LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 3 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:39 am

15 — Os porquês no passado
A partir dessa data, o relacionamento entre a família do príncipe Nekhefre e Hatsek se tornou cada vez mais intenso e os benefícios que obtinham de seus ensinamentos e conselhos se avolumavam.
Efectivamente, com os cuidados de Hatsek, a gravidez de Kimnut entrou em um período de estabilidade e as crises de aversão que vinha enfrentando diminuíram até que, com o passar dos dias, cederam completamente.
Ao lado dos remédios calmantes que o sacerdote ministrava, uma série de aplicações de forças através da imposição de mãos foram possibilitando uma harmonização no conjunto mãe e filha reencarnante que propiciou o retorno da paz ao seio da família.
Com o avanço do estado da mulher, Hatsek passou a perceber que aquela se tratava de uma gravidez complicada, porque as estruturas físicas que o sacerdote observava em Kimnut e o estado geral dos demais indicadores orgânicos apontavam para uma situação de risco, o que levou-o a manter-se directamente ligado àquele caso específico, sobretudo porque o espírito de Khufu assim o determinara.
Em certa ocasião, meditando sobre os fatos que estavam sob a sua observação e que o mantinham em contacto com a família de Nekhefre, ouviu seu tutor espiritual a falar-lhe com clareza:
— Querido filho, não se detenha diante das dificuldades que surgem. Estes são outros irmãos nossos que estão se preparando para enfrentar os desafios do crescimento, muitas vezes doloroso e amargo, mas que, se suportado com coragem e confiança, haverão de ser o doce remédio para a correcção dos desvios do passado. Necessito que permaneça ao lado dessa família, pois estamos, todos nós, ligados a uma mesma tarefa e temos dívidas comuns a serem saldadas.
Tanto eu como você estamos no caminho desse grupo de Espíritos, não somente como aqueles que têm o dever de auxiliar pela obrigação de fazer o bem no cumprimento das determinações do Poder Soberano do Universo. Temos responsabilidades pessoais para com todos eles e, no devido tempo elas serão compreendidas por seu raciocínio e sentimento.
Tudo o que fizer ou suportar no sentido de envolvê-los nas vibrações de compreensão e de ternura será a melhor maneira de cumprir com as suas responsabilidades e, um dia, você perceberá que ainda deixamos para trás muitas coisas que poderiam ter sido feitas de maneira melhor.
Estarei sempre ao seu lado.
Como já percebeu, a gravidez de Kimnut está se encaminhando para o período mais crítico e, por causas ligadas ao passado, haverá uma grande necessidade de que se prepare para agir com os conhecimentos que já possui para não deixar que, por descuidos ou ignorância da maioria, se perca esta oportunidade.
Envolvidas pelas tramas do passado, Kimnut e a futura filha se acham em constante disputa pelo amor de Nekhefre, disputa essa que pôde ser contornada com os medicamentos tranquilizantes que foram oferecidos a elas e com a transferência de energia feita constantemente, permitindo assim uma melhor acomodação dos conflitos interiores que ambas suportam.
Todavia, a Lei Maior não libera ninguém dos compromissos assumidos. Ao contrário, a sabedoria do Poder Soberano fornece a cada um os recursos para que se limpem por si mesmos, ao reencontro das dívidas do passado como ocorre neste caso.
Mesmo assim, em sentindo a aproximação do nascimento, o Espírito daquela que vai voltar ao convívio do .grande amor do passado, aquele que, hoje, lhe será o pai amoroso, se vê contrariada no seu íntimo por saber que Kimnut lhe ocupa o lugar desejado.
Guardando essas impressões de ciúme e antagonismo de outrora, tanto a criança em formação quanto a mãe que lhe suporta o processo de gestação se mesclam em uma atmosfera de disputas silenciosas e de temores que fazem relembrar, no fundo de seus sentimentos, os traumas das vidas passadas, nas quais os envolvidos neste drama escreveram as linhas da tragédia que se começa a resgatar.
Em linhas rápidas, Nekhefre fora um importante auxiliar de um dos antigos faraós e, por isso, via-se no direito de agir como desejasse, já que tinha poderes para fazer ou desfazer. Enriqueceu-se à custa da desgraça dos outros e, apesar de possuir esposa que o venerava pelas boas condições de vida que recebia dele e pelo amor sincero que lhe dedicava, não inspirava neste que hoje conhecemos como Nekhefre, o sentimento de idêntica devoção.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:39 am

Assim, valendo-se da facilidade de actuar sobre a vida dos demais, o auxiliar do faraó passou a envolver uma jovem de rara beleza nas suas teias de sedução e de desejo, até que não lhe restou outra alternativa senão a de destruir-lhe o casamento que mantinha com Medjar, um oficial subalterno da guarda do rei, para poder possuir a mulher, agora na condição de amante.
Enganada pelos sentimentos contraditórios de euforia e paixão, Serahia entregou-se integralmente ao amor de Khendjer, nome do nosso Nekhefre naquela existência, mesmo sabendo que ele tudo fizera para tirá-la do marido que muito a queria.
Iludida pela importância do novo pretendente, Serahia deixou-se envolver pelos desejos do homem que cobiça a presa e tudo faz para tê-la para si. Usando de seu poder, Khendjer baniu o marido para regiões distantes com a desculpa de fazê-lo cumprir determinações oficiais, transferindo-o para guarnições localizadas em locais ermos no deserto escaldante, para onde não seria possível levar a parentela que precisaria ficar na cidade.
Sem a presença do marido, o casal entregou-se a todo o tipo de envolvimento licencioso e adocicado por um amor que era mais a expressão de um desejo ou de uma vida de prazeres fáceis do que profundidade de compromissos. Em decorrência disso, não tardou para que Serahia se visse grávida e, assim, desejasse a presença de Khendjer mais perto de si mesma. Passara a conspirar contra a família oficial do funcionário do faraó e desejava, intimamente, que sua mulher saísse do seu caminho para que viesse a ficar com o homem amado definitivamente.
Obtendo do nosso Nekhefre/Khendjer as promessas de amor sem fim e de uma paixão forte e quase sem freios, Serahia aceitou-lhe as juras de início. Todavia, vendo que as coisas progrediam e ele não se decidia, deixou-se arrastar pelas entranhas femininas e pelas intuições negativas que sempre se valem desses pensamentos obscuros e conseguiu, junto de pessoas ignorantes, uma dose letal de veneno com o qual iria dar uma “ajudazinha” ao seu destino, tirando de circulação aquela que seria o empecilho à sua felicidade completa.
Em sua casa, Nekhefre havia alterado a sua vida íntima, deixando de ser carinhoso com a mulher que o idolatrava, com quem já tinha uma filhinha e que suportava o peso de sua ausência.
A nossa Kimnut de hoje, a mesma alma do passado, sabia das aventuras do marido e nada podia fazer para coibir-lhe o comportamento, já que se colocava entre as mulheres que tudo suportavam por causa do apego às coisas que não queria perder e ao homem que aceitara, com suas qualidades e defeitos.
Além disso, tinha uma filhinha a criar e não se permitiria colocá-la em condição de penúria.
Assim, engolia a infelicidade, sorvia as lágrimas amargas no cálice do sacrifício e da resignação, esperando que, mais cedo ou mais tarde, o juízo voltaria à cabeça do marido e aquela que parecia ser mais uma aventura, passaria como as outras.
No entanto, as coisas não correriam como ela esperava.
Nekhefre fazia de tudo para dificultar-lhe a vida, humilhando-a, maltratando-a, ferindo-lhe os sentimentos, tudo isso para que ela se sentisse estimulada a abandonar o lar, deixando-o livre para seguir sua vida de paixão com a outra mulher, cujo marido, a estas alturas, já devia estar desiludido ou morto, no deserto distante.
Além disso, Nekhefre/Khendjer fazia toda a sorte de oferendas nos templos para resolver esse problema afectivo, mas voltava para casa frustrado por ver inúteis todas as suas tentativas de solucionar por caminhos outros a desdita amorosa.
Nos encantos e devaneios que vivia junto a Serahia, enfrentava a insatisfação da amante que, constantemente, lhe feria o espírito másculo com insinuações de que ele não era tão poderoso como se fazia passar, eis que tivera poder para livrar-se do seu marido, mandando-o para o meio do nada, mas não tinha forças para acabar com aquela união, com uma mulher que não amava.
Serahia sabia usar de seus encantos físicos para elevar às alturas o jovem amante para, logo depois, usar de suas maneiras para infundir-lhe a cobrança de soluções para o seu problema.
Nekhefre / Khendjer não conseguia fazê-la entender que a sua situação era diferente da dela, já que ele possuía filha, a esposa era mulher sem meios ou forças para sobreviver, mas que ele estava fazendo tudo o que podia para terminar de uma vez por todas o casamento para que pudessem assumir a nova vida.
Serahia, entretanto, pensava consigo mesma que o amante ainda não havia feito, efectivamente, “tudo o que podia”. Afinal, o veneno se apresentava como uma dessas possibilidades que ainda não haviam sido tentadas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:40 am

Sem falar nada ao jovem, Serahia deu vazão aos seus sentimentos de posse e deixou-se levar pelo planeamento de uma forma de tirar a esposa de seu amante do próprio caminho, de uma vez por todas.
De nada lhe valeram as boas intuições dos amigos espirituais.
Como já lhe falei, procurou por um sábio que, detentor de conhecimentos muito vastos, era o mentor de suas ideias de ventura junto a Nekhefre, aquele homem poderoso, de onde pretendia, também o sábio, tirar vantagens.
Esse sábio de nome Tenief, que era cultor das ciências ocultas do seu tempo, sabia como manejar as forças da natureza e obter resultados desconhecidos por outros magos, parecendo que se tratavam de milagres que ocorriam peta sua simples vontade. Com essa fama crescente, o conhecimento e a reputação de mago poderoso se espalharam muito amplamente e, ao preço cada vez mais alto, os interessados poderiam trocar as suas riquezas por seus favores. Os mais caros, no entanto, eram os que se destinavam a alterar o destino das pessoas, subtraindo-as do convívio umas das outras através dos procedimentos de envenenamento ou de qualquer outro tipo de desgraça pessoal.
Assim, esse homem era procurado por muitas mulheres que desejavam livrar-se de outras concorrentes no coração do homem amado, sempre acreditando que poderiam dar uma ajudazinha ao destino.
Em função de seus conhecimentos, sabia que poderia produzir este ou aquele tipo de poção ou pó que, colocado na água, vinho, alimento ou no banho da vítima, lhe ocasionaria o destino pretendido.
Sabia, no entanto, que tais condutas eram incompatíveis com as leis do Soberano Poder e, por isso, na maior parte das vezes em que era procurado, recusava-se a fazê-lo.
No seu íntimo, era possuidor de uma índole boa, mas como homem de seu tempo, sujeito às fraquezas de sua época e da compreensão ainda pouco profunda a respeito das grandezas e belezas da Lei do Grande Criador, em algumas ocasiões, quando procurado para fornecer esses elementos que seriam usados na prática do mal, deixara-se levar pelas peculiaridades do caso, pela importância dos clientes, pela grandeza do pagamento, e se permitira atender a tais pedidos, ocasião em que buscava informar a pessoa dos graves danos que cometeria contra si mesma ao fazer o mal ou prejudicar alguém.
Era a forma de alertar o interessado para que não fizesse o que viria a prejudicá-lo no futuro e, ao mesmo tempo— pensava ele— livrar-se de qualquer responsabilidade pelo mal praticado. Todavia, por não estar ainda amadurecido totalmente, se o cliente, mesmo alertado, não desistisse do intento maléfico, Tenief aceitava o pagamento e fornecia a substância, assumindo, desse modo, compromisso com o mal que se fazia.
Assim foi com Serahia que, valendo-se do dinheiro que recebia do próprio Khendjer, conseguiu junto a Tenief a substância corrosiva que iria ser usada para afastar a mulher oficial de seu amante do seu caminho de felicidade.
Sem que Khendjer o soubesse, Serahia conseguiu subornar um serviçal da casa e o remédio acabou nas vísceras da esposa, que se viu expulsa do corpo em meio de violentas contorções, sem que qualquer recursos da medicina da época pudesse impedir a sua morte ou atestar a sua causa.
Além do mais, o estado emocional abatido que ela já vinha demonstrando, a partir das mudanças afectivas que o marido lhe impusera no mundo íntimo, levou todos os que a circundavam a acreditar que se tratava de um acto de desespero para pôr fim a um estado de sofrimento para o qual não via mais saída. Infelicitada pelo esposo e sem maiores perspectivas de alteração de seu panorama familiar, apesar de todas as renúncias que já vinha fazendo, todos viram nessa justificativa que parecia plausível, a adequada desculpa para considerar como suicídio aquilo que, antes de tudo,
fora um crime covarde e ardiloso.
Nekhefre / Khendjer, sem saber de nada disso, se viu surpreendido pela situação inusitada e foi tomado por uma dor íntima produzida pela consciência de culpa que, no fundo, o apontava como o responsável pelo estado de desespero da mulher.
Ainda que, naquele período, o senso moral colectivo estivesse pouco desenvolvido no que diz respeito ao contexto social, já havia espíritos que possuíam as condições de evolução que lhes permitia a percepção do erro e da maldade, da astúcia, do sofrimento deliberadamente imposto sobre os demais.
E assim, todos os que se achavam envolvidos nesse drama se comprometeram para os dias do futuro, necessitando retomar a estrada evolutiva juntos, do ponto em que estacionaram, para modificarem as tendências e as escolhas mal feitas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:40 am

Com a culpa na mente, o jovem acabou por envolver-se com a assassina de sua esposa, como que a procurar refrigério para as suas dores íntimas, aproveitando-se do infausto acontecimento e dele tirando todo o proveito que aquele aparente acaso lhe permitiria obter.
Sentia, no entanto que, de forma indirecta, contribuirá para que tal “acaso” se materializasse e iria ficar ainda mais assustado quando descobrisse como é que, pelas mãos de Serahia e com os recursos que Tenief havia fornecido, esse acaso se modificara em verdadeiro homicídio.
Medjar, o verdadeiro marido de Serahia, não havia regressado do remoto destacamento e, as últimas notícias dele obtidas eram de que se havia evadido, fugindo das situações hostis e procurando outros lugares onde pudesse receber tratamento para uma enfermidade que havia contraído ao contacto com as areias daquele lugar.
Foi, a partir de então, considerado morto e, com as medidas legais necessárias, Khendjer / Nekhefre e Serahia uniram-se oficialmente, concretizando-se assim, os sonhos de mulher e de homem, ao preço da destruição de duas famílias e do sofrimento de outras pessoas.
Eis aqui, filho amado, os motivos que levam esta família a se ver envolvida pelas situações atuais, principalmente agora, quando todos se reaproximam para as reconstruções necessárias ao progresso e ao perdão das ofensas.
Desaparecera de suas vistas mediúnicas o luminoso Espírito protector que, através da rapidez do pensamento não precisara mais do que alguns minutos para apresentar-lhe a história daqueles que, agora, buscava ajudar a reerguer. Profundamente tocado pelas exposições de Khufu, Hatsek pudera entrever as belezas das leis divinas a se concretizarem nos destinos de todos nós e a nos encaminharem para as trilhas espinhosas que nós mesmos abrimos com as nossas condutas irreflectidas de ontem ou de agora.
Compreendia mais profundamente o porquê do comportamento de Kimnut que, sentindo a aproximação de Serahia que se preparava para regressar, agora, como filha dos dois, experimentava no seu íntimo uma aversão inexplicável pelo marido, como que se recordando dos sofrimentos do passado.
A sua luta íntima para amar aquele ser que trazia no ventre com o sentimento materno doce e nobre conflituava com os ressentimentos que carregava em seu espírito, ao contacto daquela que lhe havia tirado a vida física e a ventura familiar tantos séculos atrás.
Ao mesmo tempo, Serahia Espírito, ao aproximar-se do afecto de Nekhefre, voltou a sentir aquela paixão carnal que levara todos à desdita dos actos insensatos e, sabendo-se agora impossibilitada de exercer os domínios de mulher sobre aquele que seria o seu genitor, sentia-se inclinada, novamente, a impedir que ele fosse feliz com a sua concorrente, o que motivava nela, igualmente, o desejo de que o futuro pai acabasse por envenenar aquela que, antes de ser-lhe a mãe, era vista como sua rival no coração amado do Khendjer de outrora.
Novamente Hatsek pôde entender a beleza dos mecanismos da Justiça Soberana que, desde os tempos remotos até os dias actuais é o caminho recto e seguro a conduzir todos os insensatos e ignorantes à rectificação de seus meandros interiores, de suas tendências viciosas, de seus espíritos tíbios, valendo-se da lei conhecida pelo nome de “causa e efeito”.
A mesma lei que, séculos mais tarde, seria claramente difundida com poesia na vida do sublime Rabi da Galileia, ao aconselhar:
“Põe a tua espada na bainha, pois quem com ferro fere, com ferro será ferido”!

() Vista da grande pirâmide edificada pelo Faraó Khufu.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:40 am

16 — O amor de Marnahan
Diante de todas estas informações preciosas para a compreensão do drama daquele grupo familiar, Hatsek pôde seguir o processo de gravidez até o final. Apesar das dificuldades que surgiam, dos embates entre as duas inteligências que, agora, deveriam enfrentar-se como mãe e filha, de todos os antecedentes emocionais que se envolviam nesse processo reencarnatório, o nascimento ocorreu dentro das expectativas, não sem exigir do sacerdote todos os cuidados, médicos inclusive, para facilitar a saída da criança do ventre materno, em face de não estar adequadamente situada por ocasião do nascimento.
Os conhecimentos de Hatsek, entretanto, eram de tal porte que ele sabia como resolver tais problemas valendo-se de técnicas assimiladas junto aos seus mestres e que buscavam solucionar esses tipos de dificuldades, muitas das quais, naquele tempo, levavam à morte da parturiente e da criança.
Sabendo de tais obstáculos, Nekhefre se viu ainda mais ligado a Hatsek que, com o seu modo gentil e afável levara aquele problema familiar à harmonização de todos e, por isso, passara a devotar-lhe verdadeira adoração.
Em todos os momentos em que se faziam necessários conselhos ou opiniões, Nekhefre buscava o templo de Amon-Rá e, ali, submetia ao agora tutor de seus passos as questões que precisaria solucionar.
Hatsek, desse modo, passou a exercer influência muito grande no caminho daquela família, a começar por Nekhefre, em seu modo tolo de encarar a vida, sempre buscando a manutenção de seus interesses e posições no cenário do mundo, coisa que o sacerdote não conseguia modificar, apesar das inúmeras tentativas.
A gratidão de seu amigo príncipe por tudo o que obtivera de sua intervenção espiritual era demonstrada por inúmeras doações materiais que Nekhefre fazia ao templo de Amon-Rá, como a quitar qualquer dívida que lhe pesasse na ordem pessoal pelas dádivas recebidas. Mantinha o pensamento na esfera do mercantilismo com que procurava levar os seus negócios e interesses e, por mais que Hatsek se recusasse a receber qualquer coisa por aquilo que fazia, Nekhefre entregava as dádivas aos outros sacerdotes, às escondidas de seu amigo, para que não ficasse achando que se encontrava em dívidas com Amon.
Os demais sacerdotes, ainda ligados ao culto do deus em questão, se viam muito bem aquinhoados com as oferendas que, no final, se revertiam para as suas riquezas pessoais, desvirtuando o sentido de desinteresse absoluto em que deveriam viver todos os que aceitaram ser ponte entre o mundo e o seu Criador.
Com o nascimento de Hatsena, a mesma Serahia do passado, o relacionamento do casal estabilizou-se novamente e, na condição de bebê indefeso, o pequeno ser requisitava todos os cuidados e carinhos de ambos os pais, ainda que Nekhefre sentisse por ela uma atracção toda especial dentro de sua alma, atribuindo tudo isso ao seu estado mais maduro e às lutas da vida que, segundo ele, iam tornando o homem mais amolecido.
Por essa época, Marnahan contava aproximadamente sete anos de idade e sua vivacidade era digna de nota. A irmã mais velha de Hatsena guardava uma sensibilidade muito acurada e, na evolução de sua alma estavam grafados todos os sentimentos nobres e valorosos já testados em vidas anteriores, no meio das dores e dificuldades que os tonificara e sublimara.
Com o passar do tempo, a atenção que todos, antes, entregavam a Marnahan foi sendo canalizada para a nova rainha da família, sem que a filha mais velha tivesse qualquer reacção negativa própria das crianças que se vêem substituídas. Ao contrário, ela mesma se dedicava à sua irmã com desvelo e carinho, fazendo de sua chegada e permanência na casa um motivo de festa.
Marnahan crescia e, como era da tradição daquele período, ao atingir a maturidade feminina fora declarada pronta para o casamento, o que ocorria em idade muito precoce, com o compromisso das famílias, unindo os seus representantes durante a quase infância, em casamentos fictícios e de interesses, quase sempre terminados em desdita e infelicidade.
Todavia, Marnahan não se deixara levar por esse tipo de hábito, e era entendida por seus genitores que, igualmente, tiveram que enfrentar os mesmo problemas e preconceitos antigos quando jovens e desejosos de se unirem.
Marnahan estava apaixonada por um jovem de sua idade, possuidor de muitas virtudes, de nobreza de carácter, mas sem qualquer capacidade financeira que o autorizasse a envolver-se ao ponto de contrair matrimónio.
Já àquele tempo, as diferenças de classe social eram um dos grandes empecilhos para o estabelecimento de vínculos duradouros e com base nos sentimentos verdadeiros, já que as famílias buscavam preservar as estruturas materiais sobre as quais julgavam que a felicidade se estabeleceria.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:40 am

O jovem, igualmente, devotava um sentimento muito sincero a Marnahan, mas sabia das grandes e quase intransponíveis barreiras que tinham pela frente.
O que era pior, entretanto, era o fato de que ambos cresceram juntos, já que o jovem era filho de um casal que trabalhava na casa de Nekhefre, sendo-lhe, por isso, considerado como de estirpe inferior, indigna de altear-se na ordem social à custa do matrimónio com mulher de classe mais elevada.
Dos folguedos infantis, os dois jovens passaram a sentir um carinho muito profundo um pelo outro e, sempre que podiam conversavam sobre o amor e as belezas que o sentimento nobre e sincero podem infundir nos corações que a eles se dedicam com simplicidade.
À medida em que cresciam, os sentimentos se tornavam ainda mais verdadeiros, já que estamos falando de dois Espíritos que haviam vindo ao mundo com a programação anterior de unirem-se pelos laços do afecto na realização de objectivos elevados e nobres que o futuro viria a revelar.
Kalmark, como era conhecido, também possuía dentro de sua alma uma Compreensão mais elevada da vida do que aquela da maioria das pessoas e, por essa sintonia com Marnahan, nela encontrara todos os atractivos que precisava para apaixonar-se, ainda que conhecendo os obstáculos que a diferença social impunha, no convencionalismo ignorante e nos preconceitos baixos que os homens cultivam.
Ambos já haviam se declarado um ao outro, anos antes, por ocasião das celebrações especiais destinadas à comemoração da fertilidade do Nilo. Nesta época, o sentimento de alegria que a cheia do rio propiciava e que indicava a fartura e a opulência de comida e frutos era usado como motivador para que se comemorassem todas as formas de fertilidade, fossem as decorrentes da fecundidade feminina, da união esponsalícia, do nascimento dos filhos esperados, das juras de amor de todos os tempos.
Naquele dia, Kalmark havia combinado encontrar-se com Marnahan nas proximidades do Nilo, sob o pôr-do-sol, sempre imponente e grandioso nos céus ardentes daquele reino marcado pela sua luz constante.
O fato de se estar comemorando a data e todos se envolverem nas festividades, permitia à jovem ausentar-se de casa para se dedicar também às invocações da fertilidade para si mesma, o que era aceito com naturalidade pelos seus pais.
Era natural que as jovens buscassem o banho nas águas do rio para, num ritual de invocação de suas potencialidades criadoras, atraírem para si as benesses da fecundidade.
Kalmark havia preparado para sua amada, à época adolescente como ele, um presente muito simples, mas muito lindo que, segundo ele pretendia, seria um demonstrador de seu sentimento. Havia produzido com folhas das árvores nativas um pequenino cesto dentro do qual colocara um cristal rosado, amarrado por um fino e delicado cordão de pele de animal, pequenina jóia essa que vinha embrulhada em um pedaço bem trabalhado de pele para proteger o seu conteúdo.
O cristal possuía um brilho especial que, ao entardecer se mesclava com a coloração do vermelho do Sol e, assim, parecia trazer para dentro do seu interior as nuanças grandiosas daquele momento.
Aquele seria um dia ideal para entregar a Marnahan o presente que fizera com tanto carinho e que, sem representar jóia de elevado preço, era belo o suficiente para tocar o coração de qualquer jovem que o recebesse, caso o sentimento amoroso que ele representava fosse igualmente correspondido.
Kalmark estava ansioso para a chegada do momento combinado e procurou chegar bem antes ao local, que era um pouco mais afastado do tumulto popular, mas que, igualmente, permitia uma visão toda especial do pôr-do-sol, por entre as curvas e meandros que a margem do Nilo escavara no seu afã de seguir adiante.
Com o pequeno presente nas mãos, o jovem enamorado esperava a chegada de Marnahan, por entre o sonho daquele dia tão especial e a possibilidade de tudo dar errado. Será que ela viria? E, se vier, será que irá aceitar o presente? E se aceitar, será que irá corresponder ao sentimento?
A cabeça do rapaz era um verdadeiro turbilhão em movimento, procurando avaliar todas as hipóteses e esperando obter o melhor do coração da jovem amada.
Um pouco depois do momento combinado, mas a tempo de presenciarem o espectáculo da despedida do astro rei, os passos de Marnahan foram ouvidos pelo coração aos pulos de Kalmark que, imediatamente, levantou-se para vir ao seu encontro, com as mãos geladas e suadas, tentando secá-las no tecido de sua roupa.
Marnahan estava lindamente emoldurada pela luz rubra do céu daquela hora, vestindo uma túnica muito clara e bem simples, como a usada pelos serviçais de sua casa, justamente para que, daquele encontro, ambos pudessem se entender no mesmo padrão de sentimentos, afastadas todas as diferenças sociais entre eles.
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Essa simplicidade de alma e esse cuidado delicado daquela menina tocaram profundamente o sentimento de Kalmark que, naturalmente, já sabia das dificuldades que teria pela frente pelo facto de ter-se enamorado da filha do dono da casa que sua família servia quase como escrava.
Marnahan viera como um anjo bom dizendo, sem palavras, que preferia encontrá-lo vestida com a modéstia que a condição dele impunha do que não vir ao encontro ou trazer, naquele momento, a ostentação das diferenças que ambos conheciam e que os afastariam um do outro.
Ela era, efectivamente, linda no coração sábio e humilde, além de ser jovem de beleza serena e digna que tão bem combinava com o seu interior.
— Oi, Kalmark — falou ela, simplesmente, buscando começar a conversa que o jovem não sabia como iniciar. Havia ficado paralisado diante da emoção daquele encontro.
— Oi, Marnahan, que bom que você aceitou o meu convite e veio até aqui — respondeu o jovem, atordoado, tentando falar alguma coisa entre uma engasgada e um gaguejo.
— Posso me sentar aqui com você para vermos o pôr-do-sol juntos? — falou a jovem, tomando a iniciativa, sem pretender ofender ou insinuar-se. Afinal, ela sabia a que tipo de desafios e barreiras aquele garoto estava exposto para demonstrar o seu carinho.
— Venha mais para cá, Marnahan. Daqui a gente vê o Sol reflectido nas águas do rio que, parece, ficam tingidas de rubi com os brilhos da mais perfeita jóia que o Soberano Poder jamais criara.
— É verdade, como é bonito este pedaço do rio nesta hora. Mas o que é isso que você está carregando com tanto cuidado? Parece uma gaiolinha de folha de palmeira...
Vendo-se surpreendido com a pergunta, Kalmark se lembrou de que trazia nas mãos um presente especial para aquela que seria o altar de seus sentimentos.
— Ah!, É mesmo... desculpe a distracção... é que eu fiquei tão emocio... quer dizer. tão feliz... por você ter vindo, que me esqueci de tudo o mais. Desculpe a minha ousadia, mas eu fiz isto para você...
Estendeu a mão e entregou-lhe a pequena caixa de folha dentro da qual estava o presente com o qual pretendia dizer o quanto a amava, num dia como aquele que seria, para a época da modernidade, considerado o dia dos namorados.
Com um sorriso de alegria e emoção diante da simplicidade contagiante daquele jovem a quem ela tanto admirava também, estendeu a mão e recebeu o presente entre surpresa e cheia de satisfação.
Abriu-o demonstrando interesse e ansiedade para descobrir o que havia em seu interior. Desatou os barbantes que amarravam a pele de animal e, lá dentro, descobriu a gema que a natureza plasmara com uma forma tão peculiar e uma cor tão especial.— Que coisa mais linda, Kalmark, quem fez isto para você? - perguntou a menina, buscando valorizar ainda mais o presente, não pelo seu valor externo, mas pela sua elaboração caprichosa e delicada, que o tornava digno de qualquer príncipe.
— Fui eu mesmo quem fiz. Encontrei a pedra em um lugar secreto, arrumei todas as cordinhas, produzi a tira de couro, e fiz tudo isso pensando em fazer o mais bonito presente para lhe dar no dia de hoje.
— Você me deixa muito emocio... quer dizer..............EMOCIONADA... com esta pedra tão bonita. Posso colocar no meu pescoço? Você me ajuda a amarrar?
Kalmark não sabia nem o que dizer, nem o que fazer. Estava nas nuvens, desfrutando de uma felicidade tão especial, que desejaria fazer o tempo parar para sempre naquele momento em que seus sonhos pareciam estar se encaminhando para a realidade tão esperada quanto improvável ou impossível.
— Claro , venha até aqui e vire-se para eu amarrar. Você está certa mesmo de que vai usar isto? — perguntou o garoto, ainda inseguro com a correspondência da Marnahan ao seu carinho.
— Ora, Kalmark, você pode estar pensando que estou fingindo?
Não me conhece desde pequena? Claro que vou usar e guardarei sempre pendurado junto à minha pele, o mais perto possível do meu coração... — disse ela olhando para o chão e ficando tão vermelha quanto o horizonte estava ficando.
Emocionado e sem saber o que falar, o jovem se lembrou de que precisava mostrar-lhe um segredo daquela pedra.
— Mas antes que o Sol se ponha, quero lhe mostrar uma coisa que representará um segredo muito bonito que tenho para você — disse ele criando uma expectativa nova no semblante da jovem amada.
— Então fale logo que estou curiosa para saber...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:41 am

— Pegue a pedra e, antes que o Sol se ponha, procure olhar o grande Rá através do cristal. Faça isso agora e veja...
Marnahan puxou o cordão que prendia a pedra ao redor do seu pescoço e fez o que Kalmark havia pedido.
Por entre os filamentos do cristal, a luz do Sol poente podia ser vista como se estivesse transformada em uma miríade de cores, em uma multidão de pequenos arcos-íris, todos eles envolvidos pela atmosfera avermelhada ou violeta que tingia o interior da pedra e descortinava um universo de beleza ainda maior.
— Mas que coisa mais linda, Kal — exclamou Marnahan, tratando-o com a intimidade que haviam aprendido a dedicar um ao outro desde a infância. — Que mágica é esta?
— Isto aí, Mar — aproveitou o jovem para retribuir o gesto de carinho, chamando-a pelo apelido — é o que eu sou por você.— Como assim? — respondeu ela querendo entender e, ao mesmo tempo, querendo ouvir dele o que representava aquela comparação.
— Dizem, Mar, que o Amor verdadeiro é como o Sol que aquece e ilumina. Mas o que eu sinto por você é tão grande que consegue extrair do próprio amor, um amor ainda mais brilhante e cheio de cores que os outros não conhecem. Quando você olha dentro desta pedra como o fez agora vendo o Sol, o que você vê é a mesma coisa que existe dentro de mim quando a vejo, meu Sol luminoso, pela pedra do Amor que sinto por você...
Tudo entre eles, agora, era silêncio e emoção.
Marnahan não conseguiu e, em verdade, nem quis, controlar a emoção que sentia, deixando escorrer duas lágrimas pelo canto dos olhos que pareciam duas gemas diamantinas a anunciar o sentimento precioso que tinha por aquele jovem e como as suas demonstrações e sacrifícios por ela eram retribuídos pela sua alma.
Ao vê-la chorar em silêncio, Kalmark aproximou-se e beijou as duas lágrimas que desciam lentas pelas faces de sua amada, como a guardar para si os dois diamantes que ela produzira ali, na hora, para retribuir-lhe o afecto.
Marnahan, correspondendo a esse gesto de carinho sensível e doce, envolveu com os seus braços o pescoço do rapaz e enlaçou-o num abraço puro e verdadeiro o qual, sem acreditar ainda na própria felicidade, correspondeu-lhe ao gesto e pôde, pela primeira vez, sentir o coração de sua querida pulsando dentro de seu próprio peito, tão próximos puderam ficar um do outro, na primeira vez em que, não mais a infância, a amizade, o coleguismo, mas o Amor encaminhava seus dois corações que se queriam verdadeiramente, para que pulsassem juntos, ao ritmo do mesmo sentimento, como se fossem apenas um coração.
O Sol mergulhava nas faixas do horizonte e despedia-se do Egipto, enquanto os dois jovens ficaram abraçados, esperando o nascer da Lua que viria a substituir o astro rei e inspirar, com a sua luz prateada, os sonhos dos enamorados.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:41 am

17 — As revelações de Kalmark
Entre os dois jovens, nascia o desejo mais forte de se unirem para que pudessem vivenciar o amor de maneira a receber as bênçãos dos filhos e, por isso, planejavam nas conversas solitárias como seria a vida no futuro.
Marnahan passara a usar o presente que recebera de Kalmark preso ao pescoço como sinal de aceitação de seu afecto e demonstrando, com isso, que igualmente correspondia ao seu sentimento.
Todavia, ainda eram muito jovens para que pudessem ter condições de estabelecer uma família, mesmo para os padrões do Egipto daquele período, onde as uniões ocorriam logo que a jovem atingia o estágio da maturidade feminina.
Era muito comum já estabelecerem compromissos antes mesmo de se atingir esse período, o que vinculava pessoas e famílias a acertos futuros, com prejuízo dos sentimentos dos principais interessados.
Mais normal ainda era que um homem bem mais velho pudesse desposar uma jovem adolescente, desde que isso fosse conveniente e aceito pelos genitores desta.
Nekhefre, no entanto, apesar de saber dos problemas que as mulheres enfrentavam quando não se casavam conforme a tradição, em plena adolescência, não estava disposto a obrigar sua filha mais velha a desposar qualquer candidato ao matrimónio, uma vez que reconhecia nela uma mulher conhecedora dos próprios sentimentos e que ele, como pai, pretendia consultar antes de qualquer compromisso. Afinal, possuía dinheiro suficiente para que não precisasse se preocupar com as conjunturas sociais de seu tempo.
Além do mais, suas atenções todas eram voltadas para Hatsena que, agora, mais crescida, mantinha com ele uma aproximação muito forte, sem que ele pudesse compreender por que sentia mais carinho pela filha mais nova do que pela mais velha.
Buscava sempre ocultar isso de ambas, mas no seu íntimo sabia que, se Marnahan era detentora de seu afecto sincero por ter sido a filha mais velha, a primeira a vir embelezar a sua vida, pelo amor que sentia por Hatsena poderia considerar-se escravo e feliz ao mesmo tempo.
Era um sentimento nobre, de pai, que nada tinha do amor apaixonado dos enamorados, mas que era mesclado de um apego muito grande, um ciúme forte que o fazia passar mal só em saber que a filha mais nova, agora, se aproximava da maturidade feminina e que, com isso, poderia estar na condição de se envolver com qualquer candidato ao matrimónio.
Só em pensar na hipótese de ver sua filha nos braços de outro homem, seu sangue parecia querer ferver e, mesmo sabendo que não poderia evitar tal situação, preferia abanar a cabeça para ver se tais ideias se afastavam de seu pensamento.
Kimnut percebia o afecto diferenciado de Nekhefre e, às vezes, dava mostras de que ela também estava enciumada pelo carinho que o pai ofertava à filha, em detrimento dela mesma.
Todavia, o amor do marido ainda lhe pertencia e, depois de alguns afagos e carinhos, voltava a esposa a se sentir no centro do mundo, o que a deixava mais calma. Entretanto, Hatsena, muitas vezes, via na mãe uma mulher a ser invejada por possuir Nekhefre como esposo.
E em algumas ocasiões, esse sentimento exteriorizou-se em comportamentos de rebeldia e antagonismo contra a mãe que, surpresa, logo procurava um modo de dobrar o temperamento jovem e altivo da filha mais nova.
Nessas horas, apenas a companhia de Marnahan tinha o condão de conferir à irmã um pouco mais de calma e à mãe uma maior temperança na resposta punitiva ao carácter arrojado da filha caçula.
Nekhefre, naturalmente, pelo afecto que nutria por Hatsena, não dava muita importância a tais comportamentos, o que exasperava ainda mais a esposa e enchia de orgulho a jovem rebelde, que se via, indirectamente, protegida e aprovada pelo comportamento do pai.
Afinal, ele se achava nas nuvens quando percebia que Hatsena afrontava a mãe por causa dele, como que a dizer, com tais comportamentos, que gostava mais do pai do que da progenitora.
Nas disputas afectivas silenciosas que ocorrem dentro dos lares, esse comportamento era um estímulo à vaidade do homem como o chefe daquele reino familiar.
Marnahan, entretanto, com sua conversa doce e compreensiva, acalmava os ânimos e pretendia sempre apagar as mágoas, conversando sério com a irmã mais nova que a respeitava muito e que sempre acatava suas opiniões.
Kalmark era visto pela família de Marnahan como o filho dos serviçais e, sabendo disso, não pretendia demonstrar a sua intenção de casar-se com Marnahan antes que pudesse, efectivamente, propor-lhe a união.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:41 am

Como jovem consciente dos limites sociais que tinha que enfrentar, pretendia reunir recursos conquistados por seu próprio esforço e, com isso, fazer-se digno e respeitado por Nekhefre que, assim, não lhe poderia impedir o consórcio.
Já havia deliberado afastar-se de Tebas em direcção à capital do Egipto, Amarna, e tudo já havia preparado para a viagem, faltando-lhe, apenas, por uma questão de respeito e consideração, obter o consentimento do príncipe. Entretanto, ainda que não o conseguisse, viajaria mesmo assim, eis que não era escravo nem empregado directo de Nekhefre. Desse modo convicto, já havia arrumado todas as suas coisas, acertado com o proprietário do barco a quem garantira que partiria naquele mesmo dia com ou sem a autorização pretendida.
Sabia que depois de expor os seus planos, não poderia permanecer por mais tempo na casa do príncipe, pois não seria visto com bons olhos pelo dirigente da casa que o consideraria sempre um ingrato ou um ambicioso a ser visto com cuidado e cautela.
Desse modo, com o conhecimento e aceitação de Marnahan que lhe estimulava o progresso e o desejo de crescer perante si mesmo, o jovem procurou pelo pai de sua amada, no dia programado para a sua viagem, ocasião em que contava seus dezassete anos, a fim de expor suas ideias:
— Nobre príncipe, senhor desta casa a quem servimos com respeito e gratidão, permita-me expor meus pensamentos e receber a sua autorização para que possa seguir adiante sem que pareça ingratidão de minha parte qualquer afastamento — disse o jovem Kalmark ao pai de Marnahan que o ouvia em um momento de tranquilidade.
— Fale, meu jovem, sem rodeios nem formalidades, pois o vi nascer e reconheço em seus pais servidores fiéis e honrados — respondeu Nekhefre.
— Tenho observado que, aos meus pais, o estado em que se encontram representa uma dádiva dos deuses e, graças à sua protecção, nada lhes falta e se encaminham para a velhice com as garantias da sua benevolência. Eu, no entanto, sou jovem, cheio de sonhos e não desejaria seguir os mesmos passos de meus pais, sem, é claro, desdenhar da generosidade desta casa que nos acolheu e que me alimentou desde a tenra idade. Por isso, gostaria de obter do senhor, nobre príncipe, autorização para me afastar desta casa na direcção de Amarna, onde pretendo me colocar a serviço de nosso rei, sempre tão exigente no que diz respeito aos artistas e artesãos, onde pretendo desenvolver meu aprendizado e evoluir nas práticas artísticas a seu serviço para ampliar minha capacidade pessoal e, com ela, ganhar a liberdade de poder constituir minha família.
Surpreendido pela exposição breve, mas bem construída, quedava mostras de um carácter resoluto e que não se intimidava, Nekhefre observou o jovem com mais cuidado e mais profundidade.
Sempre vira nele, apenas, um filho de empregados, quando, em realidade, ali estava um rapaz que demonstrava possuir coragem e vontade de lutar para realizar seus objectivos. Muito diferente dele mesmo, Nekhefre, que apesar de ostentar o título nobre de príncipe, nunca fizera nada para conquistá-lo realmente. Uma ponta de inveja, para não dizer admiração fustigou o seu íntimo e deixou-o algo desconcertado.
Procurando palavras que pudessem exprimir com clareza suas ideias, Nekhefre buscou dar ao jovem alguma resposta:
— Bem se vê, meu jovem, que em você um sangue diferente corre pelas veias, sangue que fervilha e que faz seus olhos brilharem diferente dos olhos dos demais que, aqui, têm consumido seus dias nos serviços desta casa. Antes de autorizar ou não, gostaria que me dissesse se existe algum motivo mais grave que o faça demonstrar tal interesse.
Algo ocorreu entre você e alguém que lhe imponha esse afastamento?
Era muito comum naqueles dias, como nos dias de hoje, que as pessoas que se indispunham com outras vissem, no afastamento, a única solução possível. Da mesma maneira, por ter-se comportado mal em algum aspecto da vida na colectividade, muitas pessoas viam no afastamento a solução ideal para fugir das responsabilidades e, se esse fosse o caso, Nekhefre deveria intervir seja para proteger Kalmark da perseguição de algum outro serviçal que o estivesse ameaçando, seja para apurar os fatos e ver se Kalmark não estaria fugindo de alguma responsabilidade por comportamento inadequado.
Ouvindo a indagação e percebendo a preocupação do seu senhor, o jovem adiantou-se:
— Não se trata, nobre senhor, de qualquer tipo de pressão que esteja sofrendo para que me anime a pensar e me afastar de sua generosidade, a quem recorreria como primeira solução se as coisas estivessem ocorrendo nesse sentido. Não há ninguém aqui nesta casa com quem não mantenha laços de amizade sincera e, se peço o que peço não o faço sem sentir a dor do afastamento que terei que carregar comigo até que possa retornar em visita a esta casa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:42 pm

— Se não é isso, então, Kalmark, por dever moral e, ainda que nunca tivesse qualquer reclamação contra você, compete-me indagar se esse comportamento não está sendo motivado por um sentimento de medo de assumir responsabilidades por condutas não compatíveis com o que se esperaria de um jovem como você? Estaria buscando fugir de alguma coisa mais séria, de algum delito oculto ou mesmo de alguma jovem que daqui a alguns meses o apontaria como o pai do filho que traz ao ventre?
Aquela indagação fez com que o sangue do jovem viesse a enrubescer-lhe as têmporas, na vermelhidão que poderia ser compreendida tanto como um sentimento de nobreza ofendida quanto como uma vergonha de se ver surpreendido em situação comprometedora.
Abaixando a cabeça para fugir dos olhares indagadores do seu interlocutor que, igualmente, percebera o estado do rapaz, Kalmark se sentia ofendido por tal pergunta, já que jamais dera quaisquer motivos para ser visto como algum bandido ou um enganador de meninas, aproveitando-se de sua ingenuidade.
No entanto, precisava sair-se bem daquele encontro e tinha que relevar no pai de sua amada todas as insinuações, mesmo as mais imerecidas, a fim de obter do mesmo o que tanto desejava.
Nekhefre, no entanto, acreditando que o rubor indicava que a conduta do jovem estaria vinculada a alguma coisa errada que ele houvesse feito e da qual pretendia ausentar-se, esperava por uma resposta, ansioso.
Vendo, entretanto, o silêncio demorado do rapaz, tomou a palavra:
— Seu silêncio, Kalmark, aliado ao sangue que avermelhou o seu rosto, me fazem concluir que estamos perto do motivo que o faz pensar em partir desta casa, não é?! — falou Nekhefre, como a querer dizer que descobrira o seu segredo e que, assim, iria impedir qualquer fuga até que as coisas ficassem esclarecidas.
Ouvindo essas palavras que apontavam para um desfecho totalmente diferente daquele que havia previsto para seu futuro e, o que é pior, levando a ser considerado um reles malfeitor que pretendia evadir-se, o rapaz se viu premido a responder com todas as forças de seu carácter juvenil e arrebatado.
— Nobre príncipe, meu silêncio não decorre de qualquer vergonha, mas sim da busca de palavras certas a fim de responder a tais afrontas sem ofendê-lo. É possível que em seus pensamentos só existam espaços para considerar maliciosa qualquer iniciativa que busque concretizar sonhos de felicidade dos que estão abaixo de seu padrão principesco. Nos seus raciocínios de senhor abastado, os servos e escravos não possuem direitos aos próprios sonhos. Estariam, entretanto, sempre condenados ao “ideal” de servir como animais de carga, sendo esse o único sonho que poderiam concretizar? Quando pensam em coisa diferente estariam sempre se comportando como ladrões que querem fugir depois de terem roubado a despensa do palácio? Meu silêncio e a vermelhidão de meu rosto, espelham — o primeiro — o respeito que devo ao senhor como o benfeitor de meus pais e de mim mesmo que não me mereceria qualquer desacato voluntarioso e — o segundo — a vergonha de ter que ouvir daquele a quem sempre admirei, um conceito tão ínfimo que desconsidera em mim e em meus pais tudo aquilo que procuramos demonstrar em termos de fidelidade e dedicação no serviço desta casa.
Tomado pelo choque da altiva resposta do jovem, o íntimo de Nekhefre se alterou e, dessa vez, foi nele que a face se avermelhou, tanto de vergonha quanto de irritação por se ter percebido julgado por um servo e, lá no fundo, notar que existia algo de verdadeiro em suas palavras.
Buscando controlar-se para não enveredar por uma discussão com um jovem filho de empregados, Nekhefre respondeu:
— As suas palavras amargas, Kalmark, encontram razão no seu sentimento de amargura que a posição de subalterno nesta casa lhe impõe. No entanto, relevo seus argumentos verbais como um pai releva os arroubos de um filho para, apenas, explicar-lhe que me compete impedir que injustiças fiquem sem punição dos culpados, o que aconteceria se alguém se afastasse para longe sem que se pudesse avaliar o verdadeiro motivo.
E conhecendo-o pelo tempo que pude observá-lo, posso afirmar que não é apenas por desejar uma melhor estrutura de vida que seu pedido se encaminha até mim, solicitando aprovação. Afinal, aqui você a possui sem precisar qualquer coisa a mais. Talvez deseje mais do que aqui se lhe oferece, mas também você sabe que em Amarna perderá todas as regalias que tem por aqui.
Sabe que, chegando em Amarna, precisará encontrar um lugar para se abrigar, precisara pagar pelo alimento, precisará usar roupas que não são dadas, mas compradas, tudo isto tornando a sua situação muito pior do que a que possui por aqui.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:42 pm

Assim, sabendo que conhece todos estes fatos, não posso imaginar que o motivo que me apresenta é o motivo verdadeiro. Por isso, contra todas as verdadeiras referências que você e seus pais sempre me deram, no trabalho correto e dedicado, me vi forçado a lhe perguntar qual o verdadeiro motivo de sua ausência.
As ponderações de Nekhefre fizeram com que Kalmark se acalmasse, pois elas eram condizentes com a verdade dos factos e, agora, ele precisava explicar melhor por que pretendia deixar a segurança pela incerteza.
Mas se revelasse o motivo real, poderia piorar a sua situação, já que sabia que Nekhefre não iria apreciar o seu desejo pessoal de casar-se com a própria filha, para quem, certamente, desejaria uma união mais nobre do que a de vê-la consorciada com o filho dos seus servos.
Resolveu usar uma estratégia que não o forçava a mentir nem o obrigava a revelar toda a verdade.
— Para aclarar as preocupações de seu coração, nobre senhor, posso afirmar que o que me move a tal aventura não é qualquer desejo menos digno de ausentar-me por algum ato incompatível com a honradez de um homem de princípios. Muito ao contrário. O que me faz buscar a incerteza e o desafio, justamente, é o sentimento nobre e puro que nutro por jovem que pretendo desposar e para cujo compromisso preciso arranjar meio e melhorar a minha situação a fim de poder honrá-la, bem como à sua família, com uma proposta que não venha a ser considerada como um golpe ou como um sentimento movido pelo oportunismo.
Tocado por aquela revelação, Nekhefre desarmou-se de todos os sentimentos menos dignos que estava começando a albergar dentro de seus modos de avaliar as coisas, acostumado a ver sempre a maldade por debaixo das intenções dos outros.
— Mas então, quer dizer que é o coração que está fazendo a sua razão perder o rumo... — afirmou galhofeiro o príncipe, querendo fazer mais ameno aquele diálogo. — As coisas do sentimento sempre acabam com a gente, Kalmark. Quando o peito bate diferente, costumamos fazer as coisas mais impróprias por acharmos que são as mais certas.
Você não precisa afastar-se daqui para conseguir melhorar a sua posição e dar algo de melhor à escolhida de seu sentimento.
Agora que estou entendendo o que se passa e, desde que seus pais o aprovem, eu me disponho a fornecer-lhe os recursos de que necessita para dar uma casinha à sua futura família. Farei isso com satisfação e como um presente pessoal para que sua vida de um clã de família possa começar.
— Muito me honra essa oferta, senhor príncipe, mas, infelizmente, não posso aceitá-la, apesar de reconhecê-la generosa e invejável - respondeu o jovem para surpresa de Nekhefre que o via, assim, tão orgulhoso.
— Como não pode aceitar, Kalmark, se estou lhe ofertando algo que nunca ofertei a nenhum dos meus melhores empregados? — perguntou Nekhefre, querendo demonstrar indignação suave.
— Não posso, senhor, não por orgulho mesquinho, mas por não estar, tal oferecimento, à altura da jovem que pretendo e que irei desposar.
Percebendo que se tratava de algo especial, mas sem imaginar do que se tratava realmente, acreditando que o filho pobre dos pobres servos estivesse valorizando demais o afecto que nutria por alguma outra moça de família da mesma estirpe social, Nekhefre procurou tornar-se mais engraçado, como forma de brincar com tal preocupação do rapaz, que interpretava como sendo exagero juvenil que a paixão produz:
— Pois então, na cegueira de sua paixão, pretende você dar à sua amada um palácio para que, nele, a eleita de seu coração seja a rainha de seus sonhos, não é? Bom, nesse caso, você está certo, eu não posso ajudá-lo com nenhum palácio. Pelo menos, espero que a jovem escolhida esteja acostumada a limpar e organizar o ambiente de sua casa, pois, dona de um palácio, terá muito serviço a fazer, não é? ... — dando uma gargalhada de ironia diante dos sentimentos sinceros do jovem, que interpretava como exagero do coração. Percebendo a ironia de Nekhefre, o sentimento de Kalmark se exasperou ainda mais e o seu orgulho de jovem corajoso mais se deixou ouvir dentro dele.
— A eleita de meu coração, nobre senhor, saberá zelar por aquilo que conseguir oferecer-lhe como fruto do meu esforço, já que não está à espera das riquezas conseguidas dos ancestrais sem qualquer trabalho, ainda que, actualmente, viva à sombra dourada de uma vida tranquila e sem problemas.
Entendendo a referência directa à sua vida nababesca e sem esforço, Nekhefre engoliu a seco e, para ferir ainda mais o jovem, antes de encerrar aquela conversa que já estava se alongando demais para o seu gosto, afirmou:
— Pois gostaria de conhecer essa rainha que aceita descer do trono por amor de um rapaz que, de riqueza mesmo, só tem a arrogância de desprezar qualquer ajuda que se pretenda dar-lhe.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:42 pm

Mais do que isso, acho que não existe, até que você me prove, uma pessoa como essa que está iludindo seu coração com promessas de dar-lhe o afecto a troco de receber tão pouco em retribuição.
Escute meu conselho, Kalmark, você não conhece as mulheres.
Você é muito jovem e o seu sentimento pode estar fazendo-o ver o que não é senão ilusão de um amor apaixonado, mas que acaba tão logo as dificuldades aparecem. Você não sabe que, para elas, o dinheiro vem antes do amor? Estou ficando preocupado com estas suas ideias e acho que, antes de qualquer coisa, ou você está ficando meio abobado, ou essa rapariga o está enganando direitinho.
— Posso garantir-lhe, senhor, que conheço muito bem a nobreza dos sentimentos da mulher que amo e que tomarei como esposa, ainda que todas as pedras do Egipto pretendam levantar uma muralha entre nós dois. Como já lhe disse o motivo que me leva a agir assim, espero a sua aquiescência no afastamento desta casa para poder continuar a realizar os preparativos para receber a mulher que amo nas melhores condições que meu esforço puder realizar.
— É isso mesmo que deseja, cabeça dura e coração mole? - perguntou o príncipe.
— Sim, é isso, senhor — respondeu lacónico o rapaz.
— Eu o autorizo, Kalmark, e faço deste momento um momento a ser testemunhado pelos deuses que me escutam. Que você encontre o que pretende e que, apesar da tolice que está fazendo, que essa jovem não lhe traga o sofrimento, a desdita, a infelicidade que meu coração está sentindo que ela lhe produzirá — vaticinou Nekhefre, solenemente.
A manifestação de tal natureza, quando se invocavam os testemunhos dos deuses, tinha carácter irretractável e se tornava lei a ponto de se temer pela própria vida, caso o declarante não a obedecesse, depois de ter invocado os sublimes testemunhos. Era essa a crença corrente.
Conseguindo de Nekhefre o que buscava, Kalmark realizou reverência profunda, em atenção à gratidão e à aquiescência do príncipe na concretização de seus passos rumo à sua felicidade.
Vendo-se homenageado de forma tão espontânea e sentindo-se elevado na consideração do jovem a quem libertara de qualquer compromisso com sua casa, Nekhefre procurou falar-lhe pela última vez, antes de que se afastasse o rapaz:
— Kalmark, meu jovem, poderei eu, um dia, ter a ventura de conhecer a eleita de seus sentimentos? Poderei ter o “privilégio” de apreciar uma mulher assim tão elevada a ponto de aceitar deixar o conforto para unir-se a um artesão? Poderei eu conhecer a cobra disfarçada de pomba que lhe está iludindo a esperança de jovem apaixonado?
Sem conseguir controlar a própria língua, depois de ter conseguido o que necessitava, Kalmark voltou-se para o príncipe, que mantinha um sorriso sarcástico nos lábios e respondeu:
— Nobre príncipe, sei que seus compromissos e negócios tomam muito do seu tempo e que a importância de suas funções é tal que seus olhos precisam estar em todos os lugares ao mesmo tempo e abarcar, de um relance, todas as contas e relatórios que chegam às suas mãos.
No entanto, muito me admira que, em um homem tão bem preparado para as coisas da vida e tão astuto na análise de todas as situações, seja tão grande o desconhecimento daquilo que esteja tão diante dos próprios olhos...
— Como assim, Kalmark, não estou entendendo esta conversa respondeu Nekhefre.— Sim, meu senhor, como é possível que um homem que conhece tantas coisas, não conheça a própria filha... — respondeu Kalmark, retirando-se do ambiente, levando em seus lábios o sorriso de ironia que, antes, estava nos lábios de Nekhefre.
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18 — Mais erros de Nekhefre
Com a saída de Kalmark do ambiente depois de ter dado a Nekhefre aquela resposta directa e misteriosa ao mesmo tempo, o príncipe foi tomado de uma súbita exasperação.
— Como assim? — perguntava-se a si mesmo. — Que negócio é esse de que não conheço minha própria filha? Será que esse moleque está querendo dizer que a eleita de sua alma é uma de minhas filhas?
Impossível. Ele não seria tão leviano a ponto de imaginar que iria conseguir subir na vida através do sangue do meu sangue. Hatsena é muito jovem para entender destas coisas. Será que ele se referiu à Marnahan?
E ela, se isso é verdade, será que sabe de alguma coisa a respeito disso? Acho que deve saber, já que a segurança do rapaz não me parece sem fundamento. Ah!... preciso esclarecer estas coisas o mais rápido possível...
Pensando assim, Nekhefre saiu à procura de Kimnut a fim de se inteirar dos factos primeiramente pela mulher que, por estar mais em contacto com as próprias filhas poderia estar ciente de coisas que, ele mesmo, pelos afazeres administrativos diários, não teria condições de perceber.
Ao encontrar a mulher em seus aposentos, cuidando dos trabalhos comuns de sua época, o marido foi directo ao assunto.
— Mulher, preciso falar com você sobre um assunto que me está intrigando e que não pode esperar para ser resolvido.
— Sim, meu marido, aqui estou para escutá-lo — respondeu Kimnut, que sabia tratar-se de alguma coisa mais preocupante, já que todas as vezes que Nekhefre se dirigia a ela de maneira formal, chamando-a de mulher, isso indicava que as coisas não eram das melhores.
— Acabei de falar com Kalmark, filho dos nossos servos Kaemy e Meldek, que veio obter de minha parte, licença para nos deixar em direcção a Amarna, onde pretende obter trabalho junto ao nosso faraó, nas oficinas dos escultores.— Conheço o rapaz desde pequeno, pois tem sido companheiro de nossas filhas nas brincadeiras diárias, principalmente de Marnahan, com quem regula na idade — respondeu a mulher.
— É, eu sei disso...
— Espero que não lhe tenha sido difícil autorizar o afastamento do jovem já que, me parece, tratar-se de um desejo justo o de querer seguir na vida por um caminho diferente do de seus pais, ainda que não lhe falte nada na vida que leva aqui, junto a nós... — ponderou Kimnut.
— Não, isso não me foi difícil. Todavia, buscando os verdadeiros motivos que o levavam a abrir mão das facilidades que aqui possuía e, até mesmo, para não permitir que se ausentasse caso tivesse cometido algum crime do qual pretendesse fugir para não ser responsabilizado, procurei ouvir dele qual a razão verdadeira do afastamento. Ao fazê-lo, descobri que se trata de uma paixão por uma jovem a quem pretende desposar e que, para isso, deseja cercar-se de maiores recursos do que aquele que poderia obter com o seu trabalho aqui e, o que é mais intrigante, desprezando inclusive a ajuda que eu pretendi oferecer ao coração enamorado, dizendo-lhe que, se o caso era de amor, eu o ajudaria com um presente que pudesse permitir a aquisição de alguma casinha para viverem juntos, talvez até dentro de nossa propriedade...
— Que gesto admirável, meu querido Nekhefre...— respondeu Kimnut.
— O que é admirável: a oferta que fiz ou a recusa dele? — perguntou o marido começando a dar sinais de irritação.
— Ora, meu amor, os dois gestos são admiráveis: o seu, por demonstrar generosidade e o dele, por demonstrar altivez e desejo de lutar sozinho para construir seu próprio ninho.
— Na verdade, Kimnut, quando ofereci o presente, pretendia mantê-lo próximo a nós, uma vez que se trata de jovem de talento e forte, que poderia substituir os pais que estão envelhecendo nas actividades desta casa. Ocorre que depois de ter-lhe concedido o afastamento sob o testemunho dos nossos deuses, pretendi conhecer a eleita de seus sentimentos, na condição de mulher que iria descer de nível social para desposá-lo, o que representa, senão uma doença mental na mulher, uma terrível ilusão no pensamento do rapaz, pois eu não conheço nenhuma que faria essa loucura — respondeu Nekhefre, acostumado ao tipo de entendimento que se ligava às negociatas para justificar as uniões.
— Sim, Nekhefre, e daí?... — perguntou ela, ansiosa para a história ser revelada por inteiro.
— Ele me olhou e, com ar de mistério, disse que não sabia como é que um homem como eu, que vejo e controlo tudo à minha volta, não conseguia conhecer a própria filha...Ambos se olharam com olhos curiosos e preocupados. Afinal, os dois eram daqueles que se mantinham sempre fiéis às convenções sociais de seu tempo e prezavam a protecção de seu status, não aceitando qualquer ruptura na tessitura social que os envolvesse ou que pusesse em risco a nobreza de sua família, conquistada pelos antepassados ao preço de muito sacrifício.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 3 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:43 pm

— Será?... -falaram os dois, ao mesmo tempo, preocupados com Marnahan.
— Eu nunca soube de nada entre eles, Nekhefre. Sei que se dão muito bem, que gostam de conversar muito, mas jamais presenciei qualquer atitude suspeita que pudesse inspirar preocupação, até porque Marnahan sabe de nossas condições e tem conhecimento da impossibilidade de qualquer aproximação afectiva de pessoa inferior à nossa condição social.
— É, mas você sabe como são os miolos desses jovens. De tanto andarem juntos, vai saber o que estão tramando. Acho que precisamos conversar com ela. Afinal, já tem seus dezassete anos e não é mais uma menina-falou o pai, com a aprovação silenciosa de Kimnut.
Determinaram, assim, que Marnahan viesse até os aposentos privados de seus pais para uma conversa mais íntima e, por isso, sabia ela, mais séria.
Dentro do coração apaixonado que trazia em seu peito, a filha sabia que aquela conversa deveria estar ligada aos seus sentimentos por Kalmark, que lhe revelara os seus planos e o propósito de falar deles ao dono da casa.
Não sabia ela, entretanto, que Kalmark acabara dando a entender que a mulher de seu coração era filha do dono da casa, o que seria um factor complicador em todo o processo, mas que, se fosse esse o caso, ela estaria pronta a confirmar seus sentimentos.
Dirigiu-se, assim; aos aposentos de seus pais onde encontrou-os sérios e ansiosos para ouvirem suas explicações.
Assim que chegou, foi colocada sentada em banqueta diante dos dois genitores, de forma a não poder furtar-se de qualquer deles no momento de explicar as afirmativas de Kalmark.
— Minha filha— falou Kimnut, na condição de mãe, introduzindo o assunto — sabemos de seus dotes de virtude e nobreza de carácter e, por isso, apelamos a eles a fim de esclarecermos um assunto sério que seu pai me comunicou, decorrente de uma conversa com o jovem Kalmark, servo desta casa.
— Filho ... de servos desta casa — corrigiu, gentilmente, a menina, como a demonstrar aos pais que a condição do rapaz não era a de servo, mas sim de pessoa livre dos deveres impostos aos seus pais.— Sim, é verdade, Marnahan, filho dos servos Kaemy e Meldek. - corrigiu a mãe sob o olhar impaciente de Nekhefre.
— Do que se trata, mamãe? — perguntou a filha de modo sincero e delicado.
— Kalmark veio licenciar-se para ir ganhar a vida em outro lugar, alegando fazê-lo por amor a uma jovem que dele merece maiores cuidados por ser pessoa de condição social mais elevada do que a dele e que, por isso, para unirem-se, vê-se na necessidade de melhorar a sua condição pessoal.
— Sim,... isso é algo muito apreciável em um rapaz como ele - respondeu a menina, não pretendendo entregar-se logo de começo, sem saber até onde Kalmark havia revelado as coisas entre eles.
— Concordo com você, Marnahan. Todavia, ao despedir-se de seu pai, respondendo ao desejo deste em conhecer a mulher que iria cometer tal desatino social, o rapaz respondeu que se admirava de que ele, Nekhefre, não conhecesse a própria filha...
“É... — pensou Marnahan — as coisas acabaram por se complicar e eu terei de dizer o que sinto e sei que vou causar um terremoto nesta casa.”
Como se mantinha em silêncio, Nekhefre, exasperado, tomou a palavra e dirigiu-se imperativo para a filha:
— E então, minha filha, o que você me diz disso? A quem ele se refere quando diz que eu não conheço minha filha? Será que é Hatsena, tão pequena a ponto de causar em um rapaz, homem feito, um desejo tão ardente? Será que é a você que ele se refere, menina que sempre nos pareceu consciente de sua condição social e que não iria se meter com um sujeitinho sem antecedentes?
Aquilo não era uma pergunta. Era antes um desafio que se erguia aos ouvidos da filha como uma advertência a dizer: Cala em ti qualquer sentimento e não te metas com gente socialmente inferior...
Marnahan sabia qual era a pretensão de seus pais, no entanto, estava diante da escolha pessoal de enganá-los ou de revelar os seus sentimentos sinceramente, perante aqueles a quem amava e compreendia os pudores sociais, ainda que não fosse compreendida por eles.
Tentando medir e escolher bem as palavras, a jovem fitou a ambos e começou:
— Sempre aprendi muitas coisas nobres dos exemplos que vocês me deram e sei que isso é algo de valor incalculável. Todavia, aprendi também que a grandeza de Amon-Rá, o deus maior de nossa crença e que ilumina nossa casa, é generoso com todas as coisas e se entrega por igual, sem escolher privilegiados que ilumine em detrimento de deserdados que mantenha na escuridão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:43 pm

Assim, não posso achar correta a maneira como consideram as pessoas que nos cercam, rotulando-as por sua origem humilde como criaturas inferiores. Em todas as pessoas vejo o que interessa em seu interior, local onde residem todos os valores da alma, a tal ponto que será o coração delas e não o seu bolso que será colocado na balança no reino dos mortos.
Os pais estavam ficando brancos com o rumo da conversa, mas deixaram que a jovem continuasse até aclarar todos os factos.
— Da convivência podemos extrair as melhores informações sobre o carácter das pessoas e é muito triste que passemos tantos anos junto a servos sem sequer sabermos correctamente os seus nomes. São criaturas cujo interior possui brilho e riqueza que poderiam valer muito mais do que qualquer trabalho caseiro, sempre tão mal remunerado e tão estafante. Ainda mesmo no que se refira aos escravos, assim considerados por pertencerem aos povos derrotados em nossas guerras e conquistados pela força de nosso rei ou de seus ancestrais, ainda assim, vejo-os como seres como nós, vítimas dos preconceitos e dos interesses mais baixos que se possam aceitar dentro de almas que se lhes dizem superiores.
Vejo mais defeitos nos exploradores que escravizam ou que aceitam a escravidão e que, apesar disso, se consideram pertencentes a uma casta superior, do que no pobre coitado que viu ruir o seu mundo e se acostumou às correntes que o prendem por não possuir outro destino senão obedecer como um bicho sem dono e sem direitos.
Por esse motivo, meus pais, não posso concordar com os conceitos de superioridade ou inferioridade demarcados pelo tamanho de nosso cofre, até porque — e falo isso sem pretender ofender a dignidade de nossa família — nossos ancestrais também eram pessoas sem títulos ou nobreza, o que foi conseguido graças à colaboração nas campanhas militares dos príncipes libertadores de Tebas. Se é verdade que não fomos nós os que usurpamos direitos alheios por sermos meros herdeiros de nossos antepassados, igualmente verdade é que os faraós anteriores retiraram os bens de algum egípcio em desgraça e os transferiram para o património dos nossos ancestrais a fim de que gozassem dos privilégios da nobreza, não como um direito de nascimento, mas como consequência dos favores e agrados do rei por lhe terem sido aliados na guerra. Será isso suficiente para considerarmo-nos superiores? Nossa posição brilhante de hoje não está construída sobre o alicerce do anonimato e da plebeia condição social do nosso passado?
Esses conceitos, tão verdadeiros que eram, feriam fundo o orgulho de Nekhefre, que tudo fazia para dar a todos a ideia de que se tratava de família cuja nobreza se perdia na ancestralidade.
Ouvir isso da própria filha era uma quase traição que não poderia ser aceita pelo seu raciocínio egoísta e egocêntrico, próprio dos tiranos e déspotas de todos os tempos.— Não estamos aqui para ouvir seus conceitos injustos quanto aos nossos antepassados, que deram suas vidas para que hoje você tivesse esse estilo de vida fácil e confortável — disse, ríspido, Nekhefre.
— Estamos aqui para falar de algo muito mais prático e directo e não para ouvir suas opiniões sobre as coisas que o mundo fez assim, ainda que você não concorde com elas.
— Sim, meu amado pai, eu sei disso e longe estou de pretender ferir a honra de nossos antepassados. Mas volto a dizer que a mim não seduz este estilo de vida fácil que desrespeita o sofrimento dos outros, nem as nossas festas que são regadas a comida farta enquanto os que nos servem a mesa trazem suas barrigas vazias. Por mais que procure encontrar um sinal de Rá na justiça que os ricos se sentem no direito de invocar para a manutenção de seus privilégios, mais fico sem conseguir ver onde Rá poderia concordar com essa forma de viver através da qual alguns se mantêm felizes sobre a desgraça de todos os outros.
Por isso, e para que não deixe sem resposta a sua pergunta principal, posso afirmar, respeitando os seus sentimentos que compreendo, ainda que não concorde com eles, que o que Kalmark falou eu o repito como sendo minha própria vontade. Sim, nós nos amamos pelo desenvolvimento da amizade que foi se transformando num afecto nobre e sincero e que, apesar da distância que nos separa, não nos impedirá de seguirmos juntos pela eternidade.
A resposta de Marnahan era uma bomba na cabeça de seus pais.
Jamais iriam imaginar que a primogénita havia se deixado envolver por um sentimento tão mal direccionado.
Neles, o preconceito cegava o coração e, por isso, sentiam-se no dever de fazer algo para acabar com aquela perigosa brecha na reputação social que ostentavam.
— Imagine se os outros ficam sabendo que nossa filha está apaixonada por um filho de serviçal. Seremos piada além das fronteiras do Egipto... — pensavam os dois pais, vendo o perigo de tal situação para o conceito de que desfrutavam na estrutura do reino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:43 pm

Sem acreditar no que ouvia, Nekhefre avançou para a filha e, tomando-lhe os ombros com suas mãos fortes, aproximou-a de seu tronco e, gritando-lhe no rosto a sua indignação, vociferou:
— Você está doente ou está louca se pensa que nesta casa uma desgraça desta vai acontecer com a minha permissão. Seu sentimento é uma alucinação ou um sonho impossível que eu me incumbirei de corrigir. De hoje em diante, está proibida de encontrar esse rapaz. Não poderá mais sair desta casa sozinha e deverá dirigir-se a mim pessoalmente todas as vezes que tiver de ausentar-se para que eu designe acompanhamento para estar ao seu lado.
Vendo o estado de desespero do marido, Kimnut procurava trazê-lo ao controle de si mesmo a fim de que não machucasse a filha que, sem qualquer reacção, apenas chorava em silêncio, diante da reacção irracional e dura daquele a quem amava como pai querido.
— Calma, Nekhefre, você vai machucar nossa filha. Solte-a, por favor... — falava Kimnut, tentando libertar a menina de seus braços fortes.
— Isso não é nada perto do que vou fazer se essa doida não me obedecer — disse Nekhefre jogando a filha no chão, sem conseguir controlar seus impulsos doentios. — E tem outra coisa. Graças a esta conversa, estou dispensando Kaemy e Meldek, esses dois servos que não trabalharão mais aqui nem em nenhum lugar desta cidade. Não ficarão nem mais um dia comigo sob o mesmo tecto, pois, certamente, estão contando também com o sucesso do filho golpista na sedução da filha do patrão para acabarem subindo na vida. Isto é que não...
Aí está a consequência da sua maneira de ver as coisas, sua menina espaventada. Tanto amor pelos inferiores, pelos miseráveis, pelos servos e escravos que, a partir de hoje, por sua causa, você acabou de produzir mais dois infelizes que vão perder tudo o que tiveram até agora, pois aqui não ficam mais.
A crueldade de Nekhefre, para não dizer sua loucura, era muito grande naquele momento. Pretendia ferir a filha e reconduzi-la a um juízo que, pensava, tivesse ela perdido. E iria destruir duas vidas inocentes para afastar de seu paraíso material a ameaça de nele abrigar uma alma que julgava não merecê-lo.
Ao mesmo tempo, não tinha ideia da carga de sofrimento que impunha sobre a filha ao fazê-la sentir-se responsável pela desdita daqueles dois seres que nada haviam feito de mal, senão terem educado com correcção e valores nobres o filho que Deus lhes havia concedido.
Atirada ao solo, Marnahan soluçava agarrada às pernas de seu pai, como a pedir que não fizesse aquela injustiça com duas pessoas inocentes. Dentro de seu coração, do mesmo modo, suplicava para que o pai não se comportasse como aquele monstro insensível que ela dissera, momentos antes, achar mais desgraçado do que os próprios escravos.
Mas Nekhefre, como a maioria dos homens, era daqueles que não voltavam atrás nas suas decisões, ainda que elas fossem as mais duras, injustas e erradas. Preferiria amargar todo o sofrimento que o esperava dali para frente, a aprender a ser humilde e compassivo como Marnahan já sabia ser.
Sem qualquer discordância do marido, ainda que ralada de angústia pelo sofrimento de sua filha, Kimnut não interferiu nas decisões daquele momento, já que achava necessário tomarem atitude firme para coibir os desdobramentos daquele fato como também, por conhecer o temperamento do marido, sabia que naquela hora não seria bom negócio fazer outra coisa mais do que concordar com ele. A estas alturas, Kalmark já havia partido da casa, carregando seus poucos pertences, sem imaginar que, daquela frase sarcástica, dita no final da conversa com o pai de sua amada, decorreriam tantos sofrimentos para aqueles outros seres que amava tanto e que, agora, se veriam desalojados e desempregados, expostos a todos os perigos do abandono.
Levaria ainda muitos séculos para que os homens entendessem a simplicidade dos ensinos de Jesus, ao aconselhar:
“É preciso que os escândalos venham; no entanto, não sejas tu a pedra do escândalo!”

() Colossos de Memnon situados na planície onde estão edificados os templos mortuários dos Faraós de diversas dinastias na região de Tebas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:44 pm

19 — As dores que o egoísmo produz para todos
Em um estado de total desequilíbrio, Nekhefre recolheu-se ao interior de sua moradia, deixando a filha Marnahan entregue à dor de se ver responsabilizada pelos actos injustos e desumanos de seu pai.
Realmente, as determinações do chefe da casa foram cumpridas à risca. Através de seu administrador, o casal de servidores fiéis, pelo simples fato de serem pais de Kalmark, foram notificados de que estavam dispensados dos serviços da casa e de que, no menor prazo possível deveriam deixar as dependências modestas que ocupavam e buscar outra família que os albergasse.
Sem compreenderem qual o motivo de tal expulsão, não precedida de explicações ou justificativas, os dois se deixaram envolver pelas lágrimas e, abraçados um ao outro, ouviram a porta de suas acomodações se fechar ruidosamente, deixando-os diante da dura realidade.
Sem abrigo, a caminho da velhice que dificultaria qualquer novo emprego, sem recursos materiais para uma imediata solução de seus problemas e, o que era ainda pior, sem o único filho que tinha se dirigido para Amarna, na concretização de seu sonho de tornar-se escultor ou artista na corte do faraó.
Esta era a condição delicada e quase desesperadora dos dois injustiçados seres que, vítimas da incompreensão de um homem preconceituoso e de visão estreita, eram aqueles que se vêem diante das encruzilhadas do próprio destino, na qual todos os caminhos devem tomar rumos diferentes daqueles que foram planejados ou idealizados pelos homens.
Certamente, ao se verem surpreendidos pelas determinações bruscas de que foram objecto, o medo e a incerteza tomaram conta de suas almas. Não tinham a quem recorrer e, ainda que o tivessem, nada poderiam fazer para impedir o estado de abandono. Presenciando toda a situação triste desse casal, o espírito de Khufu os envolvia em vibrações generosas e calmantes, com as quais buscava manter-lhes a lucidez e o senso de rectidão, para que não se vissem tentados a furtar da vivenda que teriam de deixar, quaisquer bens valiosos como forma de garantirem o futuro, muito menos para não perderem a oportunidade de acerto das contas com o passado através da revolta ou do ódio, que são sempre os piores conselheiros que se valem dos momentos do desespero para agir sobre os homens.
Na verdade, Kaemy e Meldek estiveram ligados ao espírito de Khufu desde longa data e, pelos desatinos praticados naquele período, pelas dores que fizeram outros enfrentar, pelas responsabilidades que tiveram no desterro de muitas pessoas que não lhes eram agradáveis, semearam no próprio caminho a necessidade de resgatar tais experiências, no processo de aprendizado pelos caminhos escolhidos para os outros.
Apesar de estarem reparando comportamentos egoístas que haviam tido no passado distante, a bondade de Deus não os abandonara, já que tudo se realizava sob os auspícios de sua justiça, dotando cada ser das condições indispensáveis para superar o sofrimento, enfrentar a dificuldade, levar o testemunho até o fim e atingir a vitória tão necessária à melhoria do espírito.
Por esse motivo, se a Lei do Universo permitia que as responsabilidades de ontem fossem resgatadas pelos efectivamente culpados, ainda que, agora, aparentemente através da injustiça suportada, da mesma forma, a mesma Lei Universal permitia que Espíritos amigos e elevados pudessem velar por eles, auxiliando-os a seguir pelos caminhos da rectidão, não escolhendo trilhas tortuosas que só fariam aumentar as próprias dívidas.
Khufu tinha essa função, entre outros Espíritos dedicados ao auxílio dos encarnados que o ajudavam, e estava ali, esperando o desabar da tempestade sobre a cabeça dos dois irmãos de experiências amargas, tutelando-lhes o pensamento e os sentimentos para que não se perdessem ao sabor dos maus conselheiros — medo e revolta — prejudicando todo o trabalho de preparação que havia sido feito, antes do renascimento.
Expulsos que foram do emprego, com a permissão do administrador para deixarem o local até o dia seguinte, sem possibilidade de se encontrarem com o príncipe Nekhefre, sem muito a fazer, já que naqueles tempos não havia se desenvolvido a preocupação com a garantia dos direitos pessoais ou decorrentes das relações de trabalho, ambos viram a noite chegar e, sem outra solução, Kaemy se colocou segurando as mãos de Meldek, fixando-lhe o olhar abatido e considerou:
— Meu marido, companheiro e amigo, sabemos que nada fizemos de errado para suportar esse duro golpe do destino em nossas vidas. Sempre tivemos uma conduta fiel e recolhida que nos garantiu o respeito de nosso senhor, diante de todos estes anos que já se passaram nesta casa. Sinto, no entanto, que tudo o que acontece deve ser de conhecimento das Forças Superiores que dirigem todos os homens.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:44 pm

Por isso, Meldek, acho que deveríamos recorrer às nossas orações, rogando aos deuses de nossa crença que nos ajudassem a superar essa hora amarga... — falou com sensatez a mulher, mais ligada ao mundo invisível, sentindo a interferência leve e intensa do Espírito de Khufu, que precisava fazer algo para alterar as disposições instintivas de Meldek.
Ouvindo as ponderações de sua mulher, o homem levantou os olhos e seus olhares se tocaram, no brilho lacrimoso que a desdita, tão talentosamente, sabe pintar nos rostos dos que sofrem.
Como que se visse surpreendido em seus mais íntimos pensamentos, Meldek respondeu:
— Você, Kaemy, sempre como a alma boa em meu caminho para me tirar das sombras de meu pensamento. Eu, aqui, perdido entre a revolta e o desencanto, pensando em como salvar a nossa vida, agora que Kalmark se foi e que demos a ele o pouco dinheiro que tínhamos para que não sofresse tantas privações na nova vida que o espera,... pensando que, talvez, tirando daqui algum bem que pudéssemos vender e fazer algum dinheiro... pensando que estaríamos levando isso como direito pelos serviços que prestamos durante tantos anos sem receber quase nada além da moradia e do alimento, ... pensando em arrumar uma maneira de fazer com que essa injustiça ficasse igualmente marcada no coração frio daqueles que sugaram nossas forças e que, agora, nos apontam a rua como destino incerto,.. pensando, quem sabe, em atear fogo no celeiro e queimar as provisões ali amontoadas e que os ratos comem enquanto nós iremos passar fome na incerteza do amanhã...
Eu, aqui pensando isso tudo, na escuridão de minha alma perdida e você, minha querida esposa, ... pensando na oração, na elevação de nossos espíritos...
Obrigado, Kaemy, por ser assim, tão vigilante nas horas da desgraça e de acender sempre a luz da fé em meu coração que, facilmente, se deixa envolver pelas sombras da descrença. Sim, os deuses nunca nos abandonaram, ainda quando eu, pelos meus modos atrasados, sempre me esqueça deles. Acho, apenas, que já é muito tarde para podermos ir ao templo de Amon-Rá. Será que não é melhor irmos amanhã? - perguntou Meldek como criança que se entrega nas mãos experientes da mãe que tem todas as respostas para iluminar-lhe as dúvidas.
Vendo-lhe as boas disposições na aceitação da oração e, percebendo que não teriam muito tempo para esperar até o dia seguinte, Kaemy não deixou passar a oportunidade, ainda mais porque sabia que Rá não estava contido nas paredes de um templo, mas era esfuziante e luminoso habitante do céu diurno, acessível a todas as horas pelo simples olhar, aquecendo a todos os que se colocassem directa ou indirectamente sob a sua tutela.
— Não precisamos esperar até amanhã, meu marido, para nos ligarmos aos nobres sentimentos que nosso coração nutre e, ainda que Rá não esteja sobre as nossas cabeças, na longa viagem que faz durante a escuridão pelo reino das sombras, lembre-se de que durante o dia está sempre vigilante e próximo de nossas vidas. Acho que poderíamos orar mesmo aqui, agora, para que pudéssemos sentir a sua presença... que acha você?
— Acho que não deve haver nenhum problema se fizermos isso... — respondeu Meldek, que aceitava qualquer sugestão da esposa naquele momento. Faça você, então, as preces para que nosso caminho possa ser clarificado pelos raios luminosos de Rá.
Envolvidos pela energia de Khufu, Kaemy e Meldek se puseram em uma posição de respeito que adoptavam todas as vezes em que pretendiam dirigir-se aos seres superiores que lhes representavam as divindades poderosas que dirigiam os destinos humanos. E apesar de Akhenaton já ter implantado a crença em um deus único, as tradições pessoais se recusavam a seguir-lhe os passos impostos à força dos decretos. Por isso, habituados à reverência ao deus Amon-Rá, a ele se dirigiam e, independentemente da denominação do foco para onde suas orações se dirigiam, ali estava o espírito nobre de Khufu, respondendo imediatamente aos anseios dos que aprenderam a pedir.
— Sábia Força Luminosa — iniciou Kaemy a oração daquele momento — enquanto teus raios lutam contra a sombra, nossas almas também se viram envoltas pela noite dos fatos que nos atiraram na escuridão da incerteza. Entretanto, somos simples mortais, apagados em nossa imperfeição e sem recursos luminosos para enxergarmos um caminho que nos leve ao reino de tuas luzes. Assim, eu e meu esposo amado, Meldek, recorremos ao teu poder, ó Divina Verdade, para que com a tua experiência de combater a sombra todas as noites e regressar vitorioso até nós, todos os dias, nos ensine o que devemos fazer para encararmos esse momento de penumbra e conseguirmos sobreviver a ele, reencontrando a luz no amanhã.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:44 pm

Pelo que sabemos, nobre Deus de Luz e Calor, jamais houve um dia em que teu clarão deixou de ressurgir no horizonte, vitorioso sobre todas as adversidades e desafios. Por isso, querido e venerado Amon, escuta nosso lamento e vem nos ajudar a vencermos nossa noite juntos, sem que nos deixemos embeber pelo véu da escuridão que nos aconselha o crime do roubo ou da destruição. Contigo sempre aprendemos o caminho da luz e da verdade. Não nos permitas abandonar esses exemplos, atirando-nos nas sedutoras tentações que a escuridão nos lança, como a querer nos engolir em seu seio. Queremos continuar teus seguidores. Afasta-nos todas as ideias de ódio ou de raiva de nossos corações. Ao ressurgir o novo dia, vitorioso como sempre da jornada pelo reino das sombras, traze até nós a tua luz amiga e aponta-nos um caminho para que, com os nossos passos, possamos trilhar na direcção dos novos rumos que estarão abertos para nossas vidas. Não pedimos o mal para os que moram nesta casa. Pedimos para eles a mesma protecção que pedimos para nós. Há algum motivo oculto que nós não sabemos, mas que a Tua Sabedoria conhece e que torna toda esta desgraça o cumprimento da vontade firme e segura de um Amon que nos deseja ajudar. Nós nos submetemos paciente e resignadamente ao calor dos teus raios, que nos abrasam e nos fustigam nesta hora, sem nos esquecermos que é a esse mesmo calor que devemos o nascimento das plantas e das sementes que nos servem de comida e nos mantém a vida. Por isso, aprendemos que tudo o que a Tua Sabedoria permite que aconteça, o faz para que, daí, o melhor possa surgir na vida de todos nós, e sobretudo, na daqueles que sabem confiar em ti, ó Divino Amigo dos que sofrem.
Calara-se Kaemy, emocionada, enquanto ondas de energia poderosas os envolviam e, tanto nela quanto em Meldek propiciavam um efeito calmante que lhes chegava até aos órgãos físicos, que, alterados pelas emoções desagradáveis daqueles momentos, agora voltavam ao estado normal, permitindo que uma maior lucidez fizesse parte daqueles momentos de meditação e de decisão.
Milagres conseguidos tão somente à força de um simples pensamento direccionado à fonte criadora, ao Sublime Dispensador de Forças, Ao Grande Arquitecto do Universo, ao Criador da Vida, a Deus — como costumam chamá-Lo as diversas formas de compreendê-Lo que existem na Terra.
Khufu havia estabelecido com os dois uma ligação energética que lhes infundia uma harmonização com as vibrações generosas do Universo, disponíveis a todas as pessoas que fizerem da oração mais do que um movimento de lábios, um articular de palavras, uma repetição de frases e fórmulas sem sentido íntimo. E isso lhes permitia um benefício imediato, na tranquilização dos sentimentos, na reordenação dos pensamentos e no reequilíbrio do funcionamento do próprio corpo físico.
Quando os homens entenderem verdadeiramente o poder da oração, saberão que estarão mais sadios no corpo e na alma com alguns minutos de recolhimento verdadeiro todos os dias do que com o amontoado de pílulas e remédios que têm sido o altar e o deus de muitos sobre a Terra e que, se por um lado possuem recursos de tratamento valiosos, não conduzem o homem interior à origem dos males, a se livrar do ódio, do ressentimento, da mágoa, da rebeldia, da inveja, do ciúme, da insensatez, todos estes causas perniciosas de uma infinita gama de enfermidades, para as quais, a química não consegue substituir a fé.
Terminada a oração, ambos se serviram de pequeno recipiente com água que havia nos seus aposentos e que os Espíritos auxiliares de Khufu haviam magnetizado com forças calmantes e revigorantes e, quase que imediatamente, resolveram recolher-se ao repouso, já que teriam um dia muito difícil pela frente, mas que, pela força da oração dirigida à Fonte de todos os auxílios, já não estariam pensando mais na realização de actos nocivos e que lhes pesaria profundamente como débitos remontados. Sairiam carregando consigo o único bem que tinham e que haviam demonstrado possuir ao longo de todos aqueles anos.
Sairiam carregando a dignidade de uma honestidade que suportava até a injustiça dos homens, por confiarem cegamente na Justiça de Deus.
Ao despedir-se da esposa, já no leito de repouso, Meldek falou-lhe sensível:
— Querida, durante a sua oração, pensei muito no sacerdote Hatsekenká, sempre tão bom e tão amigo de todos os que sofrem. Quem sabe, amanhã, ao sairmos daqui, não possamos ir procurá-lo e ele não nos ajudará no que puder?... — falou como que esperando a opinião da mulher, que lhe respondeu imediatamente.
— Que óptima lembrança, meu marido. Eu mesma não me havia lembrado dele e, se há alguém com bondade o suficiente para nos esclarecer e aconselhar, esse há-de ser Hatsek, com seu coração generoso. Tenho certeza de que isso já é a resposta de Amon à nossa oração, querido.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 3 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:44 pm

— Deu-lhe um beijo de boa noite e enlaçou-o, agora mais confiante no futuro que os aguardava no dia seguinte.
Hatsek era a lembrança que Khufu tinha para intuir aos dois desditosos irmãos.
Em busca de seu sonho, da construção de seu ninho de Amor, Kalmark olhava o nascer do Sol sobre as águas do Nilo, sem poder imaginar tudo o que estava acontecendo atrás de seus passos.
Nekhefre não dormira naquela noite, vítima de seu ódio e da companhia desagradável de um grupo de entidades negativas que se aproveitavam de seu estado para dele fazerem um homem mais sofrido e amargurado.
Kimnut também não se encontrava em paz com tudo o que havia ocorrido. Amava Nekhefre, concordava com ele, partilhava as suas prevenções e preconceitos. Amava Marnahan por quem não se via desafiada como ocorria com Hatsena. Todavia, não desejava ver a filha unida a qualquer um que não estivesse à altura de sua condição social. Amava um amor desnaturado pelo convencionalismo das pessoas e do mundo. Não um amor puro que tudo suporta, tudo compreende e que sabe respeitar nos outros os caminhos que elegem para a própria felicidade.
Marnahan estava prostrada no leito, entre a vigília e o sono, acometida de um estado febril que não passava nem à custa dos remédios conhecidos. Seu estado era lastimável e, ainda que fosse tomado por seus pais, de início, como um choque passageiro que as emoções fortes produzem, a persistência dele começava a gerar apreensões nos serviçais que lhe cuidavam das horas de repouso.
Não lhe diminuíra a temperatura nem o remédio, nem o banho. E, por isso, foram levar a notícia de tal estado até o chefe da casa que, perdido em seus pensamentos conturbados, mandou que fossem falar com Kimnut para que ela tratasse desse fato que considerava, apenas, ataque de um coração contrariado, próprio das mulheres.
Mas tratava-se de um caso muito diferente.
Diante do trauma emocional, desajustara-se o equilíbrio energético de Marnahan, espírito sensível e de sentimento nobre, sempre mais vulnerável a todo o tipo de choque. Para isso, os remédios não possuíam eficácia, já que em seu íntimo, o que estava doente era a alma da jovem, que se sentia culpada pela desdita de seus dois amigos, agora condenados ao sofrimento e ao desabrigo. Na sua pureza e juventude, Marnahan se entregara ao flagelo de si mesma, acreditando-se culpada pela maldade de seu pai, pela insensatez de sua mãe e pelo amor que nutria por Kalmark. Se era assim, melhor que o foco causador de todas estas desditas se apagasse. Era o pensamento mais íntimo da jovem que desconhecia os efeitos funestos do auto-aniquilamento para a própria alma.
Não tinha forças nem coragem para agir deliberadamente no sentido de tirar a própria vida, mas vitimada pela avalanche cruel que sobre ela fora despejada pelos seres egoístas representados por seus pais, a quem amava sinceramente e de quem não esperaria uma tal reacção, Marnahan se deixou levar pelo abatimento como que desistindo de viver, sonhando com o momento de deixar um mundo tão injusto e cruel, que recompensava o sentimento sincero com o banimento e o abandono, com o sadismo e com a infelicidade.
Talvez, do outro lado, no reino dos mortos, encontrasse consolação para sua alma ou pagaria pelos erros cometidos, aliviando, com isso, o sofrimento dos que estavam suportando as dores por sua causa.
Fora levada a acreditar que era a culpada por tudo aquilo. Agora, achava que a punição que merecia era sofrer mais do que todos e, por isso, seu organismo desajustado e frágil, na idade juvenil em que se achava, não possuía recursos eficazes para fazer frente às agressões do pensamento desajustado.
Lutando contra os ataques do emocional em desalinho, o corpo tentava liberar os centros mais importantes, guardiães da vitalidade, do assédio das forças desagregadoras desencadeadas pela acção da alma fragilizada. Com isso, tentava estabelecer alívio através das correntes circulatórias a transferir o desequilíbrio das descargas hormonais e energéticas para a superfície da pele, alterando-lhe a temperatura ao mesmo tempo em que permitia que um suor álgido lhe empapasse as vestes que não se vencia trocar.
Nessa luta para preservar a vida física de todos os ataques do emocional avariado, o corpo tinha conseguido manter algum sucesso, mas não seria capaz de se manter vitorioso por muito tempo, caso alguma outra coisa não fosse feita e que retirasse a jovem daquele estado íntimo. Era preciso agir rápido.
Kimnut pressentira a gravidade do caso, graças à interferência de Khufu sobre a sua sensibilidade de mulher. Afinal, depois de ter atendido Kaemy e Meldek, o Espírito amigo fora informado de que Marnahan estava naquela situação, propiciando, com isso, que desdobrasse todos os esforços para fazer algo em favor da reversão daquele estado, no menor tempo possível.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:45 pm

Para fazer-se entender mais claramente e sem os recursos da oração, já que Kimnut não tinha profundidade espiritual para se valer dessas fontes elevadas, Khufu projectou em seu pensamento a imagem do funeral da própria filha, revestido de todas as dores e angústias que seriam interessantes que a mãe pudesse ver interiormente. E com essa imagem a envolver-lhe o pensamento, ainda que não visse com os olhos da carne, Kimnut passou a imaginar, repentinamente, o corpo frio de sua filha, os olhos apagados, a expressão dolorosa de uma jovem morta sem ter tido o direito de ser feliz e de sentir o que era o amor...
Todas estas imagens mentais que Khufu havia projectado dentro de seu cérebro fizeram com que mãe passasse a pensar nisso como se estivesse imaginando uma cena e sofrendo profundamente com isso.
Era a maneira mais rápida de o Espírito amigo convocar a mãe para fazer alguma coisa, antes que aquilo viesse a acontecer, realmente.
Vendo-se assim, surpreendida pela desgraça que chegava a galope em sua casa, Kimnut passou a agir com maior determinação, mandando chamar o marido imediatamente, falando-lhe do estado gravíssimo da filha e que, se ela morresse, ele seria responsável pela desgraça.
Retirado de seu mutismo pelo choque da notícia em plena alvorada do novo dia, Nekhefre dirigiu-se, rápido, para os aposentos da filha e se surpreendeu com o seu estado de abatimento, de palidez e de total abandono.
Imediatamente suas fibras de pai se deixaram tocar pela preocupação em perder aquela que lhe havia sido a primeira realização do amor paternal. Relembrava os primeiros dias, os choros da criança faminta, os primeiros passos, as primeiras palavras, os bracinhos tenros que se esforçavam por abraçar o pai querido, as algazarras infantis, os brinquedos espalhados pelos quartos, o choro pelas quedas no meio das correrias, tudo aquilo que fazia de sua vida um oásis sem que ele mesmo o valorizasse. Tudo isso ele poderia estar vendo acabar, diante de seus próprios olhos.
Ali estava também o Espírito de Khufu, fazendo com que, do fundo da memória de Nekhefre, brotassem essas lembranças que transformariam a sua insensatez em um impulso de fazer o que era necessário para evitar-se a tragédia.
Abraçado ao espírito do príncipe, que se via envolvido pelos laços de energia enobrecidos de Khufu, imediatamente as entidades trevosas que dirigiam os seus pensamentos até minutos antes se viram afastadas momentaneamente, perdendo a influência directa sobre ele, ainda que se mantivessem próximas para voltar à carga.
Inspirado pelos sentimentos do coração, Nekhefre não sabia o que fazer diante de todos os recursos que já haviam sido adoptados para a solução do problema da filha, que se lhe apresentava, agora, como insolúvel.
— Que tenho que fazer, agora? Todos os remédios já foram dados, todas as medidas de tratamento já foram tomadas. Não sei mais o que fazer — pensava Nekhefre, entre o desespero e a falta de lucidez daquele momento de dificuldade.
Vendo-o perdido entre suas dúvidas e incertezas, mas buscando algo fazer a mais para tentar salvar a filha do estado que avançava rapidamente para a agonia e para o delírio da febre avassaladora, o Espírito amigo que o ajudava assoprou-lhe nos ouvidos da alma uma palavra que chegou-lhe ao pensamento como um milagre a resolver-lhe todos os problemas e lhe trazer a segurança que faltava.
— Puxa vida, como é que não me lembrei disso antes?! — afirmava, agora, Nekhefre para si mesmo, entre feliz e preocupado. Como é que deixei esse tempo todo passar sem pensar nisso!
Imediatamente virou-se para o administrador e ordenou:
— Vá ao templo de Amon agora e entregue este anel ao sacerdote Hatsekenká dizendo-lhe que preciso dele aqui o mais rápido possível.
Ao ver o anel, saberá que se trata de um caso urgente e grave. Faça o que for, pague o que precisar, mova céus e terra, mas traga-o aqui, imediatamente.
Aquilo não era uma ordem. Era um gesto de desespero, já que o príncipe Nekhefre entregara ao administrador o anel de ouro e pedras que lhe conferia o grau de nobreza, recebido pelos seus ancestrais das mãos do próprio rei.
Jamais havia tirado o anel do dedo até aquele dia.
Jamais estivera tão perto de perder a própria filha.
Jamais todos precisaram tanto de Hatsek como naquele momento.
Era o mal que sempre precisa do bem para melhorar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:45 pm

20 — O tratamento de Marnahan
A manhã daquele dia era mais uma na vida de Hatsek, que já se encontrava nos afazeres do seu cotidiano quando o Sol apontou no horizonte.
Para sua surpresa, no entanto, o dia não seria igual aos outros.
Logo cedo, acompanhando o nascer do Sol, chegara ao templo de Amon-Rá o mensageiro de Nekhefre, trazendo ao sacerdote o pedido desesperado do príncipe e, indicador da gravidade daquele momento, fizera chegar às mãos de Hatsek a jóia preciosa que ele sabia ser tão importante ao seu proprietário. Se houvera se desfeito dela e a mandara entregar-lhe, isso representava um sinal de extrema urgência, eis que Hatsek sabia o quanto o príncipe Nekhefre era apegado aos bens que herdara de seus antepassados, principalmente aquele que fora ofertado à sua família pelo próprio faraó que retomara o reino dos invasores, conferindo-lhes os direitos da nobreza do Egipto ancestral.
Assim, deixou o emissário por alguns momentos para que se preparasse para o deslocamento, não sem antes ter sido informado pelo mesmo que havia problemas de saúde na casa e que, ao que parecia, a filha mais velha de Nekhefre se encontrava muito mal.
Ao ingressar em seus aposentos, o sacerdote estava compenetrado de seus deveres e pretendia recolher os medicamentos que sua intuição lhe apontassem para que não precisasse voltar até ali em busca dos mesmos.
Tão logo se pôs a mexer em suas coisas, sentiu a presença do Espírito que o tutelava, o mesmo Khufu que havia envolvido a todos naquela casa no momento dos testemunhos por que estavam passando.
— Filho amado, — disse a entidade generosa à sensibilidade mediúnica de Hatsek, — sei que seu coração está apreensivo e que você procura levar tudo o que acredita possa ajudar no tratamento da jovem.
— Sim, nobre amigo, desejo auxiliar o mais rápido e eficazmente possível, dentro da permissão da Força Suprema que nos dirige os destinos — respondeu o sacerdote.— Pois então, basta que você se prepare para um processo de transferência de forças e que ministre a ela uma infusão da erva medicinal que está contida no terceiro vaso na prateleira ali na parede.
— Como devo me preparar para a doação das forças? Há algo especial a ser feito neste caso específico? — retornou Hatsek.
— Nada de especial além do que você já conhece sobre as forças da Vontade Soberana que nos guia os passos. Por suas mãos, partindo de seu coração, reunidas ao potencial de minhas próprias vibrações, seremos o canal do Soberano Poder na revitalização da jovem abatida pelos desmandos de seus pais. Se não fizermos isso rapidamente, o seu estado corre risco de se tornar irreversível, pelos danos que seu cérebro está sujeito a sofrer com a demora do auxílio externo. Vá confiante, que lá tudo será feito como deve ser. Estarei contigo ao teu lado.
Mais do que depressa, o sacerdote reuniu os poucos pertences de que necessitava e, juntamente com o administrador de confiança de Nekhefre partiram para a casa que, agora, amanhecia envolta na atmosfera do medo e da desgraça.
Marnahan havia piorado muito. Seu estado geral era extremamente delicado, já que perdera a consciência, suava muito e sua temperatura não parava de se elevar.
Kimnut e Nekhefre não trocavam nenhuma palavra, mas ambos viam tudo isso apreensivos, como que a se questionar sobre o motivo daquele comportamento. Apesar do que haviam feito, tudo aquilo fora para proteger a jovem filha das ilusões de um coração apaixonado.
Não conseguiam assumir para si próprios que o que os motivara havia sido o egoísmo de não permitirem que pessoas de nível social inferior lhes partilhassem das regalias e prazeres tão comuns aos de sua estirpe. Da mesma maneira interpretavam as relações sociais pelos padrões dos preconceitos então vigentes, sem levarem em consideração o valor pessoal e verdadeiro da pessoa que se apresentava como o candidato escolhido pelo coração da própria filha. Pensavam que, depois daquela tempestade, tudo voltaria ao normal.
No entanto, o estado da filha os fazia temer pela sua vida e, com isso, um aperto mais fundo na alma tornava o seu mundo quase sem sentido. Diante da possibilidade da morte do ser amado, todas as convenções deixavam de ter o valor que a transitoriedade humana lhes atribuía e, a inexorabilidade da partida para a outra vida como facto real na jornada de todos os homens punha por terra os mais artísticos castelos da vã ilusão e do convencionalismo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:45 pm

Sem conseguirem mais nenhuma reacção do corpo e do espírito de Marnahan, estavam todos tomados pela ansiedade, aguardando a chegada do sacerdote Hatsek, sobre quem depositavam as últimas esperanças. Quando ouviram os passos pelos corredores da grande casa, Nekhefre não se deixou esperar pela chegada até o quarto. Saiu em disparada até as dependências de onde se originavam os ruídos para constatar se se tratava mesmo da chegada do seu emissário e do sacerdote Hatsekenká.
— Que Amon seja bendito, mil vezes bendito, ó sacerdote de Rá!
saudou-o esbaforido o príncipe. — Que bom vê-lo aqui. Você é minha única esperança de salvação da querida filha que já está delirando.
— Confiemos no Soberano Poder, príncipe Nekhefre, que nos testa os valores da alma diante das dificuldades da vida a que somos chamados a dar testemunho de nossas crenças.
Antes de tudo, quero que mande esvaziar o quarto e nele fiquem apenas você, a mãe e uma serviçal da própria jovem, para providenciar as coisas de que necessitarei.
Do mesmo modo, mande que alguém traga até o quarto, um recipiente contendo água muito quente, pois precisarei preparar uma infusão.
Imediatamente atendido, foi encaminhado por Nekhefre ao interior do quarto, onde encontrou a jovem, desfalecida, às portas do delírio.
— Preciso, agora, — disse Hatsek — que todos vocês se sentem ao redor do leito da enferma, a certa distância para que não sufoquem o ambiente, e procurem pensar nos deuses de sua crença pessoal, talvez na bondade de Rá, que a tudo assiste e a todos aquece, pois se algo pode salvar esta filha amada, este algo se chama Soberano Poder do Universo. Não há remédio humano que a possa impedir de morrer.
Aquelas palavras fizeram o desespero dos pais, mas ao mesmo tempo, diante da desgraça anunciada e da única possibilidade que tinham, todos se compenetraram de que era ali que poderiam fazer a única coisa útil. Iriam todos orar juntos.
Colocando-se próximo à cabeceira da enferma, de maneira a envolver-lhe o corpo a partir da cabeça com as suas mãos impostas sobre ela, Hatsek, totalmente envolvido pelo espírito de Khufu, elevou o pensamento às portas luminosas do infinito, na comunhão com as forças magnéticas do bem, sempre disponíveis e a serviço da necessidade dos homens.
— Ó Amado Gerador de todas as coisas, Sublime Esperança de nossas vidas, diante das nossas fraquezas, disfarçadas pelos poderes mesquinhos e pelos títulos vaidosos, nos revelamos perante a tua nobreza como farrapos humanos, frágeis caniços à beira do rio volumoso da verdade, que não cessa de correr.
Aqui, perante esta quase criança, entregue ao desespero pelo descontrole de suas emoções e pela pureza de sua alma, nos elevamos à tua Majestade Luminosa para suplicarmos o teu remédio para reparar o mal que fizemos para com ela. Seguimos sendo os miseráveis que destroem para, logo a seguir, rogarmos em desespero ao teu Supremo Poder que refaça as coisas que quebramos, a harmonia que rompemos, a paz que destruímos.
Aqui comparecemos como os insensatos que se pensavam sábios, os pobres que se achavam ricos, os verdadeiros enfermos para os quais somente em teus celeiros existe remédio eficaz.
Que destes celeiros divinos, possas enviar sobre este corpo e esta alma aflita a energia refazedora que impeça murche a flor que ainda sequer desabrochou.
Não considere, entretanto, nisto que pedimos, a nossa miséria e a nossa culpa pessoal na desgraça que agora visita este lar. Se te pedimos isso, não é por nós, nem pelos pais que trilham os caminhos do engano de boa fé. Se te rogamos estas bênçãos tão essenciais agora, é tão somente por esta jovem, espírito belo e luminoso que, diante das desditas da vida se vê desejoso de partir para o reino da imortalidade de onde viera, como se voltasse para casa depois das desgraças de uma viagem infeliz.
Todavia, Grande Rei de todos nós, ainda precisaremos muito das luzes desta criança. Não nos prives das belezas que ela nos poderá proporcionar um dia.
Educa-nos para que saibamos ver o Bem em todas as coisas, sem nos iludirmos pelas armadilhas de uma vida mentirosa e superficial, sem agirmos por causa dos outros, mas tão somente em função do Bem que nos compete viver, em teu nome.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 8:45 pm

Mantendo suas mãos luminosas sobre as do sacerdote, Khufu havia praticamente se tornado um só, tão intensa era a aproximação entre os dois, de tal maneira que Hatsek falava mecanicamente as palavras que Khufu pronunciava. Das mãos de ambos saíam chispas luminosas que eram endereçadas por outros Espíritos auxiliares a todos os departamentos orgânicos, principalmente aos centros de forças localizados no alto da cabeça e no centro do peito, buscando abastecê-los de energias revitalizadoras, que pudessem, aos poucos, ir sendo absorvidas pelos demais sistemas do organismo físico e, com isso, trazendo novamente a paz no contexto orgânico.
Uma massa esbranquiçada e invisível aos olhos humanos, saída dos orifícios da face do sacerdote, era manipulada pelos Espíritos para ser aplicada sobre o corpo físico da jovem em desalinho, como se fosse um tipo de alimento espiritual que lhe outorgaria maior força imediata, compensando as energias perdidas ao longo do desequilíbrio que já durava várias horas.
Ao redor do leito, uma linha de forças foi estabelecida pelos emissários do bem de maneira a proteger aquela célula em tratamento de todas as projecções de pensamentos ansiosos e angustiados que vinham dos que deveriam estar ali para auxiliar nas doações vibratórias. Espíritos trabalhadores com função de protecção magnética criaram uma barreira de energias em todo o perímetro do quarto da jovem, a impedir o acesso de todos os tipos de entidades inferiores que, naquela casa eram tão comuns pela inferioridade de pensamentos, sempre ligados aos problemas mundanos, do ganho, da riqueza, da manutenção dos privilégios, da superficialidade dos moradores daquela morada faustosa, mas vazia do Deus verdadeiro, o Deus do coração e da simplicidade.
Em função de tais providências, o próprio príncipe Nekhefre e Kimnut passaram a sentir os entrechoques que o novo ambiente propiciava em suas almas, já que, até mesmo as entidades necessitadas que se achavam imantadas às suas personalidades se viram compelidas a deixar o ambiente, por se verem envolvidas por uma força tão poderosa que não eram capazes de aguentar.
As que desejaram se fazer de fortes, pela própria acção do magnetismo do amor, aliado aos eflúvios celestes que recaíam sobre aquele ambiente protegido a favorecer a recuperação de Marnahan, espírito enobrecido nos testemunhos de sacrifício em vidas anteriores, acabavam como que desmaiando, vítimas de choques magnéticos entre o potencial positivo do Bem e a baixa vibração que a ignorância produz nos que se deixam por ela carregar.
Desmaiavam e eram retirados dali, encaminhados para locais onde receberiam tratamentos adequados.
Assim, os próprios pais da vítima eram também tratados, com a libertação de influenciações espirituais nocivas que se haviam instalado em suas mentes pelas brechas do pensamento e do sentimento viciado nas coisas inferiores. Eram os convidados que haviam aceitado permanecer instalados na casa mental dos anfitriões por estarem em perfeita sintonia com eles e por partilharem dos prazeres que as suas sensações tanto buscavam.
Por causa disso, Nekhefre e Kimnut se sentiram estranhos e igualmente apossados de uma sensação de sono muito forte, quase incontrolável, exigindo deles uma conduta de disciplina e de domínio para não caírem ao solo também.
Os seus centros nervosos estavam sendo tratados pela acção magnética do Amor, independentemente de época, de lugar ou de costumes, sempre o médico de todas as fraquezas da alma e do corpo.
A operação de transferência de energias prosseguia, com a ligação de ténues fios luminosos da mente espiritual de Khufu até a mente de Marnahan, passando pelo cérebro de Hatsek. Através desses fios de energia, o espírito tutor falaria ao centro da alma da criatura tutelada, como a despertá-la para as responsabilidades e os compromissos anteriormente assumidos e que precisariam ser retomados, sem detença.
Através dessa rede de ligações magnéticas, a vontade poderosa de Khufu se fez ouvir na acústica da alma da jovem adormecida, valendo-se do momento de inconsciência física da mesma.
— Filha do meu coração, escute as palavras do Criador de Tudo ecoando dentro de você. Longo é o caminho que sua alma já percorreu.
Grandes são as forças de seu espírito. A hora é de lutar e enfrentar os desafios que começam. Chegará o momento luminoso de matar as saudades da harmonia e da paz que ficaram no reino do invisível. Isso, no entanto, só acontecerá depois que você voltar vencedora. Agora é a hora da luta. Depois, chegará o momento de usufruir da consciência tranquila e do dever cumprido.
As frases eram curtas e rápidas, mas dotadas de um poder de vontade tão imenso que representavam alavancas que, passo a passo, iam despertando o espírito de Marnahan que começou a ganhar lucidez e a abrir os olhos no mundo espiritual, passando a ver com certa clareza a cena de que era objecto.
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