LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:31 pm

Sob as Mãos da MISERICÓRDIA
André Luíz de Andrade Ruiz

Espírito Lucius

Encerrando a trilogia, iniciada pelo "O Amor Jamais te Esquece" e "A Força da Bondade", a presente obra de Lucius, "Sob as Mãos da Misericórdia", apresenta ao leitor, em traços vivos e emocionantes, o entendimento do mecanismo da Compaixão com a qual o Criador conduz a evolução das criaturas, sempre buscando ampará-las como fez com Pilatos, Suplício, Fúlvia, Sávio através dos corações generosos de Zacarias, Lívia, Simeão, Cléofas, Licínio, Décio, entre outros.

Índice

1 - Relembrando a história
2 - Médico para os enfermos
3 - Cláudio Rufus e o "Grande Imperador"
4 - No dia seguinte
5 - O primeiro encontro
6 - A aproximação
7 - A resposta de Décio
8 - O novo trabalho e novas alegrias
9 - O ponto de vista de Marcus
10 - Confissões no trabalho
11 - A história de Décio
12 - A passagem do tempo
13 - Forças negativas e sentimentos viciados
14 - Os planos do bem e as armadilhas do mal
15 - A acção das trevas e a resposta do amor
16 - Amar os inimigos
17 - Vendo o hoje, lembrando o ontem, e prevendo o amanhã
18 - O destino de Décio
19 - Todos para seus destinos
20 - Tristes realidades
21 - As forças do bem
22 - Jornada que prossegue
23 - Um novo começo para todos
24 - Enquanto isso; em Roma
25 - A ajuda espiritual durante o sono
26 - Colheita
27 - Desdobramentos
28 - As revelações de Tito
29 - O julgamento de Marcus
30 - Seguindo para frente
31 - Resgates necessários
32 - Surpresas difíceis
33 - A viagem e a busca
34 - Conselhos e despedidas
35 - Testemunhos individuais
36 - Finalmente, o reencontro
37- O regresso
38 - Cuidados espirituais
39 - Compreendendo os planos de Jesus
40 - Sob as Mãos da Misericórdia
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:31 pm

1 - Relembrando a História

A fim de que o leitor querido possa se recordar dos lances principais que se acham desenvolvidos nos livros anteriores "O Amor Jamais Te Esquece" e "A Força da Bondade", este relato dá continuidade aos processos evolutivos dos espíritos Pilatos, Fúlvia, Lucilio, Lívia, Cléofas, Simeão, cujas vidas se entrelaçaram, no primeiro romance, ao Cristianismo nascente.
Graças ao pedido de Jesus, Zacarias assumira a tarefa de amparar o governador Pilatos em todos os lances de sua caminhada, depois da crucificação do Justo, a fim de que aquele importante governante romano pudesse se sentir auxiliado nas provas difíceis que teria de enfrentar.
Empenhado no cumprimento dessa missão espiritual a que fora conduzido pela solicitação do próprio Cristo, em pessoa, Zacarias entregou tudo o que tinha e não mediu esforços para que o governador se visse atendido nas mínimas necessidades, fossem elas materiais, fossem elas da alma decaída e frágil, terminando por ingerir a bebida venenosa que, por ordem de Fúlvia, a cunhada e ardilosa amante do governador, havia sido enviada através de Sávio, para ser ministrada a Pilatos.
Com a morte de Zacarias, o protector e amigo incondicional, o governador exilado e preso na antiga guarnição viu-se pressionado pelos romanos que ali serviam, e pela consciência culpada, a dar fim à própria vida, no ato funesto de transpassar o ventre com a espada que lhe fora oferecida pelos envergonhados oficiais daquele posto militar, que o consideravam indigno e não aceitavam tê-lo ali, em desgraça.
O tempo passou e no "A Força da Bondade" pudemos observar as consequências nocivas para o espírito que se permite arrastar pelas estradas tenebrosas do mal, da intriga e das condutas mundanas, conhecendo as tristes condições do desencarne de Fúlvia, a confessar seus crimes medonhos ao coração filial de seu genro Emiliano, bem como acompanharmos o seu sofrimento e desequilíbrio no plano espiritual, onde já se encontrava Pilatos, suicida, e o outro amante Suplício, transformado em dirigente de entidades perturbadoras que tomou a seu cargo a guarda do ex-governador desencarnado e, agora, da antiga amante desenfaixada da carne, mantendo a ambos encarcerados em subterrâneo cavernoso nas furnas umbralinas.
Ao lado desse estado de maldade ignorante, observamos o esforço do grupo de seguidores de Jesus que, do Alto, vítimas que foram dos abusos e violências cometidas em nome do Império Romano no combate à seita cristã, haviam se unido para buscar resgatar os próprios algozes e preparar-lhes o regresso ao mundo físico, em futura reencarnação.
Assim, encontramos Lívia e Zacarias, Cléofas e Simeão a amparar a recuperação de Sávio, Pilatos, Fúlvia, Suplício e Aurélia, ao mesmo tempo em que amparam com energias e intuições elevadas o esforço generoso do centurião Lucilio, reencarnado no mundo ao lado dessas personagens, na figura do romano Licínio, braço direito do irresponsável e dissipador Marcus, marido de Druzila e amante de Serápis, as mesmas Aurélia e Fúlvia renascidas, agora como dona e empregada da mansão, respectivamente.
Reunidos no cenário do mundo pelos compromissos assumidos nos mesmos erros, Marcus, Druzila e Serápis se acham envolvidos pelo conflito amoroso, pelas disputas sensuais através das quais ambas buscam se impor ao interesse de Marcus, o mesmo Sávio reencarnado.
Enquanto se perdem em condutas dissolutas, Licínio se esforça por exemplificar a virtude, no serviço humilde e devotado que presta à casa faustosa de Marcus, seu amigo desde a infância.
Ao lado dos desmandos e disputas mesquinhas, encontraremos esse espírito que renasceu para ajudar os outros a se erguerem e que, por sua vez, entrega-se para salvar uma simples escrava, serva do mesmo palácio, da injustiça de ser condenada sem culpa.
E, por fim, na ausência de Marcus que viajara para longe, amparado apenas pelos seus fiéis sustentadores espirituais, Licínio/ Lucilio entrega o corpo físico às chamas do poste incandescente que iluminava a noite festiva do teatro Flávio, cantando como o fizera décadas antes, ao lado de João de Cléofas, no circo Máximo.
Ao regressar a Roma, Marcus depara com o amigo, condenado ao martírio para salvar a escrava Lélia, a quem ele culpara pela morte da esposa Druzila, envenenada.
Sua amante Serápis está em trabalho de parto quando Licínio está sendo consumido pelas chamas, sob as vistas arrependidas do irresponsável amigo que vai ao local do martírio para assistir à execução de seu amigo fiel.
Voltando a casa, encontra-se surpreendido pelo nascimento de dois filhos homens, como ele sempre desejara, que virão a servir de meios-irmãos à sua primeira filha Lúcia, nascida do casamento com Druzila.
Seu orgulho de varão, no entanto, como se um castigo dos Deuses o atingisse, se vê ferido pela mísera condição dos dois meninos que lhe chegam pelo ventre de sua amante Serápis.
O primeiro é cego e ao segundo faltam-lhe ambos os braços.
Ali, pelo ventre da antiga amante Fúlvia, hoje Serápis, renascem seus dois mais directos credores, ambos igualmente endividados com a lei do Universo, Pilatos e Suplício, filhos daquele Marcus/Sávio.
Agora, Marcus/Sávio recolherá a experiência dolorosa que poderá lhe permitir a evolução mais rápida ou ensejará que se endivide novamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:32 pm

Está viúvo e nada o impede de tomar Serápis como sua esposa.
Sua filha Lúcia se encontra muito ligada à antiga serva de seu palácio, agora mãe de seus dois filhos.
Sua riqueza lhe permite viver faustosamente, e a amante, agora mãe de seus filhos, é a mulher que sempre desejara.
A partir daqui, leitores queridos, depois desse breve resumo, seguirá a história para que nossas almas estejam em sintonia com a compreensão das leis espirituais e com o aprendizado tão importante para a nossa elevação diante dos desafios que nós mesmos semeamos em nosso caminho pelos actos impensados de outras épocas.
É verdade que este breve relato, sucinto e incompleto, como todo resumo acaba sendo, não fornecerá ao leitor todo o conteúdo que liga as personagens nessas etapas sucessivas de sua trajectória.
Para bem compreender todo o processo, é importante que se busque a leitura das obras anteriores a fim de delas extrair toda a riqueza de exemplos e a compreensão plena do funcionamento da engrenagem perfeita e absoluta da Justiça Divina, tanto quanto se possa entender a função da augusta Misericórdia.
Nesta obra, no entanto, o(a) leitor(a) querido(a) poderá vislumbrar que o amor continua não se esquecendo dos aflitos e que, somente com a força que a bondade verdadeira propicia, chegaremos a reunir condições de nos levantarmos perante a madrugada de nossas faltas e encarar o Sol fulgurante da Misericórdia a trazer a aurora de um horizonte de belezas e felicidades imortais, não apenas para nós, mas para todos os irmãos da Terra.
E retomaremos a empreitada a partir daquela personagem que foi apresentada em "A Força da Bondade", fora do contexto temporal daquela narrativa e sem que ali se tivesse desenvolvido a parte que lhe cabia no contexto da história, o jovem Cláudio Rufus.
Antes, porém, acompanhemos o encontro espiritual que envolveu o despertamento das milhares de entidades que haviam sido recolhidas no dia da execução de Lívia e João de Cléofas, no circo Máximo, e que estavam acolhidas em ambiente de vastas proporções, sob os cuidados de entidades generosas, tendo Abigail por centro de luz.
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2 - Médico para os enfermos

Enquanto na Terra os homens seguiam seus caminhos, inspirados pelas ideias do Bem, no mundo invisível, onde a vida é mais dinâmica e bela no seu aspecto mais verdadeiro e profundo, seres luminosos de todos os matizes se viam atraídos para o núcleo da civilização romana, neste período do império onde floresciam valores mais elevados, ainda que mesclados a comportamentos inferiores.
O chamado ciclo dos imperadores bons estava em curso, o que não livrara o Cristianismo nascente das provas e testemunhos indispensáveis ao seu amadurecimento.
Como qualquer semente lançada ao solo, que precisa dos testes rudes da cova escura e quente, abafada e sufocante, no esforço para romper seu casulo e deitar raízes mais fundas, antes de lançar-se à luz do dia e erguer-se para o céu, o Cristianismo não podia deixar de enfrentar tais desafios que o preparariam para levantar-se sobre o céu moral da humanidade, enraizado nos exemplos de dor, renúncia e coragem que seriam a sustentação de todo o edifício da fé.
Doutrina de transformação íntima por excelência, aqueles que o professassem eram convocados a demonstrar o grau de sua assimilação pela capacidade de renunciar às coisas superficiais, fazendo ver aos antigos padrões religiosos, que o Cristo representava uma força mais elevada do que qualquer filosofia ou crença de seu tempo, modelando o carácter dos seus adeptos na sinceridade convicta e na alegria ante o sacrifício, fosse ele qual fosse.
Espalhavam-se sobre as diversas regiões planetárias, contingentes de espíritos reencarnados com o propósito de serem levados a este teste, superando a si mesmos, outrora endividados em condutas espúrias e, agora, candidatados à vitória sobre suas fraquezas.
Tratava-se de antigos religiosos de inúmeras religiões ancestrais, falidos nas lutas contra os interesses mesquinhos da riqueza e do poder, arrependidos por terem conduzido a multidão que os seguia ao charco da ignorância onde melhor poderiam usurpar-lhes os bens e aproveitarem-se de suas desgraças.
Entre eles estavam entidades que necessitavam dar um ponto final ao ciclo evolutivo que lhes era próprio, já tendo conquistado muitas virtudes, mas lhes faltando, ainda, a do supremo sacrifício da própria vida em favor dos semelhantes.
Outros se viam convocados à caravana fecunda dos mártires do Cristianismo porque possuíam débitos imensos, acumulados ao longo de inúmeros séculos de tragédias semeadas nas estradas humanas, nódoa inapagável na consciência da alma a não ser pela disposição de receber em si parte das dores que espalhou, só que, desta vez, sem revolta, porque a serviço de uma causa transcendente, a da pavimentação da estrada que Jesus houvera traçado, de horizonte a horizonte, no panorama da vida.
Por esse motivo, como candidatos a esse testemunho, como já vimos na história anterior - "A Força da Bondade" - milhares de espíritos haviam sido recolhidos no espectáculo sangrento do circo dos martírios, e tinham sido encaminhados ao próprio despertamento através da visualização do imenso aparelho cristalino que lhes servia de tela cinematográfica, e que lhes transmitia a acolhida dos mártires cristãos pelo próprio Cristo, em outro ambiente, distante dali, recebendo o amparo de amorosas entidades.
Dessa forma, amparados por Abigail e por um grande contingente de nobres emissários espirituais, que os sustentavam com amor e desvelo, milhares de espíritos puderam visualizar por primeira vez a figura do Divino Governador Planetário, humilde e grandioso, a caminhar de um a outro dos martirizados no Circo Máximo, despertando-os em seus nichos de conforto para as belezas e alegrias espirituais do dever cumprido.
E, se naquele ambiente onde Jesus se encontrava pessoalmente, atendendo os seus fiéis seguidores, a forte emoção se impunha natural pela presença do Cristo de luz, no retirado sítio de onde a multidão de entidades perturbadoras e perturbadas, que havia sido recolhida naquele mesmo dia, assistia à cerimónia, a emoção era certamente ainda maior, porque mais dramática, devido às explosões de vergonha e arrependimento, de dor e culpa, da noção da injustiça cometida e da perda da oportunidade.
Desdobravam-se as entidades socorristas no vasto ambiente que congregava essa multidão semi-desperta, de espíritos que deixaram as companhias humanas para seguir em busca de novos caminhos, a fim de que tais manifestações de choro convulsivo, de vergonha de si mesmo, de arrependimento ácido e corrosivo fossem contidas e mantidas dentro dos padrões aceitáveis para a continuidade daquele primeiro encontro com a verdade.
Enquanto isso, Abigail se mantinha em orações no centro da grande área, como um imenso teatro circular, cuja cobertura translúcida permitia aos presentes divisar a beleza dos astros cintilantes na noite escura do cosmo espiritual, mais cheia de maravilhas do que qualquer noite em qualquer quadrante da Terra.
De todos os ângulos desse ambiente, os assistentes tinham visão do que era transmitido pela imensa tela que se dividia em tantas partes quantas se fizessem indispensáveis para que os assistentes pudessem acompanhar a visão inesquecível que lhes ensinaria quais eram as diferenças profundas entre os que se mantinham fiéis ao Bem e os que se apresentassem preguiçosos, omissos, mundanos adeptos dos interesses imediatos do materialismo.
Por todos os lados escutava-se o choro de emoção, de repugnância, de nojo diante dos actos que a consciência lançava na lembrança indelével da conduta de cada um.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:32 pm

Transmitida sem interrupção, a figura de Jesus dominava o cenário e, na tela à sua frente, os milhares de espíritos desequilibrados que haviam sido recolhidos em Roma naquele dia do suplício de Cléofas, Lívia, Licínio e outros, podiam ver aqueles pobres cristãos condenados que tinham tombado enquanto cantavam hinos de louvor, recebidos por Ele, o Mestre Generoso.
Em questão de poucas horas, os que pareciam escória humana e material de deleite cruel da arquibancada se viam alçados à condição de eleitos do Amor, remunerados pela felicidade inconteste de sentirem as mãos espirituais daquela alma límpida e majestosa tocar-lhes a face, sorrir-lhes emocionada, chamar cada um pelo seu nome, enquanto que os que gritavam e se exaltavam nos prazeres do circo, na diversão ensandecida, na crueldade gozadora, agora estavam, poucas horas depois, reduzidos à escória da consciência dolorosa, da luta contra misérias que não podiam esconder porque elas se plasmavam ao redor de cada um deles.
Feridas surgiam ou cresciam na estrutura do perispirito, máscaras de poder e orgulho davam lugar a estruturas faciais descarnadas, mais parecidas com as próprias caveiras horripilantes. Homens de aparência musculosa e arrogante se iam mirrando como se se tornassem velhos quebradiços, arqueados e calvos, tumorosos e ossudos.
Ao contacto com as próprias essências, aqueles espíritos que haviam sido recolhidos na noite da tragédia no ano 58 d. C, entre os quais se achavam entidades de ex-gladiadores como das mais necessitadas, iam saindo da inconsciência para serem defrontados com a própria realidade, a partir da qual poderiam adoptar novos rumos para seus destinos.
Sem esse banho de Verdade, sem essa derrocada das ilusões e a constatação da realidade de cada um, nenhum trabalho de recuperação poderia ser levado adiante, partindo de uma ilusão ou de um desconhecimento da própria condição espiritual.
O tempo passava e, em cada momento que Jesus se dirigia aos mártires inocentes lá no local onde se encontravam, nova torrente de emoções electrizava o imenso auditório onde os miseráveis gozadores assistiam e se transformavam.
Alguns apontavam para a tela, dando a entender que conheciam aquele que Jesus beijava, que haviam visto sua figura em algum lugar daquela Roma, que sabiam de quem se tratava.
Algumas entidades identificavam espíritos conhecidos, constatando a sua nobre condição espiritual e, entre os que foram dizimados fisicamente naquela cerimónia macabra, vários mendicantes da capital imperial, cansados das humilhações e misérias, tinham sido levados ao sacrifício final, porque eram dos que escutavam a palavra de João de Cléofas no subterrâneo das catacumbas, único local onde ouviam algo que lhes produzia esperanças.
A cena era comovente e dolorosa.
Abigail, entretanto, parecendo ser a usina de energias radiantes que sustentava as energias da tela cristalina, mantinha-se impassível em elevada prece, como que conectada a outros planos, a serviço de algo superior, apresentando-se como a emissária daquele Jesus a quem amara desveladamente.
Ao longe, a cerimónia de boas-vindas aos heróis do testemunho chegara ao fim, e parecia que o momento da despedida daquele Cristo Amigo se aproximava.
E enquanto Estêvão e os demais espíritos que O cercavam tomavam a direcção que lhes competia, no sentido de encaminhar os recém-chegados, por um momento pareceu que o encanto iria se desfazer, cessando as músicas melodiosas e apagando-se a tela de esperanças e lágrimas para aqueles miseráveis e desditosos espíritos insensatos.
No entanto, Abigail não se movia, como que em preces que lhe retiravam a lucidez sem privarem-na do equilíbrio e do controle da situação.
Foi então que, para surpresa de todos os espectadores daquela caravana dos desventurados, a figura augusta do Senhor voltou-se para todos eles, como se se utilizasse da Tela para transportar-se de um para outro ambiente.
Sem acreditarem no que estavam vendo, observaram que daquela estrutura cintilante que transmitia as imagens, uma forma solar tomava corpo e começara a se apresentar no meio do auditório, transfigurando-se diante de todos os presentes, na esteira de luz e de forças que Abigail sustentava, como uma estrada que ligasse as duas cerimónias: a dos felizes pelo testemunho da fé e a dos infelizes pelas defecções e culpas.
Sim, aquele ser mágico que só podia ser visto à distância pelos emocionados espectros daquele imenso teatro, agora se manifestava pessoalmente diante deles, saindo daquela tela que se transformara em uma câmara plasmática necessária para que sua manifestação em ambiente de vibrações mais densas e difíceis pudesse ser presenciada por todas aquelas criaturas despreparadas para tal espectáculo.
Como que um raio correu pela arquibancada, electrizando os miseráveis que, nem de longe imaginavam que pudessem ser dignos de estar na presença daquele ser de quem a maioria nunca tinha ouvido falar quando se achava na Terra.
A presença imponente e a soberana simplicidade do Cristo infundiam emoção e um quase pavor na maioria dos espíritos, pavor diante de tal nobreza e elevação.
Seus modos simples não exigiam nenhuma reverência, mas não havia quem, naquele ambiente, não se obrigasse a si mesmo a prostrar-se de joelhos.
A própria Abigail, tão logo sentira a chegada do Augusto Governante de Almas, ajoelhara-se, humilde, ante a tela/câmara, circunstância esta que, por si só, propiciou que as energias que resplendiam ao seu redor se tornassem ainda mais intensas e rutilantes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:32 pm

No entanto, tão logo se apresentou no meio deles, em pessoa, como que ligado directamente ao halo de luz que se fundia em Abigail, aquele Mestre, descalço e singelo, abaixou-se e, num gesto de carinho, tomou a filha querida pelas mãos e levantou-a suavemente, acariciando-se o rosto com afecto espontâneo.
- Que bom, meu Senhor, que a tua presença se faz aqui entre os indignos de ti - falou a jovem, emocionada.
- Filha, como outrora, eu não vim para os sãos e sim para os enfermos.
Meu regozijo é imenso pelos que venceram a morte no testemunho do amor, mas em meu coração há mais alegria quando um pecador se salva do que quando noventa e nove justos se confirmam em suas virtudes.
E entendendo sobre o que Jesus se referia, Abigail estendeu as mãos na direcção dos que escutavam tudo o que se estava dizendo entre eles e, apontando-os, disse:
- Pois então, Mestre Querido, aqui estamos, a multidão dos doentes e dos pecadores, à espera do sublime médico de nossas almas.
Afastando-se dois passos da jovem que, emocionada, se mantinha firme na oferta de seus recursos para que aquele momento pudesse se eternizar no coração de todos os assistentes, Jesus se dirigiu a todos os que se achavam naquela assembleia, a maioria dos quais deixara a posição sentada para colocar-se igualmente de joelhos.
Outros se prostravam no solo, escondendo o rosto cadavérico entre os braços mirrados e esqueléticos, mas todos traziam os olhos cheios de esperanças e de lágrimas.
- Filhos do meu coração - falou o Cristo, manso e firme, veludoso e trovejante - venho até vossa presença para vos garantir as felicidades do reino de Meu Pai e Nosso Pai.
Todo caminhar é feito de esforço e suor para que, ao final, se atinja uma única alegria - a da chegada ao destino pretendido.
Não imagineis, com base nos erros do passado, que para vosso futuro não existam esperanças.
Não vos esqueçais nunca de que as mais fecundas e produtivas árvores são aquelas que deitaram suas raízes nas substâncias pútridas e malcheirosas, no lixo que, transformado, se torna adubo para a sua frutificação doce e abundante.
O passado é o vosso adubo, mas é o futuro que vos aguarda, nos frutos doces e numerosos do Bem que produzireis, sem excepção.
Venho vos dizer o quanto Meu Pai precisa de cada um de vós e vos pedir a ajuda para a Obra, tão carente de trabalhadores.
Vasta é a seara, a garantir trabalho e pagamento a todos os que a aceitarem, renunciando aos próprios interesses.
Não tenhais mais ilusões vãs de sucessos terrenos que, como podeis constatar, foram incapazes de vos acompanhar até aqui.
A semente que Meu Pai me incumbiu de semear está lançada e a sua defesa pede soldados valorosos e capazes de aceitar o sacrifício.
Vejo em cada um de vós esse soldado de que necessito para ampliar o exército dos obreiros do Bem, não mais através das agressões da ignorância, mas do exemplo na fé e no sacrifício da própria vida.
Peço-vos o auxílio para que possamos auxiliar aos que se perderam nos caminhos.
Pensai em vossos filhos, em vossas mães e pais, em vossos entes mais queridos. Eles estão privados das bênçãos que estais recebendo nesse instante porque, simplesmente, ignoram as Verdades que vos foram reveladas.
Estareis felizes escutando os gritos de dor de vossos queridos?
Podereis sorrir enquanto eles choram?
Meu amor vos acompanhará sempre e todos os que se candidatarem a ser adubo fecundo, alimentando a semente da Boa Nova, serão aquinhoados com bênçãos maiores do que o sacrifício oferecido, porquanto, na Casa do Pai, a Gratidão é a moeda do Reconhecimento e a Misericórdia é mais poderosa que a Justiça.
Aceitai meu Amor incondicional...
E dizendo isso, acompanhado por Abigail, Jesus dirigiu-se até o limite vibratório onde se iniciava a plateia, hipnotizada pela emoção e, num gesto simbólico de seu amor, dirigiu-se ao grupo dos gladiadores, os piores e mais duros espíritos que tinham aceitado partir com a caravana dos refugiados no Bem, naquele dia do martírio em Roma e, aproximando-se de um dos mais horríveis espíritos, que ali se mantinha isolado dos demais, como nos velhos tempos da Palestina junto aos miseráveis e ignorantes, colocou docemente sua mão sobre a fronte da entidade apavorada, dizendo:
- A bênção que te ofereço, meu irmão amado, é a mesma que oferecerás a todos os teus irmãos de caminhada em meu nome... e é a mesma que ofereço, neste momento, a cada um de vós - disse, erguendo a voz para que todos entendessem que era para cada um deles que Jesus também falava.
E exactamente nesse instante, o ambiente penumbroso e algo apagado daquele auditório de fantasmas disformes, iluminou-se como que por um milagre, como se mil luzes se acendessem sem saber de onde, como se o firmamento tivesse trazido todos os sorrisos estelares para observarem, do alto da cúpula fluídica, o interior daquele ambiente.
Todos se olhavam espantados, todos percebiam as novas disposições de luz daquele lugar e, quando foram buscar de onde vinham tais luminosas emanações, puderam notar que, partidas do coração do próprio Jesus, incrustavam-se no coração de todos os presentes que se mantinham ligados nas vibrações de esperança daquele momento, tornando iluminado o peito de cada um deles, pequeninos sóis que passaram a incandescer no exacto instante em que Ele oferecia sua bênção a cada um dos que ali se encontravam.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:32 pm

A emoção atingiu o zénite.
Todos os quase vinte espíritos dos gladiadores arrependidos se prostraram em pranto convulsivo aos pés do Divino Mestre, respeitosos.
- Nós te seguiremos, Senhor...-falavam uns.
- Morreremos por ti - falavam outros.
- Nunca mais matarei ninguém - exclamava mais um.
- Juramos aceitar o sacrifício por teu Amor...
Jesus sorria, emocionado e silencioso, passando as mãos por sobre suas cabeças prostradas diante dele.
Mais alguns instantes e o Mestre retornava ao centro do que poderíamos chamar de palco.
A luz que reinava agora, no ambiente, partida do íntimo de cada espectador presente, deixava todos à mostra com suas misérias e lágrimas, mas, viva em cada coração, ela penetrava seus espíritos e os alimentava de esperanças e forças para as tarefas do porvir, quando se faria necessário que almas determinadas aceitassem as dores do testemunho para a corrigenda dos próprios erros.
E foi nesse dia que muitos se determinaram a solicitar a oportunidade de renascer na condição humílima, apagada, de escravos, de pobres andrajosos, de pessoas operárias e serviçais, com a possibilidade de vivenciarem a fé cristã até o limite do sacrifício de sua vida.
Dirigindo-se ao centro do aparelho que lhe servira de porta de chegada, depois de ter-se despedido de Abigail, Jesus deixou o ambiente sem que, contudo, a luz que iluminava os desditosos se apagasse.
E a música sublime que acompanhava todos os lances da passagem de Jesus naquele meio se tornou mais intensa, em notas de excelsa harmonia e inspiração, acabando de derrubar as mais duras barreiras íntimas dos mais sofridos espíritos ali admitidos, transformadas em uma torrente de pranto que lavava suas almas e os preparava para os horizontes do futuro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:33 pm

3 - Cláudio Rufus e o “grande Imperador”

Como já havíamos descrito antes em "A Força da Bondade", o jovem Cláudio Rufus era homem de confiança na administração do imperador Adriano, responsável pela supervisão das edificações públicas, encontrando-se envolvido pelos problemas intrincados da organização e reconstrução de antigo templo romano que fora anteriormente remodelado por Marcus Agripa, braço direito do imperador Augusto, que havia governado o império do ano 44 a.C. até 14 d.C.
Tratava-se do Panteón, construção portentosa e inusual ao estilo arquitectónico tradicional, cuja finalidade, na intenção do imperador que a determinara, era a de enaltecer os astros conhecidos, através dos deuses materiais que os representavam na crença dos romanos.
Era jovem robusto, sem apresentar traços de obesidade denunciadora de uma vida de regalos e facilidades.
Tinha de enfrentar uma série de problemas, administrar as contas, empregar bem os recursos, organizar os trabalhadores, afastar os curiosos, impedir os abusos, vigiar os funcionários corruptos, combater os inescrupulosos que sempre tentavam surripiar os bens que não lhes pertenciam.
Enfim, exercia uma função pouco invejada na qual a imensa responsabilidade conflituava com as poucas vantagens que obtinha, além da satisfação de pertencer ao círculo de confiança pessoal do próprio imperador que, conforme era seu costume, estava ausente da capital naquele ano de 126 d.C.
Envolvido pelas infindáveis questões que lhe consumiam as forças físicas e mentais, Cláudio achou conveniente buscar o amparo dos deuses de sua crença romana e, tendo ido ao templo de Júpiter Capitolino, ali se deixou levar por suas preces formais e suas oferendas materiais no intuito de encontrar refrigério para o espírito cansado no amparo material dos deuses de pedra.
Como já vimos, à saída do grande núcleo da fé romana, foi cercado pela chusma de pedintes infantes que, a todos os abastados frequentadores do templo estendiam as mãos sujas e perseguiam com suas ladainhas, a esperar alguma migalha da faustosa bolsa dos endinheirados usurpadores dos cofres do Estado Romano.
Cláudio já conhecia aqueles meninos e, sempre que possível, brincava com eles, nos jogos verbais com que desafiava a inteligência sagaz dos meninos que, tão cedo, se viam obrigados a amadurecer nas ruas da grande metrópole que, um dia, os consumiria nos circos do prazer onde dava vazão à sua fome de carne humana.
Depois de haver estabelecido a conversação brincalhona com os garotos e lhes ter estendido algumas migalhas de suas moedas pequenas, ao retomar sua trajectória em direcção à construção que administrava, viu-se desequilibrado por um obstáculo que se encontrava no solo, o que lhe produziu estrondosa queda, para a alegria dos garotos que, vendo a cena, mais não fizeram do que gargalhar às custas de sua vergonha.
- Ra, ra, ra - o construtor de ratoeiras tropeçou no imperador... - falou Fábio, um dos meninos conhecido de Cláudio.
- O que é isso, Fábio? - perguntou o rapaz, sem entender a referência que o menino fazia ao apontar para o chão e indicar algo a que chamara de imperador.
- Ora, Sr. Cláudio, a sua queda se deveu, exactamente, ao grande imperador que estava no seu caminho e o senhor não viu, só isso...
Vendo que não se tratava de nenhum imperador, mas, sim, de um amontoado de trapos sujos sobre o calçamento, Cláudio pensou, a princípio, que se tratava de uma brincadeira de mau gosto dos próprios garotos, a colocarem pedras envoltas em panos para que ele se desequilibrasse como acontecera momentos antes.
No entanto, logo que se levantou, pôde perceber que os trapos se moviam e entendeu que ali se encontrava um ser vivo, mais especificamente, uma criança de aproximadamente dez anos de idade, absolutamente disforme, sem rosto, já que a carne que recobria a face inferior lhe havia sido devorada pela lepra, expondo os dentes apodrecidos num sorriso macabro e assustador.
Aquele menino era o "grande imperador" a que se referiram os outros, momentos antes, porque corria a notícia de que, ao nascer, havia recebido um aglomerado sem sentido de nomes importantes dos antigos e cultuados Césares romanos.
Domício Nero Octávio Caio Júlio César era seu nome, o que contrastava com a sua condição horripilante.
No meio das roupas infectas e malcheirosas, uma placa de madeira mal escrita trazia um pedido de ajuda, como acontecia com muitos pedintes que não apresentavam condição sequer de erguer a voz para solicitar a ajuda pelas ruas de Roma.
Indagando mais a respeito do garoto, Cláudio ficou sabendo que era trazido por uma jovem, todas as manhãs, em um carrinho de madeira, que ali o deixava e voltava mais tarde para buscá-lo, tanto quanto às moedas que houvesse recebido.
A jovem que se apresentava como sua mãe era a que, na verdade, lhe havia dado um nome tão esdrúxulo, fosse por suas ilusões de grandeza, fosse por ironizá-lo em sua miséria, a contrastar com um nome tão importante.
Naquele piso duro e frio, um ser humano de aparência asquerosa era uma mercadoria explorando a piedade dos passantes para a obtenção de algum recurso.
Essa visão impressionara Cláudio profundamente.
Depositou algumas moedas no recipiente que era destinado a tal fim e, sem conseguir pensar em outra coisa, afastou-se em direcção ao Panteón, meditando nas misérias daquela alma forçada a viver naquelas condições, sem nenhuma perspectiva de crescimento e melhoria.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:33 pm

Da mesma forma, via-se compelido, pela sua maneira generosa de ser, a buscar alguma forma de ajudar aquele menino sofrido, cujos olhos lúcidos falavam de suas tragédias e dores.
Suas actividades frenéticas junto à construção não foram capazes de afastar de sua mente a cena dantesca daquele ser sem rosto, sem esperanças e usado como coisa para obter dinheiro.
Lembrou-se, Cláudio, de sua infância feliz na companhia de seus pais bondosos e preocupados e, por um instante, viu-se como aquele menino de dez anos atirado ao chão, à mercê de cães, garotos e homens desalmados que só não o atacavam por medo da peste que ele trazia.
Ao mesmo tempo que o feria, a lepra o defendia dos mais audaciosos e desumanos, que não tinham coragem de se aproximar dele sequer para tomar as moedas que ficavam depositadas em um recipiente que era amarrado nas roupas do menino, na altura do peito, para que ninguém ousasse furtá-las.
Cláudio não pensava em outra coisa a não ser no "grande imperador", meditando se isso não haveria de ser um prenúncio do destino, a colocar esse menino em sua trajectória logo depois que fora ao templo de Júpiter apresentar oferendas ritualísticas.
O jovem administrador das edificações de Adriano era um rapaz de seu tempo, vivendo os momentos da tradição romana, envolvendo-se com uma ou outra aventura feminina, mas, no fundo, de carácter íntegro e bom, não sendo capaz de ser indiferente, como a maioria dos romanos, às tragédias como aquela que tivera sob as suas vistas.
Ao final do trabalho, naquele dia, interessou-se em voltar ao ambiente onde deveria estar o menino naquela mesma ruela escura onde o encontrara pela manhã, mas para sua tristeza, ao chegar ali, o garoto já não estava.
- O carro imperial do grande imperador já passou para levá-lo de volta ao palácio, senhor Cláudio - falou o mesmo Fábio da manhã, que ali continuava com seus amiguinhos, espreitando algum transeunte que se animasse a depositar alguma moeda sobre Domício, buscando fazer com que mudasse de opinião e entregasse a moeda para eles, já que o aleijado não iria poder usá-la para nada.
- Você por aqui, ainda? - perguntou Cláudio, surpreso pela presença do menino.
- O senhor sabe como é... temos que aproveitar todas as oportunidades para que o nosso dia não passe sem nenhum ganho - respondeu o menino.
- Se você sabe o que estou procurando, pode me informar para onde é que levaram o "grande imperador"? - perguntou o jovem administrador.
- Ora, tão interessado assim nesse monte de lixo imperial, vai acabar produzindo ciúmes em Adriano, senhor Cláudio - respondeu, sarcástico, o jovem Fábio.
- Não seja insolente, moleque. Se você me disser mais alguma coisa a respeito, prometo que remunerarei sua informação com algo que o compense por toda uma semana de seus serviços de agarrar os ricos com suas mãos sujas.
Diante da promessa generosa, brilharam os olhos do menino.
- Bem, senhor, não sei muita coisa.
Sei que a mulher traz a encomenda todos os dias, antes do Sol começar a se levantar sobre a colina e, assim que ele se põe por detrás destes prédios, começando a fazer sombra mais intensa por aqui, ela vem buscá-lo e o leva para um lugar que não conheço.
- Isso já me ajuda, Fábio. Vou lhe pagar o que prometi e quero que você, a partir de amanhã, se mantenha por perto e observe tudo sobre este menino e a mulher que o traz.
Qualquer informação eu saberei valorizar e você só tem a ganhar com isso.
Além do mais, quero que sua presença por aqui impeça que alguma maldade seja feita com esse garoto.
- Tá doido, home - falou Fábio, medroso.
Ninguém nem se atreve a passar perto desse pestoso dos infernos.
- Eu sei disso, Fábio, mas quero que você não deixe que os cães se aproximem, que coloque um pouco de água por perto dele para que possa matar a sede se quiser, que não deixe que os meninos joguem pedras nele, etc.
- Bem, isso dá para eu fazer, mas vai custar mais caro porque os outros meninos não vão gostar que eu faça isso, já que todos os dias nós nos divertimos com o imperador.
- Está bem, eu deixarei uma moeda para cada um a fim de que o ajudem a proteger Domício, enquanto a sua mãe não está presente e, além do mais, você vai me representar por aqui, devendo me informar de tudo o que acontece com o menino, quando que a mãe o trouxe, quando que o veio buscar, onde mora, tudo isso. Está bem?
Percebendo que Cláudio falava sério e que aquela representava uma significativa vantagem material, quase que um trabalho remunerado, Fábio, mais do que depressa, aceitou a proposta, não sem antes perguntar directo:
- Ora, senhor Cláudio, que tanto interesse por esse monte de podridão?
É seu filho? Seu parente?
- Não, Fábio.
Eu me lembrei de quando eu era criança, que tinha um pai e uma mãe que me amavam e não me deixavam passar por nenhum sofrimento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:33 pm

Você tem pernas para correr, braços para se defender, casa para voltar, sabe falar, gritar, pedir, fugir, enganar, negociar.
Ele não pode fazer nada disso, Fábio.
E se você fosse ele? Como se sentiria?
Vendo-se convocado a reflectir mais profundamente, Fábio baixou a cabeça para pensar por um momento nas tragédias daquela vida em frangalhos e sentiu um rasgo de emoção em seu peito acostumado às traquinagens e às misérias de uma infância pobre, mas que não tinha nada de monótona, sempre lhe permitindo alguma diversão.
- Está bem, senhor Cláudio, eu farei o que está pedindo.
Despediram-se e prometeram se encontrar no dia seguinte quando Cláudio iria descobrir o paradeiro de Domício e se enfronhar mais na história de sua vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:33 pm

4 - No dia seguinte

A noite passara rápida para aquele jovem de trinta e oito anos, que já era responsável por organizar obras tão complexas e administrar tantos problemas, principalmente agora que a edificação se encontrava na fase final.
O nascer do dia já o encontrara de pé, tratando de planificar as acções que tinha pela frente no cumprimento de seus deveres.
Deixando as dependências de sua confortável moradia, o jovem funcionário de Adriano seguia até o trabalho valendo-se de veículo de transporte rápido, tracionado por forte animal e conduzido por um servo que, igualmente, lhe servia de escolta singela, dispensando as mais confortáveis e bem mais lentas liteiras, carregadas por escravos.
Procurava chegar sempre antes que todos os operários se encontrassem já em seus postos a fim de preparar as ordens e se antecipar aos problemas, o que o fazia prever melhor e planejar os passos necessários de cada etapa da obra já adiantada e em seu estado mais delicado, a saber, a conclusão da grande rotunda suspensa.
Por algumas horas Cláudio Rufus permaneceu perdido nas preocupações administrativas, sem se dar conta do tempo que passara célere.
Sentindo o estômago indicando a necessidade de alimento, deu-se conta de que o adiantado da hora pedia a ingestão de alguma coisa, o que o levou a buscar em seus aposentos de trabalho, improvisados ao redor do edifício que se reformava e ampliava e onde, geralmente, realizava os encontros com os seus auxiliares e subordinados.
Enquanto se servia de alguma fruta seca e ingeria uma significativa quantidade de hidromel, uma mistura comum da água com o produto das operosas abelhas, foi informado de que alguém o procurava com insistência.
- Quem está querendo falar comigo? - perguntou desentendido.
- É um desses ralés que deve estar acostumado a depender de suas generosas e tão conhecidas moedinhas.
- Diga que passe outra hora e que estou ocupado - respondeu Cláudio ao seu subordinado que, sem sair do lugar, devolveu-lhe a palavra, dizendo:
- Já fiz isso, meu senhor, mas o menino disse que se chama Fábio e falou que é seu "funcionário" e precisa comunicar-se urgentemente com o senhor.
Ao escutar a referência engraçada que Fábio se atribuía, na importância que encarava a tarefa que lhe havia sido conferida por Cláudio, o administrador entendeu do que se tratava e relembrou que, realmente, havia pedido informações àquele pequeno garoto de rua que certamente o buscava para lhe trazer algo que tinha ligação com o pequeno leproso.
Fazendo-se de surpreso para que o subordinado não se inteirasse do que se passava, Cláudio respondeu:
- Ah! Esses moleques sempre desejando alguma forma de se aproximar e obter alguma coisa!
Bem, como estou em um momento de descanso, traga-o até aqui, Cneu, pois por esse nome eu acho que sei de quem se trata.
Não tardou muito para que o empregado Cneu lhe fizesse chegar o pequeno e esperto Fábio, sentindo-se importante por ser conduzido ao interior do imenso campo de obras, como se, realmente, passasse a ter alguma relevância na ordem do mundo.
Sua surpresa era muito grande e, por saber que não teria muito tempo ali dentro, olhava para todos os lados a fim de gravar a maior parte dos detalhes que poderia, como forma de revelá-los aos seus amigos, nas conversas através das quais exibiria a sua virtude e superioridade ante os olhares espantados e invejosos de seus outros companheiros de miséria.
- Pois então, não sabia que nosso imperador contratava como funcionários crianças de sua idade, Fábio.
- Bem - disse o menino, inteligente - depende de que imperador nós estamos falando.
Se Adriano não pode remunerar meus importantes serviços, estou a seu serviço por causa do "outro".
A inteligência de Fábio era uma das agradáveis satisfações que levavam Cláudio a perder seus minutos com os meninos de rua, sempre mais vivazes e activos que a maioria dos filhos de romanos abastados e caprichosos.
- Se você veio até aqui, em seu horário de trabalho, então, meu funcionário, espero que tenha valido a pena a informação que me traz.
- Como o senhor me pediu, quer dizer, me contratou - reforçou o menino para lembrá-lo de seu vínculo profissional - estive presente no local desde antes de o monstrinho chegar em sua carruagem.
- Não fale desse modo, Fábio, é muito sofrimento e precisamos respeitar a dor desse pequeno infeliz - falou Cláudio para educar lhe o espírito insolente.
- Está bem, senhor Cláudio, é só um jeito de falar.
Daqui a pouco o senhor vai querer que eu me vista com alguma dessas roupas de gente importante para vir até aqui e falar do monst..., quer dizer, ... "do pequeno infeliz"... como se eu fosse um senador...
- Até que a ideia da roupa melhor ou, pelo menos, mais limpa não é uma má ideia - gracejou Cláudio.
Fazendo uma careta insolente e depreciativa, Fábio continuou:
- Então, Senhor Grande Administrador da Ratoeira Gigante do Imperador Adriano César Augusto etc.etc.etc... eu estava lá naquele beco dos infernos quando a dita mãe daquele" pequeno infeliz" chegou e jogou o lixo, quer dizer, depositou sua caveira, ou ainda, posicionou o miserável no lugar.
Enroscando-se na tentativa de florear propositadamente as palavras pobres com que estava acostumado a se expressar, acabou por desabafar:
- Ah! Seu Cláudio, se eu tiver que ficar falando como o senhor vai gostar, vou acabar me dispensando de ser seu funcionário porque isso vai ficar muito difícil.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:34 pm

- Tudo bem, Fábio - respondeu Cláudio bem humorado com a revolta do menino.
Fale como você conseguir e me explique o que aconteceu.
Soltando-se mais, diante da autorização do seu patrão, o menino desengasgou o que tinha a falar no seu linguarar de menino de rua.
- Então, chefe, aquela safada, que se diz mãe do monstrinho, chegou e despejou o coitado no chão como faz todos os dias.
Pendurou a tabuleta e saiu rápido para não ser vista como a malandra que explora a desgraça do montinho de mal cheiro.
Aí, eu fui atrás dela e andei que nem um condenado, tomando cuidado para que ela não me visse até que cheguei ao lugar onde ela vive.
E quando eu já estava pronto para sair, vi ela sair com outro carrinho e pensei:
- Por Júpiter Capitolino, não é que a diaba é dona de uma transportadora...?!
E nesse carrinho tinha mais duas crianças que ela carregava, enquanto uma menina maiorzinha ia com ela puxada pela mão, ajudando a carregar uns pacotinhos.
Sentindo-se atraído pelo relato de Fábio, Cláudio se intrigava com aquela situação inusitada em que uma mulher, razoavelmente jovem, se via envolvida com tantas crianças.
- E aí, Fábio, o que aconteceu? - perguntou o administrador, curioso.
- Aí que eu segui eles até perto de uns palácios muito bonitos e vi que a mulher escondeu o carrinho em algum lugar e sentou-se no chão com os meninos.
- E ficou pedindo esmola também? - indagou o ouvinte do relato.
- É, eu acho que é mais ou menos isso.
Mas o que é mais interessante é que essa vagab...
- Fábio, olha o palavreado - interrompeu Cláudio falando sério.
- Desculpe, senhor Cláudio.
O interessante é que eu acho que "essa jovem de costumes degradados" - melhorou? - deve ter uma fabriquinha de desgraçados...
- Porque, Fábio?
- Ora, porque os dois pequenos são outros dois diabos de feio e tortos, parecendo mais com o cão dos infernos do que com gente.
Um deles nunca abre os olhos e chora muito, enquanto o outro não tem os dois braços.
E meio preocupado com o seu destino, Fábio perguntou a Cláudio, apreensivo:
- Será que o senhor não me mandou espionar uma dessas bruxas velhas que usam uma poção para ficar parecendo mocinha e que, dentro de sua casa fica cortando os braços e tirando os olhos de crianças para usá-las como pedintes?
- É, quem sabe não é isso! - exclamou Cláudio percebendo o medo do menino.
- E se ela me perceber e, vendo que eu sou criança, desejar fazer alguma coisa comigo também?
Roma está cheia de gente perigosa que fabrica veneno, faz mágicas de matar qualquer um...
- Essas mágicas só pegam em crianças de sua idade se elas forem "funcionários" de alguém... - respondeu Cláudio brincando com o pavor do garoto.
Percebendo que o seu chefe estava amedrontando-o de propósito, Fábio respondeu certeiro:
- Eu não sei se isso é verdade ou não é. Só sei que quando o senhor me mandou fazer esse serviço, não disse que iria ser tão arriscado assim e que eu poderia acordar algum dia desses sem as pernas ou sem a língua por causa do feitiço de uma bruxa.
E se é assim, o que o senhor me prometeu é muito pouco para o risco que estou correndo - falou Fábio, chegando ao ponto onde a brincadeira macabra de Cláudio o tinha permitido chegar.
- Já entendi, seu safado, está querendo me esfolar com essa conversa de aleijado e bruxa só para valorizar seu serviço...
- Não, seu Cláudio, é verdade.
A mulher tem parceria com algum desses deuses infernais, porque não é possível ter tanto desgraçado a seu serviço.
Meu risco é verdadeiro, posso mostrar para o senhor.
- Está bem.
Quando você me levar para ver onde ela vive eu aumentarei seu pagamento pelo perigo a que você está se expondo, pelo risco do serviço - falou o jovem, beliscando a bochecha de Fábio, que sorriu de alegria ante a aprovação de seu patrão.
- Quando o senhor quiser eu o levo até a casa onde vivem.
É uma casa pequena, mas parece bem arrumada.
Lá, fica a bruxa e as suas crias deformadas, ajudada por uma outra mulher mais velha.
A única que se salva é a pequena menina que está sempre com ela e que, ao que me pareceu, tratava os dois deformados com muito cuidado.
- Bem, Fábio, hoje, ao entardecer, venha até aqui depois que a mãe apanhar Domício no beco e nós iremos até a casa onde vivem, está bem?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:34 pm

- E é aí que o senhor vai pagar o meu salário já com o aumento?
Vendo que o garoto sabia negociar como gente grande, Cláudio respondeu:
- Se tudo for verdade como está dizendo, além do que estou lhe dando agora pela informação, eu lhe darei o aumento quando descobrir onde eles vivem.
E dizendo isso, estendeu ao menino um punhado de moedinhas, que representavam para ele uma pequena fortuna, diante da dificuldade de sobrevivência na mendicância naquela Roma indiferente.
Agarrando as moedas, Fábio viu que era verdade o que Cláudio havia proposto e, a partir daí, passou a dedicar-se ainda mais fielmente aos pedidos que o administrador o incumbia de executar.
Meio desnorteado, Fábio hão sabia por onde sair e, como o trabalho solicitava a presença de Cláudio na solução das questões que lhe eram atribuídas, encarregou Cneu de levar o menino para fora, não sem antes recomendar o cumprimento da outra parte de suas funções, na defesa do pequeno Domício, abandonado naquele pedaço escuro da cidade.
Prometendo que tudo faria para ajudar o monstro, Fábio saiu dali e, antes de passar pela tábua que cercava o local, lembrou-se de uma informação importante que havia esquecido de dizer ao seu "chefe".
Pedindo desculpa a Cneu, e correndo na direcção de Cláudio que já se punha a caminho da edificação, segurou-o pela roupa para chamar-lhe a atenção e, tão logo este se voltou para constatar o que o estava prendendo, deparou com o rostinho corado de Fábio, que lhe disse, baixinho:
- Senhor, esqueci de dizer que o nome da bruxa é ...
...Serápis
Depois, voltou correndo com a agilidade de quem aprendera a defender-se dos perigos do mundo usando a velocidade das próprias pernas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:34 pm

5 - O primeiro encontro

Conforme ficara combinado entre Cláudio e seu "funcionário", ao final do dia de trabalho o pequeno Fábio lá se encontrava para encaminhar o administrador até o local onde viviam aqueles cinco seres desditosos, quase todos marcados pela tragédia e pelas necessidades recíprocas.
No espírito do pequeno mendigo de rua estava palpitante a promessa do recebimento do complemento de sua recompensa, enquanto que em Cláudio, um sentimento de compaixão e curiosidade alimentava sua expectativa.
As ruas se sucediam, as curvas do caminho, as pessoas que passavam, as liteiras, as bigas, os comerciantes, tudo aquilo fazia parte de uma cidade que se tornara imensa e uma verdadeira mistura de raças, povos, línguas e interesses.
As castas políticas se sucediam buscando a obtenção de vantagens pessoais sob o pano de fundo do interesse público. Homens ricos se mantinham influentes através de milícias próprias, arruaceiros pagos para proteger e impor opiniões aos outros segundo o interesse daquele que os pagava.
As questões sociais iam sendo tratadas com o descaso de sempre e o interesse dos que governavam, na sua grande maioria, era o de tanger aquele "gado" humano, oferecendo-lhe o prazer insensato, o alimento grosseiro e as homenagens mentirosas para que se mantivesse pacífico e sempre ignorante, única forma de se poder continuar roubando o erário público sem oposição significativa.
Nada disso, no entanto, tirava da mente de Cláudio a imagem de Domício e a ansiedade de encontrar o local de seu abrigo, bem como conhecer algo da história daquelas criaturas que os olhos argutos de Fábio haviam identificado.
Seria verdade aquela informação de que a mulher que tomava conta dele era uma pessoa inescrupulosa que, não bastando prostituir-se, valia-se da miséria de Domicio e de outras crianças para conseguir a compaixão dos ricos de Roma?
A exploração de pequeninos, como forma de seduzir a frieza dos indiferentes com a exposição dos dramas e misérias, era forma normal de apelo à caridade, mas erigir como que um empreendimento, valendo-se de pequeninos doentes como se eles fossem lojas espalhadas pela cidade, angariando clientes, administrada por uma mulher saudável, era algo novo e que repugnava ao espírito mais complacente.
Se fosse assim - pensava Cláudio enquanto seguia os passos do pequeno guia - ele haveria de tomar alguma atitude, usando de sua influência e seu prestígio, a fim de salvar dessa miserável exploração aqueles que se viam expostos de maneira cruel, como mercadorias da desgraça.
E enquanto nossas personagens se dirigem ao local específico, é importante avaliar, leitores queridos, como é sábia a Justiça do Universo, que nos vigia nas menores quedas tanto quanto nos considera nas mais nobres atitudes, mesmo quando insignificantes aos olhares humanos.
Podem pensar as pessoas de hoje que, segundo as aparências, o importante nesta existência é a conquista de bens e poderes, cujo desfrute compensará todas as mazelas, crimes e violações que foram necessários produzir para obter as tão sonhadas vantagens.
Profissionais ansiosos por riquezas e prazeres que espoliam seus clientes; advogados corruptos que enganam os que lhes confiaram seus pobres direitos, entregando-lhes, como pagamento, pequena porção daquilo que lhes pertence e retendo para si - sob o pomposo nome de honorários - a maior parte daquilo que deveria estar nas mãos dos verdadeiros proprietários.
Médicos ávidos por dirigir carros símbolos de "status" a estabelecerem atendimento indiferente e priorizarem os que lhes podem pagar, relegando a dor dos pobres ao patamar inferior até mesmo à dor dos animais.
Políticos de todas as épocas e nações buscando o apoio dos humildes e lhes oferecendo esperanças vãs, nas promessas brilhantes que se frustram tão logo eleitos, interessados nos desvios de recursos, no favorecimento de seus apaniguados, na nomeação de seus parentes e amigos, na edificação da rede de sustentação económico-financeira que lhes dará suporte para a continuidade dos desatinos e das falcatruas, desde que todos saiam aquinhoados e encontrem as vantagens que procuram.
Professores que desencaminham seus alunos, deixando de lhes ensinar o que poderiam, explorando-lhes a falta de base, descontentes que se acham com os recursos que recebem em troca dos esforços que empenham.
Religiosos que vendem artigos de fé e se aproveitam do desespero dos que sofrem para roubar-lhes descaradamente as esperanças e os bolsos, estabelecendo a chantagem emocional, valendo-se da figura de satanás como instrumento de pressão e intimidação. Igrejas que enganam fiéis absolvendo-os de seus pecados desde que reconheçam válidos os rituais da crença com os quais dizem garantir um lugar no Paraíso.
Comerciantes que trazem imagens religiosas penduradas nas paredes de suas lojas ou que baptizam seus negócios com nomes dos santos de sua crença, mas que, em verdade, são donos de verdadeiros abatedouros de vítimas inocentes porque não fazem outra coisa senão espoliar ingénuos, fraudando o peso, a qualidade e o valor das mercadorias, cobrando valores absurdamente elevados por coisas absurdamente baratas e reconhecendo como virtude ou talento negociai aquilo que, certamente, Jesus chamaria de peçonha ou podridão.
Empresários que espoliam funcionários, que dão golpes em fornecedores e desaparecem sob o manto da falência, funcionários que deveriam respeitar a justiça que dizem incorporar sob suas togas austeras, mas que usam de seus poderes para inclinar a espada da Justiça na direcção de interesses menores.
Empreiteiros que corroem recursos desviando dinheiro público para seus bolsos espertos e insaciáveis, deixando de ampliar os benefícios de obras de saneamento, de urbanização, de interesse do povo porque seu interesse individual de lucro e a sanha desmedida de ganhar mais e mais tornou insuficientes os recursos que tinham sido colocados como bastantes para as obras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 11, 2014 10:34 pm

Fabricantes de medicamentos que fraudam o conteúdo de remédios ou que multiplicam absurdamente os poucos centavos de seu custo verdadeiro, fazendo-os chegar às mãos dos enfermos por preço milhares de vezes maior do que o que lhes custou a sua fabricação.
Exploradores de fraquezas humanas, que multiplicam negócios escusos para oferecer aos fracos a oportunidade de caírem ainda mais no charco dos próprios defeitos, vendendo bebidas, oferecendo jogatinas, favorecendo o tráfico de drogas, explorando a sexualidade com a permissividade que estimula o prazer através de lugares que o favorecem, de propagandas que o enalteçam, de campanhas que tornem o seu exercício a demonstração do poder ou da capacidade de quem o vivência.
Publicitários de todas as mídias que homenageiam a degradação para que não lhes falte a audiência e que, para obter o interesse de patrocinadores, permitem que a depravação e os maus instintos sejam apresentados como coisas dignas de elogiou de divulgação, formando opiniões nos espectadores ingénuos, semeando condutas desonrosas como se fossem coisas normais, traduzindo na linguagem da normalidade social aquilo que representa a degradação da personalidade, explorando as fraquezas emocionais e morais daqueles que, desejando uma diversão inocente que lhes atenue as preocupações de um dia de trabalho exaustivo, se postem diante da televisão ou busquem alguma informação em revistas ou jornais circulantes.
Atravessadores que frequentam mercados e entrepostos na madrugada e perante os quais o produtor do campo vai negociar, ansiosamente, a produção que precisa ser vendida para que não se estrague em suas mãos, perdendo o fruto de seu suor.
E depois de terem recebido a mercadoria por preço o mais baixo possível, se sentem no direito de multiplicá-lo sem escrúpulos, a fim de que outros venham a adquirir a mesma cenoura para levá-la à feira na cidade, onde o seu preço novamente será multiplicado, até que os gananciosos que não derramaram nenhuma gota de suor se sintam felicitados pelos ganhos com a exploração injusta do trabalho alheio.
Homens estudados esmerando-se em fraudar tributos, aconselhando meios de ganhar sem serem alcançados pelas vistas fiscais ou favorecendo com armações e esquemas a remessa de recursos para longe dos países onde deveriam estar sendo investidos para a produção de novos recursos e a diminuição dos dramas do desemprego.
Corporações dirigidas por pessoas inteligentes tornam-se verdadeiros levitas sem alma, exigindo o sangue de lucros e metas sempre maiores, não importando se isso vai inviabilizar a manutenção de postos de trabalho e salários de famílias.
Escritores que se vendem ao gosto dos leitores ávidos por se reconhecerem nos dramas do sexo sem freios, das insatisfações amorosas, das falências morais de todos os tipos, a fim de que seu livro seja considerado na lista dos mais vendidos e possa espalhar o seu lixo moral a troco das moedas que farão a tranquilidade dele e de sua família.
Sim, porque muitos deles prezam a própria família e seus laços afectivos, ainda que o livro que escreveram tenha pervertido a família alheia e destruído com maus exemplos os liames de afecto na mente dos leitores.
Editores que desejam conseguir os lucros que lhes propiciam as mesmas regalias, a enaltecerem a podridão e o mau odor literário, buscando enfiar goela abaixo algum novo lançamento que produza o interesse nas pessoas, mesmo que as aconselhe com imagens nocivas, que lhes estimule a queda ou a manutenção de condutas equivocadas.
Seria infinda a listagem dos comportamentos considerados "normais" na maioria dos que compõem a sociedade de hoje, mas que não passam de repetição criminosa de condutas que frustram sonhos, usam pessoas, corrompem crenças, associam-se para o crime, enganam ou ludibriam, dissimulam ou roubam, vendem-se ou compram, corrompem ou aceitam a corrupção.
A Lei Soberana do Universo, entretanto, sabe de tudo e conhece todos os mais ocultos pensamentos, sentimentos e gestos.
Desse modo, não imaginem vocês, leitores queridos, que é porque o magistrado nos concedeu ganho de causa, que essa absolvição represente a verdadeira inocência.
Nem se iludam achando que, porque ninguém descobriu a sua estratégia espoliativa ou que, pelo fato de suas próprias vítimas os terem perdoado vocês estão quites com a Lei e nada mais devem.
Para a concepção divina que nos engendrou, tão sagrado quanto é o livre-arbítrio é, também, a Responsabilidade pessoal e intransferível pela colheita dos frutos que tivemos liberdade para semear.
Assim é o mecanismo celeste de conceder a todos a oportunidade de viver e escolher os caminhos que acham melhores para seus passos, mas de impor a cada um as consequências de suas boas escolhas, tanto quanto as amargas penas pelas opções mal feitas.
Por isso, queridos leitores, reavaliem essa insana competição por coisas tão mesquinhas, mas que, se lhes permitem o brilho de alguns momentos nos prazeres que alimentam e estimulam, garantirão séculos de lágrimas pelas dores que produzem em seus caminhos.
Olhem para essa Serápis abandonada e só, e não se esqueçam daquela Fúlvia arrogante e oportunista.
Olhem para esse Domício leproso e inválido e não se esqueçam da figura obsessora que envolvia o imperador Nero nas suas loucuras e excentricidades.
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 12, 2014 10:15 pm

Olhem para os dois deficientes lacrimosos, um cego e ferido e o outro sem os braços, e não se esqueçam do altivo governador da Palestina, Pôncio Pilatos e seu braço direito, o poderoso Suplício, todos envolvidos nos dramas da queda moral através dos abusos, da espoliação do povo, da exploração da sexualidade e dos prazeres indignos, da traição dos afectos, da imposição do forte sobre o fraco, do descaso para com a vida e o sofrimento do semelhante, dos interesses e das disputas consideradas "normais" entre as pessoas de uma sociedade.
Não se esqueçam de ver que os lucros e os títulos de um momento não fizeram nada que pudesse evitar o regresso à vida para que, aqueles que falharam juntos, igualmente juntos pudessem se ajudara reerguer, suportando-se uns aos outros, alimentando-se, agasalhando-se, resgatando em colectividade e com as marcas que lhes eram pessoais na responsabilidade pelos erros de outras épocas, os delitos praticados para a modificação de seus caracteres, para a corrigenda de suas inclinações nocivas e para a depuração de suas pequenas virtudes no cadinho dos testemunhos acervos.
Lembrem-se, leitores queridos, não são somente os ladrões, os sequestradores, os agressores, traficantes, enfim os que chamamos de bandidos que merecem essa qualificação e que receberão os efeitos de suas escolhas.
Eles também serão justiçados por uma Justiça mais misericordiosa do que todos os sacerdotes e mais equidosa do que todos os magistrados.
No entanto, todos eles poderão, talvez, apresentar como atenuante, a sua miséria material, a sua falta de formação, a fome que viram seu filhos passar, a violência de que foram vítimas, a ignorância e a falta de estudo.
E quanto aos outros aos quais aqui nos referimos?
São bandidos iguais se se permitem cometer os mesmos desatinos pelo interesse de ganhar sem se importar a quem estão roubando.
Poderão, no entanto, contar com alguma dessas atenuantes?
É por isso que na questão número 642 de "O Livro dos Espíritos", as entidades luminosas que nos orientam os caminhos nos asseguram de que não é responsabilidade nossa apenas o Bem que fizermos no LIMITE DE NOSSAS FORÇAS.
Também será nossa responsabilidade todo o Mal que possa decorrer de um Bem que nós tenhamos deixado de fazer quando o podíamos ter feito.
Cláudio já começava a suar pelo esforço do caminhar acelerado de Fábio, quando o menino estacou e quase foi atropelado pelo administrador, que procurava andar na sua cola.
- Calma, homem - falou o menino.
Não está me vendo na sua frente?
- Ora, Fábio, você para sem avisar, como é que eu adivinho?
- Fale baixo, seu Cláudio, que a casa é ali... - disse o garoto, apontando para uma pequena construção situada a cerca de cinquenta metros de onde os dois estavam.
Se eu não me enganar, em qualquer momento a tal mulherzinha vai chegar com sua transportadora de desgraças, carregando o circo dos horrores.
Olhando para a construção, parecia tratar-se de decente moradia, sem que se apresentasse com os contornos das casas sórdidas ou destinadas aos aglomerados humanos, tão comuns naqueles tempos.
Não se tratava de um daqueles cortiços romanos, promíscuos e devassos, malcheirosos e pobres.
À primeira impressão, era uma casa modesta, mas de proporções dignas de qualquer família de classe proletária com algum recurso suficiente para afastá-la da promiscuidade das casas colectivas, cercada de bom terreno.
Em realidade, Cláudio estava diante daquela mesma casinha conhecida anteriormente pelo qualificativo de "pequeno palácio", o local dos encontros clandestinos de Marcus e Serápis e onde ele pensava manter a amante para levar com ela uma vida paralela.
Fora ali que Licínio encontrara aquela que ele pensara ser, um dia, a mãe de seus filhos, compartilhando o mesmo leito com o seu patrão e melhor amigo, Marcus, numa tarde calorenta, ao procurá-lo para falar sobre as acusações que Druzila levantaria a respeito de seu comportamento pessoal.
Não longe dali se achava o local onde Licínio se sentara para chorar a decepção do coração amado e ferido e onde os espíritos Zacarias e Cléofas o estavam amparando para que sua trajectória luminosa suportasse esse testemunho de tragédias e dores, como já foi relatado em "A Força da Bondade".
Não se sabe por que, o pequeno palácio havia se transformado na pequena prisão da desdita e do sofrimento daquelas cinco criaturas que, ao que parecia passavam por graves privações individuais e colectivas.
E, em verdade, não tardou para que o aglomerado humano desse passagem à mulher ainda jovem que empurrava os dois carrinhos de madeira com a ajuda da pequena Lúcia, transportando três desditosas criaturas enfermas e deformadas.
O cortejo era tão deprimente, que os próprios transeuntes se afastavam deles e teciam comentários, entre jocosos e irónicos, apontando para o grupo como exemplo de punição dos deuses por imaginários crimes cometidos.
Serápis, orgulhosa e arrogante no espírito altivo, fingia não escutar as frases cortantes e desumanas, enquanto tudo fazia para que o trajecto fosse cumprido o mais rápido possível a fim de furtar-se a essa humilhação.
Por isso, empurrando com força os dois carrinhos o mais célere que podia, sem olhar para os lados para não ter que encarar as faces de repugnância, medo ou asco, ganhou a entrada do pequeno tugúrio e ali se meteu, fechando a porta que lhe dava acesso desde a rua.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 12, 2014 10:15 pm

- Viu, seu Cláudio, o senhor viu a mulher e os monstrinhos? -falava orgulhoso o pequeno mendigo, sem atentar para a própria miséria material.
- Sim, Fábio, você fez um bom trabalho.
Agora já sei onde eles moram.
- E o meu aumento?
O senhor viu que a mulher é uma bruxa que fabrica crianças desgraçadas, não viu?
Eu não menti para o senhor.
Não esqueceu de sua promessa, não é?
Rindo-se intimamente dos medos e das preocupações daquele pequenino ser, que fora educado entre a necessidade e a busca de recursos junto aos passantes da rua, Cláudio retirou da roupa pequeno recipiente de moedas e entregou a Fábio, dizendo:
- Eu costumo remunerar bem meus funcionários quando eles cumprem bem os seus deveres.
E você não fez diferente.
Como eu prometi, aqui está.
Não se esqueça de continuar cumprindo aquilo que nós combinamos, está bem?
Com os olhinhos reluzentes de alegria, já que estava acostumado a ser passado para trás em negociações ou promessas que recebia dos mais velhos, o garoto agarrou a pequena bolsa e, depositando um beijo na roupa de Cláudio, como era costume ao demonstrar gratidão pela generosidade dos poderosos, Fábio respondeu:
- O senhor é o melhor patrão que eu já tive, senhor Cláudio.
Eu nunca vou deixar de cumprir meus deveres e ser fiel à sua generosidade. Posso ir agora?
- Sim, meu amiguinho.
E não se esqueça de me comunicar qualquer coisa que acontecer com eles, já que eu não irei conversar com a mãe do menino agora porque já está tarde. Irei fazê-lo no momento oportuno.
Estendeu a mão para o pequenino que, na sua gratidão e submissão, ao invés de retribuir o gesto amistoso do cumprimento, empertigou-se e saudou Cláudio como se ele fosse o próprio imperador, exclamando:
"Ave! Cláudio!", espalmando a mão com o braço esticado, como faziam os soldados e os súbditos de Adriano e dos Césares desde longa data.
E sem esperar a reprimenda do administrador que não desejava esse tipo de cumprimento, Fábio acelerou as pernas ágeis e deixou Cláudio com as palavras de censura ainda por sair da própria garganta.
Era com ele, agora.
Competiria à sua maturidade encontrar uma forma de auxiliar aquela mulher, cujos traços de rosto ele não pôde ver, mas que, pela idade e pelos contornos corporais, era dotada de saúde e de razoável beleza, que poderiam ser usadas em algum serviço remunerado e honesto.
Resolveu afastar-se, depois de guardar bem a localização daquela moradia.
Enquanto regressava para sua casa, preparando-se para o descanso merecido da noite, nem imaginava que espíritos amigos o seguiam muito de perto.
Amparando seu coração generoso e interessado, todos os que se interessavam por aquelas criaturas endividadas no mundo se acercavam de Cláudio para envolvê-lo com fluidos de doçura e estímulo no Bem.
Naquela noite, ele dormiria ao embalo das vibrações de Zacarias, Lívia e Cléofas, as almas amigas que, a pedido de Jesus, se mantinham vigilantes e tentavam ajudar o grupo desditoso que sofria as penas que haviam semeado no passado.
E pelo que Cláudio pensava fazer, já recebia o amparo dos que desejavam usá-lo no Bem que a Misericórdia de Jesus queria fazer chegar para erguer os caídos, para sustentar os fracos, para amparar os desditosos do mundo.
E esse Bem, ainda que fosse proveniente do coração do próprio Cristo, espírito estelar que nos guiava e nos guia, não poderia chegar até os cinco infelizes senão através de mãos tão humanas quanto as dos próprios sofredores.
Cláudio haveria de ser as mãos de Jesus.
Esse era o sonho dos espíritos, Emissários do Divino Amigo.
Pensem nisto, queridos leitores.
Olhem para as próprias mãos e sintam o quanto Jesus pode estar precisando delas para atender algum sofredor que mora na casa vizinha, que está sentado na sarjeta de sua rua, que está pensando em tirar a própria vida porque não tem mais forças para viver.
Quem sabe, muitos Zacarias, Lívias ou Cléofas não estão por perto de você para que seu idealismo não esfrie e para que seu desejo de fazer o Bem se transforme, realmente, em um gesto de Bondade?
Misericórdia quero, não o sacrifício - dizia Jesus a todos nós.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 12, 2014 10:15 pm

6 - A aproximação

Depois de uma noite de sono tranquilo, como que embalado pelas vibrações de paz e alegria, Cláudio despertou no corpo físico, pela manhã, com a convicção de que deveria ajudar aquela família desventurada de forma subtil e cuidadosa para evitar que alguma conduta ostensiva e directa pusesse em risco a sua tentativa benemerente.
Roma era uma grande armadilha e todas as pessoas estavam sempre preparadas para enganar, usar ou prejudicar os outros, o que motivava, na maioria, uma postura de desconfiança e temor ante o desconhecido, sobretudo quando se apresentava, inicialmente, com gestos de benevolência e generosidade.
Cláudio tinha razão, porque Serápis era uma mulher ferida, desconfiada de tudo e de todos.
Em realidade, a sua juventude e seu ímpeto amoroso tinham sofrido um duro golpe, perante o qual ainda não havia se recuperado por completo.
Como se recordam os leitores queridos, ao final de "A Força da Bondade", quando Marcus regressa do trágico cenário no qual seu melhor amigo e administrador de seus bens, Licínio, perde a vida por entre as chamas, encontra a sua amante, aquela serva atraente e insinuante, Serápis, em trabalho de parto que lhe propiciaria o tão esperado filho varão.
E para sua surpresa, fica inteirado de que não é um filho, mas são dois.
No entanto, a dupla satisfação inicial se transforma em dupla tragédia, porque as duas crianças são deficientes e, à toda evidência, segundo as crenças comuns entre os romanos de então, isso era uma maldição que pesaria sobre a família inteira, já que as enfermidades desse tipo tanto quanto as outras doenças deformantes ou corrosivas dos tecidos eram vistas como punição ou castigo, má sorte ou estigma pestilento.
O jovem aristocrata Marcus, viúvo de Druzila, desejava muito possuir filhos que lhe honrassem a posição social e demonstrassem a virilidade de sua condição masculina, bem como a sua contribuição para a continuidade das tradições sociais e religiosas, que impunham aos homens a procriação de descendentes masculinos que lhes sucederiam no culto aos antepassados e nas exigências dos rituais sagrados.
E se tais filhos fossem sadios, como ele imaginava, nenhum obstáculo existiria para desposar Serápis, que na condição de sua amante, representava a mulher ideal pelas emoções e afinidades que nutriam entre si.
Aliás, o próprio Licínio já houvera deixado esse terreno aplainado quando, assumindo a condição de progenitor dos filhos de Serápis, livrara Marcus da suspeita de ser cúmplice do assassinato de sua esposa para que pudesse consorciar-se com a amante.
Firmando documento perante o magistrado Sérvio Túlio, no qual confessava ter sido o responsável pelo envenenamento de Druzila, Licínio conseguira atrair para si a culpa pela morte da antiga senhora e inocentar a pobre serva que, em realidade, nada houvera feito para produzir a morte da primeira esposa de Marcus.
Apresentando-se como apaixonado por Serápis e o gerador dos filhos que carregava no ventre, Licínio retirava do amigo de tantos anos a suspeita nociva e permitia que, de marido mesquinho e assassino, Marcus passasse a ser visto como viúvo honrado que recebia a antiga serva e seus filhos como nova família.
Com isso, poderia recomeçar a sua vida afectiva com a pessoa amada e adoptar como seus os filhos dela, regularizando a situação sem problemas e dando sequência às experiências da vida, ao lado da companheira com a qual, em verdade, já se havia estabelecido.
Licínio tinha dado a própria vida como um gesto de renúncia e amor fraternal a todos, garantindo-lhes os caminhos abertos para a retomada da trajectória do afecto, como era o desejo de ambos, impossibilitados de concretizá-lo em face das suspeitas que despertariam caso resolvessem estabelecer o matrimónio sem uma explicação plausível para a morte daquela que era obstáculo para que o consórcio pudesse acontecer.
Agora, dependia dos dois amantes realizarem as coisas aproveitando-se das circunstâncias favoráveis que o sacrifício de Licínio havia criado.
No entanto, os preconceitos e as falsas noções de honradez, aliados à fraqueza moral das pessoas, se incumbira de levar os envolvidos no relacionamento amoroso proibido para caminhos de dor e aflição absolutamente opostos aos que poderiam ter construído para si mesmos.
Ao constatar a miserável condição dos próprios filhos, Marcus viu apagar-se a chama da paixão que consumia suas entranhas ao contacto com Serápis.
Perdido no cipoal de sentimentos contraditórios, o jovem aristocrata romano não desejava colocar em risco a sua posição e a respeitabilidade de seu nome, muito menos trazer para dentro de sua casa a figura da mulher amada com seus dois filhos deficientes, que transmitiriam para todo o ambiente a consideração de malignidade de que eram portadores desde o nascimento.
Incapaz de ser nobre nos gestos decisivos do destino, e considerando a possibilidade de estabelecer relacionamentos sexuais com as mulheres que desejasse em face de sua condição abastada, empalideceu em seu coração a figura da mulher amada, da amante calorosa, da efusiva companhia e inspiradora de suas fantasias.
Enquanto Druzila, na condição de esposa ciumenta e indesejada se apresentava como obstáculo à união espúria, a chama do proibido crescia nos encontros que aproximavam o patrão infeliz da serva insinuante.
Com o desaparecimento do problema, Marcus se viu livre para agir sem dificuldades ou oposições, precisando ter cuidado, apenas, com as circunstâncias que envolviam o assassinato nebuloso da mulher.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 12, 2014 10:15 pm

Mas vencido também este obstáculo pela acção do amigo, como já se explicou, restou-lhe a figura de Serápis, livre, da filha, Lúcia, que se apegava à serva pela afinidade ancestral e dos dois pequenos infelizes que, mais do que desonrar a sua tradição, iriam macular o seu nome.
- Muitos dirão - falava Marcus consigo mesmo - que estes dois filhos inválidos são a prova de minha prevaricação e a punição que os deuses me infligiram por ter traído minha esposa.
Muitos poderão ver nisso, inclusive, a prova de que eu tive alguma coisa a ver com a morte de Druzila.
Não, não posso aceitar isso.
Não aceito ser libertado pelo destino de um demónio de mulher para me ver conduzido ao próprio inferno.
Serápis é a culpada por tudo isso e eu não irei acabar com minha vida para me unir publicamente a um ser marcado pela desgraça e pelo ódio dos deuses que dirigem nossas existências.
Com tais pensamentos, Marcus procurava afastar de seu coração todas as emoções e responsabilidades que deveria assumir, independentemente dos prejuízos sociais que adviessem.
Afinal, desde a última encarnação, quase cem anos antes, ambos estavam implicados no envenenamento de Zacarias.
Chegava para ambos a oportunidade de repararem o mal engendrado com astúcia e praticado sem compaixão.
No entanto, apesar de terem se passado quase cem anos das quedas e dos delitos que lhes competia reparar pelo Bem praticado, Marcus se deixara envolver pelas convenções de sua posição, pela avaliação das perdas e ganhos sociais, pelas suspeitas e ironias de que seria objecto, como o viúvo da envenenada e o pai dos aleijões.
Com todas estas ideias avassalando o seu carácter tíbio, Marcus afastou-se de Serápis, sem dar-lhe oportunidade de qualquer entendimento.
Proibiu a sua entrada no antigo palácio, deu instruções para que ninguém se prestasse a atendê-la e que, quando muito, se limitassem a entregar no endereço de seu antigo ninho de amor clandestino, alimentos que servissem de sustento à prole deixada pelo antigo administrador.
Valendo-se da confissão de Licínio, Marcus passou a utilizá-la como prova de sua inocência no tocante à paternidade dos filhos de Serápis, imputando-a ao antigo administrador.
E se os filhos eram de Licínio, ele ajudaria as crianças e a antiga serva como um gesto de compaixão, em memória do antigo amigo.
Nada mais do que isso.
E com relação a Lúcia, a filha do primeiro casamento com Druzila, o seu apego a Serápis era tamanho que, com quase dois anos de idade, quando do nascimento dos dois filhos doentes, não pretendia infligir à pequena uma nova orfandade, já que a criança passara a identificar na amante a figura da própria progenitora e o mesmo acontecia com esta em relação à criança.
A aproximação directa e efectiva que existia entre elas desaconselhava qualquer esforço de romper a união.
Além disso, Lúcia representava a lembrança constante de Druzila, que ele não suportava nem mesmo em pensamentos.
Diante da responsabilidade de ser pai da pequena filha, sem amparo de parentes próximos, sem a cooperação senão de escravos indiferentes, bem como por não possuir nenhuma inclinação à paternidade responsável, coisa que sempre achou ser obrigação atribuída às mulheres, Marcus deliberou permanecer livre como um viúvo disponível a assumir as responsabilidades de ser pai de uma criança sem mãe, criança que, além de ser do sexo feminino, não aprendera a amar, não se dedicara nenhum dia a seus cuidados e, por isso, não tinha com ela qualquer vínculo mais profundo.
Afastou-se, pura e simplesmente, deixando garantida a Serápis e à prole a pequena casa que lhes servia de pousada de prazeres, o "pequeno palácio", como gostavam de chamar.
Com tais rasgos de generosidade, Marcus imaginava já estar remunerando muito bem aquela mulher que lhe seduzira e se insinuara para preencher o vazio do seu coração, frustrado pela companhia repugnante de Druzila.
Aos curiosos e aos servos do palácio onde habitava, Marcus diria que Lúcia havia ido viver com parentes distantes e que, usualmente, ele iria visitá-la, levando-lhe presentes até que ela crescesse e pudesse voltar para Roma em sua companhia.
Assim, adiaria para daí a muito tempo, a solução do problema, sem criar maiores embaraços a si próprio.
Em sua cabeça, as explicações estavam perfeitas e os planos adequados aos seus interesses de voltar à vida devassa e irresponsável de solteiro, quando não tinha nada mais a fazer do que gastar e gozar os prazeres da vida.
Essa era a visão de Marcus diante dos problemas que ele não desejava enfrentar, das responsabilidades que ele não aceitara como deveria e que, por mais plausível ou justa que parecesse a sua escolha, isso o desqualificava como espírito amadurecido, demonstrando, ao contrário, a falta de profundidade moral, a covardia e a infantilidade de sua conduta perante o dever material de amparo, perante o dever moral de compartilhar as desditas e perante o dever espiritual de dar apoio a espíritos que voltavam à vida física para resgatar pesados débitos do pretérito contando com o seu respaldo decisivo.
A sua defecção, mais do que qualquer coisa, representava uma dupla ofensa, por ignorar o sacrifício do próprio Licínio, única coisa que lhe pesava, verdadeiramente, na consciência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 12, 2014 10:15 pm

Jamais ninguém fizera tanta diferença em sua vida como aquele amigo devotado e humilde que, amando Serápis com sinceridade, foi por ela rechaçado; amando fraternalmente Marcus, por ele foi condenado ao poste incandescente e que, apesar disso tudo, empenhou seus melhores esforços para entregar a ambos aquilo que ambos desejavam.
Licínio morrera para garantir a vida de Lélia e a felicidade de Marcus e Serápis, como bem o sabia o jovem aristocrata.
E esse sacrifício, testemunhado pessoalmente no teatro Flávio, era a única coisa que lhe pesava na consciência, nos momentos em que se via animado a fugir do testemunho pessoal.
Por não suportar esse estado de coisas, tão logo deliberou agir desse modo e dar esse destino à sua vida, Marcus deixou a capital e partiu em viagem de diversão, com a justificativa de que Roma lhe trazia más lembranças por causa do assassinato de Druzila em seu próprio palácio.
Dessa maneira, naquele ano de 126 d.C.
Marcus já se encontrava distante da cidade há mais de dois anos e seu desejo íntimo era o de afastar-se dali por mais tempo, como forma de esquecer os dissabores da dor íntima.
E por causa do afastamento demorado do jovem patrão, as suas ordens de amparo precário da família asilada no pequeno abrigo de amor, transformado em prisão de miseráveis sofredores, acabaram sendo, igualmente, menosprezadas, relegadas a coisas secundárias, deixando a família à mercê da mais absurda penúria.
Tudo isso, no entanto, não era do conhecimento de Cláudio que, intuído pelos espíritos amigos que o ajudavam, bem sabia não ser adequado apresentar-se como benfeitor aos olhares ariscos de uma Serápis ferida.
Melhor procurar outros caminhos para a aproximação de maneira indirecta.
Dirigindo-se ao canteiro de obras do panteão, convocou seu ajudante directo, Cneu, o mesmo que levara o pequeno Fábio à sua presença no dia anterior.
- Preciso de seus préstimos, Cneu.
- Às suas ordens, meu senhor - respondeu o ajudante;
- Tenho que auxiliar uma família desditosa, cuja mãe, viúva, tem que criar sozinha quatro filhos, dos quais três homens são doentes e a única criança sadia é uma menina um pouco maior.
No entanto, não quero que ela saiba que estou fazendo isso para que não se veja animada a me esfolar com exigências ou pedidos, já que a mulher é dessas mendicantes de rua que você bem sabe, como amolam os passantes com suas súplicas.
Quero ajudá-la de maneira oculta, através de algum trabalho.
O que você sugere?
Ouvindo atentamente a solicitação, Cneu coçou a cabeça confuso e, sem uma ideia imediata para oferecer, não teve outra opção mais luminosa e criativa do que passar o problema para outro dos funcionários da construção, o que o levou a dizer:
- O seu interesse, meu senhor, é muito nobre para minha ignorância.
Eu acho essa gente miserável um bom material para lançarmos às feras nos circos porque os bichos merecem uma carne desse tipo.
Mas como o senhor me pede uma opinião, reconhecendo o meu despreparo para oferecer-lhe alguma solução decente, dentro daquilo que é da sua expectativa, posso aconselhar que o senhor fale com Décio, um trabalhador forte que temos e que, pelo que já andei escutando, também gosta de ajudar as pessoas, porque muita gente vem até aqui para falar com ele nas horas em que tem folga.
- Pois bem, Cneu, traga-me esse empregado para que possamos conversar um pouco.
- Sim, meu senhor.
E falando isso, saiu para, poucos minutos depois, trazer até o gabinete de trabalho de Cláudio, o referido funcionário que, como era de se esperar, imaginava estar sendo chamado para alguma repreensão ou pedido de explicações.
- Senhor Cláudio, este é o funcionário de quem lhe falei - informou solene o ajudante Cneu, dando entrada a Décio, um homem a caminho da madureza e que era dotado de uma robusta compleição física, incompatível com a serenidade de seus olhos, de aparência gentil e respeitosa.
- Pois bem, Cneu, pode voltarão serviço - falou Cláudio, firme, demonstrando que não desejava testemunhas de seu diálogo.
Fechados no recinto, manteve-se Décio de pé e de olhar baixo, como era costume aos subalternos na presença de seus superiores, até que estes lhes dirigissem a palavra.
Pronto para alguma reprimenda, surpreendeu-se com os modos igualmente educados e gentis de Cláudio, com o qual iria conversar pessoalmente pela primeira vez em sua vida.
- Senhor Décio, sente-se, por favor - exclamou o jovem administrador de Adriano.
Sem desejar usufruir da liberdade que lhe era concedida fácil e amistosa, Décio recusou o privilégio de colocar-se confortavelmente na mesma altura do seu superior e respondeu, polidamente:
- Para mim, meu senhor, já é subida honra estar neste escritório em sua presença, ainda mesmo que seja para receber alguma reprimenda.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 12, 2014 10:16 pm

Sentar-me diante de sua pessoa, além de deferência que não mereço, é ousadia a que não me autorizo, nem mesmo estimulado por sua bondade.
Admirado com a fala nobre e as maneiras elevadas desse carregador de pedras, Cláudio se viu tocado pelos conceitos pouco usuais na boca de trabalhadores rudes, acostumados a vociferar palavrões, insultos, blasfémias, xingamentos.
Voltando a si da surpresa, o administrador tornou mais amistoso o tom de voz e falou:
- Não se trata de nenhuma reprimenda, Décio. trata-se de um pedido de ajuda.
Cneu me disse que você poderia me auxiliar em uma diligência pessoal que necessito realizar.
Convocado pela solicitação directa de Cláudio, Décio se interessou pela oportunidade de servir ao seu senhor de maneira directa e o brilho de seus olhos demonstrou a sua alegria em ser prestativo.
- Pois bem, meu senhor.
Seja me sentia privilegiado em servir ao imperador através da sua direcção justa e generosa, aquilo em que puder ser-lhe útil representará alegria maior para meu espírito.
- Pelos seus modos gentis, meu amigo, creio que você é a pessoa certa - falou Cláudio, mais familiarizado com aquele homem forte e sereno.
Contou-lhe o problema e a sua dificuldade em se aproximar de Serápis de maneira directa, sem levantar suspeitas, ou produzir algum tipo de reacção negativa.
Ouvindo-o, Décio se inteirava das dificuldades de Cláudio em ajudar alguém desconhecido e, longe de pensar qualquer coisa má a respeito do solicitante, avaliou a bondade natural daquele jovem tão prematuramente levado à condição de administrador sem sossego.
Naquele momento, Décio entendeu que, efectivamente, poderia fazer alguma coisa.
Deixando Cláudio terminar a exposição, o empregado pensava em como melhor ajudar a solucionar o problema, sem revelar a sua tarefa cristã na modesta choupana onde vivia e onde procurava pregar o Evangelho de Jesus aos que buscavam o consolo do Senhor.
Não que temesse o testemunho ou a morte.
Apenas sabia que muitos precisavam das luzes da Boa Nova e, por isso, não seria justo antecipar o momento doloroso, em prejuízo de tantas sementes que ainda precisassem ser espalhadas.
No entanto, Décio comandava uma rede de solidariedade informal, através da qual os mais desditosos encontravam o apoio dos menos infelizes e, assim, as prementes necessidades iam sendo vencidas.
Depois de traçar as linhas gerais, assim que lhe foi concedida a palavra, Décio respondeu a Cláudio:
- Meu senhor, sua preocupação fraterna emociona minha alma miserável.
Acostumado a presenciar as dores alheias diante da opulência, tenho visto pessoas invejarem a posição dos cães dos grandes palácios, aos quais nada falta, nem a comida nem o carinho.
Quando entrevejo o seu interesse pelas criaturas mais infelizes, meu coração se alegra porque sei que Roma não está perdida nas mãos de administradores desumanos e que para todas as nossas angústias as forças superiores possuem enviados que nos amparam.
Não sei dizer se terei plenas condições de atender, na altura de suas expectativas, à solução completa do problema.
No entanto, posso afirmar que amanhã, se o senhor me permitir esse prazo, estarei aqui com um plano de auxílio dessa família, cuja tragédia identifico com a minha própria, filho infelicitado pela peste, expulso do lar, atirado aos cães, de onde acabei salvo por um coração generoso como o seu, que me deu guarida e cujo amor era tão intenso que, na época de minha ignorância, foi capaz de me curar da doença.
Tudo farei para ajudá-lo de modo que o seu sentimento de sincero devotamento se transforme em bênçãos para todos eles.
Cláudio emocionara-se com a confissão singela de Décio, expondo-se de maneira tão íntima, revelando suas dores e suas misérias pessoais, tanto quanto o seu desejo de ser útil no alívio aos que sofriam como ele sofrerá um dia.
- Obrigado, Décio, esperarei por sua palavra amanhã!
- Obrigado, senhor, pela confiança e por me permitir ser útil -respondeu o operário, deixando o ambiente carregando o coração cheio de alegria e vontade de ajudar.
Sobre esses dois indivíduos interessados exclusivamente no Bem dos que sofriam, pairava a mão generosa do amor, iluminando suas frontes com o idealismo verdadeiro e desinteressado, e preenchendo seus corações com a satisfação do afecto real e puro.
Sobre ambos, a mão de Jesus pairava, através do amparo espiritual de Zacarias, Lívia, Cléofas devotados a Cláudio e da protecção invisível de Licínio e Simeão, dedicados ao amparo de Décio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 12, 2014 10:16 pm

7 - A respeito de Décio

Depois de ter sido convocado por Cláudio para auxiliar no processo de amparo a Domício e aos demais irmãos de desdita, o devotado servidor do Bem, que mantinha um embrião da casa do Cristo na periferia de Roma, passou a pensar como poderia desempenhar sua tarefa sem comprometer a obra e arriscar o destino de tantos adeptos anónimos que procuravam guarida naquela pequenina comunidade que se edificava no próprio ambiente doméstico.
Como pretendia ter liberdade para poder reunir-se, Décio não residia nas "insulae", edifícios de vários andares que congregavam, às vezes, centenas de pessoas empilhadas e amontoadas.
Preferira reunir todas as suas modestas riquezas e, ainda que mais distante e pior situada, adquirira vivenda humilde, em região mais afastada e, por isso, onde a necessidade se fazia mais candente, propiciando a melhor difusão da mensagem do Evangelho nos corações.
Por esse motivo, empenhado em transformar o texto escrito em vida e verdade, Décio se preparara espiritualmente para dar novo rumo ao seu destino, já que não lhe saíam da consciência profunda o juramento que fizera naquela cerimónia, há quase setenta anos, quando ajoelhado aos pés de Jesus, jurara que nunca mais mataria ninguém.
Sim, Décio houvera sido um dos gladiadores, aquele a quem Jesus tocara por primeiro, a fim de abençoar todos os outros e que, invadido por irresistível sentimento, transformara as suas tendências e, sincero e autêntico como sempre fora, deliberara nunca mais fazer o que havia feito.
Agora, reencarnado para enfrentar as próprias tendências, havia solicitado condições para poder ser um pequeno representante do Divino Mestre no seio da comunidade paga, a caminho da transformação moral.
Isso lhe fora concedido, mas para que ele pudesse enfrentar as suas tendências antigas e vencê-las, fora aquinhoado com um novo corpo de proporções tais que, além de lhe garantir robustez e saúde, também poderia conduzi-lo pelos mesmos caminhos de antes, usando de seus atributos físicos para dedicar-se às lutas grotescas tão ao gosto daquele período, o que lhe facultaria ganho fácil e recursos abundantes.
Por isso, apesar das enfermidades de nascimento, fora encaminhado à Terra com o projecto corporal adequado ao testemunho e à tentação natural em uma sociedade que sempre se inclinara na busca dos prazeres fáceis e das maneiras mais rápidas de ganho, principalmente através das lutas brutais, onde corpos fortes iam se destruindo, para deleite da massa.
No entanto, a primeira vez em que pôde presenciar uma luta de gladiadores em uma arena, vendo a brutalidade e o sangue jorrando enquanto delirava a turba, um tal sentimento de nojo tomou conta do seu ser, que vira-se obrigado a deixar o ambiente para procurar, num desvão qualquer, local adequado para verter o vómito que lhe viera, espontâneo, à boca.
Ali morriam, para Décio, as possibilidades de usar seu físico para ganhar a vida, apesar das insistentes sugestões dos próprios parentes que o desejavam explorar, induzindo-o ao caminho que lhes parecia mais fácil.
Empregou-se, por causa dessa pressão, não nas artes da morte, mas naquelas que permitiam que sua força fosse usada para o Bem, na edificação de prédios que tivessem uma finalidade positiva.
Passara, por isso, a ser dos mais requisitados operários da construção, por causa de sua capacidade física e pela disciplina obediente de sua conduta.
Assim, não lhe faltavam serviços naquela Roma sempre em obras, o que lhe permitia, desde jovem, ganhar o suficiente para auxiliar seus pais na manutenção da família e, depois que se vira sem eles, das próprias necessidades.
E ao contacto com os pobres encontrou, ou melhor, reencontrou aquele Jesus que ele conhecera pessoalmente e de quem sentira o toque inesquecível, qual fogo que penetra com amor e esculpe sem ferir a alma para sempre.
Encantara-se com a mensagem e decidiu-se, com consciência limpa e segura, de que sua vida seria a propagação daqueles ensinamentos, mesmo sob o risco de ser punido por tais condutas com a própria morte, como já vinha acontecendo há muito tempo.
Assim, tornara-se o centro de pequeno movimento de multiplicação da mensagem, tanto quanto de ampliação do Bem.
Dos recursos que ganhava nas obras onde servia, destinava pequena quantidade para a manutenção de suas necessidades frugais e o restante transformava em benefícios aos sofridos seguidores que, ao encontrarem o auxílio inesperado em suas mãos, abriam-se para aquele Jesus desconhecido.
- Estes recursos não são meus - falava Décio àqueles que ajudava.
São recursos que Jesus me mandou entregar a vocês para que as crianças não passassem tanta fome.
E, entre lágrimas de gratidão, mães aflitas passavam a desejar conhecer melhor esse Jesus a quem Décio tanto se referia.
Por suas mãos, muitos se tornaram cristãos, não apenas porque escutavam as suas palavras, mas, sobretudo, porque acreditavam nelas ao verem os exemplos que Décio oferecia, na coragem do Bem, na solidariedade para com os que choravam, desditosos, numa cidade de indiferentes.
O movimento se ampliava no bairro modesto onde todos viviam e, duas vezes por semana, sua casinha se tornava apertada para congregar todos os que se acercavam para ouvir suas palavras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 12, 2014 10:16 pm

Ali, Licínio encontrara a compreensão do Evangelho Verdadeiro e, juntando suas disposições no Amor, conseguira coragem para levar sua jornada até o sacrifício para salvar inocente criatura condenada sem provas ao suplício do circo violento.
Décio sabia que podia atender ao pedido de Cláudio, ajudando aquela família.
No entanto, não desejava comprometer o trabalho de difundir a Boa Nova confessando-se cristão ao romano importante que lhe convocara a ajuda, para que não se visse destruindo ou pondo em risco aquilo que, ainda, deveria produzir muito fruto.
Depois de pensar e orar com sinceridade, viu-se tocado por luminosa ideia, plantada em sua alma pelo carinho de Zacarias.
- Sim, isso é possível! - falava eufórico para si próprio.
Aquela criatura poderá ser usada na própria obra, afinal, há trabalho para mulheres, abastecendo de água os operários e cuidando dos afazeres mais leves, organizando e limpando as coisas.
Eu me responsabilizarei pela sua protecção e saberei preservá-la dos ataques mais baixos de homens sem carácter.
Se necessário, arrumarei pessoa que possa cuidar de seus filhos para que ela trabalhe.
Sim, acho que essa é a melhor solução.
Quando o dia propiciou o regresso de todos às actividades regulares junto ao grande templo, Décio solicitou a Cneu que informasse seu superior de que ele precisava lhe falar sobre o assunto da véspera.
Não tardou para que Cláudio o convocasse ao diálogo reservado.
- E então, Décio, o que tem a me dizer?
- Bem, meu senhor, por tudo o que pude pensar, acho que consegui uma maneira de ajudar a pessoa, sem levantar suspeitas de sua intervenção.
- Pois então, fale logo - disse Cláudio, demonstrando ansiedade e falta de tempo.
E então Décio lhe expôs o plano de convocar a jovem para trabalhar nos serviços gerais daquela obra, sob a sua protecção directa, o que lhe permitiria receber um salário que compensasse a perda da renda proveniente de esmolas ou outras actividades pouco decentes.
- Mas como vamos fazer para que ela aceite o trabalho? - perguntou o administrador, procurando dar contornos reais para a execução daquele plano.
- Ora, Senhor, é muito fácil.
Eu mesmo posso me dirigir ao local onde ela se coloca como pedinte e começar um diálogo para dizer-lhe que conheço um lugar que está precisando de mão de obra feminina e que pagam bem.
Algo a que ela se veja interessada e que não levante suspeitas quanto à sua intervenção directa.
Perguntarei se não seria melhor trocar os incertos recursos que se consegue com a esmola por um salário que lhe seja constante, por um serviço que ela mesma possa executar.
- É, Décio, acho que isso pode dar certo.
E pelo que vejo por aqui, não faltará alguma coisa para ela fazer.
Se ela morder a isca, desejo que você informe que estará ligada directamente à minha supervisão, sem que se refira ao nosso plano para ajudar o pequeno menino e seus irmãos.
- Pode ficar tranquilo, meu senhor.
A sua solicitação é lei para o meu silêncio.
- Está bem, então, Décio.
Hoje mesmo você pode sair mais cedo para concretizar suas tácticas, levando à mulher a proposta para o trabalho.
Estendeu a mão e tal era o seu contentamento, que Décio sentiu-se com suficiente liberdade para corresponder-lhe ao cumprimento, agradecido pela confiança e pelo gesto de fraternidade que Cláudio demonstrava.
Informado do local onde a mulher se prostrava, em bairro sumptuoso e importante, a pedir ajuda na companhia de três desventuradas crianças, Décio deu prosseguimento à estratégia.
Vestido de maneira simples como sempre, seus passos determinados levaram-no ao local onde, de longe, pôde vislumbrar o cortejo da desgraça projectado sobre a laje do piso, ao abrigo de uma sombra que atenuava o sacrifício de pedir e o calor das próprias crianças.
Tomou a direcção do grupo a passos lentos, preparando seu espírito através da oração para que tudo saísse como o planejado.
Força poderosa o abastecia e electrizava seu coração que, acelerado, lhe dizia da importância daquele momento na trajectória de todas aquelas almas.
- Uma esmola, ó generoso senhor - escutara Décio ao passar o mais perto possível do grupo, mas à distância suficiente para não denunciar seu interesse em ajudá-lo.
Era a voz da pequena Lúcia que se erguia, obedecendo os ensinamentos de Serápis, na tentativa de seduzir os passantes.
Mais do que isso, a pequenina criança se dirigia às pessoas e as agarrava pela barra da vestimenta, como a tentar chamar ainda mais a atenção dos indiferentes para as desditas de sua família.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 12, 2014 10:16 pm

Assim que Lúcia se dirigiu a Décio, o servidor de Jesus se viu convocado pelas mãozinhas infantis a interromper a própria marcha e voltar-se para o diálogo com a pequena.
Vendo que o homem parará a caminhada e se sentindo vitoriosa no seu intento de pedir ajuda para aquela a quem se via ligada como se fosse sua mãe verdadeira, Lúcia apontou para o pequeno grupo abrigado à sombra e disse:
- Senhor generoso, eu não peço ajuda para mim, que tenho saúde e posso andar.
Peço que ajude meus irmãozinhos. Um é cego e doente e o outro não tem os braços desde que nasceu.
Se o senhor quiser ver com os próprios olhos, venha até aqui...
A palavra fácil de Lúcia parecia que lhe era soprada por lábios invisíveis, tal a naturalidade com que eram proferidas.
Era um convite irrecusável para quem desejava, efectivamente, ter sido convidado para aproximar-se.
Décio, no entanto, fez-se de desacreditado, respondendo, com carinho:
- Ora, menina, não é possível existir tanta desgraça junta assim como você está falando. Isso é exagero seu para me tomar alguns trocados.
E vendo que o homem não acreditava em sua palavra, ferida pela sua descrença e recebendo as palavras de Décio como uma consideração de desonestidade de sua parte, Lúcia controlou o choro e respondeu ao desconhecido:
- O senhor pode até não dar nenhuma moeda para nós, mas não diga que estou mentindo sem, antes, ver a nossa realidade - falou a pequenina em tom tão triste e abatido que Décio, sensível por natureza, se sentiu um monstro ferindo assim tão sofrida criança.
- Está bem, menina, eu quero ver para acreditar em você.
Agarrando o homenzarrão pela ponta dos dedos, Lúcia arrastava-lhe o corpo pesado até o local onde estavam os seus.
- Mamãe, mamãe - gritava a pequena criança de quatro anos, aproximadamente - veja, mamãe, este homem veio nos conhecer...
Chamada insistentemente pela menina, Serápis procurou ajeitar-se e colocar os filhos bem à mostra, como forma de apresentar bem a "mercadoria", com a finalidade de sensibilizar o transeunte e, com isso, conseguir valores um pouco mais significativos.
Assim, Lúcio e Demétrio foram expostos em toda a nudez que permitisse a Décio constatar a sua condição de infelizes.
Assim que chegou, Serápis saudou o visitante, dizendo:
- Bondoso patrício, eis aqui a nossa triste verdade.
Tenho aqui meus dois filhos pequenos nestas condições de dor e miséria e, não bastando esta condição que o senhor pode ver, tenho um outro ainda mais infeliz, que não tenho condições de trazer aqui.
Em verdade, Serápis não desejava dizer que explorava o outro colocando-o na rua para pedir esmolas também, aproveitando-se de seu grotesco estado que, por si só, já era um discurso sem palavras ao coração dos menos indiferentes.
- Pelo que vejo, minha senhora, deve ser muito dura a vida de todos vocês.
Estas duas crianças feridas nas funções mais importantes a dificultar-lhes o desenvolvimento da própria existência, além de uma terceira, em piores condições, representam desafio que parece ser maior do que as forças de qualquer mulher ou de qualquer bela criança como esta menininha simpática que me obrigou a vir até aqui.
Observando o interesse espontâneo daquele homem que parecia simples e bom, Serápis animou-se a falar de suas desgraças.
- Sim, meu senhor.
Não sei como tenho suportado.
Creio que só o Amor de Lúcia e a vontade que tenho de matar o pai destas outras crianças é que me mantém viva.
- Como assim? - perguntou Décio, surpreso quanto à informação e desejando permitir que Serápis desabafasse.
- Sim, meu senhor, acho que é o Amor misturado ao grande ódio que sinto que me mantém as forças, porque não fiz estes filhos sozinha e, para minha infelicidade, fui relegada à condição miserável em que me encontro, quando o progenitor verdadeiro de Lúcio e Demétrio é um homem poderoso e rico que, de maneira egoísta, nos deixou assim que constatou os aleijões dos próprios filhos.
Não sei a que deus recorrer que seja suficientemente mau para perseguir esse projecto de homem mal resolvido, que não se condói em deixar sua família exposta na rua, sem qualquer auxílio.
Procurando entender melhor sem desejar parecer curioso demais, Décio arriscou:
- Mas não haveria meios de recorrer aos magistrados para solucionar este problema?
Afinal, se ele é pai...
- Sim, meu bondoso senhor, mas é que para a lei estes filhos não são dele e sim de outro homem, talvez o único homem decente que eu encontrei e que, desinteressado, tentou me ajudar, dando-me um emprego no palácio daquele que odeio tanto.
- Agora é que estou mais confuso ainda - respondeu Décio, interessando-se pela sua história.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 12, 2014 10:17 pm

- Bem, meu senhor, nos encantos de mulher e nos interesses de homem, apaixonei-me pelo patrão que era infeliz com sua mulher insuportável, no que fui correspondida por ele, interessado em ser feliz ao lado de outra que lhe preenchesse os sonhos e lhe garantisse a prole de varões que perpetuassem o seu nome e a tradição de sua família.
No entanto, como o senhor pode ver, pertencia à classe dos miseráveis que, apesar de terem um corpo ou um rosto bonito, não deixam de ser miseráveis.
Assim, interessado em me manter como sua propriedade, o patrão apaixonado construiu um pouso de amor onde passamos a nos encontrar e onde fiquei grávida.
Tudo ia razoavelmente bem quando, por um desses infortúnios do destino, sua esposa morreu, ao que parece, vítima de veneno poderoso.
Assim, nessas condições, ficamos ainda mais impossibilitados de nos unir já que poderia recair sobre nós toda a acusação de empenamento.
A filha pequena da primeira união, esta menina adorável que o trouxe até nós, agarrou-se a mim e eu a ela, sem uma explicação para tamanho apego e, por isso, adoptei-a como filha do coração, na certeza de que isso também facilitaria a manutenção de nossa venturosa relação de amor.
Pelos planos de Marcus, em face das suspeitas que poderiam pesar sobre mim ou sobre nós, levei ao conhecimento dos que investigavam o crime que uma das servas de confiança da senhora assassinada era detentora de um frasco de veneno e que bem poderia ter sido ela aquela que o precipitara na água que servira como gole fatal.
Acabou-se descobrindo o frasco do veneno, cujas características eram iguais, nos efeitos, às do veneno usado para matar a esposa de Marcus.
A moça foi presa e o viúvo tudo fez para condená-la, visitando juízes para ver-se desforrado em seu orgulho ferido com a punição da serva cujas circunstâncias apontavam para a culpa flagrante.
Tudo ia bem quando, em meio a todo turbilhão das festas, as dores do parto me visitaram e Marcus fora convocado para receber os filhos que tanto desejava.
Chegara aturdido, contrariado, como que pressionado por forças terríveis, mas, ainda assim, tudo esqueceu ao escutar o choro dos filhos que seriam a nossa felicidade para sempre, mas que foram, em realidade, a causa da nossa desgraça.
Tão logo constatou a condição de ambos, não lhe foi suficiente o filho de ambos serem homens como ele tanto sonhara.
Serem cego e aleijado foi a nossa sentença cruel, condenatória som defesa, afastando o amante apaixonado e transformando-o em miserável fugitivo.
A princípio nos ajudava com alimentos, o que nos permitia uma vida menos indigna.
Depois, não sei por que, nem isso continuou a nos ser oferecido.
Venho todos os dias até aqui porque naqueles muros - disse Serápis indicando vasta construção não muito distante deles - encontra-se o palácio que me serviu de abrigo por algum tempo e serve de moradia para esse infeliz.
Já cheguei à humilhação suprema de bater às suas portas a pedir informações sobre Marcus ou, ao menos, um auxílio para nossas misérias, quando fui informada de que ele se ausentou em viagem, há mais de dois anos e que, pelo que me disseram, nada mais tinham para me oferecer.
Foi então que descobri que todos pensam que estes são filhos de Licínio, o homem que um dia revelou seu amor por mim, mas que desprezei, em meu egoísmo de mulher, desejosa de maiores conquistas.
Ao que parece, Licínio apresentou-se perante o magistrado que julgaria a serva acusada e, para libertar a moça, inventou mentiras que diziam ser ele próprio, o culpado pelo envenenamento.
Assim, não sei por que, não sei se para dar mais peso à sua invenção ou se para livrar a mim e a Marcus da suspeita de assassinato, Licínio assumiu a paternidade dos filhos perante o juiz que constatou a minha gravidez e tomou por verdadeiras as suas afirmações, condenando-o em lugar da serva, que mandou libertar e que, desde esse dia, fugiu e não deixou nenhum sinal.
A partir daí, meu senhor, tenho que me manter e dar de comer a todos estes desditosos infelizes a quem me sinto ligada por laços de amor e por sentimentos de repulsa que não consigo medir quais são os maiores.
Somente a pequenina Lúcia é aquela que me dá vontade de seguir lutando e que, podendo eu tê-la apresentado à porta do palácio de Marcus como a filha legítima da primeira união, não o fiz e não o faço porque não desejo me ver dela afastada.
Fico por aqui, à espera da generosidade dos que passam e na esperança de encontrar Marcus a fim de que ele veja a que nos reduziu e sinta dor em seu coração indiferente e mau.
Interrompeu o relato para que pudesse secar duas lágrimas que escorriam, dos olhos belos e tristes que denunciavam a dor íntima e a amargura de um ódio silencioso e profundo que nutria.
Lúcia tinha se afastado à cata de outros passantes e só restavam aqueles dois desditosos seres, Lúcio, choroso e cego e Demétrio, sem os braços.
O silêncio denunciava a emoção diante daquela dor familiar.
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