LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz

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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:42 pm

A Força da Bondade
André Luiz Ruiz

Espírito Lucius

"O Amor Jamais te Esquece"

Neste empolgante romance, o Espírito Lucius nos remete aos luminosos momentos vividos pela humanidade ao tempo de Jesus, envolvendo o senador Públio Lentulus, sua esposa Lívia, Zacarias, Fúlvia e Pilatos, entre outros.
Através de seus dramas e experiências, o leitor sentirá que, apesar de todas as nossas quedas e erros, o Amor nunca nos abandona ao desamparo, ajudando-nos a sair dos abismos escuros onde somos projectados por nossa ignorância.


"A Força da Bondade"

Os processos de resgate nas regiões espirituais inferiores, o amparo luminoso do mundo invisível na hora do sacrifício, a importância da bondade como factor de vitória nas lutas de cada dia, são alguns dos temas espirituais abordados por Lucius nesta obra que dá continuidade à historia das personagens, Pilatos, Fúlvia, Sulpício, Zacarias, Lívia, Cléofas, Lucilio e Simeão, que teve início no romance O Amor Jamais te Esquece.

"Sob as Mãos da Misericórdia"

Encerrando a trilogia, iniciada pelo "O Amor Jamais te Esquece" e "A Força da Bondade", a presente obra de Lucius, "Sob as Mãos da Misericórdia", apresenta ao leitor, em traços vivos e emocionantes, o entendimento do mecanismo da Compaixão com a qual o Criador conduz a evolução das criaturas, sempre buscando ampará-las como fez com Pilatos, Sulpício, Fúlvia, Sávio através dos corações generosos de Zacarias, Lívia, Simeão, Cléofas, Licínio, Décio, entre outros

Índice

Palavras de Lucius


1- Relembrando a história
2 - Efeitos da maldade
3 - Perante si própria
4 - As catacumbas
5 - Palavras proféticas
6 - Testemunhos assumidos
7 - O cântico da bondade
8 - O amparo espiritual
9 - Mãos que se estendem
10 - O Bem como prémio da bondade
11 - Aprendendo com o amor
12 - Palavras de Zacarias
13 - O abismo
14 - O esforço do Bem
15 - O resgate de Pilatos
16 - O resgate de Fúlvia
17 - A vez de Sulpício
18 - Forças majestosas
19 - Explicações antes do regresso
20 - A volta
21 - Mais uma vez a velha Roma
22 - Cláudio Rufus
23 - As misérias da capital imperial
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:43 pm

24 - Serápis
25 - No palácio
26 - As experiências de Serápis
27 - Sentimentos e interesses
28 - Egoísmo em acção
29- O encontro e os reencontros
30 - Amparo espiritual
31 - Escolhas infelizes
32 - A nova rotina
33 - O amargo sabor da paixão
34 - Afecto doentio
35 - O velho cenário para os mesmos erros
36 - Licínio cristão
37 - A insensatez semeando dores
38 - Surpresas trágicas
39 - A falta de Deus nos corações
40 - Lições para Licínio
41 - Fidelidade ao Bem
42 - Renúncia e consciência
43 - Descobrindo a verdade
44 - A Força da Bondade

Prezado leitor,
Voltamos ao seu coração com a continuidade da vida das mesmas personagens do livro "O Amor Jamais te Esquece", relatando as consequências dos actos humanos sobre a realidade de seus Espíritos imortais bem como os efeitos das nossas escolhas de cada dia a repercutirem em nossa existência futura.
Mais do que produzir impacto constrangedor, nosso objectivo é revelar a você como funcionam, com exactidão e clemência, os mecanismos da Justiça Divina, buscando amparar as criaturas imaturas com o manto da Augusta Misericórdia.
Que seu coração consiga abrir-se para "A Força da Bondade"do mesmo modo sensível como recebeu o abraço de "O Amor Jamais te Esquece", lembrando-se de que eles foram escritos para que você se enriquecesse com o exemplo do Bem e o convertesse em actos de Bondade que venham a beneficiar os que cruzarem seu caminho.
Você é o único que pode fazer isso consigo mesmo!

Brilhe sua luz!
Muita paz,

Lucius.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:43 pm

1 - RELEMBRANDO A HISTÓRIA

No longínquo ano de 38, a figura de Pilatos ingressara em um período ainda mais turbulento já que sua conduta infeliz de pôr fim à própria vida o transferira para o mundo espiritual praticamente sem qualquer protecção ou preparo que lhe pudesse servir de ajuda no enfrentamento da nova situação.
Preso na experiência do exílio, ainda que sem a presença de Zacarias, que houvera partido para a vida espiritual meses antes, vitimado pelo veneno que era destinado a ele próprio, Pilatos, poderia ali começar a resgatar através da dor alguns dos desmandos cometidos, amadurecendo o espírito e aprendendo a conquistar uma certa humildade diante da adversidade.
Ali no cárcere da antiga guarnição onde houvera conquistado algumas de suas glórias mundanas, poderia melhor avaliar a transitoriedade das coisas, a maneira caprichosa com que a vida flui, num vai e vem, num efeito gangorra que ora coloca o homem no alto para, logo depois, conduzi-lo ao nível mais inferior que o de singelos escravos.
Apesar das maneiras cruéis que o poder mundano tinha para punir as pessoas que não lhes serviam mais aos interesses, o castigo infligido ao antigo governador poderoso foi-lhe dado de acordo com as necessidades evolutivas para que propiciasse a sua renovação interior.
A lei do Universo não estava preocupada em manter o homem apequenado na sua falsa condição de poderio e nobreza.
Segundo as regras espirituais, a intenção primordial era e sempre será encaminhar a criatura para a verdade e para o amadurecimento real.
Assim, a sua colocação em uma prisão naquele mesmo lugar de onde saíra como um respeitado comandante romano era o que poderia fazer-lhe mais benefícios do que qualquer outro destino que lhe fosse oferecido, já que a vergonha viria quebrar-lhe as fibras arrogantes, a humilhação propiciaria ao seu espírito a busca de novos caminhos para compreender a transitoriedade das glórias humanas.
Para isso, a bondade divina e a força do Amor verdadeiro haviam garantido para ele a constante companhia de Zacarias que, desde Jerusalém, se desdobrava para que Pilatos fosse ajudado e não estivesse solitário na longa jornada da queda que viria adiante.
Além disso, Zacarias houvera conseguido o apoio de Lucílio que, ainda na sua falta, poderia seguir sendo um protector a amparar-lhe as necessidades mais urgentes.
Nada disso, entretanto, conseguira sensibilizar a alma enfraquecida daquele homem que houvera sido vencido pelas próprias armadilhas.
A sua fragilidade moral ficara exposta em sua consciência e o carinho que recebia de Zacarias e do próprio Jesus, que não se havia descuidado dele desde antes de ter sido sua vítima, o transtornavam em face da vergonha que sentia vergonha essa que não tinha como superar.
Na verdade, era uma grande mescla de sentimentos contraditórios que se estabelecia no íntimo de seu espírito.
E a falta de Zacarias, o grande amigo e generoso conselheiro, o deixara perdido no meio da tormenta moral que vivia, sem coragem para seguir, sem conseguir ver o apoio que Lucílio poderia lhe conceder e sem forças para enfrentar-se na grande tragédia do Calvário da qual se sentia responsável por nada ter realizado.
Desse modo, não lhe foi difícil escolher o caminho aparentemente mais fácil, menos desonroso para um soldado em desgraça, mas infinitamente mais doloroso para o espírito acovardado ante as decepções de uma vida adversa.
E o suicídio foi o último ato de seu espírito débil, despreparado para as grandes decisões espirituais que envolveriam sempre a renúncia, a paciência, a compreensão de suas próprias fraquezas e culpas e o esforço paciencioso de recomeçar.
A perturbação espiritual também lhe fizera a companhia necessária ao desequilíbrio pessoal.
Isso porque Sulpício Tarquínius, seu braço direito durante longos anos de governo na província, seu comparsa nos delitos, seu ajudante de ordens imediato, acobertador de suas fraquezas, seu cúmplice nos desmandos e nos furtos havia sido transferido para o lado espiritual da vida anos antes, por ocasião da execução do velho Simeão, na Samaria, quando a grande e pesada cruz de madeira onde fizera amarrar o ancião que estava sendo chicoteado, depois de não mais suportar os embates do suplício, deslocou-se de sua base e caiu inesperadamente sobre o algoz atirando-o ao solo, o que lhe ocasionara a morte imediata.
Desde então, o espírito atrasado e violento de Sulpício se mantinha jungido ao governador como a lhe servir ou a influir nas decisões odientas, mantendo a mesma ordem de cumplicidade negativa.
Instigava-lhe a crueldade, produzia-lhe as sensações provocantes que lhe induziam a invigilância a buscar novas aventuras, no que se poderia considerar um perfeito casamento entre um espírito e um encarnado, na afinidade de gostos, desejos e inferioridades.
No entanto, com o passar do tempo e a aproximação de Zacarias, Sulpício começou a perceber as modificações de Pilatos e a sua inclinação para um outro caminho, o que lhe causou um verdadeiro pavor, já que não se admitia desvinculado daquele que considerava o chefe a quem devia obedecer.
Com isso e sem poder, efectivamente, impor-se diante das fortes vibrações de Zacarias, Sulpício começou a nutrir um forte desejo de forçar Pilatos a sair de tal influenciação e, de uma forma directa, teve participação na trama sombria que levou Zacarias a ingerir o veneno que Sávio havia posto na água que levara ao cárcere de Pilatos.
Espírito ignorante, acreditava que ajudando a afastar Zacarias da presença do governador, ficaria mais fácil de se conseguir recuperar a influência e o controle que detinha sobre ele.
No entanto, depois que Zacarias morreu, tudo ficou muito pior, já que a perda do melhor e único amigo tornou Pilatos ainda mais ligado aos ensinamentos que o velhinho lhe havia deixado, fazendo-o pensar nas coisas de um modo diferente, sem aquela maldade característica dos velhos tempos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:43 pm

A imagem de Jesus não era esquecida pelo preso e, muitas vezes, Pilatos havia sido flagrado por Sulpício realizando orações para esse profeta judeu, o que produzia no espírito uma imediata reacção de revolta.
Assim, acreditando que o governador estava sob o efeito de alguma alucinação, algum encantamento que lhe tirara a capacidade de pensar ou de agir, Sulpício deliberou que tudo deveria fazer para que Pilatos se transferisse para o mundo espiritual, a fim de que, deixando essa vida de dores e decepções, pudessem retomar o caminho dos desmandos, ainda que longe do corpo de carne.
Além disso, Sulpício se deixara levar por um sentimento de raiva contra Lucílio e até mesmo, em algumas ocasiões, contra o próprio Pilatos, a quem achava que, se não estivesse vitimado por um novo encantamento, a sua transformação era um indício seguro de traição.
E ele, o fiel lictor que dera sua vida para servir àquele homem déspota e poderoso, não deixaria as coisas seguirem por esse caminho, onde o governador resolvia mudar de lado, passar a ser bonzinho, trocar de deuses - o que era considerado uma heresia das mais graves na antiga crença dos romanos - sem que ele, Sulpício, interviesse.
Fosse para tentar salvar o prisioneiro desse caminho torturante, fosse para punir suas novas condutas que eram consideradas fraquezas inaceitáveis, o certo é que Sulpício passou a influir ainda mais directamente sobre o governador, insuflando-lhe pensamentos inferiores, apegando-se às suas fraquezas morais, fazendo com que ideias negativas lhe povoassem os sonhos, sem lhe permitir ao corpo o descanso indispensável.
Mais do que isso, durante o repouso, inúmeras vezes, Pilatos se via perseguido por seres escuros, horripilantes, acusadores e desfigurados, que, na verdade, eram as suas antigas vítimas arrebanhadas pelo espírito de Sulpício, que as trazia das furnas escuras onde a revolta e o ódio às havia projectado para que o ajudassem a aumentar o cerco sobre aquele fracassado dirigente terreno.
O espírito do lictor, sabendo que Pilatos ferira muita gente com seu comportamento, na ideia de aumentar o peso negativo sobre a mente e o espírito deste, propiciara que muitos homens e mulheres que tinham se transferido para o mundo espiritual com ódio e desejo de vingança contra o governador conseguissem fazê-lo agora que o mesmo estava derrotado e reduzido à condição de reles preso.
Essa medida propiciou um agravamento do estado moral de Pilatos, pois, através das brechas de suas culpas e de seus pensamentos inferiores, uma grande quantidade de entidades se ligava à sua estrutura magnética e passava a sugar-lhe as forças vitais, produzindo um estado de fraqueza muito grande, alterando a sua consciência sobre as coisas, aproveitando-se dos complexos de culpa contra os quais Pilatos não lutara, tornando-os ainda piores.
Com tudo isso, o preso ia se abatendo.
Vozes interiores, ecos dos pensamentos e das palavras de suas antigas vítimas se aproveitavam de sua fragilidade e se impunham a ele com sugestões maliciosas, acusações sinistras, perseguições constantes que não lhe davam trégua.
Além disso, conseguiam sempre influenciar algum dos soldados do campo vienense a se acercar da porta que guarnecia a prisão para escarnecer de seu estado, acusando-o de ter envergonhado a legião a que servira anteriormente, colocando-a em má situação diante do imperador.
Eram velhos servidores que nutriam um orgulho de casta e que a simples presença de um governante militar em desgraça era um demérito para aquela agremiação.
Pilatos tinha que escutar tudo isso e só contava com a palavra amiga de Lucílio, agora que Zacarias tinha morrido.
As influências de todos os lados, somadas à fraqueza moral de seu carácter tíbio, fizeram com que ele visse na espada que lhe fora oferecida em certa ocasião, colocada ao seu alcance por um dos que escarneciam dele e desejava livrar-se dessa vergonha, o último recurso para sair desta vida.
Assim, não titubeou quando, agarrado ao metal frio e rijo da espada romana, atirou-se contra a parede da cela, enterrando-a em seu ventre naquilo que considerava uma morte ao menos digna para um soldado.
Nada conseguiu demover Pilatos dessa atitude.
Do lado de lá, um cortejo tétrico o esperava.
Agora, não mais composto somente por Sulpício, que ostentava a aparência sórdida de um espírito fracassado, mas sim, composto de tantos quantos se fizeram possíveis encontrar para perturbá-lo em uma forma de vingança prévia, a fim de trazê-lo para o mundo invisível onde poderiam, efectivamente, exercitar o castigo que acreditavam mais adequado.
Inúmeras mulheres desfiguradas, vestidas por andrajos infectos se acercavam, agora, de seu espírito perturbado e confuso e atiravam-se sobre ele, falando coisas lúbricas e sensuais, oferecendo-se como se fossem as suas novas eleitas.
O estado horroroso com que se apresentavam produzia náuseas naquele espírito imaturo, fazendo com que tentasse fugir dali, sem o conseguir.
Isso porque, o suicida não se vê com forças para deixar as suas próprias construções mentais e asilar-se em um ambiente que lhe propicie um pouco de paz.
Rebelde por natureza, lhe compete agora arcar com as suas escolhas pessoais e caprichosas, tendo que enfrentar o momento da colheita dos espinhos que semeara.
Passavam as mulheres e vinham seus maridos feridos e envergonhados, levados à infelicidade e à destruição dos seus sonhos por causa dos desmandos daquele autoritário e luxurioso governador.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:44 pm

Depois vinham os que ele havia mandado prender injustamente, os que havia espoliado de seus bens, os que haviam sido vitimados por sua arrogância, os que tinha prejudicado na vida pessoal, na política, nas injustiças de seus julgamentos sumários, os que morreram nas perseguições sanguinárias, quando da morte de Sulpício, etc.
Depois vinham os que o acusavam de ter matado o filho de Deus, de nada ter feito para impedir o seu assassinato.
Assim, tais entidades galhofeiras reproduziam aos seus olhos, a cena derradeira onde ele fizera lavar as próprias mãos e, no momento preciso em que repetiam tal ato, da jarra sumptuosa, ao invés de água cristalina, jorrava sangue borbulhante que fumegava ao contacto de suas mãos.
Essa visão era a que mais lhe doía na alma.
Além disso tudo, em seu corpo espiritual Pilatos sentia doer profundamente o local do ventre que fora ferido pela perfuração da espada, como se ainda a tivesse enterrada na barriga, sangrando sem cessar e sem conseguir recursos para estancar o ferimento.
No auge do desespero, Pilatos vislumbrou a figura de Sulpício que o observava sem intervir.
Um lampejo de esperança tomou conta do olhar do insensato suicida, acreditando que Sulpício o ajudaria.
Em vão pronunciou lhe o nome, como se o estivesse novamente convocando para uma tarefa como o fazia ao tempo de seu relacionamento na corte romana.
Sulpício não se movia do lugar e o seu imobilismo ainda mais constrangia Pilatos.
As lágrimas de desespero chegaram naturais aos seus olhos e, assim que começaram a ser vertidas, uma onda de estrondosas gargalhadas tomou conta de seus ouvidos e as acusações mesquinhas e irreverentes, irónicas e cruéis eram-lhe atiradas na face:
- Desde quando uma serpente é capaz de chorar? - diziam uns mais agressivos.
- Essas lágrimas são de ácido que vão corroer-lhe as carnes - dizia outro, impondo-se à vítima como a lhe hipnotizar, o que produzia em Pilatos a alteração da face, como se sulcos profundos fossem marcando a trilha por onde a gota cáustica escorresse.
O governador estava, agora, entregue aos seus actos e à sementeira que fizera no passado, diante dos frutos amargos que o procuravam, como se lhe estivessem devolvendo o esforço da semeadura em uma carga exactamente correspondente à qualidade do que plantara.
O seu estado emocional e mental beirava a alucinação, tentando fazer de tudo para sair dali, afastando-se dos quadros horrorosos que não se afastavam dele.
Não adiantaram palavras de perdão, nem uma postura de arrependimento.
Parecia, ao contrário, que quanto mais ele se mantinha humilde ou se humilhava diante daquela turba, mais sarcasmo e ironia ele escutava, por não acreditarem em suas novas disposições.
Nenhum dos presentes estava disposto a deixar que, agora, ele se modificasse antes de acertarem as contas pelo muito que haviam sofrido em suas mãos impiedosas.
Diante do cenário perturbador, Pilatos tentou retomar o corpo físico que havia sido depositado na cova pobre do terreno afastado do acampamento, como a tentar fazer com que o corpo voltasse a erguer-se, já que não tinha como explicar a sensação de vitalidade que o envolvia.
Sim - havia pensado em se matar.
No entanto, ainda que se lembrasse do gesto tresloucado, que visse seu corpo ferido e sangrando, mesmo assim não conseguia entender por que não havia morrido.
Sua consciência estava lúcida, nenhum antepassado lhe estava ao lado estendendo a mão como lhe houvera sido ensinado desde longa data.
Onde estavam os deuses de sua devoção que, desde a juventude, haviam recebido seus favores e suas homenagens em forma de oferendas?
Aquela perseguição era incompreensível para ele e, por isso, acreditando estar tendo um pesadelo cruel, buscou retomar o corpo como se costuma fazer quando o sonho mau nos fere a sensibilidade.
Desse modo, sentindo-se atraído fortemente, para o local onde seus despojos haviam sido sepultados, viu-se tentado a meter-se novamente neles para acordar daquela situação e vencer a má impressão daquelas vozes que o perseguiam, inflexíveis.
No entanto, novamente deparou-se com outra tragédia.
Ainda que tivesse mergulhado no monte de terra que lhe cobria a sepultura sem desejar indagar por que fora para ali atraído, assim que se viu envolvido pela densa massa de solo que pesava sobre o corpo, uma aterradora sensação novamente o envolveu.
Era como se milhões de farpas ou dentes dilacerassem suas carnes, modificando-lhe toda a estrutura já debilitada pela perseguição de si mesmo e dos outros.
Passara a ligar-se, novamente, ao cadáver em putrefacção e, num átimo, sentira todo o mau odor que ali se produzia.
Os milhões de agulhadas e tenebrosas farpas eram as sensações produzidas pelas colónias de vermes e microrganismos que devoravam a carne morta, reprocessando a matéria para que ela viesse a ser utilizada novamente pela natureza na modelagem de novos corpos.
Nada no mundo havia sido tão desesperador para sua alma do que aquela visão tétrica, onde se identificara a si próprio de maneira tão grotesca, sem entender como isso se estava passando.
Diante de tal descoberta, as perseguições de suas vítimas eram suave veneno, preferível a qualquer ideia de se aproximar daquele local.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:44 pm

No entanto, a sua conduta suicida o prendia ao túmulo e, por mais que desejasse se afastar, agora, como que se sentia imantado às sensações cadavéricas.
Num esforço hercúleo, conseguiu levantar-se da cova como quem se liberta de uma trágica visão de um filme de terror.
No entanto, seguia vinculado ao corpo físico por laços magnéticos que ele passara a ver e que, em vão, tentava romper com suas mãos.
_ Tais cordões o mantinham em contacto directo com as forças biológicas que destruíam suas vísceras e demonstravam ao seu antigo possuidor que não é possível despir-se de um corpo antes da hora sem ter que enfrentar as consequências do ato tresloucado e insano.
Por mais que se afastasse agora do pedaço de terra que lhe servira de última morada, carregava consigo as sensações cruéis da decomposição.
Sua fuga, no entanto, não o levava para lugares melhores.
A turba dos desocupados e aproveitadores, espíritos sugadores de fluidos vitais, o buscava como se fossem vampiros à cata de sangue para se sentirem alimentados.
Naturalmente, tal referência é apenas uma comparação inadequada, já que sabe, o leitor querido, que a figura vampiresca é fruto de um mito engenhoso com o qual se pretendeu escurecer um pouco mais a atmosfera terrena com uma mensagem de horror.
No entanto, no plano espiritual, uma grande quantidade de entidades que perderam o corpo físico busca encontrar uma fonte de energia vital, em geral conseguida de corpos recém descartados, humanos ou de animais recém-abatidos, a fim de assimilarem forças biológicas que lhes produza a vã e temporária sensação de vitalidade corporal.
E como o suicida é um indivíduo que carrega consigo uma boa carga desse tipo de energia, já que seu corpo não sofreu os naturais desgastes frutos da enfermidade prolongada ou da velhice que consome as forças, é uma fonte generosa desse tipo de recurso, o que atrai sempre entidades que desejam sugá-las e, por isso, são consideradas como tais vampiros sem possuírem, contudo, os trejeitos e as aparências que foram patenteadas pela indústria cinematográfica para a personagem já referida.
Por isso, ao afastar-se do túmulo pobre, Pilatos se via perseguido por grupos vastos de entidades que apontavam em sua direcção e corriam como que a desejarem destroçá-lo, infundindo-lhe medo terrificante, já que se sentia impotente para esconder-se.
Sem saída imediata, já que a presença daquele cordão energético era como o fio de Ariane que apontava o caminho para que Teseu saísse do labirinto onde havia ido matar o Minotauro na mitologia Grega, indicando-lhe o esconderijo, só encontrava refúgio seguro contra tais entidades mergulhando novamente na cova fria, na qual escondia a ligação magnética das vistas alheias, que o perdiam de vista, sem entenderem o que havia acontecido com o perseguido suicida.
Voltando à cova, precisava conter-se e suportar as mesmas sensações por um tempo até que tais grupos assustadores tivessem passado, a fim de poder sair dali novamente.
Assim, a saga do governador na prisão de Viena havia sido extremamente leve perto do que ele era obrigado, agora, a enfrentar, no recolhimento de seus feitos, na forma de espinhos dolorosos.
O desespero havia tomado conta de seu ser e, por mais que desejasse encontrar uma saída, parecia que nunca essa saída lhe chegava.
Além do mais, a imagem do suicídio em que via aproximar-se a parede do cárcere com a espada pontuda apontada contra si mesmo se repetia sem parar.
Quando não estava fugindo da sepultura, ou fugindo das entidades sugadoras voltando à sepultura, ou quando, distante dela, não se via perseguido por suas vítimas, era escravizado pela visão constante da cena do suicídio que parecia repetir-se milhões de vezes ao seus olhos impotentes para impedir que tais imagens se dessem.
Não tinha mais noção de tempo, não sabendo dizer quantos dias haviam se passado.
Tinha fome constante sem conseguir comer nada.
Quando se aproximava de algum curso de água, ao ingerir os primeiros goles parecia que estava bebendo sangue, já que suas mãos se mantinham vermelhas como na visão que lhe era projectada pelos seus perseguidores, quando as lavara no julgamento do Cristo e que sua culpa aceitara pela consciência pesada.
Sujas de sangue, contaminavam a água com o seu sabor acre e a cor rubra, impedindo que ele a engolisse e matasse a sede.
O estado geral do governador se deteriorara profundamente e outra coisa não fazia senão engolfar-se em seu desespero e procurar esconder-se em cavernas que havia naquela região astral onde se localizava, única maneira de conseguir ocultar-se um pouco de todos os perseguidores, sob a vigilância de Sulpício.
Na verdade, Pilatos permaneceu nesse estado por todo este tempo, até o período em que os primeiros mártires foram devorados pelos leões em Roma, no ano 58.
Zacarias o visitava nas furnas, mas Pilatos não era capaz de sentir-lhe a presença.
E era tanta novidade assustadora na vida do governador e tanta falta de noção do que fazer que Pilatos não se animara a retomar as noções elevadas que lhe haviam sido semeadas na alma.
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Conduzido por Sulpício, fora levado como um autómato para encontrar-se com Fúlvia, a antiga amante, igualmente a surgir-lhe diante dos olhos espirituais como se fosse uma alma desfigurada, sobretudo agora que já se encontrava no reino dos mortos, em deplorável situação espiritual.
Logo depois, era reconduzido às mesmas cavernas, como se o antigo sócio nos crimes o estivesse guardando ao mesmo tempo em que, eventualmente, o fustigasse com tais passeios terrificantes.
À porta de entrada de tais grutas, sentinelas pretorianas subordinadas a Sulpício montavam guarda vigilante, impedindo a entrada de qualquer um que não fosse autorizado pelo lictor, que se notabilizara pela crueldade e mesquinhez.
Pilatos ainda não havia recorrido à verdadeira oração, nem se achava digno de pedir a ajuda de Jesus para o seu caso.
Suas mãos ainda estavam vermelhas e sua consciência também.
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2 - EFEITOS DA MALDADE

Outra personagem de nossa história, igualmente vencida pela própria insensatez, sucumbira ao destino trágico que espera aqueles que se entregaram ao caminho dos desmandos, das intrigas, da maldade deliberada, da calúnia e do crime.
Trata-se de Fúlvia, a que espalhou espinhos por onde passou e que, nos últimos anos de sua vida recebeu no próprio corpo o sofrimento indispensável ao início da própria rectificação.
Sabemos que, depois de suas aventuras junto a diversos leitos nos quais conseguia obter a aquiescência dos poderosos para a elaboração de seus planos, Fúlvia intentara tirar a vida de Pilatos, através de um amante que, ao final, terminara por ela envenenado também, como prémio por sua dedicação.
Depois que Sávio perdera a vida nos estertores dolorosos do envenenamento cruel, Fúlvia ficou a esperar a chegada da notícia oficial da morte de Pilatos, informação esta que não chegava na velocidade que se esperava, exactamente porque o militar enviado para dar-lhe o veneno não o conseguira matar graças à acção decisiva de Zacarias, que ingeriu o tóxico para salvar o governador prisioneiro, seguindo a promessa que fizera a Jesus.
O panorama em Roma estava se modificando rapidamente depois da morte do imperador Tibério, alguns meses antes do efectivo suicídio de Pilatos.
Fúlvia, no meio das tempestades políticas, se mantinha navegando por mares revoltos, sempre procurando levar sua influência até os mais importantes homens de governo, agora tudo empenhando para colocar sua filha Aurélia em vantagem no seio daquela sociedade corrompida e afastada dos valores morais dos antigos tempos.
Aurélia era a cópia piorada de sua mãe.
Adestrada na malícia, na sedução, nas condutas imorais e amorais, a jovem não se deixava sensibilizar por nenhum argumento de ordem ética.
Buscava solucionar seus problemas através de caminhos tortuosos que lhe parecessem mais fáceis e adequados, ainda que tivesse que passar por cima das convenções sociais, dos padrões de respeitabilidade e das normas de conduta decentes.
Todavia, o tempo cobrou seu preço e, por volta do ano 51, ao mesmo tempo em que o pretor Sálvio Lentulus, seu marido, regressava ao mundo espiritual, Fúlvia apresentara sinais de debilidade orgânica iniludíveis.
Dores abundantes se espalhavam por todo o seu corpo físico, agora reduzido a frangalhos por um câncer violento que lhe consumia os tecidos e estava localizado nos órgãos genitais, fartamente utilizados por Fúlvia para os delitos sem conta que cometera, usando o centro sagrado da vida para torná-lo arma de ataque.
Essas áreas apresentavam feridas extensas que, não bastasse o péssimo odor que produziam, ainda lhe infligiam imensos sofrimentos, pois estavam sempre infectadas em face das necessidades fisiológicas que, por terem de ser realizadas sem que a doente se levantasse do leito, eram depositadas sobre as próprias ulcerações abertas, produzindo ainda mais infecções purulentas e intoleráveis.
Os cabelos brancos acusavam a chegada da velhice, acompanhados do estado de desgaste físico em virtude das inúmeras aventuras vividas ao longo de sua juventude, prejudicando todo o equilíbrio vital e abrindo espaço para a infestação das larvas psíquicas em todo o campo do organismo vibratório, prelúdio das inúmeras manifestações mórbidas que feririam o cosmo físico e a levariam ao desencarne.
Por todos estes motivos, ao longo de dois anos a figura de Fúlvia passou a sofrer a triste consequência dos actos praticados anteriormente, efeitos estes que estavam apenas no seu início.
A filha única, que lhe poderia servir de companheira na dor do período final da existência, estava seguindo rigorosamente os mesmos passos aprendidos com a mãe, ocupando-se dos encontros sociais nos quais jogava com os sentimentos alheios e se comprometia com a infidelidade, desrespeitando o marido digno que o destino lhe propiciara.
Diante de suas dores atrozes e do peso de sua consciência, nos dias finais de sua agonia Fúlvia alternava momentos de razoável lucidez com momentos de profunda insanidade, durante os quais voltava ao passado, esbracejava obscenidades, lançava vitupérios contra fantasmas que somente seus olhos podiam divisar na atmosfera penumbrosa de seu quarto.
Atendida sempre pelo seu prestimoso genro, o militar Emiliano Lucius, buscava muitas vezes aliviar-se das pesadas correntes de dor e arrependimento, agora em que o abatimento físico a encaminhava para o destino que espera a todos os seres sobre a Terra.
Estava chegando o momento do reencontro com os que ferira, com aqueles que já haviam ido para a verdadeira vida antes dela, carregando os espinhos que suas mãos cravaram em seus espíritos vitimados pela sua astúcia e pelo seu veneno.
Assim, nas horas de certa lucidez, Fúlvia dirigia-se a Emiliano que se colocava à sua cabeceira, enfrentando as ondas nauseantes de mau cheiro, provenientes do corpo físico degenerado, que ia apodrecendo antes mesmo que ela morresse.
- Meu filho... você é a única coisa que me resta neste mundo, já que sei que me esperam trágicas consequências no reino sombrio da morte - dizia a doente, agoniada.
Desejando dar-lhe forças e tirar de sua cabeça ideias negativas, Emiliano tentava mudar o rumo da conversa.
No entanto, sentindo que sua vida estava se esgotando, Fúlvia mantinha a mesma direcção no assunto, como se desejasse punir a si própria, como um imperativo da consciência de culpa, longamente ignorada pela indiferença.
- Não, meu filho, não posso retribuir a sua dedicação com a mesma indiferença com que me mantive ao longo de toda uma vida.
Fui esposa infiel, mulher impiedosa e mãe desnaturada.
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Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz Empty Re: Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:44 pm

Na condição de esposa, representei uma comédia conjugai, sendo que Sálvio sempre soubera que nos havíamos casado por interesses calculados e para mantermos uma aparência necessária ao nosso modo de ser e à mentirosa sociedade em que vivemos as mentiras que iludem para parecerem verdades.
Incapaz de me manter dentro dos padrões da decência, mantinha minha corte de amantes entre os homens mais poderosos, mas nunca desprezei uma aventura com qualquer outro menos importante, para saciar os meus impulsos carnais.
Assim, não hesitei em me deitar com autoridades e subordinados, romanos e estrangeiros, desde que daí retirasse alguma vantagem que pudesse utilizar depois, na forma de favores que, mais tarde, viria a cobrar com acréscimos.
Fui amante de meu próprio cunhado, esposo de minha irmã, dentro de sua própria casa, sem que isso me causasse a menor dor de consciência.
Quantas vezes sentia Cláudia aflita pelas condutas ilícitas de Pilatos e tentava acalmá-la com fingidas palavras de compreensão, quando era eu mesma quem lhe desvirtuava o casamento, ferindo-lhe o coração generoso e confiado.
Como mulher, mandei matar os que não me interessavam mais e eu própria envenenei alguns outros para que as pistas de meus crimes fossem apagadas para sempre.
E como mãe, passei a criar minha filha pelos mesmos caminhos tortuosos por onde me conduzia, adestrando Aurélia para ser sempre fingida e inocente por fora, mas víbora e mesquinha por dentro.
Ainda que já estivesse casada com você, meu filho, sabendo de sua inclinação profunda por outro, o jovem Plínio Severus, tudo realizei para que ambos pudessem consumar seu amor aqui mesmo nesta casa, durante sua ausência.
Desejando ferir a família do orgulhoso senador que sempre me desprezou no afecto secreto que lhe devotava, tratei de envenenar-lhe o ânimo contra sua mulher, acusando-a de leviana sem ter provas efectivas de sua traição, ao mesmo tempo em que me interpus no caminho de sua filha Flávia, que desposara Plínio numa forma de unirem as duas famílias afinizadas por anos de convivência, os Lentulus e os Severus.
Sabendo da grande paixão de Flávia pelo jovem Plínio, instruí Aurélia, que se demonstrava também interessada em aventuras carnais na companhia do jovem, também pertencente às hostes militares, atraída por seu porte esbelto, nas técnicas de conquista e de sedução sempre tão eficazes diante de homens despreparados para o afecto fiel e seguro do casamento.
Não demorou muito para que Plínio trocasse as alegrias dos braços da esposa pelas aventurosas noitadas ao lado de Aurélia, como a amante lasciva e atraente que, por caminhos tortuosos se tornara a minha arma contra essa família que não conseguira conquistar com meu afecto sincero.
Tudo isso, o fiz por inveja e por desejo de vingar-me da felicidade que não pude construir ao meu redor.
Tenho certeza de que as feridas que me atacam hoje são o fruto desse procedimento ilícito e baixo que, agora que me preparo para morrer, me vejo na obrigação de confessar diante de ti, meu filho, a quem peço que me perdoe todo o mal que estou te revelando.
Emiliano, aturdido, não sabia o que fazer diante de tanta maldade confessada ali, na beira do precipício escuro da morte, por uma mulher que, agora, era apenas a sombra malcheirosa do que fora no passado.
Subira de seu estômago uma queimação acre que parecia querer corroer-lhe as entranhas e, se não fosse a sua disciplina militar, vomitaria ali mesmo, tal o estado de asco que tudo aquilo lhe produzia.
Passara a entender melhor o comportamento de Aurélia, sempre interessada nas festas, nas companhias estranhas de amigas que não guardavam sua simpatia e aprovação, mas que eram usadas como desculpa para suas fugas infiéis, na entrega de seu corpo à paixão de outro homem.
Com o pensamento divagando sobre tudo o que ouvira, viu-se chamado à realidade da enferma por um surto de aparente loucura, que outra coisa não era do que o reflexo de suas visões espirituais, divisando o cortejo negro de entidades vingativas aproximadas de seu leito para que lhe lançassem os impropérios e reforçassem as promessas de vingança que, em breve poderiam ser efectivadas graças ao desencarne iminente.
Assim, nesses momentos, perante os que estavam fisicamente presentes no quarto, ao seu lado, parecia que a doente estava delirando.
No entanto, eram claros as suas palavras e gritos, ligados aos compromissos de um passado recente.
- Emiliano.... Emiliano.... me proteja, meu filho.... estes malditos não irão me levar com eles...
- Calma, minha mãe, calma, aqui não há ninguém além de nós... - respondia o jovem sem entender direito as palavras da velha.
- Mas você não vê como é que este quarto está cheio de sombras e de cobras com cabeça de gente me olhando...? - perguntava aflita a mulher que partilhava agora das duas realidades, física e espiritual.
Vejo estas coisas tenebrosas e escuras, todas obedecendo às ordens do maldito Sulpício Tarquínius, o lictor de meu cunhado... comanda ele uma grande legião de soldados mascarados, dão risadas de mim, falam de minha morte e que estão me esperando para retomarmos nossas antigas relações...
Foram homens que eu usei no passado, inclusive Sulpício que sempre me desejou e com quem me deitei várias vezes para obter favores junto ao governador ou para aliciá-lo para meus planos tomando-o meu cúmplice.
Agora está aqui parecendo um dragão com olhos de fogo e sorriso de serpente, estendendo as mãos como a me desejar levar com ele.
- Não vou... não vou... sua víbora asquerosa - gritava a doente em desespero.
- Ele me quer, está me envolvendo o corpo com a sua cauda de bicho, como querendo me estrangular para que eu morra mais depressa...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:45 pm

- Emiliano, 'ajude-me, não me deixe ir com esse demónio...
Lutando para acalmá-la um pouco, o genro buscava o recurso da oração aos seus antigos deuses para pedir um pouco de paz àquele coração aflito que se via envolvido pelas sombras de seus crimes.
Depois de muito custo, parecia que as visões a deixavam e ela retomava uma razoável serenidade, para voltar a conversar com o rapaz, mas, agora, se apresentava cansada pelo esforço da luta cruel que mantinha contra aquelas visões terríveis que vinham cobrar-lhe as antigas condutas e os antigos pactos.
Vendo o seu estado de abatimento, Emiliano pedia que descansasse.
- E Aurélia, onde ela está? - cobrava a mãe doente, sabendo das aventuras da filha.
- Logo vai chegar em casa, minha mãe - respondia o marido, confundido.
- Com certeza está nos braços do amante em algum lugar por aí, meu filho.
Ocupe-se em seguir sua esposa para impedir que ela prossiga com esse comportamento baixo, já que você não merece esse tipo de tratamento...
- Vou seguir seus conselhos, mãe, mas peço que a senhora descanse agora.
- Sim, eu me sinto abatida.
No entanto, amanhã, quero que volte aqui, pois preciso lhe contar outros segredos infames de nossa existência desventurada que envolvem a conduta de Aurélia em nosso dia-a-dia.
Sabendo que estas poderiam ser palavras de uma quase louca, o rapaz prometeu que voltaria para continuarem a conversa, sem perceber que, no quarto ao lado, silenciosamente, como era de seu costume, na astúcia de mulher que se faz silenciosa para escutar conversas e confissões secretas, estava Aurélia, que havia chegado de suas aventuras e conseguira ouvir boa parte das confissões de sua mãe e das acusações contra a sua pessoa e a sua conduta ilícita.
Vendo-se desnudada aos olhos do esposo e sabendo que a progenitora pretendia piorar-lhe as coisas para o dia seguinte, não lhe pareceu existir outra solução senão a de dar um fim na velha doente com o corrosivo que já havia oferecido a muitos de seus amantes e desafectos.
Assim, saindo do esconderijo como quem nada tivesse escutado, aproximou-se fingidamente do leito materno com ares de preocupação e desejo de aliviar seus sofrimentos, não sem antes desvestir as roupas alegres e festivas que lhe denunciariam a chegada de lugares impróprios, ainda mais para serem visitados naquele momento em que a mãe se encontrava em seus dolorosos estertores.
Observada pelo marido que trazia o cérebro fervendo de pensamentos conflitivos, Aurélia procurou fazer-se mais doce e preocupada, alardeando a necessidade de sua mãe repousar.
Diante de sua chegada, Emiliano se afastou do quarto para que ambas pudessem ficar mais à vontade, sabendo que a filha, como mulher, poderia cuidar das feridas da mãe sem que sua presença viesse a constrangê-las na delicada e íntima operação.
No entanto, com a saída do marido, Aurélia pôde dar continuidade aos seus planos.
- Gostaria de um calmante, mãezinha, para que pudesse repousar mais tranquila? - perguntou a filha.
E acolhida pela palavra confiada daquela que fora sempre a sua sócia, a sua cúmplice em todos os erros que cometeram, Fúlvia se sentira mais segura com a sua presença e suas palavras aparentemente doces.
Sentou-se na cama, acariciou os cabelos da filha e concordou em receber o calmante para que o descanso lhe viesse menos doloroso.
Tratou a jovem de preparar-lhe o remédio, não sem deixar de incluir algumas gotas de tóxico veneno letal que guardava em suas coisas, herança das práticas de sua própria progenitora que a iniciara nas artes da maldade, através das lições que ensinavam como se livrar de pessoas indesejáveis ou de segredos que não se poderiam revelar nunca.
E, enquanto preparava o remédio/veneno, Aurélia pensava consigo mesma:
- Sim, o segredo só a morte pode, para sempre, preservá-lo...
Levou o recipiente directamente para a mãe e fez com que bebesse todo o seu conteúdo, sem qualquer tremor de consciência, sem qualquer gesto de vacilação.
Afastando-se do ambiente no qual deixara duas servas para velar o sono da enferma, como era costume, seguiu para seus aposentos esperando o desenrolar dos fatos, apreensiva.
Não tardou muito para que o efeito produzisse a sufocação fatal que impedira à vítima sequer a expressão verbal das últimas palavras.
Chamados ao leito pelo estado de desespero da doente, todos da casa procuraram dela se aproximar para tentar aliviar-lhe o sofrimento fulminante.
Em vão se tentaram todas as formas de ajuda e vieram os que se dedicavam ao tratamento das enfermidades naquela época, sem que conseguissem realizar qualquer diagnóstico acerca do veneno.
Para todos a doente fora vítima de sua própria enfermidade, tendo sido considerada morta algumas horas depois da última conversa com Emiliano.
Apesar da aparente casualidade, não lhe passou desapercebido o fato de a enferma ter morrido pouco depois da chegada da filha e tal suspeita veio se juntar às inúmeras outras que lhe povoavam a alma.
O desencarne de Fúlvia foi trágico para o seu espírito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:45 pm

Da mesma forma como houvera matado muitos, directa ou indirectamente, fora também assassinada provando em sua própria pele os efeitos do veneno que distribuíra, outrora, aos que desejava tirar de seu caminho.
Nas palavras sábias de Jesus, era o ferro ferindo aqueles que com o ferro haviam ferido, literalmente.
Agora, no mundo espiritual, o cortejo de seus sócios, de suas vítimas, de todos aqueles com quem se havia compactuado em sua trajectória de erros e deslizes, a esperava, ruidoso e apavorante.
E à frente desse cortejo sinistro estava Sulpício, o algoz de todos os antigos comparsas, que espalharia o medo e a perseguição, dominando as almas comprometidas pelas brechas que seus erros haviam aberto em suas consciências.
Estávamos no ano de 53 quando o desencarne de Fúlvia ocorreu pelas mãos da própria filha.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:45 pm

3 - PERANTE SI PRÓPRIA

O despertar de Fúlvia no plano espiritual foi algo tão doloroso quanto o fora o período final de sua vida.
Poderíamos dizer que, ao aportar ao mundo da verdade depois que o corpo fora consumido pelo tóxico, Fúlvia parecia trazer consigo todas as marcas das fixações mentais que houvera desenvolvido durante o tempo de vida física, nos hábitos, nas condutas emocionais, como acontece com qualquer um de nós que escolhe os mesmos caminhos.
Assim, a princípio não entendera o que lhe havia sucedido já que o veneno expulsara seu espírito do corpo carnal de forma abrupta e cruel.
Quando abriu os olhos na vida espiritual, sentia todos os esgares dos últimos momentos da matéria, faltando-lhe o ar, como se alguma coisa a mantivesse viva, mas, ao mesmo tempo lhe impedisse de respirar como sentia necessidade de fazê-lo.
Por causa de seu padrão de conduta durante a vida, não foi apenas no corpo físico que a enfermidade cancerosa tinha se instalado.
Aliás, é bom que se esclareça o leitor que as doenças que surgem no organismo são o produto dos desequilíbrios da alma, acumulados ao longo da presente encarnação ou provenientes das anteriores vivências da alma, somadas aí aquelas que são solicitadas pelo reencarnante como prova para o seu mais rápido aprimoramento e as que ele resolve criar com os abusos a que se entrega.
Por isso, em Fúlvia, o câncer era a marca de sua realidade espiritual, alimentado pelas mais baixas vibrações de seu espírito necessitado e ignorante, acostumado às convenções mesquinhas de uma sociedade corrupta na qual se inseriu procurando usar de suas armas para conseguir as vantagens materiais que julgava mais adequadas.
Assim, desenvolveu na área mais ligada à sua preocupação mental os desajustes correspondentes que vieram a denunciar-lhe a condução moral deficitária.
Se no corpo físico a matéria carnal, ulcerada pelos tumores, ainda apresentava certa resistência às transformações impostas pela mente desvairada, matéria esta que só lentamente ia sendo corroída, no corpo espiritual daquela alma infeliz as mudanças e desajustes vibratórios se apresentavam grotescos, transformando-a, por assim dizer, em uma mistura de bruxa louca e monstro deformado.
A área genital que corresponderia ao baixo ventre em seu corpo fluídico estava totalmente dilacerada pelas viciações sexuais, ampliando-se as características morfológicas genitais que Fúlvia havia usado de maneira indevida e exagerada, avantajando-se desmedidamente.
Não trazia apenas o aumento da forma degenerada, mas, além disso, a tumoração igualmente era mais grotesca e dolorosa, fazendo com que Fúlvia precisasse se apoiar a fim de poder caminhar com muita dificuldade no ambiente hostil onde se viu projectada.
Precisava caminhar com as pernas separadas em face das alterações morfológicas que se impuseram pelos desregramentos morais a que se entregou, o que a impedia de manter o equilíbrio desejado.
A dor lhe seguia os passos e cobrava o preço por toda a dor que ela houvera espalhado em sua trajectória, conforme a consciência de culpa já lhe impunha, como vimos nos desabafos que efectuara perante o genro amoroso que a auxiliava.
Para conseguir um pouco de alívio, precisava manter uma das mãos à altura do ventre, pressionando-o em cada passo que dava, como a segurá-lo para que o balanço não fosse muito intenso e a dor multiplicada.
Ao lado disso, seguia o problema respiratório que o tóxico produzira em sua sensação para além da sepultura.
E, para completar o dantesco quadro de misérias, os seus cobradores espirituais, fossem as suas inúmeras vítimas, fossem os seus muitos comparsas, se lhe apresentavam, acusadores e violentos uns, irónicos e gozadores outros, desejando verem-se vingados ou procurando amedrontá-la ainda mais.
Não precisamos dizer do estado íntimo de Fúlvia que, diante de todas estas realidades insofismáveis, se deixara levar pelo desespero, abeirando-se da insanidade completa.
Incapaz de entender o que se lhe havia sucedido, caminhava como podia pelas zonas purgatoriais umbralinas, onde a escuridão é sempre abundante e os baixos instintos prevalecem como a resultante final da somatória dos padrões dos indivíduos que aí se encontram e se perseguem mutuamente.
- Emiliano... Emiliano... meu filho... me ajude! - gritava ela como louca naquele abismo de dor e desalento.
Estridentes gargalhadas soavam como eco ao seu pedido desesperado.
- Bruxa não precisa de ajuda...!
Miserável, maldita!
A morte é pouco para você, sua vampira desalmada.
Aproveite a estadia no inferno de onde você não vai sair nunca mais.
Estes impropérios e muitos outros eram as respostas às suas súplicas, oriundos dos que a acompanhavam naqueles ermos abismos.
Entidades sofridas e que se haviam consorciado para exercerem a vingança contra a desditosa alma de Fúlvia não a deixavam em paz.
Tentava fugir de seu assédio, mas a dificuldade de caminhar a impedia de fazê-lo e, muitas vezes, rendendo-se ao cansaço e à dor, acabava caída ao solo, ocultando o rosto entre as mãos, que buscavam tampar os ouvidos para que não escutasse as frases cruéis, sem conseguir impedir que os ditos jocosos e agressivos lhe chegassem aos tímpanos da alma.
Não sabia como continuava a escutar mesmo com os ouvidos tampados, pois não tinha nenhum conhecimento sobre a vida espiritual que a recebia em outra realidade onde as leis eram diferentes das que dirigiam os fenómenos na Terra.
Suas vestes foram se desfazendo e somente a nudez lhe restou como a única vestimenta, do mesmo modo como houvera se conduzido durante a vida física.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:45 pm

Só que, agora, seu corpo era uma grotesca escultura, recoberto por uma pele escamosa, parecida com a de um sapo, de onde minavam fluidos pestilentos e malcheirosos, que Fúlvia tentava cobrir desesperadamente para evitar que esse mau odor e a própria nudez lhe denunciassem o estado de degeneração.
E na falta de qualquer tecido para fazê-lo, procurava cobrir-se com a lama do chão onde pisava, única roupagem que, por algum tempo, lhe permitia ocultar a pele nua.
Esse lugar lhe causava arrepios no mais profundo da alma, já que, apesar de extremamente escuro, propiciava que ela visse e fosse vista por aqueles que a rodeavam.
Assim, a sua nudez física, a mesma que ela usara tantas vezes durante a vida carnal para conquistar os favores dos poderosos, agora lhe causava medo pelo estado animalesco de que sua epiderme se revestia, grossa, húmida e escamosa.
O tempo de permanência nesse antro parecia eternizar-se em seu conceito íntimo, já que ela não tinha como marcara sua passagem.
Por isso, cada minuto parecia um infindável tormento a se estender por seu espírito, como se fosse um século.
Em vão gritou para os deuses aos quais jamais recorreu outrora com sinceridade e respeito, pedindo ajuda.
Vociferava impropérios tão logo se visse inalterado seu estado geral, amaldiçoando lhes a indiferença.
Assim permaneceu Fúlvia por alguns anos, recebendo como única visita naquelas furnas a figura de Sulpício que a vinha fiscalizar e que deixara um de seus asseclas e comandados como responsável por vigiá-la para que não a perdesse de vista, já que, quando se fizesse o momento adequado, voltaria para buscá-la, lembrando que, apesar do grau de deformidade e monstruosidade daquela alma, Sulpício se achava ligado a ela pelos desejos que, de uma forma ou de outra,, acabam sendo os primeiros e mais pobres laços dos espíritos, a começarem a sua jornada de comprometimento e elevação, ainda que através da dor e do sofrimento que se causem.
E não se podia negar que Fúlvia havia se comprometido com ele também eis que ambos se associaram para inúmeras perseguições, oferecendo Fúlvia seus dotes físicos e seus favores sexuais como pagamento pela fidelidade de Sulpício, que se encantava com a possibilidade de possuí-la entre suas conquistas.
Da mesma maneira que Fúlvia, Sulpício também havia assumido a forma degenerada que seu atraso e sua maldade lhe impunham, uma vez que no mundo dos espíritos funciona, como alfaiataria da alma, a oficina do sentimento e do pensamento.
Se bons e nobres, são capazes de tecer roupagem harmónica e bela para a alma apresentar-se revestida de encantamento.
Se inferiorizados e deturpados, produzem sombras e deformidades como consequência directa, ornamentando o seu gerador primeiro, o espírito que os alimenta, com a aparência grotesca e trágica que indica seu estado de atraso espiritual.
Ambos, portanto, se haviam igualado em feiura por traduzirem os baixos padrões de seus espíritos nas formas adulteradas que denunciavam o seu tónus vibratório.
A diferença era a de que, por estar já há muito tempo no plano espiritual, Sulpício aprendera a controlar melhor a sua mente e, valendo-se de sua liderança como lictor inteligente e sagaz, organizara uma rede de serviço e influência que, agora, dirigia com mão pesada.
De alguma sorte, havia pleiteado e conseguido o importante cargo na estrutura umbralina graças ao seu currículo de maldades e à sua especialidade como organizador de orgias, de extorsões, de perseguições que causavam impacto e medo nos mais experientes moradores da escuridão.
Sulpício, deste modo, acompanhara de perto o desencarne tanto de Pilatos, quinze anos antes, quanto o de Fúlvia, agora igualmente devolvida ao seu controle directo, apesar de seu estado lastimável.
Importante que se diga que em Pilatos as mesmas adulterações genitais se observavam, apenas com menores realces do que em Fúlvia, pelo fato de que o espírito do governador, apesar de leviano e imaturo, não fizera do sexo desvairado sua principal fixação.
Abusara da sexualidade como um processo de desfrute, como um aperitivo para preencher o seu lazer de homem, não como o fazia Fúlvia, como arma de conquista, como ferramenta de trabalho na realização de seus desejos vis.
Além do mais, a benefício de Pilatos contava o facto de que, bem ou mal, esteve a serviço da colectividade que governou e que, se não se comportou de maneira digna como se era de esperar de qualquer governante, ainda que medíocre, a sua administração produziu algo de bom ao longo dos anos que se manteve à frente do governo da província.
Mais do que isso, contudo, contava o remorso pelos seus actos, a vergonha que já começara a experimentar durante a vida física com a perda de sua posição e a humilhação do exílio, somadas aos ensinamentos recebidos de Zacarias e ao peso da consciência de culpa pela morte de Jesus.
Todas estas circunstâncias pesavam a favor de Pilatos que, apesar de ter tirado a própria vida num gesto que é geralmente considerado um delito dos mais graves, possuía atenuantes e havia realizado algumas coisas boas que o protegiam na colheita dos amargos frutos no mundo da verdade espiritual.
Assim, apesar de extremamente degenerada, a aparência de Pilatos era melhor do que o estado vibratório de Fúlvia, ainda que, obviamente, não fosse de causar nenhuma inveja em ninguém.
Com o passar dos anos, Sulpício conseguiu reunir o ex-governador e sua ex-amante na mesma caverna a fim de que um pudesse ver o estado repugnante comum e nunca mais desejarem se envolver um com o outro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:46 pm

Era esta a ideia de Sulpício que, ciumento, desejava guardar aquela mulher somente para si mesmo.
Providenciara esta aproximação com o intuito de concretizar o seu definitivo afastamento, pela aversão que desejava criar em seus espíritos.
E foi tal o estado de repulsa que a visão de ambos lhes produziu que, quase de imediato, se afastaram lançando imprecações de dor e revolta um contra o outro.
Pilatos, sem identificar Fúlvia logo de princípio, amedrontou-se com o estado monstruoso daquela entidade que parecia estar ali para causar-lhe terror, coisa que, para que ocorresse com um soldado romano, deveria ser muito impressionante mesmo.
Fúlvia, por sua vez, identificou seu antigo amante com facilidade já que o estado de Pilatos era menos degradado do que o dela própria, mas, tão logo o viu, ao mesmo tempo que sentiu medo de seu estado degenerado, imediatamente passou a lançar-lhe palavrões e frases acusadoras, como se não houvesse sido ela própria, no passado, quem tivesse tramado a sua morte através do braço assassino de Sávio.
Somente quando Fúlvia passou a agredi-lo de maneira directa e clara, referindo-se ao passado de ambos, é que Pilatos percebeu que aquele monstro poderia tratar-se daquela bela cunhada que lhe visitara o leito espúrio tantas vezes e que lhe produzia a sensação de virilidade e poder, pelo exercício de sua masculinidade.
Ao perceber tal situação, o governador aterrorizou-se ainda mais, pois aquela criatura em nada se parecia com a bela e esbelta mulher que se esgueirava por entre seus lençóis.
Quase que em desespero, afastou-se dela em fuga para o ponto mais profundo da caverna onde se localizava sob o domínio de Sulpício que, feliz e realizado com essa reacção, conduzia Fúlvia para outro ponto da mesma gruta, onde os manteria isolados e guarnecidos, como se estivessem, ambos, sob o seu comando.
Tudo isso permaneceu dessa maneira por vários anos, sendo certo que os asseclas de Sulpício, rotineiramente, traziam aos dois prisioneiros da maldade, algum tipo de alimento grosseiro e pequenas porções de um líquido barrento que podia ser considerado água suja e sem condições de ser ingerida, mas que era sorvida pelos prisioneiros desesperadamente, como se fosse a linfa mais pura que a natureza fornecesse.
Esse estado de coisas se manteve como medida educativa da lei do Universo, que permite sejam preservadas as consequências dos actos de todos os envolvidos na tragédia da vida como forma de vaciná-los pela dor atroz que eles mesmos haviam engendrado em seus destinos contra novas recaídas no futuro.
Não era pela maldade de um Deus indiferente que eles continuavam ali.
Era justamente para que aprendessem com as consequências de suas escolhas quais deveriam ser as melhores opções para suas almas, quando estivessem novamente recolocados no processo de viver no corpo carnal.
No entanto, sobre todos eles pairava a lei de Amor que os conhecia e estava buscando os melhores caminhos para que seus espíritos pudessem recomeçar, apesar de todo o mal que haviam cometido uns para com os outros.
É por isso que todas as forças do Amor são usadas no governo da vida, já que são as únicas que suportam as agressões mais vis sem reagirem da mesma maneira, são as únicas que compreendem sem serem compreendidas, as únicas que não escravizam aqueles a quem se dedicam como escravas por escolha.
Lembre-se, leitor amigo, somente os que Amam com a plenitude do Amor espiritual, efectivamente, governam a vida.
E isto estava ocorrendo também no caminho dos nossos personagens infelizes que, por longos anos, ficaram à mercê de si mesmos, incapacitados de se entregarem a um sentimento de afectuosidade que fosse capaz de compreender, perdoar, estender a mão.
A todos os que se vêem feridos no afecto e que não se dispõem a perdoar, a compreender as fraquezas alheias, a desculpar-lhes a defecção ou mesmo a traição das promessas mais elevadas, feitas ao pé de altares considerados sagrados pelos homens; a todos os que se aceitaram como vítimas da injustiça e passaram à condição de fazedores de injustiças pela perseguição ou pelo desejo de vingança; a todos os que se rebaixaram no sentimento para revidarem as faltas morais de que foram vítimas reproduzindo-as em seu comportamento, traindo para pagar na mesma moeda, adulterando para que o outro sofra a mesma coisa, corrompendo-se no carácter e nos ideais apenas para dar o troco, vulgarizando-se para sentir a satisfação do revide; a todos os que ainda não entendem o que significa o Amor verdadeiro, possa servir de exemplo o estado espiritual de Fúlvia, Sulpício e Pilatos como indicador do cenário que espera por aqueles que preferiram o caminho tortuoso da queda moral, quando poderiam ter escolhido o padrão mais elevado da fé em Deus e da confiança em sua própria capacidade de vencer as decepções da vida sem precisar ser daquele que se compromete com o mal e com o erro.
Lembremo-nos de Jesus quando dizia:
"É necessário que o escândalo venha.
No entanto, que não sejas tu a pedra de escândalo".
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 27, 2014 10:46 pm

4 - AO CENÁRIO CATACUMBA

O cenário era impressionante.
As tochas iluminavam os nichos e as paredes ao redor, cheias de inscrições e de lápides.
O odor abafado do lugar deixava sentir que ali alguém não poderia viver por muito tempo sem enfermar-se, já que a ventilação não era suficiente para tornar salubre aquele ambiente.
A humidade, em alguns casos, dava mostras visíveis, pelos gotejamentos que aqui ou ali se pronunciavam pelas paredes, a partir do teto escavado, tornando o local adequado para a proliferação de fungos e microrganismos que se aproveitavam dos elementos químicos do solo e das substâncias liberadas pelos corpos em decomposição.
A escuridão natural tornava aqueles sítios um local de arrepiar qualquer ser vivo que ali se aventurasse, sobretudo porque se corria o risco de se perder no labirinto de túneis e passagens que se multiplicavam pelo subterrâneo, já que tal cenário se localizava bem abaixo da superfície.
O odor característico dizia de sua destinação como última morada para os romanos de então, que ali depositavam os corpos mortos nos diversos nichos escavados nas paredes, onde ficavam à espera das homenagens próprias dos rituais pagãos, na condição de ancestrais agora tornados deuses da família, conhecidos como deuses lares.
Um vozerio abafado e um movimento invulgar quebravam, naquele dia, a rotina do local sempre silencioso e lúgubre, eis que, de tempos em tempos, pequenos grupos chegavam, discretos, descendo pelas escadarias em silêncio, seguindo subtil trilha de tochas pequeninas que foram acesas antes por alguém com a finalidade de orientar o caminho dos que desciam.
Vencidos corredores e passagens apertadas, chegava-se a um salão abobadado onde, aos tempos de Augusto, se reuniam as cooperativas funerárias, à época as únicas corporações a que se permitiam congregar pessoas sem serem consideradas amotinadas pela lei romana.
Por efeito da manutenção da ordem pública e para se evitarem as reuniões sediciosas, acatando as determinações de Augusto, só se permitia, desde os idos tempos de seu glorioso "imperium" as reuniões públicas para os fins piedosos de levar à última morada os corpos que morriam.
Assim, lá se encontravam, agora, mais de duzentas pessoas amontoadas para escutar, naquele ambiente inadequado e obscuro, a palavra luminosa do apóstolo que chegara da Síria, enviado pelas forças espirituais para espalhar a luz sobre a treva, o consolo sobre a dor.
Já se haviam passado vinte anos desde que Pôncio Pilatos tirara a própria vida em Viena, no ano de 38 D.C., depois de seu exílio e sua desgraça.
Ao mesmo tempo, pouco mais de duas décadas tinham transcorrido quando Zacarias, envenenado, entregara o corpo à sepultura, no ano 36 D.C.
Desde aquele tempo, João de Cléofas se houvera convertido em um dedicado trabalhador do Evangelho, convertido que fora pela cura recebida das mãos de Zacarias, na cidade de Nazaré, quando apodrecia o então leproso Cléofas no casebre que seu irmão Saul lhe destinara como sepultura viva.
Curado pela oração fervorosa de Zacarias, Cléofas passou a seguir-lhe os passos até que se dirigiu com ele para a cidade de Cafarnaum onde se encontrou com Jesus a quem, igualmente, passou a acompanhar por todas as andanças.
Mesmo quando da crucificação, Zacarias e Cléofas - que acrescentara ao seu o pré-nome de João, - agora íntimos amigos, acompanharam à distância todos os trágicos acontecimentos com o Divino Mestre e guardaram para sempre em seus espíritos as lembranças amargas de tais cenas, sempre muito duras e dolorosas.
Espalhados os discípulos pelos caminhos do mundo, João de Cléofas tomou o destino da pregação das verdades do reino, deixando Jerusalém e a Casa do Caminho nas mãos dos demais seguidores do Mestre e estabelecendo seu trabalho na região mais ao norte, junto das comunidades afastadas do centro do mundo judeu, falando das realidades espirituais a criaturas afastadas de todas as influências religiosas ortodoxas.
Antioquia fora o centro nevrálgico de sua actuação, principalmente depois que o convertido de Damasco, Paulo de Tarso, ali estabeleceu as bases da comunidade cristã que se manteria por longos anos, reunindo homens e mulheres devotados à vivência das verdades da Boa Nova.
Ali, João de Cléofas estabelecera o centro de seu trabalho e dali fora enviado a Roma para os deveres espirituais que o aguardavam na trajectória de sua alma.
Em modesta saliência que o tornava um pouco mais elevado do que os demais, à guisa de pequena tribuna, levantara a voz o pregador envelhecido pelos labores sacrificiais do Evangelho, ouvido em magnético silêncio pelos seguidores da mensagem do Divino Mestre, que se multiplicavam por aquela Roma paga e entregue a todo o tipo de dissolução social, agora sob a direcção do espírito imaturo e invigilante de Nero.
Os núcleos cristãos se iam tornando mais numerosos e, ainda que se mantivesse a proibição dos tempos de Augusto, já era mais comum que as pessoas se reunissem em suas moradias para os contactos com as novas ideias.
Roma crescera muito como o centro de um mundo rico e depravado.
Cada vez era mais difícil fiscalizar todos os cidadãos e o que faziam.
O novo movimento começava a chamar a atenção das autoridades pelo volume com que se multiplicava o número de seus adeptos, provocando uma alteração significativa no equilíbrio do culto às antigas tradições populares e religiosas.
No entanto, ainda que se encontrassem em pequenos grupos, eventualmente procuravam se reunir em catacumbas, local isolado e pouco vigiado, para que, em maior número, pudessem escutar algum pregador inspirado que viesse lhes trazer o fortalecimento dos ideais e as notícias do andamento do movimento cristão pelos caminhos do mundo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 28, 2014 10:30 pm

A mensagem que João de Cléofas trazia, profética, tocaria o destino de todos os seus ouvintes extasiados e embevecidos pela eloquência de seu interlocutor que, numa mistura de serenidade e energia, força e doçura, magnetismo e simplicidade, dava mostras claras de não estar falando por si mesmo, mas sim, inspirado pelas luminosas falanges espirituais em nome das quais havia sido mandado a Roma a fim de preparar o ambiente dos candidatos ao Reino de Deus para os sacrifícios que eram esperados de todos os sinceros adeptos.
A sua figura pequenina elevava a voz no ambiente parcamente iluminado e os ouvidos atentos dos que, de diversos lugares da grande cidade acorreram para ouvi-lo, igualmente, não perdiam nenhuma das suas expressões, levados à emoção e às lágrimas pelas figuras luminosas e fortes que o seu verbo lhes transmitia ao coração e ao pensamento.
Ali estavam, igualmente escutando o sermão espiritual, entre os homens, Lucílio Barbatus, o ex-centurião romano que seguira com Zacarias para levar Pilatos ao exílio na Germânia Superior, ao mesmo tempo em que todos os seus companheiros da estalagem de Jonas, localizada nas redondezas da Prisão Mamertina, também se encontravam ali, já que a semente que Zacarias havia lançado e Lucílio houvera dado tratamento carinhoso, fertilizara o coração de inúmeros israelitas que viviam na grande capital e que passaram a ter, na estalagem humilde, o ponto de encontro semanal.
E dentre as inúmeras mulheres que se congregavam no ambiente, também em busca das palavras firmes da Boa Nova, encontravam-se Lívia, a esposa de Públio Lentulus, o senador romano na Palestina dos tempos de Jesus e sua amiga e confidente Ana, a sua companheira de todos os momentos.
Uma plêiade de espíritos, luminosa e dedicada à semeadura da verdade, envolvia todos os mais de duzentos participantes daquela assembleia clandestina que buscara a escuridão do subterrâneo para fugir das vistas das autoridades arbitrárias e mesquinhas, manipuladas por um ensandecido imperador.
Estavam iluminando consciências, abrindo os caminhos do coração, preparando a sementeira daquilo que estava por vir e que os transformaria no fertilizante da verdade na terra estéril dos prazeres ignóbeis que a ignorância possibilita vicejarem sobre a Terra.
Línguas de fogo em Antioquia, perfeitamente identificáveis pelas leis espirituais como os efeitos físicos do mundo invisível que marcavam as reuniões evangélicas dos primeiros tempos, haviam anunciado verdades fulgurantes para as criaturas da grande capital onde haveria de ser instalado, um dia, o reino do Cordeiro sobre as cinzas dos lobos que ali haviam vivido e governado em nome da agressividade e da luxúria, próprias da pequena evolução de seus espíritos.
Novos ares traziam com as luzes do entendimento e as sementes lançadas lá na distante Palestina, sopradas pela brisa do Amor verdadeiro, começavam a chegar a Roma e aos que ali seriam dos primeiros a colaborarem com a edificação de uma nova ordem no cenário do mundo em transformação.
A mensagem de João seria transmitida sob o palio protector de muitas criaturas generosas e espíritos devotados, entre os quais, ali se encontravam Zacarias, Simeão, Gamaliel, Abigail, Estêvão e muitos outros trabalhadores dos ideais cristãos dos primeiros tempos de pureza e simplicidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 28, 2014 10:30 pm

5 - PALAVRAS PROFÉTICAS

No ambiente ressoava a voz enérgica e macia de João, dirigindo-se aos ouvintes que se punham extasiados ante as revelações que eram feitas.
Segundo suas afirmativas candentes que aqui interpreto para que o leitor possa avaliar-lhes a profundidade, o pregador vaticinava que em breves dias os caminhos retornariam à estrada que conduzia ao Divino Mestre, eis que as línguas de fogo, manifestação inequívoca da Vontade de Deus no seio da igreja de Antioquia de onde ele era oriundo, revelaram que a grande capital do mundo fora escolhida para dar testemunho das verdades do espírito.
Cenário de devassidão e de crimes bárbaros, sob a alvura dos mármores ricos e brilhantes, seria no seio das almas perdidas que se instalaria a nova ordem, recolocando a verdade acima das venais e iníquas disputas humanas.
As dores que os aguardavam no trajecto da fidelidade aos ensinamentos de Jesus seriam abençoado prémio, pois os libertariam das amarras da vida física para os voos na direcção de Sua augusta luminosidade, no reencontro que desejavam todos aqueles que amavam o Cristo, verdadeiramente.
E se o testemunho que pedia a Verdade, em face da insignificância humana podia parecer algo que fosse sem valor, afirmavam as forças espirituais que sobre tais demonstrações de júbilo e coragem as legiões luminosas de Deus, que serviam a benefício das criaturas ainda atrasadas e indiferentes, trabalhariam para que elas despertassem e caminhassem ao encontro daquele mesmo Cristo que crucificaram.
Diante do horizonte penumbroso que se levanta no caminho do verdadeiro seguidor das verdades do Espírito, - prosseguia João de Cléofas, inspirado - impunha-se que recordassem que não faltaria a fortaleza e o apoio das falanges luminosas, eis que os reais servos do Senhor seriam provados efectivamente no calor do fogo, na dor da adversidade, na rudeza da batalha.
E não deveriam todos esquecer que o próprio Jesus, no instante mais doloroso de sua trajectória, de corpo alquebrado depois de todos os suplícios a que fora submetido, ferido por garras de metal que o prendiam para que expirasse lentamente, com sede de água e de afecto, no instante supremo em que se preparava para devolver o corpo ao mundo e entregar-se nas mãos do Pai, elevara a voz e clamara aos céus para que o Criador perdoasse os seus tirânicos agressores, pois não sabiam o que estavam fazendo.
- Lá estive pessoalmente a escutar, para minha felicidade, a palavra do querido Mestre, nos instantes de maior sofrimento que preludiavam a grande volta ao seio do Pai...
Prosseguindo depois de breve interrupção, ante a emoção que o envolvia, o apóstolo de Antioquia considerou diante da atenção de todos que, se o perdão era a palavra da Boa Nova a ser empregada e solicitada até para beneficiar os nossos mais cruéis adversários, que palavras doces não existiriam nesse vocabulário de esperanças para aqueles corações convocados para o testemunho de sua fé, no processo de semeadura das realidades do espírito na Terra da devassidão e do paganismo?
Ao seu tempo, Jesus havia padecido a solidão até o fim, quando entregou o último raio de vida na fidelidade a Deus e ao Amor que o levou a tudo suportar com o objectivo de ensinar o seu poder absoluto sobre todas as coisas.
Agora, passados mais de vinte anos da triste despedida, seria necessário não deixar o Divino Mestre olvidado na solidão de outrora.
Roma iria exigir o sangue dos justos e dos inocentes do mesmo modo que a velha Jerusalém costumara pedir o sangue dos que vinham semear a luz em seus tortuosos destinos escuros e mundanos.
E a todos caberia a felicidade, maior e mais importante ainda do que a própria honra, de serem os escolhidos para esse baptismo de fogo, a fim de que o Imaculado Cordeiro encontrasse nessa renúncia, nessa gratidão e devotamento o atestado da mais sincera crença em Seu amor.
Convocados pelo destino, estariam no momento crucial de suas vidas, quando seriam aqueles que poderiam chorar hoje as lágrimas que libertam na fecundação de novas alvoradas ou haveriam todos de chorar amanhã as dores da fuga, no arrependimento e na vergonha da deserção.
Entrevia, na acústica da alma, que o futuro reserva à capital do pecado, a ruína e a destruição de seus ídolos de pedra, através dos sofrimentos e das tempestades de dor e tragédia que recolocarão os homens levianos diante de suas obras de leviandade, fustigando a mente mais lúcida e confundindo o raciocínio mais astuto para que aprendessem a prestar culto tão somente à simplicidade e à verdade, estabelecidos como os padrões do Amor do Pai a benefício de todos os filhos.
E com a chancela do sacrifício de novos inocentes, assim como foi necessário o sacrifício do Justo, seguiria a obra do bem vitoriosa e indestrutível, avassalando mais e mais corações para que fossem varridas as trevas de toda a Terra.
Se chorassem agora, os queridos irmãos estariam enfrentando os derradeiros momentos de testemunho da fé para ingressarem nas fronteiras da ventura do espírito, onde poderiam todos sorrir de alegria nas celestes moradas destinadas àqueles bem-aventurados do Cristo.
A força dos argumentos de João causava um grande impacto nas almas dos ouvintes que, sem dúvida alguma, estavam sendo informados acerca das inúmeras dificuldades que os esperavam no testemunho necessário, quando se pretendia ampliar o bem em favor de mais e mais sofredores.
Nas palavras lúcidas de João Evangelista, se a semente, caindo ao solo se recusar a morrer, ficará ali sozinha, perdida e esquecida.
No entanto, se ela aceitar morrer, se transformará em muitas outras sementes e não ficará mais em solidão. (Jo, 12, 24)
Assim, o necessário processo de fecundação espiritual que se iniciava na grande cidade, sede do mundo material, que a iria transformar profundamente ao longo dos anos que viriam.
A luminosa palavra de João de Cléofas era o farol que, aceso nas penumbras umbralinas, alertava os viandantes para os perigos da travessia, sem ilusões ou meias palavras.
Seriam exageradas as suas advertências?
Suas expressões fortes e decisivas não estariam a propalar uma situação que mais assustaria do que ajudaria os ouvintes?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 28, 2014 10:31 pm

Viera de tão longe apenas para atemorizar os cristãos em minoria na grande capital do paganismo?
Tal é, muitas vezes, a maneira pela qual interpretamos os avisos celestes, de forma a deles tomarmos conhecimento sem que nos modifiquem de imediato, por acharmos que estão exagerados, estão apenas alertando para futuro incerto, desejando que nossas vidas se transformem e, por isso, usando de imagens mais atemorizadoras para que acatemos os chamamentos.
São destes recursos que nossos pensamentos se valem para não se fazer o que é imperioso e que já nos está sendo alertado.
Pensamos sempre:
Isso não é para mim, é para o outro que está aqui do meu lado.
Esse aviso está um pouco exagerado, não deve ser levado ao pé da letra, pois as coisas não são desse jeito.
A maioria das pessoas está fazendo as coisas de outro modo... Não serei eu quem vai mudar tudo repentinamente, etc.
E, assim, querido leitor, deixamos passar os avisos amigos do mundo espiritual que, muitas vezes se servindo de nossos sonhos, de nossas intuições, de nossos amigos, fazem chegar aos nossos ouvidos o alerta para que não nos deixemos perder nas trajectórias insanas de nossas ilusões.
Acordar com um aviso de perigo é incómodo, mas é bem melhor do que ter que despertar fustigado pelo incêndio que nos está queimando a carne, sem clemência.
Por isso, os que estavam naquele ambiente escutando a mensagem inspirada do apóstolo de Antioquia, sabiam que não fora em vão que aquele ancião houvera se deslocado de tão longe para estar ali naquele momento crucial e tão importante para seus destinos.
Afinal, chegava o aviso antes do incêndio que estava para ser ateado.
Tão logo terminou sua alocução de força e coragem aos corações, depois de algumas breves palavras de entendimento junto aos que o procuravam para troca de orientações, quando alguns já se preparavam para deixar o local, ouviu-se o estalido das sandálias, o farfalhar das capas e o ruído das armaduras, já que mais de cinquenta soldados romanos invadiam o ambiente para surpreender os que ali se reuniam.
As vozes dos soldados ecoavam pelas abóbadas lúgubres da catacumba quase deserta, penetrando os corredores e passagens e produzindo a imagem do terror nos corações da maioria que ali estava.
Percebendo que haviam sido descobertos e que não havia muita possibilidade de evasão, alguns mais afoitos começaram a apagar as poucas tochas que iluminavam o ambiente a fim de que, feita a escuridão, todos tivessem mais chance de fugir pelos corredores e labirintos do lugar.
No entanto, mais uma vez a decisiva intervenção do pregador barrara a iniciativa que só viria a produzir mais dor e aflição, eis que estimularia os soldados a serem mais cruéis com os que ameaçavam fugir.
Assim, tomando a palavra, desceu da modesta e improvisada tribuna de onde falara a todos e gritou para que todos ouvissem:
- Irmãos, Jesus nos ensinou que nunca colocássemos a luz sob o alqueire!
Mantenham acesas as tochas para que o nosso testemunho de fé e coragem seja visto por todos e não haja nenhuma dúvida sobre o nosso desejo de entregar tudo pelo Amado Senhor.
Quase que hipnotizados por estranha força que parecia incoercível, os mais de duzentos ouvintes calaram qualquer reacção, que seria inócua ante a organizada guarda romana que já tinha tomado todos os corredores e se preparado para qualquer reacção violenta.
E à luz das chamas incandescentes que iam iluminando todas as passagens, João de Cléofas dirigiu-se ao centurião romano Luculo Quintilius, estendendo-lhe os braços intimorato e humilde, a fim de que fosse preso sem demonstrar nenhuma resistência, dizendo:
- Centurião, aqui estamos para enfrentar este momento de sacrifício e renúncia sem medo.
Cumpre as tuas ordens sem receio, pois ninguém aqui será obstáculo ao que viestes concretizar.
Sem qualquer emoção que não fosse a do desdém, o soldado covarde atou as mãos do ancião, não sem antes feri-lo na face com o golpe arrogante da arma de metal que trazia o símbolo do império mundano.
No entanto, sem perder a confiança em Deus e em si próprio, para coibir a reacção que o acto de violência houvera produzido no espírito de alguns jovens que, indignados com a cena abjecta, preparavam-se para o revide, o ancião ergueu a palavra novamente, dizendo:
- Calem toda a violência, pois ela demonstra a alma enferma do agressor.
Melhor ser ferido do que ferir, já que a mensagem de Jesus não nos foi trazida para ser olvidada.
Lembrem-se de que, na hora dolorosa de sua prisão, tomado de indignação, Pedro sacara da espada contra o soldado do templo que viera prender Jesus e a lição não se fez esperar:
- Guarda tua espada na bainha, pois os que ferem com o ferro, com o ferro serão feridos.
Diante da heróica advertência daquele velho sereno e vigoroso, todos os ânimos se pacificaram para espanto até mesmo dos próprios soldados romanos.
E, como o exemplo é o mais poderoso argumento que existe na vida, um a um dos que ali se encontravam passou a imitar o gesto de João e estender os braços para que fossem presos sem qualquer oposição.
Reunidos todos sob a vigilância severa dos soldados comandados por Luculo e Clódio Varrus, foram levados para a prisão romana do Circo Máximo, onde, no dia seguinte os aguardava a trágica despedida do mundo físico, nas festividades do mundo pagão, sob a transitória direcção do alucinado Domício Nero que, assim, dava início ao processo de perseguição dos cristãos primitivos, ainda que, por esse tempo, os apresentasse à multidão alucinada como escravos ou sentenciados a tais penas, sem identificá-los como profitentes do novo credo, coisa que seria feita a partir dos anos 60 D.C.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 28, 2014 10:31 pm

Não passou desapercebida dos dois centuriões comandantes da guarnição pretoriana que efectivou a detenção dos inocentes, a presença de uma matrona romana, vestida a carácter, como indicador de seu nível social e sua ascendência patrícia.
Lívia fora vista por entre as mulheres comuns e identificada como esposa de alguma autoridade importante, o que veio a causar espanto e preocupação nos homens que cumpriam as ordens, já que temiam complicações com os superiores, deliberando, então, no dia seguinte, que a patrícia importante seria deixada por último e, tão logo fossem todos encaminhados para o sacrifício, seria apartada na hora crucial e colocada na rua, para que voltasse ao seu ambiente, sem que fosse submetida ao martírio, única maneira de os soldados não acabarem responsabilizados por causa da morte de uma importante personagem.
Tudo estava preparado para o grande dia, no qual os senadores mais importantes e de maior tempo de serviço prestado ao Estado Romano seriam homenageados pelo imperador cínico e oportunista.
Ali estaria, entre os laureados, o mesmo Públio Lentulus a participar da estrondosa festividade que culminaria no grande palco de loucuras e insanidades, elevadas à condição de diversão para o povo e homenagem aos importantes servidores de Roma.
Públio se mantinha aferrado aos interesses do mundo, desprezando as verdades do espírito, orgulhoso que se achava por merecer os troféus mundanos que tão bem faziam ao seu entendimento mesquinho de homem apegado aos conceitos da Terra.
Todavia, depois de vinte e cinco anos de isolamento da esposa amada, por seu orgulhoso padrão de conduta, tratando-a como mera escrava dentro do lar e recusando-lhe a mínima oportunidade de justificar-se ante as acusações caluniosas de Fúlvia, Públio havia planejado solicitar o perdão da mulher amada, colocando aos seus pés os lauréis recebidos do imperador, como prova de seu arrependimento e do devotamento de seus sentimentos por ela.
Lívia houvera provado a amarga taça dos dissabores domésticos sem esmorecer e sem pretender fustigar o marido com uma conduta indigna de sua pessoa, ainda que por ele fosse considerada uma mulher que traíra sua confiança, num encontro secreto com o então governador Pilatos, no dia em que Jesus fora julgado na Palestina distante.
Tendo ido até o governador para interceder por Jesus, que estava sendo injustamente acusado, o seu homem de confiança, Sulpício, encaminhou-a à alcova particular de Pilatos, onde ele recebia as mulheres com quem satisfazia seus instintos inferiores.
Sem saber que estava sendo envolvida por uma teia de maldades e coincidências, Lívia se apresentou perante o governador em trajes de escrava, eis que não pretendia comprometer o esposo, importante representante de César naquelas paragens.
E a mão maldosa e astuta de Fúlvia, tomando o senador pelos braços, encaminhou-o até a janela superior de onde poderia ver a saída dos referidos aposentos, acusando Lívia de estar ali para trair os compromissos afectivos que mantinha com Públio.
Apesar de não acreditar na jovem intriguita, Públio se viu vencido pela cena de Lívia deixando a alcova de Pilatos, o que acabou por produzir em sua alma despótica de então, a relutante decisão de conceder-lhe o direito de viver, mas na condição do simples serviçal dentro do lar, afastando-a, inclusive, da companhia da própria filha.
Tal enredo o leitor querido poderá acompanhar com maiores detalhes na obra anterior, O AMOR JAMAIS TE ESQUECE, na qual o cenário completo deste drama começou a ser exposto.
Assim, vinte e cinco anos de isolamento e de renúncia de Lívia terminaram por modificar o ímpeto do senador, ao mesmo tempo em que um sonho de Calpúrnia, esposa de seu saudoso amigo Flamínio Severus que morrera anos antes, revelava ao senador as palavras do amigo falecido, atestando a inocência de Lívia.
Por todos estes motivos, Públio havia reservado o dia de sua maior vitória como homem público, para humilhar-se diante da esposa, tão logo regressasse do espectáculo no Circo Máximo, entregando-lhe as homenagens maiores como penhor de seu arrependimento.
Vinte e cinco anos de espera para pedir um perdão que não chegaria ao coração injustiçado de sua esposa, pois o dia seguinte seria de liberação para uns e de maiores dores para outros.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 28, 2014 10:31 pm

6 - TESTEMUNHOS ASSUMIDOS

A noite fora amarga e triste, pois a todos houvera sido comunicado que dali não sairiam senão para a arena onde as feras os esperavam na manhã imediata.
Lúgubre aviso para que aproveitassem as últimas horas de suas existências da forma como lhes fosse possível, já que, para eles não haveria outra esperança.
As mulheres foram afastadas dos homens e colocadas em um outro ambiente, enquanto os varões, em menor número, se congregaram ao redor de João de Cléofas, como se fossem mariposas perdidas no meio da noite que se aproximassem da chama quente e luminosa de uma pequenina vela.
Alguns esboçavam comentários que lhes denunciavam o desânimo, o desespero, o arrependimento tardio, a perda de oportunidades de entendimento fraterno com criaturas queridas, que haviam deixado passar e que, agora, não mais poderiam retomar.
Para todos eles a palavra serena e baixa de João procurava dar a força da fé, transmitindo um entendimento de calma e equilíbrio que lhes chegava ao âmago do ser e ajudava a que suportassem a espera torturante.
Nenhum deles conseguiu dormir enquanto que o mesmo ocorria com as mulheres, em geral mais equilibradas na hora do testemunho do que os homens.
Naquele ambiente isolado, Lívia e Ana conversavam em tom discreto e, porque a angústia dos demais tornava mais duras as horas do testemunho, afastaram-se das outras para que suas confissões fossem feitas de maneira amena e sem a interrupção incómoda de comentários aflitos das demais.
Lívia trazia na mente, em suas lembranças saudosas, o dia maravilhoso de seu encontro pessoal com o querido Mestre, às margens do Lago de Genesaré quando, olhando-a de modo inesquecível e conhecendo as agruras de sua alma, que trazia o coração ferido e preocupado com a maneira como tudo se desenrolava em sua vida, apesar de carregar a gratidão pela cura da filhinha Flávia naquela ocasião amarga em seu destino, houvera prometido Ele que, na hora adequada também aceitaria o seu sacrifício para a edificação do seu Reino no coração dos homens.
Falando baixinho à serva querida, afirmava que acreditava ter chegado o momento da entrega absoluta de sua alma, dizendo que se revestia de uma quase alegria interior, quando se via levada a despojar-se das ilusões do mundo de mentiras, onde a felicidade era tão contaminada pelas lágrimas dos que sofriam e que somente os egoístas e os indiferentes conseguiam desfrutar algum instante de alegria passageira.
Escutando-lhe as palavras, a serva, emocionada, não ousava interromper-lhe o desabafo no qual confessava seus mais profundos sentimentos.
- Lembro-me do querido Simeão, em seu tugúrio, que nos recebeu as três e nos protegeu da perseguição dos sequazes de Pilatos e ainda imagino a grandeza de sua alma no testemunho doloroso de sua própria crucificação simbólica, vitimado pela ignorância daqueles homens sem sentimentos, principalmente Sulpício que, ao mesmo tempo em que agredia o pobre e indefeso ancião amarrado à cruz tosca que mantinha à porta de sua moradia, também perdia a vida logo depois, naquele acontecimento fatídico, atingido pela mesma cruz que desabara sobre sua cabeça, esmigalhando o crânio.
Estava Lívia segura de que o espírito de Simeão as assistia ali, naquele calabouço, já que sabia que o Amor nunca morria e que era sempre solidário com aqueles que ficaram para trás.
Sentia-lhe a presença e o carinho que sempre lhes entregara como tio generoso e irmão em Jesus.
Tentando tirar Lívia dessa onda de nostalgia e melancolia que marcava as suas palavras, Ana comentou:
- Senhora, o senador vosso esposo necessita de sua companhia no momento difícil de sua jornada.
Não pense que este será o nosso fim.
Entendendo o carinho de sua companheira, Lívia teve o seu pensamento voltado para as etapas duras que o testemunho afectivo tinha imposto à sua caminhada de resignação e renúncia em favor daquele a quem sempre amou como a alma afinizada que lhe tocava acompanhar na trajectória terrena.
Sim, o marido necessitaria de forças para enfrentar as ilusões de suas próprias escolhas.
Todavia, o longo exílio a que a havia submetido dentro do próprio lar, privando-a da companhia de filha amada, Flávia, sem lhe oferecer direito de qualquer alegação de inocência, havia bastado para lhe fazer ver as coisas de outro modo.
Falava Lívia, carinhosamente, que na medida em que a dor inexorável se levantava na estrada humana de modo a que as pessoas se sentissem impotentes para outra coisa fazer senão para enfrentá-la, a maneira de entender a vida se ampliava e amadurecia a compreensão de velhas verdades que não haviam sido analisadas cuidadosamente.
Públio era um homem de seu tempo, vivendo a vida como as pessoas de sua época achavam que devia ser vivida.
Buscava os louros transitórios e fugazes das honrarias e vitórias humanas, no que ela o compreendia naturalmente, sem lhe opor qualquer crítica ou julgamento condenatório.
No entanto, sabia ela que este mundo reserva sempre, no final da taça de prazeres, o veneno amargo das decepções.
Não haveria suficiente espinho no caule das mais perfumadas rosas das ilusões para ferir fundo aqueles que se agarrassem a elas tresloucadamente?
Assim, para ela, Públio escolhera um caminho muito diferente daquele que ai havia atraído e, ainda que continuasse devotando ao seu coração a fidelidade e o afecto da primeira hora, observava o esposo pelo prisma do espírito, como uma alma imatura para as verdades superiores, que precisaria sentir o espinho da flor a ferir-lhe a carne a fim de que se afastasse da loucura que o tornou cego, no apego às honrarias e brilhos mundanos.
Jesus ensinara que não era possível servir a dois senhores e tanto ela quanto seu amado esposo escolheram senhores diferentes para prestar submissão.
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Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz Empty Re: Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 28, 2014 10:31 pm

Para Lívia, no entanto, já era um imenso consolo ter recebido de Públio, naqueles dias, um carinho que ela mesma pensava estar extinto em seu coração.
- Dirigiu-me a palavra cordial, afagou-me suavemente as mãos em alguns momentos, como se estivesse querendo dizer algo difícil de ser pronunciado.
Falou que me reservava uma surpresa e que me preparasse para ela tão logo regressasse da cerimónia com que o insensato imperador procurará homenagear os mais antigos servidores do império.
No entanto, seguia Lívia, a maldade humana sabia aliciar seus súbditos com cerimónias sumptuosas e tolas para que eles fossem confundidos perante o dever de criticar o arbítrio e a loucura daquele que os governava.
Homenageados, acabavam vendendo a sua imparcialidade e, de maneira subtil, se viam comprometidos com as alucinações daquele que os honrava, tolerando-lhe as condutas indignas por causa de uma natural gratidão e condescendência.
Públio era homem de fibra e valor, mas achava-se iludido pelas malhas enganosas das honras do poder humano que, se num primeiro momento o sustentariam no alto, tão logo fosse conveniente o precipitariam no pó como estavam fazendo com elas, que morreriam sem qualquer direito ou defesa, perante a turba ensandecida que se divertiria com o espectáculo cruel de mulheres, homens e crianças sendo devorados.
- Por que as homenagens que coroam cabeças com folhas e jóias fazem com que os corações dessas dignas autoridades se tornem indiferentes e aceitem uma tragédia desta como parte do ritual que os enaltece?
Meu esposo adiou a palavra de reconciliação porque estava esperando receber os louros que o falso poder imperial lhe destinará em breves horas.
Quando voltar para fazer-me a surpresa prometida, depois de longos anos de espera, encontrará apenas o vazio e a solidão.
Ouvindo-a, emocionada, Ana lembrou-se de Flávia, a filha agora crescida e que se consorciara com Plínio, filho de Flamínio Severus e sua amiga Calpúrnia.
- Ora, Ana, Flávia seguiu os passos de seu pai, criada por ele com todos os cuidados de nossas tradições e se mantém ligada a ele pelos laços da afinidade que criaram ao longo de todos estes anos.
Em realidade, a filha havia sido afastada da influência da mãe que pouco pôde fazer para que a sua criação trilhasse outros caminhos, ao mesmo tempo em que as tendências de seu espírito se apresentavam muito mais fortes e parecidas com as ilusões de Públio, o pai, infundidas como perfil para a normalidade da vida.
Seu coração seguia os mesmos passos do progenitor e ela não tinha como impedir que se ferisse nos mesmos espinhos que os dele.
Ainda assim, segundo se expressava Lívia à serva amiga, dedicava-lhe as orações de todos os dias pois o sentimento de mãe jamais esqueceria a alma que lhe fora confiada um dia nas entranhas do ventre, como berço de Deus para a chegada da vida sobre a Terra.
Com isso, confessava a nobre matrona romana que se encontrava absolutamente despojada de todos os apegos do mundo, preparada para enfrentar os testemunhos que as aguardavam para que a vida tivesse o significado mais amplo do Verdadeiro Amor que sabe morrer para que mais e mais pessoas pudessem aprender a amar.
Com especial inflexão de carinho, falou docemente à serva:
- Quero dirigir-me ao teu coração para pedir perdão por qualquer coisa que tenha feito em teu prejuízo ou deixado de fazer em teu benefício, já que tenho por ti o mais acendrado amor de irmã ou de mãe devotada.
Jamais desejei ofender-te e magoar-te com a conduta arrogante de quem está socialmente acima daquelas que, muitas vezes como servas humildes, são as verdadeiras senhoras pelas qualidades do espírito.
O momento era de muita emoção entre as duas almas amigas que se preparavam para enfrentar as dolorosas contingências de um testemunho que lhes pedia tudo para a libertação verdadeira de suas almas.
Depois de uma pausa emocionada, as mãos de Lívia tomaram entre as suas as calejadas mãos de Ana para que o afecto entre elas fosse ainda mais fraterno, enquanto que a antiga senhora se dirigiu à sua confidente para pedir-lhe um último favor:
- No entanto, falta-me uma coisa que te gostaria de pedir e que somente tu podes fazer por mim.
Como vês, a hora derradeira chegou e me apanhou trajada com as vestes aprumadas de senhora de senador, enquanto que minha alma gostaria de chegar ao testemunho ostentando a túnica humilde dos servos.
Não se trata de vergonha de minha posição nem mesmo de tentar preservar meu marido de qualquer constrangimento.
Nada que eu faça ou deixe de fazer impedirá que Públio sofra as amargas decepções com o mundo a que escolheu servir.
Em realidade, apenas o desejo de despir-me de toda a aparência mentirosa e enganosa deste mundo e chegar diante do momento decisivo como verdadeira serva que tudo entregou por Amor à Verdade que Jesus representa para nós é que me leva a te fazer este pedido sincero e humilde.
Ouvindo a sua senhora, Ana procurava entender qual seria o seu desejo final que, se estivesse ao seu alcance, atenderia prontamente:
- Sim, Ana, gostaria que trocasses de roupa comigo, a fim de que eu, que sempre tive uma vida de facilidades e luxos, pudesse me apresentar como meu espírito se sente modesto e despido de todos os atavios mentirosos que encantam os que vivem em nossa sociedade.
Surpreendida, Ana chorava sem saber o que fazer naquela hora tão crucial de seus destinos, na qual a amada patroa lhe suplicava a ajuda para tornar-se humilde, inclusive na aparência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 28, 2014 10:31 pm

Vendo que a serva não tinha reacção e que o tempo não se fazia esperar, Lívia acrescentou com doçura e decisão:
- Se desejas me proporcionar esta última satisfação, querida filha, não demore, pois não temos muito tempo.
Sem poder negar à sua benfeitora esta solicitação amorosa, ambas dirigiram-se para um desvão existente no ambiente, algo afastado das vistas dos circunstantes e, num procedimento rápido e simples, trocaram a toga e a túnica, espécie de traje superficial que se colocava sobre a intrincada vestimenta comum daquele período, transferindo Lívia para a serva todos os atavios que mantinha junto ao corpo, como algumas jóias de uso diário, fixando na toga os broches que a adornavam, retirando os anéis e um bracelete para entregá-los a Ana.
Reteve consigo apenas o colar com a efígie do marido, espécie de camafeu com o perfil do senador em relevo e que lhe fora presente do esposo quando do dia de sua união, há muitos anos.
Desejava morrer por Amor ao Cristo, carregando no peito o símbolo do seu amor por Públio como se quisesse levá-lo consigo para um outro mundo onde a verdade não feria nem fazia chorar.
O dia amanheceu e a antiga senhora não diferenciava das humildes mulheres que haviam sido detidas na noite anterior, enquanto que a serva, envolvida pela toga da nobreza, passava perfeitamente por uma matrona romana, envolvida por imponente nobreza.
As horas passavam lentamente, enquanto que homens e mulheres, restabelecidos à claridade solar de um novo dia, buscavam aproximar-se ainda mais, através de cânticos e exortações com as quais se fortaleciam uns aos outros.
Ali estavam João e Lívia, entre os que se mantinham intensamente ligados ao objectivo maior daquela hora.
Ao lado deles, o mundo espiritual também se fazia sentir pelas forças suaves que emitiam, enquanto que cânticos de glória eram entoados naquelas salas de tortura pelos prepostos de Jesus a fim de manter a atmosfera espiritual saturada de forças de pureza e poder adequadas ao momento de heroísmo a que se submeteriam todos os que ali se achavam.
Enquanto isso se passava na prisão, em sua casa Públio se perdia nas preocupações com a arrumação e os preparativos para o grande dia de homenagens públicas de que seria objecto, inteirando-se da ausência de Lívia apenas altas horas da manhã, pela chegada da filha Flávia à procura da mãe.
- Ora, filha, pensava eu que Lívia tivesse ficado em sua casa com Ana, passando a noite por lá! - afirmou o senador, já um pouco surpreso e demonstrando alguma aflição.
Era a primeira vez que Lívia tinha passado a noite fora do lar sem ter deixado qualquer aviso.
Vendo-lhe a angústia contida, Flávia procurou acalmá-lo já que sabia dos planos do pai para a reconciliação naquele mesmo dia, afirmando:
- Vai, agora, meu pai.
Os escravos o aguardam e a cerimónia não pode ser atrasada por sua ausência.
Eu mesma irei em busca de mamãe para que, ao final da tarde, quando de sua chegada, possamos estar os três reunidos aqui para os abraços da reconciliação definitiva.
Um pouco asserenado e porque era empurrado para a frente pela força dos compromissos assumidos com o mundo, Públio não fez mais do que se deixar conduzir até o Senado, sem conseguir extrair do peito a ponta espinhosa da preocupação com aquela ausência inusitada e estranha.
Flávia também estava apreensiva, como se entrevisse, como o progenitor, as escuras nuvens que se acumulavam sobre suas cabeças e que desabariam em dolorosa tempestade daí a algumas horas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 28, 2014 10:32 pm

7 - O CÂNTICO DA BONDADE

A movimentação do plano espiritual era assaz intensa.
Enquanto os vivos no corpo se colocavam na espera do momento final de suas existências, procurando algum recurso que lhes servisse de apoio, fosse através da conversa amiga e apaziguadora, fosse pela lembrança de Jesus a quem se recorria por meio da oração, congregados na cruel expectativa, os espíritos se mobilizavam para ajudá-los naquele momento tão importante do destino da humanidade.
Ao longe se desenvolvia a cerimónia conduzida pelo imperador e que reunia um grande número de autoridades oficiais nos diversos lugares onde ela tinha o seu curso.
De templos religiosos e cúrias o cortejo, lentamente, tomava o rumo do grande recinto de exibições e homenagens finais, no qual o povo teria participação activa.
Graças aos favores imperiais que, abrindo os celeiros oficiais promovera generosa distribuição de alimentos aos que participariam das homenagens, o cortejo oficial estava avolumado pela grande afluência de populares, curiosos, participantes entusiasmados, oportunistas à espera de uma chance favorável, pessoas que buscavam apenas a distracção naquele período monótono no qual a miséria era que impunha a rotina da maioria.
O circo Máximo era o local das festividades oficiais até então, já que o famoso coliseu ainda não havia sido erguido.
As suas dimensões gigantescas para a época davam bem a mostra da importância que os eventos que ali se realizavam tinham na alma popular, favorecendo o velho conceito de que governar o povo era dar-lhe pão e circo.
Comida e diversão eram as exigências básicas que manteriam os governados pacificados e acomodados em suas necessidades, carregando as demais frustrações cada um à sua maneira.
Depois, então, dos inúmeros discursos e cerimónias, finalmente o grande cortejo deu entrada ao ambiente de festas sumptuosas no qual, sob o comando do imperador ensandecido, as exibições artísticas de gosto duvidoso, as lutas entre gladiadores, as corridas e danças iriam dar o tom considerado alegre e popular das homenagens aos mais antigos senadores do império.
O pavilhão imperial dominava a arena e sob as suas galerias se localizavam os cárceres e as entradas para o grande recinto alongado onde as lutas, corridas e danças ocorreriam.
Envolvido pelas honrarias e pelas reverências, os senadores, na sua maioria, estavam sintonizados com cada etapa da cerimónia a fim de bem guardá-la na acústica da alma nas recordações naturais que o orgulho precisa para manter-se brilhante e altivo perante si mesmo.
Dessa maneira, o próprio senador Públio Lentulus se havia deixado envolver pela condição de grande importância que os poderes transitórios lhe outorgavam, desconectando-se com todas as demais circunstâncias ou preocupações que não fossem as ligadas ao ato em que se inseria como um dos laureados.
No seu mais profundo sentimento, no entanto, alguma coisa o incomodava sem que ele deixasse o seu idílio momentâneo para avaliar o que pudesse ser. Um leve aperto interior o feria, mas sua mente estava voltada para cada lance e cada ritual.
Achegada de todos à sua acomodação junto ao pavilhão imperial facultou aos integrantes oficiais uma certa descontracção, o que permitiu que, em seu espírito, a angústia interior de Públio se fizesse mais forte.
Atribuía, no entanto, à ansiedade de regressar a casa e reencontrar-se com Lívia para desfazer o longo e pedregoso trajecto de indiferença e injustiça que ele próprio impusera por longos anos.
Nas masmorras, o movimento produzia uma intensa agitação no ambiente, pois a organização de toda a festa se concentrava ali, de onde se orquestrava a sucessão das apresentações.
- Já está tudo acertado, Clódio? - perguntou Cornélio ao subordinado que com ele era responsável pelo desfecho final da apresentação, para o qual ser reservava o mais dramático dos quadros.
- Sim, tudo preparado.
Quando chegar a hora, todos serão colocados na arena para o prazer dos presentes e homenagem aos importantes - respondeu Clódio, ironizando com a tragédia.
- Óptimo.
No entanto, não se esqueça de retirar aquela mulher, pois não desejamos problemas com a morte de gente poderosa por nossa culpa.
- Como isso deve ser feito?
Já não seria bom libertá-la agora que a cerimónia mal começou, para que possa retirar-se?
- Creio que é melhor deixar para o final, pois saindo antes poderia nos causar problemas maiores, levando ao conhecimento de autoridades a sua prisão ilegal, o que nos suscitaria dissabores.
Faremos assim: quando todos os presos forem encaminhados para o fim, você organiza uma fila e a deixa por último.
Depois que todos entrarem, nós a retiramos da masmorra e a colocamos na rua para que possa ir embora.
- É eu acho que com isso resolvemos o problema e não criamos dificuldades para nós mesmos - respondeu Clódio, concordando com Cornélio.
Assim, as horas da tarde passaram entre os efeitos feéricos de apresentações ornamentadas e brilhantes, lutas violentas entre os que para isso eram treinados, jogos e disputas atléticas, no aguardo da hora crucial em que o povo poderia, com mais intensidade, sentir os delírios do imperador e agregar-se a eles com a sua participação e conivência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 28, 2014 10:32 pm

No plano do mundo invisível, porém, uma grande multidão de espíritos se reunia na atmosfera vibratória daquele que seria o primeiro marco do sacrifício colectivo pela nova causa, que transformaria o mundo romano e se espalharia por toda a Terra.
Se havia uma grande quantidade de povo alucinado enchendo as posições das galerias ao ar livre ao mesmo tempo em que um volume tão grande de espíritos necessitados se reunia no mesmo local para participar das loucuras e delirar com os prazeres euforizantes, os espíritos enobrecidos que dirigiam os destinos da humanidade com amor e intenso carinho, começavam a modificar o cenário geral.
Como se um grande tecido fluídico, composto de energias subtis e balsamizantes foi lançado sobre todo o recinto físico da imensa arena, abarcando não só os bancos de pedra que continham, quando plenamente ocupados, mais de trezentas mil pessoas, mas também a todas as entidades que lhes acompanhavam as emoções em desequilíbrio.
Deste modo, no plano invisível, a referida cobertura serviria tanto de malha protectora, criando um espaço delimitado onde a vibração celeste poderia actuar mais intensamente, quanto de barreira vibratória que manteria todas as entidades congregadas naquele local, sem permitir que fugissem.
Imensos cordões de energia sustentavam todo o perímetro de tal cobertura como se estivéssemos visualizando uma gigantesca tenda, cujo pano principal fosse transparente e feito de energia subtil e delicada.
Ao mesmo tempo, um grupo de entidades angelicais, prepostos do Senhor Jesus, se dirigiu para o interior da masmorra e, através de operações magnéticas envolveu o grupo de mártires em bolhas de força que os protegeria de ataques vibratórios até a hora derradeira.
Para cada um dos homens e mulheres que ali estavam, uma entidade luminosa se encarregava de envolver toda a organização física com fluidos balsamizantes, equilibrando o sistema nervoso central, fortalecendo o sistema límbico, ajudando na dilatação da sensibilidade de cada um a fim de que, ainda mesmo no corpo físico, pudessem pressentir as emanações elevadas daquela hora em que, como heróis anónimos, seriam conduzidos ao plano da vida verdadeira, entre humilhações, apupos, xingamentos e crueldades.
A hora, finalmente, havia chegado.
No plano físico, o pavilhão do imperador fervilhava de expectativa quanto ao número final com que Nero haveria de brindar o público e os homenageados daquela cerimónia.
Somente o imperador e seus áulicos mais próximos sabiam do que estava planejado para aquele dia.
No plano espiritual, uma verdadeira multidão de acólitos celestiais, entidades de alta envergadura evolutiva, espíritos familiares dos mártires, todos se reuniam em silêncio para participar daquele instante solene que daria início à grande cerimónia celeste de amadurecimento da humanidade e de proliferação da mensagem cristã pela Terra.
Um hino de excelsa e indescritível beleza ecoava, proveniente das alturas insondáveis e preenchia o ambiente espiritual, trazendo lágrimas aos olhos de qualquer um que pudesse captá-lo na acústica da alma.
A música celeste era, igualmente, usada para acalmar as entidades negativas que se consorciavam com os encarnados no ambiente, produzindo atrocidades maiores.
Envolvidas pela atmosfera magnetizada positivamente, sentir-se-iam inibidas nas acções mais arrojadas, limitando a sua esfera de acção e, quem sabe, sentindo que alguma coisa de muito estranha estava acontecendo.
Muitas destas entidades, que eram mais curiosas que más, sem entenderem o que iria ocorrer, passaram a pressentir que as coisas não estavam acontecendo como de costume naqueles espectáculos.
Outras passaram a ver com os olhos espirituais a dimensão luminosa que estava envolvendo todo aquele ambiente, algumas tomadas de terror enquanto outras se deixavam impressionar caindo num mutismo, como que hipnotizadas por uma força que sabiam ser superior a tudo o que já tinham visto.
Tomadas as devidas providências para a entrada dos condenados à morte, os soldados responsáveis pelo cortejo daqueles que estariam ali na condição de presos sentenciados à pena capital providenciaram o seu ingresso na arena, reservando para o final aquela que se lhes apresentava vestida de maneira peculiar e importante.
Percebendo que seria afastada de Lívia por ordem do soldado que os conduzia, Ana ensaiou um protesto segundo o qual não desejava ser impedida de oferecer a sua vida por amor a Jesus, ocasião em que foi informada grosseiramente de que, dada sua importância, ficaria por último para ser apresentada na arena em especial condição.
No entanto, como já sabemos, tão logo os demais presos foram levados para o interior, Ana foi apartada e colocada na rua por uma porta lateral, com a determinação de que voltasse para sua casa a fim de afastar-se dos riscos a que estava exposta.
João de Cléofas caminhava, resoluto, diante dos demais homens e mulheres, sem entenderem com exactidão o que iria se passar.
O ingresso deles na arena veio acompanhado do coro hostil e das vaias das arquibancadas, sempre dispostas a humilhar os que já se achavam condenados à tragédia.
Envolvidos pelas luminosas emanações, todos os cristãos se uniam em preces a Jesus.
Cléofas, naqueles derradeiros instantes, se recordava das venturosas tardes em companhia de Jesus, ao mesmo tempo em que entrevia a casinha paupérrima em que fora escondido, quando a lepra o devorava.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 28, 2014 10:32 pm

Sua lembrança regressava aos dias venturosos de sua juventude quando, iludido pelos sonhos de amor, unira-se a Judite e sonhava construir uma família, sem se dar conta de que estava destruindo outra.
Pensando nisso, lembrou-se de Zacarias, o benfeitor de sua existência, a quem se ligara para sempre pelos laços do mais sincero e fiel amor, o mesmo marido a quem infelicitara e que, mais tarde, viria livrá-lo da lepra e encaminhá-lo para os rumos do Divino Mestre.
A recordação de Zacarias lhe fez brilhar o olhar, na emoção que começava a cristalizar-se em lágrimas de agradecimento e, ao mesmo tempo, de arrependimento sincero por tudo o que houvera feito de errado naquela existência.
As gotas cristalinas escorriam pela sua face como se as portas do passado se tivessem aberto para uma grande revisão de sua trajectória.
No entanto, uma luminosa mão tocava-lhe o coração nas fibras mais profundas como a lhe sussurrar que o passado havia sido vencido pelo amor verdadeiro.
Que aquele era o momento glorioso de entregar-se a Jesus de maneira a fertilizar a seara para o futuro brilhante que estava destinada aos homens, que nenhuma lembrança negativa deveria empalidecer a glória daquele momento de entrega e que o apoio do Divino Mestre se fazia presente para acolher a todos.
Na verdade, ali estava Zacarias, o velho amigo, o benfeitor de todas as horas, o que aceitou a dor pessoal e a converteu em semente de esperança no coração de Cléofas.
Sim, o velho apóstolo que fora designado por Jesus para levar amor aos mais cruéis algozes, fora igualmente autorizado a trazer o bálsamo do consolo àquele que, vinte anos antes se tornara seu próprio seguidor, aquele filho que ele próprio não tivera.
Cléofas passou a verter copiosas lágrimas, agora que seus olhos físicos conseguiam divisar a figura dócil e fraterna de Zacarias ao seu lado, com um sorriso de alento no rosto e os olhos igualmente embaciados pela emoção daquela hora.
Aquele mesmo Zacarias, que aceitara o sacrifício por amor, agora voltava para infundir amor e confiança ao amigo verdadeiro na hora em que o testemunho doloroso lhe cabia como alvará libertador das culpas e erros do passado.
Envolvido por essa onda de sentimentos grandiosos, João de Cléofas percebeu que suas lágrimas poderiam ser interpretadas pelos demais como uma demonstração de medo ou de covardia ante o angustioso momento.
Entendendo-lhe as preocupações, Zacarias dirigiu-se a ele para ajudá-lo, naquela hora derradeira, a ser escora para os outros que nele tanto se espelhavam.
- Lembra-te, querido filho, de que cantar deve ser sempre a manifestação da alegria diante da mais cruel adversidade.
Escutando-lhe claramente as palavras, João sorriu agradecido pela lembrança e, ainda que as lágrimas seguissem caindo-lhe dos olhos, sua voz forte e confiante passou a entoar os hinos religiosos que os cristãos tanto estimavam em seus encontros solitários e isolados, com os quais desejavam homenagear a excelsitude do Pai e a bondade do Cristo.
Ouvindo-lhe a voz decidida, os que o circundavam, igualmente encorajados pelo seu exemplo e pelas forças espirituais que a todos eram distribuídas, passaram a engrossar o coro, causando um forte impacto na turba que, ao redor, estava sempre acostumada aos espectáculos de covardia e medo daqueles que ali eram colocados face a face com a morte.
Um silêncio abrupto percorreu as galerias mais próximas, como se fosse necessário para se certificarem de que, efectivamente, aqueles condenados estavam, realmente, cantando.
E muitos escutaram os cânticos que pareciam erguer-se por força de potentes alto-falantes que os faziam chegar aos ouvidos de muitos.
No entanto, eram apenas um punhado de homens e mulheres que cantavam hossanas a um Jesus que a maioria dos ali presentes jamais tinha conhecido.
Um mal-estar percorreu o pavilhão do imperador, que não desejava que esta cena impressionasse o público ao redor.
Assim, mais do que depressa ordenou que os leões fossem soltos, não sem antes determinar que os seus ajudantes, espalhados no meio da multidão, interrompessem aquele momento de surpresa, retomando a algazarra para quebrar a atmosfera que fora criada.
Junto dos mártires que cantavam, estava Lívia, confundida com os servos pela indumentária humilde e que, tão logo dera entrada e se posicionara com todos os demais diante das acomodações luxuosas de Nero, onde também estavam todos os senadores, ajoelhou-se em preces íntimas, mas buscou com o olhar a figura do marido que, por certo ali estava também a assistir a cerimónia tétrica.
Ao longe, pareceu-lhe entrever a silhueta de Públio que rebrilhava à luz dourada do entardecer, ostentando as insígnias da glória mundana, no que foi interrompida pelas feras famintas que haviam sido liberadas e caíram sobre os mártires com ansiosa fúria, dilacerando-lhes os corpos frágeis.
Importante que se diga, no entanto, que nas operações magnéticas a que foram submetidos todos eles, um brando anestésico espiritual lhes fora submetido para que não sofressem com as atrocidades animalescas e enfrentassem desassombradamente aquele triste momento na trajectória humana.
Por isso, enquanto o espectáculo prosseguia diante da euforia enlouquecida da turba, agora ampliada em número pela multidão que se apinhava nas colinas adjacentes e nas sacadas de todas as construções próximas de onde se podia vislumbrar a arena, hinos de glórias erguiam-se no plano espiritual que dominava o ambiente e envolvia a todos os presentes.
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