próprias debilidades ainda candentes em seu organismo, Hatsek deixou-os ali, com a promessa de regressar em breve e dirigiu-se para a sala do responsável pelo templo, na qual, com certeza, estaria sendo decidido o destino daqueles dois seres humanos, até agora vitimados pela indiferença de todos os outros irmãos de caminhada.
Enquanto seguia pelos corredores, Hatsek tentava decifrar os enigmas intrincados que haviam produzido toda aquela sorte de ocorrências que, de um momento para outro, infelicitara a vida de todos os que estavam vivendo em harmonia até então, sob o mesmo tecto.
Ao seu lado, o espírito de Khufu se preocupava em abastecê-lo de mais energias para que não lhe faltassem os recursos com os quais teria de ajudar a fazer o possível pelas duas almas sob a sua tutela, agora que ele se apresentava como a única porta generosa e fraternal que se abria para aquelas duas almas em situação crítica para o resgate de seus erros do passado.
Enquanto isso, o estado de Meldek seguia piorando sensivelmente.
Kaemy orava baixinho, trazendo-lhe a cabeça entre os braços, orvalhando-lhe os cabelos com suas lágrimas e esperando que, da fonte generosa do Amor, algumas pequeninas gotas pudessem vir em direcção de seus corações,, aliviando-lhes os temores e oferecendo-lhes o braço amigo nas horas difíceis por que estavam passando.
Hatsek era a única porta através da qual o Divino Amor encontrava passagem para ajudar os que tinham que enfrentar as consequências dos actos do passado remoto, agora chegadas ao momento do acerto de contas.
Lembre-se disso, leitor amigo. Você pode ser porta de Deus na vida das pessoas que estão em testemunho. Afinal de contas, no grande universo dos devedores, chegará a hora de você também precisar pagar as suas dívidas. E, nesse momento, você vai sentir como será importante contar com uma mão estendida que o auxilie a conseguir fazê-lo.
Daí o conselho sábio do Divino Mestre:
“Com a medida que julgardes também serás julgado...”

() Baixo-relevo representando o faraó Akhenaton à direita, a esposa Nefertite à esquerda, as três filhas do casal, todos sob os raios protectores do deus Aton, o disco Solar representado no alto da figura.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:45 am

22 — Hatsek ampara Meldek
Na sala interior do templo, encontravam-se os dois outros sacerdotes que conversavam sobre o caso de Meldek e Kaemy quando Hatsek se aproximou e, em silêncio, aguardou que a conversação se interrompesse naturalmente.
Todavia, ao perceberem a sua presença, ambos se voltaram para ele como que a convidá-lo a se aproximar, uma vez que o assunto tinha ligação com a sua pessoa.
— Que bom vê-lo, nobre Hatsek — exclamou o jovem companheiro de adoração a Amon, conhecido por Merkare. Estamos diante de um problema de difícil solução envolvendo pessoas que aqui vieram procurá-lo.
— Acabo de chegar ao santuário e aqui me encontro para informá-los de meu regresso, depois de uma ausência involuntária que me foi imposta pela necessidade de pessoas queridas, a quem tive de levar o amparo de Amon — respondeu, genericamente, Hatsek, sem dar a conhecer maiores detalhes, inclusive que estivera conversando com os dois, à entrada do templo.
Enquanto isso, o Grão Sacerdote se encontrava silencioso, igualmente avaliando a postura de Hatsek.
Ao perceber que o seu procedimento não denunciava qualquer conhecimento do caso sobre o qual conversavam, afirmou serenamente:
— Merkare me comunicava a existência de um problema, às portas do templo, que precisa ser resolvido urgentemente, pois pode nos causar sérias dificuldades. Trata-se da presença de um casal cujo varão está contaminado por estranha enfermidade que é denunciada pela alteração da coloração externa de sua pele que, por tão evidente, pode provocar um estado de desespero popular, diante da ameaça de se espalhar por mais pessoas. Ao chegarem, buscaram falar contigo, tendo sido permitido que ficassem acolhidos em recanto do templo, longe das vistas dos transeuntes, até que se localizasse o seu paradeiro. Todavia, enquanto isso, acertadamente, Merkare veio até mim para saber como resolveremos essa questão, pois trata-se, efectivamente, de alguma doença grave, aqui também não poderão permanecer, a fim de não pormos em risco o ambiente do próprio templo.
Enquanto falava, o Grão Sacerdote avaliava friamente a postura de Hatsek para nele observar alguma reacção emocional que denunciasse a sua inclinação neste ou naquele sentido de atendimento do caso.
Hatsek, contudo, esforçava-se para não revelar em seus gestos, palavras ou expressões faciais qualquer indicador de seus sentimentos, não permitindo que o sentimento fraterno que nutria pelo casal desditoso viesse a exteriorizar-se e influenciar em seu destino, naquele momento tão crucial.
Isso porque ele sabia que o Grão Sacerdote, com a desculpa de disciplinar todos os demais sob os seus cuidados, procurava sempre avaliar quais seriam os desejos dos seus tutelados, os seus anseios, as suas opiniões e, tão logo os conhecesse, deliberava justamente na direcção oposta, no intuito de contrariá-los afim de lhes impor uma disciplina de absoluta renúncia à própria vontade.
Por isso, se Hatsek se prontificasse a atender o caso, falando sobre ele como se o conhecesse, imediatamente provocaria no Sacerdote responsável a deliberação de não permitir o acolhimento dos dois.
— Não sei do que se trata, nobre e sábio orientador de todos nós, mas acredito que todas as cautelas que aqui estão sendo discutidas são corretas e pertinentes à defesa do santuário — respondeu Hatsek, esforçando-se por não denunciar a urgência daquele problema que ele tinha observado quando de sua chegada.
Creio, no entanto — continuou ele — que na função que Amon nos confere neste santuário, está a de fazermos todo o bem que nos seja possível, buscando uma maneira de conciliarmos todos os interesses e cuidados necessários, com a necessidade dos que nos procuram.
Dentro desse cenário e, considerando que vieram, os dois necessitados, à minha procura, aqui me encontro à espera das vossas deliberações sempre sábias, como sublime alma que Amon nos ofereceu para que nos conduzisse os destinos, pelo território de Sua Divina Vontade.
Terminada a sua manifestação com tal demonstração de acatamento que, na alma vaidosa do Grão Sacerdote soara como música melodiosa, Hatsek esperava que lhe fosse dada a autorização para agir em favor dos que lá estavam, aguardando que as tramas do destino dessem o veredicto sobre os seus caminhos.
— Sábias palavras, nobre Hatsek, dignas de teu coração dedicado e fiel a Amon. Autorizo que te dirijas aos que te esperam e os atenda inicialmente lá onde estão, avaliando o grau de perigo do estado físico do enfermo. Depois, esperarei pelas tuas sugestões, sobre como resolvermos o problema de acolhê-los ou não.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:45 am

— Solicito de vossa sapiência a autorização para levá-los aos meus aposentos pessoais que, como é de conhecimento geral, estão isolados das dependências do templo e não causarão qualquer contratempo à nossa rotina, já que, para fazer um exame mais detido da situação do enfermo, precisarei estar em um ambiente mais isolado e que me permita realizar determinados procedimentos que exigem materiais que possuo lá comigo, a fim de poder, depois, informar-vos como foi determinado.
Percebendo que as preocupações de Hatsek eram aceitáveis
a gravidade do momento e não demonstravam nenhuma motivação pessoal pelo caso dos dois estranhos, o Grão Sacerdote respondeu:
— Tuas ponderações são corretas e autorizo fazer como pedes.
No entanto, não devem ter contacto com o doente mais nenhum dos integrantes deste santuário, a fim de não permitirmos que o risco se estenda a outros. Que Amon se incumba de envolver-te, nobre Hatsek, com seu véu protector, impedindo que a pestilência da doença te atinja...
-falou o superior hierárquico, gesticulando misticamente, como que a impor sobre Hatsek algum tipo de bênção que visasse protegê-lo do mal a que ficaria exposto.
Reverentemente, Hatsek deixou o local e, tão logo se afastou, passo a passo, da sala onde se encontravam, empreendeu verdadeira corrida até o local onde os dois se achavam entre a agonia e o desespero.
Mais do que depressa, ajudou Kaemy a erguer Meldek e, com todas as dificuldades próprias do seu estado que piorava a cada hora, encaminhou-os até seus aposentos.
Tratava-se de pequena edificação no interior do templo, isolada do santuário principal onde o sacerdote mantinha seus modestos pertences e todos os instrumentos e utensílios de que necessitava para o exercício de seu mister, no atendimento às dores alheias.
Acomodou Meldek em seu próprio leito e, imediatamente, mandou que trouxessem um jarro de água pura para que fosse dada ao casal que, não bastando a doença e a carência de seu estado pessoal, não haviam recebido nem alimento nem água, até aquele momento.
Tanta era a coceira de Meldek, que Hatsek precisou envolver-lhe as mãos com ataduras de linho para que suas unhas não seguissem rasgando a pele fina, produzindo sangramentos por todo o corpo.
Kaemy, entre a dor e o desalento, outra coisa não fazia do que se entregar à oração, confiante que estava na ajuda que receberiam das mãos do sacerdote amigo que, imediatamente, passou também a buscar a ligação necessária com o mundo invisível que sempre o amparava, principalmente naqueles momentos de desespero e aflição de seus irmãos na Terra.
Em realidade, Meldek estava sendo vítima de um câncer no fígado que, já de algum tempo vinha se instalando lentamente como forma de resgate de débitos passados e que, na condição de empregado de Nekhefre, permitiria a este, igualmente, acolher o enfermo e cuidar dele como compromisso assumido antes do renascimento de ambos.
Isso porque Nekhefre possuía uma dívida de gratidão muito grande para com Meldek por ter sido auxiliado por este último em difícil etapa que enfrentara em vida passada e que, agora, solicitara retribuir o bem recebido, dando a Meldek a acolhida e o amparo no período breve da enfermidade que o acometeria, antes de sua volta ao mundo espiritual.
Todavia, como já vimos, o egoísta Nekhefre, impulsivo e arrogante, havia atirado à rua, sem destino, aquele a quem deveria abrigar em sua própria cama, tal o débito que possuía para com Meldek.
Como Deus, todavia, não desampara os filhos em testemunho, na ausência deliberada daquele que precisava fazer o bem pelo bem que recebera um dia, encaminha para acolher o enfermo o coração que já aprendera a fazer o bem sempre, sem esperar retribuição alguma.
Nekhefre, antes de renascer, havia solicitado a oportunidade de oferecer a Meldek a ajuda em forma de retribuição pela ajuda recebida.
Mas, por manter-se invariavelmente distante dos ideais do bem, pensando sempre apenas nos privilégios materiais e nos lucros ou vantagens económicas, não lhe foi difícil romper o compromisso com a bondade, como se rasgasse um pedaço de papel que assinara sem ler.
Hatsek, entretanto, espírito já desperto para as leis do Universo, empreendera toda a sua vida, até aquele momento, em fazer o bem a todos os que encontrasse pelo caminho, sem que isso fosse feito para retribuir, para ganhar o céu, para agradar a Deus, para obter alguma vantagem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:45 am

Fazia o bem pela alegria de espalhar alegria ao seu redor e, por isso, a sabedoria do Universo tinha nele o agente da generosidade que poderia accionar sempre que fosse necessário corrigir os desatinos decorrentes da deserção dos que deixavam de fazer o bem que lhes competia realizar. No quarto, em oração, Hatsek divisava novamente o Espírito de Khufu que, acercando-se dele, transmitia-lhe as informações necessárias para dar seguimento àquele caso:
— Querido filho, que as orações sejam sempre as nossas companheiras de todas as horas, buscando na fonte da Sabedoria do Universo, as forças, a ajuda e as explicações que as nossas fracas condições evolutivas não nos permitem ainda obter por nós mesmos.
O caso de nosso irmão, apesar de não dever causar preocupação em se alastrar por outros que se exponham ao contacto, é daqueles que se encontram vinculados aos acertos do ontem na vida de cada um de nós.
Meldek solicitou esse sofrimento para encerrar a existência de trabalho e serviço limpando sua alma de desequilíbrios vividos outrora, quando se deixou envolver no vício da bebida, por viver uma vida que lhe permitia todo o tipo de facilidades.
Dono de expressivos recursos materiais, Meldek deles se valia sem qualquer responsabilidade, como se jamais tivesse de prestar contas a ninguém, ao mesmo tempo em que os dissipava entre a diversão e os excessos.
É verdade que, considerado por todos homem generoso e mão aberta, espalhou benefícios materiais a muitos que se lhe acercaram por interesse ou por necessidade. Por isso, a sua ligação com Nekhefre que, naquela encarnação em que vivera na Terra sob a personalidade de Khendjer recebera de Meldek a mão estendida em momento de muita dificuldade e sofrimento, como você poderá entender, quando chegar a hora.
Por isso, Hatsek, a enfermidade de Meldek será a conclusão de um longo processo de depuração de seu Espírito, incluindo, aqui, o próprio abandono a que fora levado pela acção fria de nosso irmão Nekhefre que, novamente, volta a se comprometer com o bem que deixou de fazer, como ele mesmo houvera solicitado.
O que se pode fazer por ele é auxiliá-lo a não sofrer tanto, levando-lhe um lenitivo para as difíceis condições físicas e, ao mesmo tempo, permitir-se que boas vibrações o envolvam, na preparação de sua partida, pois salvo deliberação diferente do Soberano Poder que nos dirige, não tardará mais do que dois dias a sua viagem ao reino da verdadeira vida.
Prepare-o com serenidade, do mesmo modo que nossa irmã Kaemy, algo mais amadurecida que o marido para enfrentarem as provas pelas quais passarão, neste ciclo que termina para as almas de Kaemy e Meldek.
Imponha as suas mãos sobre a água do jarro que colocaremos nela os remédios necessários ao alívio dos sintomas mais cruéis decorrentes do avanço acelerado dos tumores internos. Com isso, cederão os imperativos da coceira e Meldek poderá sentir algum alívio que lhe permitirá repousar por algumas horas.
Sempre que acordar, ministre a ele o conteúdo do jarro, pois isso produzirá uma minoração de seus males.
Prepare-se, todavia, com alguns medicamentos mais fortes para o alívio das dores que se tornarão mais intensas e de difícil suportação.
Se necessário, utilize dos remédios mais fortes, dentro da dosagem segura para produzir alívio, eis que, se forem usados em doses erradas, sabe você que o efeito poderá ser o de matar, ao invés de atenuar o sofrimento.
Ofereça alimento a Kaemy e deixe que ela possa repousar também, pois terá um caminho mais longo a percorrer do que o nosso irmão que se prepara para despedir-se da vida entre vocês.
Estarei por perto a fim de auxiliá-lo na solução de qualquer outro problema mais intrincado. Basta orar e pensar em mim para sentir-me ao seu lado. Que o Soberano Poder o envolva e ilumine.
Com essas palavras, Hatsek já sabia o que fazer e, dando seguimento aos cuidados necessários, tomou todas as providências a fim de ajudar aqueles dois irmãos em testemunhos difíceis que a força do destino fazia baterem à sua porta.
Magnetizou a água com a acção conjunta de Khufu. Encaminhou Kaemy para o descanso, depois de tê-la feito alimentar-se para a fortificação de seu organismo que, até aquele momento, não comera nada naquele dia.
Adoptando os conselhos do Espírito amigo, Meldek acalmou-se no leito e permitiu que o sono viesse cobrir-lhe a face, num processo de parcial serenidade, diante dos dias anteriores que haviam sido estafantes e agitados.
Assim que tudo se colocou em razoável equilíbrio, Hatsek demandou o templo para o cumprimento de suas obrigações sacerdotais conforme os rituais o exigiam e ao mesmo tempo para levar ao conhecimento do Grão Sacerdote os informes necessários ao esclarecimento do problema sob sua tutela.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:45 am

Pretendia mantê-los ali pelo tempo necessário ao desenlace de Meldek, já que não teriam para onde ir naquelas precárias condições.
O dia ia se arrastando para o seu final e a noite seria de uma longa vigília para todos.
Enquanto em Tebas a noite começava a chegar, rio abaixo Kalmark seguia em direcção a Amarna, sem saber que a tragédia havia se instalado no coração dos seres amados que deixara para trás com a promessa de regressar para levá-los consigo, tão logo conseguisse condições boas de trabalho, junto ao faraó que tanto apreciava as artes em geral.
Akhenaton era a sua esperança como homem prematuramente amadurecido nos seus 17 anos.
Não teria tempo de despedir-se do pai que partiria em breve e, quem sabe se conseguiria encontrar a mãe que ficaria no mundo, agora, sozinha.
Mas em seus devaneios embalados pelo balanço do barco em que seguia, o jovem pensava no futuro, no amor de Marnahan, nos sonhos de sucesso e na saudade que sentia de seus pais.
Também ali, no barco singrando o Nilo, as tintas da noite começavam a tingir o céu e forçavam a embarcação a interromper o seu trajecto, afim de não se ver surpreendida na escuridão por algum infausto acontecimento, no meio do rio caudaloso.
Ao amanhecer, retomariam o curso em direcção a Amarna.

() Busto em madeira e gesso representando o Faraó Tutankhamon que reinou, sucedendo seu pai Akhenaton, de 1333 a 1323 a.C.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:46 am

23 — As despedidas de Meldek
A doença de Meldek evoluía rapidamente e, ainda que a noite tenha passado e o clarão da nova aurora viesse renovar o convite à alegria de viver, naquele modesto quarto, o sentimento de alívio não encontrava espaço para manifestar-se.
Kaemy passara a noite velando o sono do marido, enquanto Hatsek deslocara-se para dormir em pequeno banco de madeira do interior do templo, próximo aos seus aposentos, estando pronto para atender a qualquer solicitação emergencial.
Os remédios que lhe foram ministrados permitiram que Meldek tivesse um alívio nas sensações dolorosas, principalmente os fluidos magnéticos que haviam sido colocados no interior do líquido cristalino que havia sido preparado pelo Espírito de Khufu. Com tais recursos, a misericórdia do Criador procurava auxiliar um de seus filhos amados a superar as dificuldades que havia solicitado naquela vida e, ainda que viesse a perder o corpo vencido pela doença, chegaria à verdadeira vida como um vencedor de si mesmo, carregando um corpo vibratório mais leve e liberado das desarmonias que houvera implantado em si próprio no passado.
Já a sua esposa, espírito melhorado, também possuía razões para estar ali, ao lado dele, na dureza do resgate, pois na existência anterior em que Meldek falhara, Kaemy também era sua esposa e, apesar de não ter cometido os mesmos desatinos do marido, permanecera estimulando-lhe os apetites, as dissipações, os abusos, como se isso fosse coisa corriqueira. Como esposa, no entanto, cabia-lhe alertá-lo para os erros e abusos que vinha cometendo. Deveria ter sido aquela mulher que sabe unir carinho e firmeza para que o marido de então não viesse a percorrer as trilhas do erro com o seu consentimento ou, pelo menos, com o seu silêncio.
Com a desculpa de não se meter nas coisas do esposo e por relevar-lhe todos os caprichos que o dinheiro farto permitia realizar, Kaemy deixou-se arrastar pelas fraquezas da posse que tornam todos os disparates normais e aceitáveis, desde que se possa pagar por eles.
“Que mal poderia haver?” — pensava ela para desculpar os excessos do marido. E assim, de desculpa em desculpa foi permitindo que ele se afundasse sem adoptar uma conduta mais firme na reconstrução da personalidade frágil do companheiro.
Não que tivesse de romper todas as posturas que lhe impunham seguir na condição de esposa na sociedade daquele tempo. Todavia, tinha recursos no afecto, na forma carinhosa de dirigir-se ao companheiro, na demonstração de sua preocupação para com os actos que vinha adoptando, a fim de que ele fosse sendo alertado para o caminho errado que vinha seguindo.
Ao acovardar-se e, ao mesmo tempo, tirar proveito da fartura que recebia da vida que o marido lhe propiciava, Kaemy comprometeu-se com o sofrimento de Meldek e se viu em dívida para com ele a ponto de solicitar nova oportunidade de refazer os passos errados do ontem, reerguendo o companheiro, encaminhando-o pela trilha mais recta, corrigindo suas tendências através de uma vida de sacrifícios e de serviço constante, enquanto ia oferecendo ao marido as lições mais nobres de uma vida humilde e laboriosa, aceita sem revolta.
Agora, chegara ao momento crucial do testemunho, no qual empregaria todas as energias de sua alma, suportaria a angústia de viver os momentos amargos do companheiro querido, ver-se-ia sozinha, sem o marido e sem o filho que partira dias antes, precisando sentir que todas as estruturas da vida material se modificam sem mandar aviso e para permitir que as almas dos homens acordem para novas realidades que o transformarão.
Tudo isso, no entanto, não lhe cabia pensar naquele momento, já que em toda a sua mente só havia espaço para preocupar-se com o esposo em aflição.
O novo dia não trouxera novas esperanças.
O estado de Meldek seguia se agravando, agora com um significativo aumento do abdómen, que se projectava, dando a nítida impressão de que algum corpo denso se instalara no interior da barriga do doente e que não parava de crescer.
Isso dificultava a respiração, fazendo com que Meldek passasse a sofrer de falta de ar, que o agoniava ainda mais, além da coceira que continuava intensa e de sua pigmentação esverdeada.
Hatsek, tão logo se erguera do leito, fora acompanhar de perto o estado daquele ser infortunado que tinha de passar por tais dores e testemunhos que ele próprio havia solicitado para a modificação de suas tendências inferiores, a fim de descortinar o valor que precisava atribuir ao corpo sadio, ao privilégio de poder viver dentro do equilíbrio e longe de todo o tipo de excesso ou abuso que viesse a comprometer a perfeição da máquina física que estava à sua disposição.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:46 am

A chegada do sacerdote fez com que Kaemy se erguesse para mostrar o volume da barriga do marido, o que estava lhe causando uma sensível piora no estado geral.
Apalpando-o, Hatsek percebeu que aquilo era o acelerador do fim de Meldek e, procurando infundir na alma da mulher mais confiança em Amon e na vontade do Soberano Poder, afirmou:
— A Soberana Vontade nos aponta, querida Kaemy, para o rumo da grande viagem que aguarda a alma de Meldek. Devemos, por isso, preparar nosso querido amigo para que faça essa trajectória com o coração cheio de paz e de confiança, já que precisará colocar o coração na balança na hora do supremo julgamento.
Kaemy, que já sentia essa realidade, não conseguiu esconder as lágrimas que lhe enchiam os olhos e que, furtivamente, começavam a escorrer pelos lados da face.
Todavia, sabia ser firme e confiava nas palavras do sacerdote que, com muita ternura, tratava dela e do marido com os melhores recursos de que dispunha.
Compreendia também que a vida era uma sucessão de etapas que não possuem interrupção e que, do mesmo modo que a alma em semente, guardada no ventre da mãe, vem à luz, que o bebê se transforma em criança, que a criança segue para o jovem, que o jovem muda para o adulto e que este abandona o trono da força para atingir a velhice, o ancião há-de seguir a trajectória do aprendizado devolvendo o corpo cansado e seguindo para novos horizontes.
Assim, olhando para o sacerdote e acenando afirmativamente com a cabeça, Kaemy deu-lhe o assentimento de que necessitava para auxiliar, efectivamente, o Espírito de Meldek que se preparava para deixar o corpo carnal.
Cumpria, dessa maneira, deixar o enfermo na melhor posição de conforto possível, atenuando-lhe as dores ao máximo, o que procurou fazer com a administração de alguns remédios por ele preparados e cujo efeito era o de produzir uma maior analgesia, retirando a sensação do sofrimento.
Com o poder magnético, amparado pelo Espírito de Khufu, Hatsek impôs as mãos e infundiu no doente uma maior quantidade de forças que o tornariam um pouco mais calmo e lúcido, para as necessárias reflexões daquela hora. Ao mesmo tempo, a energia vitalizante que lhe era ministrada produziu em Meldek uma sensação de força nova que, em parte, causou-lhe um pouco de alívio na dificuldade de respiração, ainda que ela seguisse impondo a ele a luta para a absorção do oxigénio.
Dirigindo-se ao companheiro em testemunho, Hatsek buscou tirá-lo do estado de sonolência que o vinha envolvendo, dizendo-lhe:
— Vamos, meu irmão, abra os olhos e olhe ao seu redor. Ao ouvir a voz conhecida, Meldek descerrou as pálpebras e fitou o olhar sereno e brilhante do sacerdote que trazia um sorriso de confiança e força estampando-lhe o rosto.
-Ah!.... sa... cer... dote... pensei que... estava já no.... reino dos mortos... — falou com dificuldade o doente.
— Não ainda, meu querido amigo. Peço que me escute para que sinta o que é necessário sentir antes de dirigir-se ao barqueiro que vai levá-lo para lá-falou sereno Hatsek, sem qualquer laivo de dramaticidade ou amedrontamento.
Você se prepara para a grande viagem da alma a que todos nós estamos condenados a realizar. Feliz de você, Meldek, que chega até aqui com a confiança na Soberana Bondade e o cumprimento dos principais pontos de seu projecto de vida. Agora, meu irmão, seu corpo doente começa o trabalho de liberar sua alma de suas amarras grosseiras e, por isso, gostaria que não se apegasse a mais nada que ficou por aqui.
A querida e amada Kaemy está aqui junto de seu corpo e, ainda que emocionada pela despedida, ora a Amon para que você tenha uma boa viagem.
Não pense no que vai ocorrer com ela, pois aqui entre os que ficaremos esperando a nossa vez, nos daremos as mãos e nós não deixaremos que Kaemy fique em dificuldades, pelo muito que a respeitamos e pela gratidão que temos pelos exemplos de nobreza que nos concedeu, ao longo de tantos anos de serviços.
Seu filho Kalmark, segue em busca de seu destino e, certamente, quando souber de sua viagem, saberá elevar até seu coração, a oração de agradecimento. A ele me incumbirei de atender em tudo o que for necessário e que ele precisar, para que seu Espírito possa sentir-se em paz.
Sobretudo, Meldek, agora que as forças começam a expirar e para que você não perca o barco que o aguarda para a travessia, quero que seu coração abdique de todo o sentimento de rancor e de tristeza contra qualquer pessoa que o tenha ferido ou prejudicado.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 4 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 10:46 am

Sinta a grandeza deste momento e permita que a bondade de Amon o envolva na esfera do Divino Perdão para que, ao entrar no reino que o aguarda, seu coração esteja o mais leve e o mais desprendido de todas as coisas que ficaram para trás, levando-o a alturas ainda maiores e permitindo que somente os bons sentimentos sejam pesados na balança do Deus dos Mortos.
Perdoe Nekhefre de todos os males ou injustiças que tenha cometido contra você. Nada disso teria acontecido se os homens tivessem mais esclarecimento e confiança na Soberana Justiça, que sabe encaminhar todos os seres para os lugares onde necessitam estar. Todavia, se tudo o que lhe aconteceu ocorreu desse modo, é porque sua alma assim precisava enfrentar para tornar-se melhor. Agradeça, pois, por tudo o que Nekhefre lhe fez, tanto de bom quanto de ruim, pois você, daqui por diante, segue justiçado pela sua conduta compassiva e dócil, enquanto ele, por todo o mal que fez, pelo erro que cometeu, precisará enfrentar muitas dificuldades por aqui.
Em silêncio e com lágrimas nos olhos, Meldek ouvia as afirmações do sacerdote, todas elas cheias de doçura e confiança, qual um pai aconselhando o filho que vai sair pelo mundo.
As lembranças da esposa e do filho haviam produzido nele uma angústia muito forte, que foi atenuada pela promessa do sacerdote de cuidar deles para que pudesse seguir em paz.
Ao ser lembrado de Nekhefre, a princípio um ódio muito forte veio à tona de seu ser, por tudo aquilo que estavam passando, inclusive a própria doença. Entretanto, a acção decisiva de Hatsek, mostrando as coisas por outro prisma, falando-lhe ao coração, fez com que sua alma visse tudo de forma transformada pela transitoriedade do viver.
Sim, o que seria agora dele, Meldek, dependia apenas dele próprio. No entanto, Nekhefre estaria entregue ao sabor das forças da vida física, que constroem as teias com as próprias fraquezas dos homens para depois consumi-los e tirar-lhes a venda das ilusões.
Nekhefre seguiria existindo na situação do devedor que espera o momento do credor chegar exigindo o pagamento e, o que é pior, sem economizar para pagar a dívida.
Ao perceber que Nekhefre também passaria pelo mesmo momento difícil que ele estava passando, onde todos os actos seriam pesados na balança da Soberana Justiça, Meldek transfundiu o rancor inicial em compaixão sincera por aquele que lhe fora o algoz dos últimos dias mas que, da mesma maneira, o havia abrigado, alimentado, oferecido o conforto relativo em sua própria casa... por tantos anos.
Sim, não guardaria mágoa daquele que precisaria enxergar sempre como um amigo que escorregou, mas que não deixou de possuir qualidades e valores.
Ao pensar assim, Meldek sentiu um alívio íntimo muito grande, o que lhe propiciou uma paz de espírito que até aquele momento não tinha conseguido sentir em hora alguma.
— As mãos invisíveis tudo conhecem e tudo fazem para nos ajudar nestas horas, Meldek — falou novamente o sacerdote, depois de um silêncio proposital. Fixe o seu pensamento nas almas queridas de seus pais, que já foram levados antes de você. Pense no carinho deles, nos cuidados que tiveram, nas lutas que travaram para que você vivesse.
Tenha gratidão por eles terem lhe oferecido as portas da vida, as chances de ter encontrado Kaemy, de ter sido o pai de Kalmark...
Lembre-se de quanto o coração de mãe o envolveu nos problemas da vida e que não irá abandoná-lo nesta hora de testemunho decisivo para sua recuperação.
Pense nela pegando-o no colo, acariciando-lhe os cabelos, guardando-o nas noites barulhentas, quando o vento uivava e assustava seu ser pequenino. Ela está pronta para continuar a afagar os seus receios, convertendo-os em confiança na Soberana Misericórdia, que tudo ampara e tudo auxilia, para que os Seus filhos não se percam.
Pense nas coisas boas que você fez na vida, nos amigos que auxiliou, nas pequenas tarefas que realizou com esmero e cuidado. Nos sacrifícios que o Amor impôs aos seus desejos pessoais... Pense nas alegrias que já viveu e que ninguém lhe poderá retirar, como o salário do trabalhador digno...
Com os olhos bem abertos, como se começasse a divisar coisas que os demais não viam, o semblante de Meldek iluminou-se repentinamente, à lembrança de todas estas coisas.
Não possuía mais agitação ou angústia pelo medo do desconhecido. Começava a sorrir e a chorar ao mesmo tempo.
Isso porque, em seu campo visual, todo um cortejo de amigos invisíveis ali estava para fortalecê-lo e estimulá-lo no momento decisivo de seu desprendimento físico. Era mais um lutador da vida que voltava da arena carnal, entre os sofrimentos e as dores, para encontrar o merecido reconforto nos braços dos Espíritos, amigos de outrora, que nunca nos deixam de amar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 7:22 pm

Mais desprendido do corpo físico, apesar de ainda ligado a ele pelos laços energéticos, Meldek passara a comungar das duas realidades, sem perceber onde uma delas terminava e onde outra começava.
Via os dois mundos como se ambos fossem apenas um. Estava sendo gradativamente preparado para as realidades da vida espiritual que o aguardava, em breve.
Descortinara a presença de sua mãezinha a sorrir-lhe e dizer-lhe que estava ali, ao seu lado, como antigamente.
Sua emoção crescia interiormente e a esperança de não morrer nunca dava-lhe os melhores argumentos para acreditar que tudo aquilo era verdade aos seus olhos.
Hatsek, já adestrado na visão do mundo espiritual, falava do que estava vendo, revelando-lhe o cortejo amigo que o vinha saudar nos umbrais da passagem entre os dois mundos, no gesto fraterno dos que querem cumprimentar aquele que regressa.
Impulsionado pela palavra amiga do sacerdote, a sintonia de Meldek ganhou os planos invisíveis e, pela força da singela lembrança, tudo passava a se tornar realidade que se apresentava sólida aos seus olhos espantados.
— Mãezinha, mãezinha.... — exclamava, emocionado, o enfermo que se via envolvido pelas mãos daquela que o havia embalado — quanta saudade de você....
Esticava as mãos no ar, como se desejasse abraçá-la com os braços físicos.
Kaemy chorava de emoção e por constatar que os momentos finais se avizinhavam.
Hatsek mantinha-se em firme postura de doação de forças para que os quadros espirituais pudessem ajudar Meldek a desprender-se do corpo sem apegos que o dificultassem na verdadeira vida, apegos estes que produzem um dos piores tipos de sofrimentos no Espírito daqueles que empreendem a viagem de regresso à Pátria Espiritual.
Tal fenómeno que envolvia o Espírito do doente durara algumas horas e persista mesmo sem a acção directa do magnetismo de Hatsek, já que acima deles, Khufu estava envolvendo todo aquele grupo nas vibrações de harmonia que permitiam que eles se colocassem em sintonia com o mundo espiritual.
Por fim, passadas as horas em que Meldek descrevia os visitantes, os parentes antigos, os amigos da infância, os conhecidos, Khufu propiciou a interrupção de tais visões, reconduzindo o corpo espiritual de Meldek para uni-lo, novamente, ao corpo físico, a fim de dar seguimento ao processo do desenlace, agora beneficiado pela alteração íntima dos sentimentos do doente.
Retomando o corpo, em plenitude de sensações e de dores, Meldek se viu como a ave que, depois de esticar suas asas, é forçada a voltar para o interior de sua gaiola apertada, na qual não pode dar, senão, pulinhos, aprisionada que se encontra nos estreitos limites do mundo que a recolhe, entre as grades que impedem o seu voo.
Agasalhando o desejo de voltar ao mundo da liberdade, Meldek procurou as mãos de Kaemy para lhe agradecer por todas as coisas boas que viveram juntos.
Encontrando as mãos da esposa querida, o marido ofegante as enlaça com as suas, dizendo:
— Parto, meu amor, para as belezas da vida nova que me espera.
O que pude ver, não sei explicar como, me faz pedir a Amon que me liberte o mais depressa possível. Mas antes de ir........ não posso deixar de lhe dizer como a sua vida foi importante para minha alma. ...
Graças à você eu não caí tanto como poderia ter caído... Eu consegui forças... em seu exemplo... eu cheguei até aqui com mais qualidades do que tinha antes de a conhecer.
Não tenho como lhe deixar bens ou riquezas que poderiam ajudá-la nesta hora de dificuldades...
A única riqueza que posso lhe entregar agora..., meu amor..., é a minha gratidão eterna, minha ... admiração e o meu ... pedido de .... perdão... por todo o trabalho que lhe dei...
Uma onda de lágrimas invadiu seu ser e interrompeu a difícil tarefa de despedir-se de Kaemy que, ajoelhada junto à cabeceira do leito, procurava beijar-lhe os cabelos, num supremo gesto de amor diante das despedidas daquela hora.
— Eu o amo, meu querido, meu esposo valoroso e bom... Estarei sempre pedindo a Amon por sua felicidade e espero que, no dia em que me conduzirem para a mesma trajectória que você está enfrentando agora, possa encontrar os seus braços me esperando também... — foi o que a esposa emocionada conseguiu responder, antes de misturar as suas lágrimas às do marido, unidos, rosto a rosto, no supremo momento das despedidas derradeiras.
Hatsek olhava a comovente cena, envolvido também na emoção do amor que banhava aquele pequeno recinto, onde duas almas solidárias na trajectória da própria elevação, se despediam como companheiras de jornada comum, prometendo se reencontrarem para a continuação dos laços afectivos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 7:22 pm

Depois da cena vivida pelos cônjuges, Meldek perdeu a consciência e foi iniciado o desligamento de seu Espírito do corpo que o albergara até aquele dia.
Em operações complexas e bem dirigidas, o Espírito de Khufu e seus auxiliares, passaram a proceder ao desenlace dos liames magnéticos que mantinham os dois corpos de Meldek, — o físico e o perispiritual unidos para as experiências da vida física que chegava ao fim.
Entre as lágrimas de sua esposa, no amanhecer do outro dia, Meldek Espírito partia para a liberdade, carregado nos braços de sua mãezinha amorosa que o viera buscar, como o precioso fardo que o Amor Verdadeiro jamais abandona.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 7:23 pm

24 — O destino sorri para Kalmark
Com o desencarne de Meldek, Hatsek procurou providenciar todos os preparativos para o funeral, de acordo com os costumes da época, ao mesmo tempo em que buscava dar protecção à Kaemy, que se apresentava desolada e solitária, não desejando outra coisa senão partir para Amarna em busca do filho Kalmark, principalmente depois que soube dos detalhes que motivaram a sua expulsão da residência do príncipe.
Tão resoluta se encontrava que recusou todas as ofertas do sacerdote para que, por seu intermédio, tentasse voltar à casa de Nekhefre, já que poderia interceder junto ao príncipe para que fosse readmitida nos serviços da casa.
Entretanto, mesmo que essa remota possibilidade fosse possível, Kaemy não desejava mais retomar aquilo que estava encerrado para sempre em sua vida.
Foi aceita temporariamente no templo de Amon-Rá nos serviços de arrumação e limpeza gerais, para que pudesse se preparar para o sepultamento do esposo que, na tradição antiga demoraria vários dias para acontecer, ante os preparativos complexos que eram feitos, mesmo para os mortos menos importantes.
Ao mesmo tempo, Hatsek tentara por todos os meios encontrar o jovem Kalmark para solicitar-lhe o retorno imediato a Tebas, o que não logrou conseguir pelas naturais dificuldades de comunicação da época.
Assim, restava aguardar as exéquias de Meldek para dar um destino adequado à Kaemy, na procura pelo filho querido.
Enquanto isso, sem saber de nada, Kalmark ia se aproximando de seu destino tão sonhado. A embarcação que o levava seguia lentamente o curso do Nilo, descendo um pouco a cada dia o rio sagrado,
parando para receber carga e para deixar pessoas e coisas ao longo do trajecto.
Em seu deslocamento, Kalmark seguia pensando nos entes amados e no coração de Marnahan que parecia estar encravado dentro de seu peito. Desejava consorciar-se com ela o quanto antes, ainda que para isso precisasse fazer todos os maiores esforços possíveis para apresentar-se diante do príncipe Nekhefre com a altivez dos que vêm reivindicar os seus próprios direitos de igual para igual.
Mais alguns dias de viagem e a embarcação tocou o porto da capital religiosa de Akhenaton, regurgitando de gente à espera de negócios e de vantagens à sombra do faraó.
Havia conhecido na viagem, um homem que lhe pareceu amistoso e que, apesar de mais idoso, se tornara a única companhia com quem mantinha uma certa relação simpática durante todo o tempo em que durara o deslocamento.
Tratava-se de Roab, pessoa de modo misterioso e quieto, mas que procurava inteirar-se de tudo, como se tivesse a curiosidade de uma criança.
Com seus modos inocentes, Kalmark se viu facilmente atraído pela maneira experiente, segura e interessada de Roab que, logo, já sabia o que o jovem pretendia em Amarna. Soube que se tratava de um talentoso artesão, que pretendia oferecer-se ao serviço do faraó e que, ao mesmo tempo, pretendia ampliar os seus conhecimentos na arte que lhe era natural atributo do ser, a fim de tornar-se um profissional mais preparado, aprendendo com outros mais competentes.
Kalmark, com o tempo, foi revelando a Roab todos os seus intentos, inclusive o de casar-se com a filha do príncipe Nekhefre, o que lhe causou incontida surpresa, diante da tenacidade e do arrojo de um jovem de 17 anos de idade.
Enquanto a viagem transcorria, Roab foi se afeiçoando pelos modos daquele rapaz e, apesar de ser homem frio, que usava de sua aparente figura despreocupada para melhor misturar-se no meio dos outros, passou a desejar ajudar o jovem, inclusive porque a história de Kalmark tinha pontos em comum com a figura de Nekhefre.
Na verdade, Roab era um dos espiões de Mudinar, o chefe da guarda de Akhenaton, e que tinha o dever de tudo averiguar em Tebas para, depois, relatar os fatos ao seu superior em Amarna.
Não se esqueça o leitor do que já foi relatado no início da história,
sobre as transformações profundas que a crença de Akhenaton impôs ao Egipto e que se apresentava difícil de ser acatada pelos moradores da antiga capital. Por esse motivo, Mudinar espalhou uma rede de informantes por todos os lados, principalmente na antiga sede do governo, onde se encontravam os mais refractários às ideias novas que lhe cabia implantar. Roab fora colocado em Tebas para avaliar todas as reacções populares e informar a sede do governo real sobre as condições e sobre as pessoas.
Entre os que estavam sob sua investigação especial, Mudinar havia determinado que se dedicasse aos movimentos do príncipe Nekhefre, pois há muito tempo, o chefe da guarda vinha fechando o cerco sobre as personagens mais relevantes da antiga metrópole, para delas obter o apoio ou para tirá-las do caminho, de uma só vez.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 7:23 pm

Roab, num golpe de sorte, havia encontrado na viagem uma das fontes mais importantes de informações sobre Nekhefre, sobretudo por ter sabido que Kalmark havia vivido em sua casa, desde o nascimento, conhecendo assim toda a rotina do interior e sabendo dos relacionamentos do príncipe com o sacerdote de Amon-Rá.
Já a essa altura dos fatos, o rei se encontrava disposto a adoptar todas as medidas punitivas no combate aos sacerdotes do antigo deus egípcio, como o fizera, pouco tempo depois, mandando fechar todos os seus templos e impedindo-os de seguir cultuando o deus Amon.
— Até que enfim chegamos ao nosso destino, meu jovem e corajoso Kalmark — falou despreocupadamente Roab, enquanto começava a providenciar o descarregamento de sua bagagem.
— Nem me diga, Roab, eu já não aguentava mais esse balanço e essa demora... afinal, rio foi feito para peixe. Nós somos mesmo “bicho feito para areia” não é?! — exclamou o jovem, tentando corresponder à simpatia do amigo.
— E areia é o que não falta para nós agora. Vamos sair logo deste porto lotado de oportunistas para que possamos nos despedir mais além, longe deste amontoado de ladrões que ficam aqui vigiando nossos passos. Tome cuidado, Kalmark, pois pela sua idade já deve haver quem esteja de olho nas suas coisas para arrebatá-las de você. Fique perto de mim como se eu fosse o seu pai, pois deste modo, os mais afoitos ficam um pouco intimidados. Além disso, somos dois a serem enfrentados, o que é melhor do que seguirmos sozinhos, quando ficamos mais indefesos.
Vendo que Roab tinha razão, pois as fisionomias ali presentes não se manifestavam amistosas, Kalmark procurou manter-se grudado em Roab, principalmente porque não tinha nenhuma experiência na nova vida que começava.
Por certo, Roab fora um emissário dos deuses para protegê-lo nesse começo — pensava o jovem consigo mesmo. Com certeza, sem os alertas daquele momento, Kalmark seria imediatamente vitimado por algum dos mais truculentos que se punham nas redondezas do cais à espreita de vítimas das quais subtraíam os pertences.
Juntos, no entanto, puderam seguir adiante, não sem os cuidados da vigilância, até que se afastassem o suficiente para se sentirem mais seguros.
— E agora, meu jovem, o que será de seu caminho? Para onde pretende se dirigir? Onde passará os dias até que encontre o emprego que pretende? — interessava-se Roab pelo destino do jovem à sua frente, perdido nas cogitações para as quais não tinha nenhuma resposta.
— Bem... Roab... eu vou.. procurar alguma estalagem por aí. Acho que deve existir algum lugar onde eu possa ficar por uns dias, até achar um trabalho... — respondeu inseguro o jovem, dando a nítida impressão de que não sabia sequer por onde começar.
— Estou vendo, Kalmark, que você não entende nada desta vida na capital de Aton. As estalagens são poucas e muito caras. Os oportunistas ficam indo e vindo à espera de uma ocasião propícia para dar o golpe em alguém que pareça ingénuo o suficiente para não perceber-lhes as intenções. Com certeza, até o fim do dia você já estará somente com a roupa do corpo, sonhando em voltar para Tebas e se penitenciando por ter sido tão aventureiro.
— Será que é assim, Roab? — perguntou perplexo o jovem.
— Não vou deixá-lo confirmar na própria pele tudo isto — respondeu o homem, procurando dar ao jovem uma confiança amiga. Na verdade, Roab não queria perder Kalmark de vista, uma vez que ele era uma importante fonte de informações e, até mesmo, testemunha ocular do relacionamento entre Nekhefre e o sacerdote de Amon em Tebas. - Se me permitir ajudá-lo, já que sua coragem e seus nobres sentimentos me sensibilizaram a alma, ofereço-lhe a pousada em minha modesta moradia, por alguns dias, enquanto providenciamos um trabalho para você junto a alguns amigos que possuo por aqui e que poderão, quem sabe, nos ajudar a encaminhá-lo. Que tal?
Sensibilizado pela proposta que surgia espontânea, diante da incerteza do futuro e das dificuldades que lhe eram anunciadas e que poderiam pôr tudo a perder, Kalmark mais não pôde fazer do que aceitar a oferenda, de uma maneira tímida e envergonhada.
— Puxa, Roab, não sei nem o que dizer, pois não tenho nem muito dinheiro para pagar pela hospedagem que você me oferece.
— Não estou falando em pagamento, meu rapaz. Estou querendo ajudá-lo para que possa conseguir alguma coisa e, quem sabe, casar-se em breve com quem diz que ama tanto. Além disso, ainda que não lhe custe nenhum dinheiro, você se responsabilizará pela arrumação da casa, na minha ausência, cuidando de colocar as coisas em ordem até que encontremos um lugar para você trabalhar e ganhar o seu dinheiro. Como vê, de alguma maneira você irá pagar a hospedagem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 7:23 pm

Por isso, não precisa ficar envergonhado em aceitá-la, já que não estará recebendo um favor que possa ferir o seu orgulho pessoal.
Diante dos argumentos astutos de Roab, o jovem se curvou reverente diante dele e beijou-lhe as mãos num gesto espontâneo de gratidão, que muito tocou o interior frio de Roab, já que não estava afeito àquele tipo de demonstração de respeito.
Assim fizeram.
Acomodaram-se na modesta vivenda onde Roab passava os dias quando se encontrava em Amarna, sem qualquer outra pessoa a lhes partilhar a casa, já que era viúvo e sem filhos.
Uma vez instalados, iniciada a rotina de todos os dias, Kalmark passou a administrar os serviços da pequena casa, enquanto Roab saía logo pela manhã em busca da realização de seus negócios pessoais cuja essência, por esperteza e malícia, havia ocultado do jovem, dizendo-lhe que era um simples comerciante de especiarias e que viajava pelo Nilo intermediando negócios para trazer os melhores produtos até a corte de Akhenaton.
Em verdade, tão logo chegasse a Amarna, a função de Roab era procurar por Mudinar a fim de colocá-lo a par de todos os fatos ocorridos em Tebas, falando da insatisfação do povo com a nova ordem religiosa, da manutenção das velhas práticas politeístas, da influência dos sacerdotes de Amon-Rá no culto popular, dos negócios escusos que ainda eram feitos nos santuários, na construção de uma insurreição silenciosa, modelada no interior dos templos e insuflada no coração do povo para que combatesse a nova e exclusiva divindade Aton.
Avistando-se com Mudinar no palácio do faraó, Roab relatou-lhe todos os fatos preocupantes para os governantes do reino egípcio, que lhes impunham o dever de coibir todas estas possíveis reacções que já eram esperadas, mas que tinham de ser combatidas.
— Estão as coisas neste pé, verdadeiramente, Roab? — perguntou directamente Mudinar.
— Sim, meu senhor. Atendendo às vossas ordens pessoais, posso afirmar com o risco de minha própria vida, que os tebanos estão sendo cada vez mais envenenados pelos sacerdotes de Amon-Rá a fim de que combatam o culto de Aton, como um culto intruso e que rompe com a tradição de seus costumes mais sagrados. Certamente, tais argumentos lhes são fornecidos pelos próprios sacerdotes, que não desejam perder a importância que sempre tiveram e que lhes garantia a prosperidade financeira.
A tolerância de nosso soberano tem sido utilizada para solapar-lhe o esforço de fazer nosso povo elevar-se na crença no deus único, como é o desejo de nosso rei.
Realizam-se festas comemorativas a Amon, no interior dos santuários, longe das vistas da maioria dos súbditos, mas frequentadas pelos mais abastados moradores de Tebas, cultivadores da velha tradição religiosa, apesar das determinações do faraó.
Mesmo aqueles que já deixaram de público a sua aceitação a Aton, no desejo de agradar ao faraó e de manter os favores do Estado, na calada da noite, envoltos em mantos singelos para fugir da curiosidade do povo, dirigem-se até os diversos santuários de Amon para prestar-lhe culto secreto, fazendo oferendas, entregando riquezas aos sacerdotes, como se nada houvesse mudado.
Assim, Tebas se parece com a esposa que, de dia se dedica ao marido, mas à noite, se entrega ao amante.
A intenção de Roab era a de impressionar o Espírito de Mudinar, como forma de valorizar o seu próprio trabalho e alertar para os factos verdadeiros que ocorriam na velha capital.
Mudinar, por sua vez, Espírito astuto e tirano, não concordava com a placidez com que Akhenaton vinha conduzindo as coisas no que se referia aos sacerdotes de Amon. Acreditava que era necessário impor punições severas e cortar, de uma vez por todas, as liberdades daqueles que as usavam para ferir o que lhes garantia a liberdade.
As informações de Roab eram preciosas para o seu intento de influenciar o faraó nas medidas drásticas que pretendia adoptar contra os antigos sacerdotes, interesseiros, venais e distanciados dos ideais de Akhenaton.
— Seus informes, caro Roab, são extremamente graves e importantes para mim. Saberei valorizá-los regiamente, pois o que você está fazendo, mais do que informando um funcionário do Estado, é salvando o próprio faraó de uma punhalada traiçoeira que lhe seria desferida por aqueles que têm merecido do nosso rei a tolerância e a consideração.
— Cumpro, apenas, o meu dever junto ao meu rei e junto a vossa autoridade que honrou-me com tal missão, nobre Mudinar — respondeu Roab, enaltecido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 7:23 pm

— E quanto aos casos específicos que o incumbi de averiguar? - perguntou Mudinar referindo-se às pessoas em especial, das quais desejava notícias.
— Bem, nobre senhor, o que posso adiantar é que se comportam como a maioria. Longe da presença intimidatória do faraó, sentem-se livres para seguir vivendo à moda antiga. São os que mais se ligam a Amon e que o procuram para todas as coisas.
— Inclusive Nekhefre? — indagou de chofre o chefe da guarda, interessado especialmente no príncipe.
— Principalmente ele, meu senhor. Falando dessa personagem, além de frequentar os cultos a Amon constantemente, posso dizer que tem uma ligação mais arraigada com um sacerdote de Tebas do que com o próprio Amon. É verdade que se trata de um sacerdote diferente de todos os outros. Não se lhe percebe a participação em nenhum movimento de rebeldia popular contra nosso deus. Está sempre atendendo o povo sofrido e não aceita qualquer tipo de pagamento para os benefícios que espalha. Tem conhecimentos vastos sobre muitas coisas, mas é discreto e não é visto nas cerimónias secretas, como se desejasse dizer que não partilha da insurreição dos demais colegas de santuário.
Em resumo, é um homem nobre e diferente dos demais. Todavia, é um sacerdote de Amon-Rá ao qual Nekhefre se liga diariamente, como se fosse mais submisso a ele do que a Akhenaton.
E mesmo que esse sacerdote, de nome Hatsekenká, não participe das comemorações secretas a Amon, Nekhefre não falta a elas, comparecendo disfarçado para não ser visto.
— Muito interessante tudo isso, Roab — falou Mudinar com um sorriso irónico no rosto, como que a vislumbrar as atitudes que deveria tomar, com um prazer maior do que em qualquer outra já adoptada.
— Mas ainda não é tudo, nobre Mudinar.
— Pois fale logo, homem, por Aton... — ordenou o chefe da guarda.
— Durante a viagem — e só pode ter sido por Aton que isso ocorreu — conheci um jovem valoroso e destemido que se atirou, nos seus 17 anos, a uma aventura de vir até Amarna para trabalhar e conquistar posição na corte de nosso rei como artesão, entalhador e joalheiro. E o que é mais interessante é que deixou toda a segurança para trás por um desejo apaixonado, próprio da juventude, por uma jovem que pretende desposar, mas que não poderia fazê-lo por ser de estirpe inferior à dela, ainda que a ela isso não importe.
Mudinar, inquieto, escutava essa narrativa entre a ansiedade e a impaciência, por não ver nada de mais nas informações que vinha obtendo de Roab.
— Sim, meu amigo Roab, como tantas histórias que ouvimos todos os dias por aí, de jovens que querem fortunas para satisfazer sonhos que nunca se concretizam...
— Sim, meu senhor, mas este jovem é diferente... — fez mistério ainda maior o narrador, para intrigar Mudinar e fazê-lo ficar mais curioso.
— Como é isso, Roab, fale de uma vez ou mando-o prender nas minhas prisões — respondeu com um sorriso maroto o Chefe da Guarda, dando maior intimidade à relação que mantinha com o seu espião.
— Pois o que me vai salvar de vossa tão nobre hospitalidade nas masmorras do palácio, senhor, é a informação de que esse rapaz nasceu e cresceu na casa de Nekhefre, conhece todas as rotinas da família, presenciou todos os encontros do príncipe com o sacerdote de Amon que lhe frequenta a moradia e, acima de tudo, a jovem por quem está apaixonado e que afirma ser correspondido não é ninguém menos do que a própria filha mais velha do dono da casa, Marnahan.
Calou-se Roab para que a sua informação pudesse causar o impacto que pretendia nó interior do astuto homem de raciocínio rápido como era Mudinar.
Um brilho feriu a retina do funcionário de Akhenaton, como que a observar os favores da sorte chegando-lhe às mãos.
Ali estava uma testemunha presencial de todas as acusações que Roab fazia a Nekhefre e que poderia levar o príncipe até mesmo à execução se, diante do faraó, tudo isso viesse a ser revelado e confirmado.
Além do mais, Mudinar poderia usar o jovem como instrumento de tortura contra o príncipe, já que sabia o quanto Nekhefre abominava a mistura de classes sociais, notadamente dentro de sua própria família.
— Essa foi a melhor notícia que recebi de você hoje, Roab — disse Mudinar quebrando o silêncio. — E onde está o jovem? Vai me dizer que deixou que ele se misturasse com esse povaréu que anda por Amarna todos os dias...
— Claro que não, meu senhor. O rapaz está hospedado em minha casa à procura de um emprego onde possa colocar seu talento a serviço do faraó.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 4 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 7:24 pm

Por isso, solicito os vossos favores para conseguirmos uma colocação junto aos artistas que trabalham em palácio, atendendo às ordens e desejos dos nobres que por aqui transitam, para que possamos tê-lo próximo a nós e, no momento adequado, usarmos essa fonte viva para favorecer os desejos de implantarmos o culto de Aton sobre todos os traidores.
— Nem poderia ser diferente, Roab. Seu pedido será imediatamente atendido e, esteja certo de que seu trabalho será remunerado de forma a compensar todos os transtornos que você teve de enfrentar e propiciar-lhe uma grande alegria pela fidelidade demonstrada à causa de Akhenaton. Diga ainda ao rapaz que, se trabalhar com correcção e empenho, será apresentado ao próprio Faraó em pessoa. Com essa promessa, ficará ainda mais ligado aos deveres aqui em Amarna.
— Agradeço, generoso Mudinar. Meu ser pertence à vossa vontade para servir-vos, bem como para servir ao nosso rei — disse Roab, reverente e agradecido.
E assim, naquele dia, ao regressar para casa, Roab trazia consigo a permissão para levar Kalmark até as oficinas reais onde ele iria começar o trabalho de crescimento como artista, mas onde, também, estaria resguardado das vistas de todos como carta na manga nas acusações contra Nekhefre, como supunham os dois homens inescrupulosos, acostumados a dirigir os destinos das pessoas segundo os seus caprichos pessoais, sem perceberem que todos são responsáveis pelos sorrisos e pelas lágrimas que semeiam nos caminhos alheios.
Kalmark não acreditava na felicidade que lhe abria as portas de forma tão natural e espontânea a ponto de, em uma breve semana, já estar trabalhando junto a artistas de grande conhecimento e de talento reconhecido, com os quais aprenderia a ser o melhor dentre os melhores, para poder conquistar o respeito dos pais de sua amada e, em breve, retornar a Tebas para obter a autorização para o casamento.
Kalmark ainda não sabia como as coisas haviam mudado na vida de seus pais e na sua própria, depois daquele diálogo com Nekhefre.
Não sabia que os seus pais haviam sido expulsos do trabalho, que haviam enfrentado o sofrimento, que seu pai já não se achava mais no mundo dos vivos da carne e que sua mãe estava à sua procura, desejosa de empreender viagem até Amarna a fim de encontrá-lo, único sobrevivente de sua pequena família.
Descobrir tudo isto, seria um golpe muito doloroso em seu espírito sensível.

() Cartuchos contendo o nome do Faraó Akhenaton na escrita hieroglífica. Akhenaton (Amenófis)
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25 — A acção protectora dos Espíritos amigos
Com o correr dos dias, Kalmark se envolveu com o aprendizado e, no desenvolvimento de seu talento impressionava os mais capacitados artistas que trabalhavam na mesma área de actividades, demonstrando sua competência e, ao mesmo tempo, provocando receios e invejas ocultas, fruto dos temores que a mediocridade alberga sempre na alma das pessoas pequenas e fracas.
No entanto, o seu interior inocente e despreparado para esse tipo de vida que se levava junto à corte do faraó, não lhe permitia que percebesse com clareza tais condutas alheias, amedrontadas pelas demonstrações de maturidade de sua arte.
Kalmark se colocava sempre como aprendiz sem nenhum desejo de substituir os seus tutores. No entanto, na cabeça destes, o jovem surgia como uma ameaça à manutenção de seus lugares, já que ao seu mais singelo toque, as peças ganhavam um brilho, uma feição, uma expressão diferenciada de tudo o que se houvera produzido até então.
Todos sabiam das preferências de Akhenaton por uma arte autêntica, espelhando a vida real, através da qual se legasse aos demais a força da verdade em todas as suas representações.
E o jovem tinha especial talento para saber representar, fosse no que fosse, a sensibilidade da vida, com toda a força de sua espontaneidade, com a beleza das coisas feitas de acordo com os impulsos da alma, que nos verdadeiros artistas flui sem barreiras.
Nos outros artesãos, havia a preocupação em produzir aquilo que agradaria aos olhos alheios, numa verdadeira violação da naturalidade das coisas e das inspirações. Isso produzia obras de sabor comum, sem a poesia e a autenticidade da inspiração superior, que não se submete aos modelos previamente produzidos.
Naquele rapaz, no entanto, ao talento e à capacidade de suas mãos, aliava-se a subtileza e a intuição do verdadeiro artista, permitindo que se produzissem esculturas, artefactos, desenhos, objectos e jóias que impressionavam pela simplicidade e beleza.
Tal potencialidade logo foi objecto de observação por parte de todos.
Roab sistematicamente a mencionava a Mudinar que, observando a produção do rapaz, confirmava com os próprios olhos, impressionado, as notícias que recebia de seu informante.
Os demais companheiros de trabalho de Kalmark, igualmente, viam-se atordoados pela naturalidade com que conseguia obter os mais variados efeitos, sem parecer fazer qualquer esforço para isso.
Por isso, muitos se viam ameaçados e, não poucos, começavam a se incomodar com a sua presença.
A esta altura, depois de alguns meses de trabalho e graças à ajuda secreta de Mudinar, Kalmark conseguira estabelecer moradia em pequena habitação nas proximidades do templo de Akhenaton, de onde saía todos os dias para o trabalho e para atender as encomendas que não paravam de crescer, o que lhe aumentava a responsabilidade e lhe faziam a fama alongar-se para fora das paredes do ateliê onde trabalhava. Seu sonho, todavia, ainda não houvera sido realizado.
Ali estava com aprendiz, sempre vinculado à vontade de alguém que tinha poder sobre ele e que, no mais das vezes, censurava certos arroubos criativos, injustamente.
Parecia que os outros pretendiam sempre cortar de seus trabalhos tudo aquilo que mais os encantava, como que desejando enfeia-los à força. Kalmark não entendia isso nem o porquê dessa conduta. Via nela a ausência de visão, de compreensão da beleza quando, em realidade, era inveja pura a tentar contaminar a produção do jovem com o veneno da malícia e da impureza.
O desejo de Kalmark era o de se estabelecer por si próprio, ainda que precisasse contar com o auxílio material de alguém. Mas não desejava mais ter chefes, nem superiores, agora que já estava familiarizado com todas as técnicas e os métodos que, à sua vista, lhe pareciam naturais e, em alguns casos, até mesmo ultrapassados.
Desejava inovar na área criativa e produzir coisas que, até então, ninguém pensara em fazer, acostumados que estavam todos a se comportar pelos padrões artificiais dos que ali viviam.
Ele era um verdadeiro artista, cuja sensibilidade parecia ser um raio de sol no meio dos blocos de arenito tão vulgares naquelas paragens. Era assim que ele se parecia quando comparado aos seus companheiros de trabalho.
Ao mesmo tempo, tinha o sonho de voltar a Tebas e trazer seus pais para viverem juntos em Amarna. No entanto, apesar do progresso que realizara, não lograra recursos para a concretização desse desejo.
Em Tebas, por sua vez, realizadas as cerimónias de sepultamento de Meldek, Hatsek tomou a si a responsabilidade pelo destino de Kaemy, ainda abatida e fraca com os últimos acontecimentos em sua vida.
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Conversando com o Grão-Sacerdote, dele obteve a autorização para que a mulher fosse aceita temporariamente no templo, nos serviços gerais de arrumação e limpeza, como já se explicou anteriormente.
Todavia, os meses já se tinham passado e era preciso dar-lhe o destino que desejasse, para que as coisas fossem encaminhadas no sentido das necessidades de cada um.
Uma vez que Kaemy não desejava outra coisa senão encontrar o filho e permanecer ao seu lado, Hatsek, primeiramente, mandou procurá-lo em Amarna, servindo-se de mensageiros amigos que para lá se dirigiam. Todavia, a viagem longa e a lentidão das comunicações, impedia que se solucionasse a contento a questão.
Impossibilitado de ausentar-se de Tebas por motivos administrativos, Hatsek conseguiu que Kaemy fosse levada até Amarna por uma embarcação segura, propriedade de um dos devotos de Amon que muito se ligava a Hatsek, pelos favores dele recebidos.
Miradj, o barqueiro, assumira perante Hatsek a responsabilidade de proteger Kaemy durante todo o trajecto e de permitir-lhe uma viagem sem riscos e sem tarefas muito pesadas, já que o deslocamento pelo Nilo, naqueles tempos, era trabalho de homens fortes e, muitas vezes, exigia até mesmo sacrifícios acima de suas próprias forças.
As mulheres que se arriscavam a viagens assim, junto a desconhecidos, corriam muitos riscos pessoais, já que poderiam sofrer toda a sorte de abusos e de violências, quando não fossem exigidas nos trabalhos vulgares de limpeza ou de serviço aos outros homens da embarcação.
Entregando Kaemy aos cuidados do barqueiro, Hatsek colocou em suas mãos pequena bolsa com moedas que lhe garantiriam um período de razoável tranquilidade quando de sua chegada a Amarna.
Ao menos, poderia abrigar-se e alimentar-se sem maiores dificuldades.
No dia da partida, o sacerdote havia combinado com o barqueiro que Kaemy seria a última passageira a embarcar. Isso porque ele pretendia, na frente de todos os outros passageiros, demonstrar que ela era pessoa de sua protecção e que, qualquer um que sobre ela pretendesse comportar-se indignamente, sofreria toda a sorte de maldições sempre tão temidas nos tempos antigos.
Assim, com todos os passageiros presentes, Hatsek subiu a bordo com sua protegida e, na presença de Miradj, abençoou o barco, a viagem e Kaemy, rogando a Amon que nada viesse a acontecer com todos, especialmente com ela. Que se considerasse amaldiçoado pelos deuses qualquer um que usasse de palavras ou actos que ameaçassem a segurança de Kaemy.
Impressionados todos com o poder de sua personalidade e pelo misticismo de tais práticas, inócuas, mas eficazes pelo efeito psicológico que causavam, Hatsek despediu-se de Kaemy e de Miradj, permitindo, assim, que o barco ganhasse o movimento na direcção de seu destino.
A presença de Kaemy, dentro do barco, passou a ser vista como algo diferente e, para alguns até mesmo perigoso.
As pessoas temiam sempre poderem fazer qualquer coisa que viesse a lhes causar dano pela maldição lançada pelo sacerdote.
A simples aproximação de Kaemy era vista com temor, já que o medo de se ver fazendo algo até mesmo involuntariamente — e assim, despertar a maldição — era muito grande. Esse, na verdade, era o efeito que Hatsek desejava obter para protecção de sua tutelada.
Ocorre que, com o decurso de alguns dias de viagem sem qualquer ocorrência, fosse pela fragilidade de seu corpo físico, fosse pelo constante balanço da embarcação, pela alimentação diferente, pelas difíceis condições de higiene, o certo é que Kaemy adoeceu, empalidecendo e apresentando febre constante.
Adoentada, não mais se levantava de seu lugar e, por isso, sequer para comer tinha ânimo.
Os demais passageiros, agora, não sabiam o que fazer, já que persistia a maldição de tocá-la ao mesmo tempo em que não pretendiam se ver ameaçados pela doença de Kaemy. Naqueles tempos, como ocorrera com Meldek, qualquer enfermidade era sinal de alerta para todos, já que poderia ser um foco a desencadear a epidemia e espalhar-se entre os que se encontrassem por perto.
No entanto, estavam todos presos dentro do barco e Miradj era o responsável pela sua protecção. Kaemy, entretanto, não se sentia bem e, quanto mais passavam os dias desde a partida, parecia que ela também não chegaria a Amarna para encontrar o filho amado.
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Um sentimento de pavor mudo conspirava dentro de alguns passageiros mais desesperados que, sem revelarem os seus intentos para que não fossem flagrados pelo barqueiro, se preparavam para actuar na solução daquele caso.
Por força da necessidade de rapidez, o barco de Miradj não interrompia a sua viagem durante as noites como costumava acontecer com tantas outras embarcações, já que estava sob a lua cheia e ele era um navegador experiente e conhecedor íntimo das armadilhas do Nilo naquele trecho. Só parava quando era necessário deixar alguém em algum povoado ribeirinho, ou para abastecer-se de algum produto importante para levar até o destino.
Por isso, a viagem por seu barco era considerada uma das mais rápidas até a capital do reino.
Naturalmente, durante a noite havia mais perigos do que o normal, eis que os bancos de areia, pedras ou os animais de grande porte como os hipopótamos usualmente causavam muitos acidentes a embarcações que se aventuravam rio abaixo.
Miradj era o responsável por conduzir o barco durante a noite, já que, durante o dia aceitava a ajuda de um assistente que estava treinando para tornar menos estafante a viagem fluvial.
Entre os passageiros, a maioria homens rudes como as pedras daquele lugar hostil, a solução do problema de Kaemy era urgente e não poderia esperar a chegada a Amarna.
Tão logo a noite chegou e Miradj assumiu seu posto em definitivo até o dia seguinte, o medo do contágio ditara aos corações a obrigação de se livrarem da carga incómoda.
Os líderes de tal empreitada, dois homens inescrupulosos, naturalmente, necessitavam esperar que a noite avançasse e que a maioria dos outros passageiros estivesse dormindo, para que o número de testemunhas fosse o menor possível.
Ao mesmo tempo, era necessário que Miradj estivesse distraído por alguma coisa, o que um deles se incumbiria de fazer, dirigindo-se até o barqueiro para lhe oferecer um gole de bebida que já haviam separado durante o dia.
Enquanto isso, aproveitando-se da distracção do guia da embarcação, o outro amordaçaria Kaemy para que ela não gritasse e estragasse seus planos e, com a força de seus músculos, amarrando-lhe os braços, desceria seu corpo pela lateral do barco e o soltaria na correnteza, evitando-se que qualquer ruído mais brusco lhe denunciasse o gesto assassino.
Naturalmente, a fragilidade de Kaemy não oporia qualquer dificuldade atai realização. Todavia, para se evitar qualquer surpresa, esperariam que o rio atingisse uma área onde as águas fossem mais rápidas pela presença de pedras no leito e, nessa área, se desfariam do fardo incómodo, fingindo não terem sido eles os autores do crime que, certamente, só seria percebido no dia seguinte e, ainda assim não se teria explicação clara para o desaparecimento, livrando-se os dois homens de qualquer suspeita.
No mundo espiritual, Khufu seguia os passos de Kaemy a fim de protegê-la de tais maldades, esforçando-se por se aproximar dos dois homens para intuí-los a não agir daquele modo com uma mulher indefesa e fraca. Desdobrava-se o Espírito amigo na protecção de Kaemy e na tentativa de impedir fosse ela vítima do ato criminoso.
Todavia, o pensamento invigilante e distante da elevação que aqueles homens possuíam não permitia que se sintonizassem com as intuições do bem ou com um raio de humanidade em seus espíritos.
Percebendo a dificuldade de se fazer sentir ou de tocar-lhes a sensibilidade, Khufu procurou por Miradj, sondando-lhe os pensamentos e sentimento. Ao fazê-lo, percebeu se tratar de um espírito menos atrasado e que, sempre que possível, tentava fazer as coisas certas, a ponto de estar vinculado ao sacerdote Hatsek, no culto a Amon.
Precisaria valer-se de Miradj para salvar Kaemy, utilizando-se das circunstâncias favoráveis e, com a permissão dos Espíritos Superiores, até mesmo da colaboração dos dois malfeitores a bordo do barco.
Elevou seu pensamento em oração sincera e profunda, na urgência daquele momento em que se projectava o assassinato de uma inocente mulher, já por si só tão desventurada.
Ao fazê-lo, ao seu redor uma luminosidade passou a envolvê-lo como se um raio de lua cheia viesse a circundá-lo por completo, transferindo para dentro do barco a própria Lua.
Tal poder magnético seria utilizado por Khufu, com a permissão superior, para agir em benefício da inocente Kaemy.
Todavia, o plano dos malfeitores seguia sem titubei-os.
A embarcação seguia para um dos trechos mais rápidos do rio, onde, pela presença de um leito pedregoso, as corredeiras eram mais comuns, aliadas a uma sucessão de curvas que dificultavam a navegação dos menos experientes.
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