LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 5 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 17, 2014 10:57 pm

Enquanto isso, Décio continuava a prestar seu auxílio humilde aos necessitados do navio, seja com a entrega de suprimentos aos condenados remadores, seja com o tratamento de suas feridas, nos momentos em que descansavam, tanto quanto procurava conquistar a simpatia de outros romanos subordinados do capitão, para que também eles se sentissem bem atendidos e abrissem seus corações para a mensagem de um Jesus que tratava das enfermidades espirituais de cada um, não importava fossem romanos, escravos, autoridades ou exilados, ricos ou pobres.
Como o próprio Cristo afirmara, havia vindo para os doentes e não para os sadios.
Enquanto a noite caía, quente e lamentosa, todos os tripulantes se acomodavam para o repouso, valendo-se Décio da oração para que, invocando a protecção de Jesus, pudesse saber o que fazer naquela hora de decisão do destino de duas crianças.
O silêncio do barco, que repousava sereno em pequeno porto acolhedor ao longo da rota marítima que lhe cumpria percorrer, era a moldura para que sua alma se entregasse ao colóquio singelo e espontâneo com aquele Mestre amigo, que sempre recebia suas orações com carinho e demonstrava seu devotamento constante.
E em meio da serenidade que se seguira após a prece, brando sono invadiu o pedreiro exilado, propiciando que seus olhos espirituais se abrissem em outra dimensão da vida, a visualizar figuras flutuantes e luminosas quais serafins devotados que tivessem escutado suas súplicas e, deixando seus tronos safirinos, se projectassem no pantanal de suas vibrações.
Emocionado com a solicitude daqueles espíritos, Décio se prostrou diante das alvinitentes entidades que, como resposta de Jesus, ali se apresentavam ao seu espírito lúcido, enquanto seu corpo repousava em um canto desconfortável do barco.
Aproximando-se, uma delas se fez escutar, amistosa:
- Levante-se, meu filho Décio. Somos apenas seus irmãos e todo devotamento de sua alma deve ser guardado para Aquele a quem tudo devemos.
Era Zacarias, com seu coração generoso e humilde, a estender as mãos luminosas para o valoroso servidor do Bem, como a transformar em acção de reerguimento as palavras que acabara de proferir.
Junto dele estavam igualmente luminosos e inspiradores, Lívia e Simeão, a lhe sorrirem serenos e estimulantes.
Acercando-se o grupo, deixaram o ambiente da nau física e projectaram-se no éter, transportando Décio para um local onde já se encontravam o capitão, os dois meninos e o próprio executor das determinações de Marcus, todos em espírito, a fim de que se fizessem entender de forma conjunta.
Dentre todos, o mais lúcido era o próprio Décio, ainda que envolvesse a todos uma branda claridade que lhes propiciaria serenidade diante daquele entendimento.
Perante a pequena assembleia, Simeão tomou a palavra, indicado por Zacarias para poder se expressar aos seus corações.
. - Filhos queridos, estamos em missão de paz.
Cada um de vocês é uma alma que o Pai criou e conhece como a palma de sua mão.
Seus destinos estão interligados aos de todos os homens, tanto pelo Bem que lhes compete fazer quanto pelo Mal que efectivamente lhes ofereçam.
E aqui estamos para reverenciar o grau de bondade que há em cada um de vocês para que, ao voltarem ao seio da carne, possam saber escolher segundo a sabedoria que vê o futuro promissor e não o passado de erros a serviço de um presente de interesses.
Eis aqui, diante de seus olhos, dois espíritos sofridos, infelizes na vida, perseguidos pelos seus próprios equívocos.
Demétrio, sem os braços, e Lúcio, sem a visão e sem o equilíbrio da saúde. São seres que desde o berço conheceram apenas o amargor da fome, da humilhação e das privações morais.
Jamais encontraram a mão generosa de um pai que lhes desse carinho físico e, mesmo a mãe humana outro recurso não possuía a não ser expô-los na via pública para que, através da comiseração dos passantes conseguisse alguma moeda com a qual comprava a própria sobrevivência.
Agora, foram afastados até mesmo da mãe, única protectora que se ocupava deles.
Olhem para estes dois infelizes, meus irmãozinhos.
Pensem consigo mesmos, se eles fossem seus próprios filhos, o que vocês fariam?
Mais do que isso, e se eles fossem vocês mesmos, infelizes desde o útero materno, condenados ao exílio e à morte cruel no meio das incertezas da vida?
Ante a pergunta sincera e certeira, abaixaram a cabeça os que escutavam, como a se posicionarem por primeira vez na condição dos próprios infelizes.
A brandura das palavras de Simeão era tal que não havia nenhum laivo de acusação ou de censura em seus lábios.
Apenas o carinho de um educador de almas que se valia de seu afecto verdadeiro para que os alunos imaturos pudessem pensar no que estavam realizando.
Continuando, depois de breve pausa, Simeão afirmou:
- A Bondade Divina está se ocupando de todos vocês porque está também se ocupando do destino destes dois infelizes no mundo.
Você foi escolhido para ser o responsável temporário por conduzi-los, Tito, porque Deus conhece a sua dor íntima e a deseja ajudar, fechando feridas produzidas por abandono no passado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 17, 2014 10:57 pm

Deus conhece o peso de sua consciência por haver relegado ao abandono pobre mulher que se vira engravidada no relacionamento que ambos mantiveram.
Seu receio diante da paternidade fizera daquela situação um tormento para seu futuro de homem sem compromissos, levando-o a fugir sem explicações.
No entanto, seu coração e sua mente, muitas vezes, no silêncio de suas ideias e sentimentos, se perguntam o que deverá ter acontecido à Sabina, a jovem que se entregou aos seus argumentos sedutores.
E enquanto ia falando sobre isso, o espírito do acompanhante dos dois meninos infelizes, aqui identificado como Tito, ia se vendo revelado no mais íntimo de seus erros, como a passar a temer a superioridade daquele ser que lhe falava ao coração.
Como é que estes erros tão bem guardados lhe eram apresentados assim, tão claros e sem qualquer equívoco?
Suas lágrimas escorriam, entre a vergonha diante da Verdade e o encontro consigo mesmo, depois de décadas de fuga, imaginando que isso seria suficiente para livrar-se da responsabilidade moral assumida com o abandono da jovem grávida.
- Olhe para estas crianças, Tito, como o filho de Sabina, aquele que você ajudou a colocar no mundo sem que tivesse tido a coragem de criar.
Pense que estes poderiam ser os seus e que, efectivamente, de alguma sorte, como filhos de Deus e irmãos uns dos outros, na pessoa destas crianças desditosas, você estará dando o primeiro passo no sentido de obter o perdão dos próprios erros no tribunal inflexível da consciência.
Você haverá de encontrar Sabina um dia e, nessa hora, será necessário ter alguma coisa para apresentar diante da realidade da fuga para que seja levado em consideração como forma de arrependimento.
Não lhes faça mal, nem prejudique estes inocentes que nenhuma maldade lhe fizeram.
Mais do que isso, eles representam a sagrada oportunidade de recuperação diante de seus próprios erros.
Um dia você pretenderá que seu filho perdido o aceite como um verdadeiro pai, apesar de sua covardia inicial.
No que você fizer por estes dois meninos estará a chave para que a sua consciência o perdoe e que seu filho o reconheça como verdadeiro pai.
É isso tudo quanto lhe pedimos.
Ajude-os já que o destino que eles mesmos escolheram se tem apresentado difícil na solidão que precisarão enfrentar doravante.
Tito, em espírito, chorava, em silêncio.
Voltando-se para o capitão, Simeão continuou, humilde e fraterno.
- Generoso e correcto capitão, em cujas mãos Deus colocou o destino de tantas pessoas, que o Bem seja sempre o horizonte que o guie e o porto seguro de seu repouso.
Querido filho Caio, a bondade Superior escolheu o seu barco como o seguro veículo para servir de transporte a fim de proteger devidamente os dois infelizes que se encontram sob sua responsabilidade.
Adiante de sua nau um farol luminoso sinaliza a todas as forças trevosas que conspiram contra o Bem de que será inútil qualquer investida e que o destino prevê a necessidade de que nenhuma ocorrência infeliz suceda com a embarcação.
Isso também é uma conquista de seu coração sofrido que buscou o refúgio no seio do oceano para fugir do drama moral da traição afectiva, a mesma que o levou à condição de assassinar a própria esposa e o filho que lhe nascera da relação adúltera.
Por mais que seu sofrimento tenha procurado esquecer a desgraça e a atitude atroz mergulhando o coração aflito nas vagas distantes do ambiente devasso daquela Roma de enganos e tragédias quotidianas, sua consciência ainda vislumbra o rosto desesperado da mulher a suplicar pelo destino do filho recém-nascido, ainda mais do que pelo seu próprio destino.
Suas lágrimas abundantes a pedirem perdão, a solicitarem a sua compaixão para sua fraqueza, confessada diante de seus olhos como alguém que desabafa depois de longo tempo de sofrimento, esperando poder contar, senão com a compreensão da própria vítima, ao menos com a sua tolerância diante do erro moral grave.
E, no entanto, inócuas foram todas as lágrimas diante do brilho do ódio e da ruptura de todos os sonhos de marido apaixonado.
Lavínia, em desespero, praticamente se atirara diante do punhal ensanguentado com o qual você havia matado, momentos antes, o pequeno inocente que viera ao mundo com o pecado de ter sido gerado por um amante irresponsável, invocando as prerrogativas de marido ultrajado no ambiente do próprio lar.
Ao se revelarem tais tragédias, o coração espiritual de Caio batia descompassado, como se julgamento cruel lhe fustigasse a alma, apesar de ter conseguido a escusa de todos os juízes terrenos que lhe abonaram a conduta, graças igualmente, às influências de amigos e homens igualmente ultrajados, unidos sob o signo do mesmo sofrimento, a culparem as mulheres pela devassidão e pela derrocada dos costumes daquele tempo.
Desnudado diante de todos pela palavra carinhosa de Simeão, que acariciava suas mãos trémulas enquanto olhava em seus olhos durante a revelação que fazia, Caio não tinha para onde fugir nem onde se esconder de si próprio.
Chorava de vergonha e parece que aceitava o sofrimento como uma justa paga pelo peso de ter tirado a vida de duas criaturas, uma a quem amava profundamente e outra que era de todo inocente de qualquer culpa e indefeso de qualquer agressão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 17, 2014 10:58 pm

- Meu filho, para que sua consciência inicie o processo de reerguimento, entenda que estes dois infelizes representam as suas duas vítimas, aqueles que, agora, estão sob a sua protecção e podem receber de você mais do que uma simples garantia de transporte.
No auxílio que puder lhes prestar encontra-se o primeiro degrau de seu reerguimento no Bem, porque dia virá em que terá que encontrar-se com Lavínia e com o pequeno ser que não pôde defender-se.
Nessa ocasião, de seus erros nefastos você poderá apresentar algumas flores que nasceram de seu sofrimento e de seu arrependimento, a fim de oferecer a estes dois seres o início da sua reparação através do Amor.
Só lhe pedimos que ajude Décio em tudo o que se fizer necessário para que estes dois pequenos infelizes possam seguir sua trajectória de crescimento no mundo.
Caio baixou a cabeça como quem não tem o que responder nem como negar o que lhe estava sendo solicitado, em espírito.
Enquanto isso, Décio seguia o colóquio, emocionado diante de tanta Bondade e Sabedoria no Amor que conhecia nossas mazelas, mas não se fazia indiferente, entregando-nos aos nossos próprios desatinos, esse Amor que tudo fazia para que nos tornássemos melhores, ajudando-nos uns aos outros apesar do que já tivéssemos feito de errado, um dia, em nossas vidas.
Simeão deixou Caio junto a Tito e aproximou-se de Décio a quem beijou a testa num gesto paternal dizendo:
- Filho, trago-lhe este beijo da parte de dois seres que muito o amam:
Policarpo, o paizinho que o adoptou na miséria de suas dores...e...
Jesus que nos adoptou a todos, pelo bem que você aceitou realizar na vida de muitos infelizes.
A emoção invadiu o coração de Décio à lembrança de Policarpo e à menção da solicitude de Jesus que, tão ocupado com tantas coisas, se permitia lembrar dele, tão indigno servidor na Terra.
Trazido pelas mãos de Simeão até a proximidade dos dois meninos em espírito, um pouco confundidos pelo inusitado da reunião e pela condição de jovens no corpo físico, Décio ouviu do ancião luminoso as inesquecíveis palavras:
- Meu filho, Jesus lhe confia um tesouro inestimável nas pessoas destes dois infelizes. Zacarias falará com você.
E olhando para Zacarias, solicitou que o antigo sapateiro se dirigisse a Décio naquele instante:
- Sim, meu filho - falou o mencionado espírito com carinho.
Estes são dois tesouros cuja preciosidade vai além de qualquer aparência.
Somos todos responsáveis uns pelos outros na ordem do Universo, mas, entre os que erram, as suas vítimas se tornam mais responsáveis por eles do que os seus cúmplices ou sócios no crime.
Você foi escolhido para cumprir parte desta jornada terrena como o zelador de um património muito caro ao nosso querido Mestre.
Jesus pede seu carinho, seu sacrifício, sua coragem, sua renúncia em favor destes dois infelizes, Décio.
Estaremos sempre ao seu lado, mas precisamos levar a sua resposta directamente ao coração de nosso Mestre.
E sem entender a profundidade daquele sentimento que nutria em sua alma, envolto pelas lágrimas de gratidão, Décio ajoelhou-se diante dos espíritos deformados que estavam à sua frente e, lentamente, sem dizer qualquer palavra, começou a beijar os olhos cegos e o ventre machucado de Lúcio, tanto quanto os pequenos cotos que Demétrio exibia em seu perispirito mutilado.
E cada ósculo era como que um jacto de luzes rutilantes que se projectavam sobre as deficiências de ambos, lavados pelas gotas que lhe escorriam dos olhos.
Sem dizer qualquer palavra, até porque não tinha condições de fazê-lo, Décio olhou para Zacarias que, igualmente emocionado, exclamou:
- Bendita a sua generosidade, meu filho.
Que Deus o ilumine e, doravante, esteja sempre ao lado destes dois irmãos, custe o que lhe custar.
A cena comovedora foi muito marcante naquele instante e, logo mais, todos se achavam reconduzidos ao ambiente pobre do barco, com o espírito preparado para as ocorrências dos dias que viriam pela frente.
As Forças do Bem estavam agindo para amparar a caminhada de cada indivíduo perante seus próprios compromissos de evolução, ora se valendo da culpa, dos crimes do passado, ora utilizando a disposição para o Amor que cada um já tenha desenvolvido como ideal de serviço e de renúncia para a glória da implantação do Reino de Deus e da fraternidade verdadeira no coração dos homens.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 17, 2014 10:58 pm

22 - Jornada que prossegue

Ao amanhecer do novo dia, todos se encontravam de volta ao corpo físico e, em cada um, a experiência da noite havia repercutido de alguma forma especial, fazendo com que todos os envolvidos naquele drama se dispusessem a meditar sobre as palavras amorosas de Simeão e as lembranças que elas suscitaram em seus íntimos.
Por mais que todos estejamos fugindo dos erros já cometidos, eles se encontram impregnados em nossa consciência, de onde só os conseguiremos retirar à medida que refizermos os caminhos errados e nos dispusermos a agir de maneira diversa daquela que nos levou à queda.
Por isso, nas circunstâncias difíceis da vida, todos podemos encontrar o momento adequado para que nossos equívocos comecem a ser reparados de alguma maneira, ainda que o seja com outra criatura que não aquela que tenhamos ferido ou prejudicado.
Uma vez que o erro é fruto das limitações de nosso carácter e dos defeitos de nosso espírito, a necessidade de correcção impõe que nossa conduta seja diferente e nova, independentemente de ser em relação à pessoa que ferimos ou a terceiros.
Se nós só melhorarmos corrigindo nossa conduta em relação àquele que ferimos, mas continuarmos a fazer as mesmas coisas com os demais, isso não é melhora, mas, sim, fantasia de melhoria.
Um dia, fatalmente, estaremos diante das vítimas que prejudicamos e, tendo exercitado no Bem, no esforço que o arrependimento emprega para a correcção de nosso carácter, ofertaremos a eles não apenas o gesto de recomposição do prejuízo que foi produzido por nossa conduta errada, mas, sobretudo, apresentar-lhes-emos a nova escultura da nossa alma, agora modelada não só para lhes devolver o que lhes tomamos, mas para, também, enaltecer lhes o sacrifício de nos terem suportado tolerando nossas mazelas.
Por isso, querido leitor, não espere ser bom apenas para aqueles que foram feridos por seus actos.
Às vezes, estão longe de você, às vezes estão intransigentes, na condição de vítimas feridas, às vezes já partiram para outro lugar ou outra vida...
Esforce-se por ser Bom para todos os que são seus irmãos e que poderiam ser suas novas vítimas potenciais.
Mais cedo ou mais tarde, aquele que é seu credor será trazido à sua presença pelas forças da vida a fim de receber de volta aquilo que tiramos, o Bem que não fizemos, o carinho que negamos, a saúde que exploramos, a esperança que matamos, o alimento que não oferecemos, o lar que lhe furtamos, os sonhos que desfizemos, o amor que não demos.
Se nesse dia você tiver exercitado a bondade para com todos os que se aproximaram de sua jornada, fatalmente você não deixará passar a oportunidade de acertar, confirmando as experiências no Bem nas quais você foi desenvolvendo sua capacidade de superar-se e de ajudar os que sofrem.
Assim, Tito, Caio e cada um de nós possui equívocos que nos compete enfrentar através da doação pessoal a qualquer criatura, como se ela fosse aquela que nós abandonamos, que nós matamos, que ferimos, traímos ou esquecemos.
Comecemos a consertar o erro sem cogitar daquele a quem nós serviremos.
Em realidade, nossos equívocos não foram produzidos contra uma pessoa, apenas.
Todos os erros são uma agressão à Bondade de Deus e, no fim das contas, é a Deus que deveremos apresentar nossa alma melhorada pelo esforço que aprendemos a fazer a fim de consertar o que estragamos, sem importar qual é o destinatário físico de nossos empenhos.
Ao despertarem no dia seguinte, nossos personagens, como dissemos, haviam recebido do plano espiritual elevado, um chamamento franco para que seus espíritos estivessem atentos no aproveitamento das oportunidades de resgatarem as próprias faltas no serviço aos aflitos, e, entre eles como entre nós, não existem inocentes ou almas que nunca tenhamos nos equivocado.
Assim, tão logo as actividades náuticas se viram retomadas, no afastamento do porto amigo que os agasalhara durante a noite, Décio se pôs a trabalhar em suas funções que, se já produziam reconhecimento nos demais oficiais e membros da tripulação romana, que dizer, então, junto aos pobres escravos condenados a remar até o extenuar das próprias forças.
Tito e os meninos foram os primeiros a receber o líquido fresco.
Nesta manhã, como durante o trajecto, os dois jovens se mantinham sonolentos por força do remédio narcotizante que lhes vinha sendo ministrado pelo enviado de Marcus, para que não se manifestassem ao longo da viagem, atrapalhando os planos de seu infeliz progenitor.
No entanto, naquela manhã, assim que chegou para servir às suas necessidades, Décio pôde observar que Tito se mantinha menos arrogante ou arredio, ao mesmo tempo em que os jovens pareciam menos apáticos ou sonolentos.
Em realidade, tão logo se acercou para lhes oferecer água, depois de ter sido autorizado por Tito que os observava à distância, sem imaginar que Décio os conhecia desde Roma, Demétrio, mais lúcido, buscou fixar com mais clareza a face do generoso homem que os servia, como a tentar fazer-se entender com ele, demonstrando certa intimidade, no que foi contido pela palavra sussurrada de Décio, que lhe pediu silêncio sobre aquele momento.
Percebendo a distracção de Tito, que se encontrava caminhando pelo convés da embarcação para se refazer da noite dormida desconfortavelmente, o ajudante de bordo falou-lhe, rápido:
- Sim, Demétrio, sou seu amigo Décio.
No entanto, finja que não me conhece para que eu possa ajudá-los como pretendo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 17, 2014 10:58 pm

Tenha calma. Vocês não estão mais sozinhos.
Estarei com vocês.
Fique calado para que tudo dê certo.
Algo perturbado em face das condições em que se encontravam, sem entender muito o que se passava e em que local estavam, uma vez que vinha de um longo sono, Demétrio moveu a cabeça em um sinal afirmativo enquanto sorvia o líquido que Décio lhe oferecia à boca, ao mesmo tempo em que Lúcio, escutando as mesmas advertências, ingeria o conteúdo de pequena caneca tosca.
Logo depois, ao dirigir-se à cabine do capitão, foi por ele recebido de maneira cortês e ansiosa, demonstrando o desejo de se entender com o aguadeiro.
- Bom dia, Décio - falou Caio, sorridente.
- Bom dia, meu senhor - respondeu, respeitoso.
- Sente-se aí para que possamos tratar daquele assunto.
Tomando um assento rústico que havia nas estreitas acomodações do comandante, Décio se fez todo ouvidos.
- Estive pensando sobre tudo o que conversamos no dia de ontem e, ao amanhecer de hoje, uma ideia luminosa parece que despertou comigo.
Como você me informou, os meninos serão desembarcados em Narbonne e ali ficarão ao desamparo, já que o seu responsável se afastará de regresso a Roma por via terrestre, não é?
- Sim, meu senhor, isto é tudo o que escutei do próprio Tito.
- Pois bem.
Estes meninos, ainda que já crescidos, não podem ficar abandonados no porto sem que ninguém os proteja ou vele por seus destinos.
- Também concordo meu senhor...
- Assim, Décio, como você é o único que se importa com eles, e como não tenho nenhum parente ou conhecido em Narbonne, não vejo outra saída a não ser fazer com que você se coloque igualmente em terra para que seja aquele que os ampare.
Tenho comigo certas economias que transferirei às suas mãos a fim de que não passem privações e possam adquirir alguma pequena vivenda onde estejam seguros.
Entendendo o devotamento espontâneo do comandante, Décio não deixou de sentir certa emoção no espírito, ainda ligado às forças superiores que os haviam envolvido durante o repouso do corpo.
Todavia, lembrou-se das ordens recebidas directamente do Imperador Adriano para que o desembarcasse nas terras espanholas, não sendo correcto romper, de sua parte, as determinações do governo romano.
- Mas, meu senhor, suas ordens são expressas em me entregar no destino pré-fixado.
Não acho que seria possível fazer-me ficar no meio do caminho sem que isso viesse a complicar sua situação no comando desta nau.
Admirando-se da preocupação de Décio, Caio sorriu e lhe disse:
- Bem, meu amigo, isso eu também já pensei e, como lhe falei, a ideia que me nasceu nesta manhã, como o Sol que se levantou no horizonte, foi completa e atendia a todas as necessidades.
- Como assim, comandante?
- É verdade que preciso cumprir as determinações legais de Adriano e sua corte de interesseiros e aventureiros, oportunistas e ladrões.
No entanto, existe uma determinação nas leis náuticas que autorizam o comandante de uma embarcação a desprezar no mar ou no primeiro porto onde isso for possível todo indivíduo que se apresentar doente ou que tenha aparência de enfermidade, informando os superiores sobre o ocorrido para que isso fique nos registos competentes e se possa considerar cumprida a ordem.
Dentro de minhas condutas, muitas têm sido as experiências nesse sentido e, por questão de consciência, sempre evitei atirar ao mar as vítimas de qualquer doença, como costumam fazer certos capitães da esquadra romana, indiferentes.
O espectáculo é muito triste e doloroso para toda a tripulação.
Assim, inúmeras vezes fundeei o navio ao largo do continente quando encontrava pessoas enfermas com o potencial de espalhar a peste a todos os que se encontrassem à bordo e, valendo-me de pequena embarcação, enviava o desditoso à terra, onde o deixava com alguma provisão para que não perecesse ao relento e pudesse dar destino aos seus incertos dias do futuro.
Por isso, não me será difícil informar que, com relação à sua pessoa, vi-me forçado a deixá-lo em terra, precisando, no entanto, contar com o seu sigilo e a sua colaboração para que não regresse à Roma a fim de que isso não prejudique nosso intento em benefício dos pequenos.
Entendendo o que isso significava, Décio o escutava em silêncio, tentando articular suas ideias de forma a planificar sobre os planos do próprio comandante.
Parecia-lhe que essa era a melhor e, a princípio, a única solução que poderia ser adoptada diante do drama dos dois meninos, relegados à miséria e ao abandono.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:20 pm

Caio não poderia ficar no porto nem mantê-los no navio, uma vez que as ordens de Tito eram no sentido de certificar-se de que os meninos ficaram em terra, o que exigiria a sua vigilância até a partida da nau, de preferência afastando-os do local onde foram desembarcados e levando-os para algum ponto do interior, longe das rotas mercantes conhecidas e que favoreceria o regresso deles à capital do mundo daqueles tempos.
Assim, Décio não via outra solução, ainda que não lhe fosse agradável a situação da mentira a que se propunha Caio.
Diante desse conflito de consciência, falou ao capitão:
- Nobre senhor, sua proposta é generosa e fala muito claramente sobre seu carácter bom e puro.
No entanto, dói-me a ideia de que se estabeleça sobre uma inverdade, ou seja, a de que eu me encontrava doente, quando todos me estão observando sadio e forte.
- Não se preocupe, Décio, até a chegada a Narbonne, pensaremos em como contornar esta circunstância.
O que me importa é que você esteja de acordo com a possibilidade de seguir sendo o tutor moral destes meninos, sem regressar a Roma para não nos comprometer caso sua volta seja descoberta.
- Ora, senhor, eu mesmo não poderia ter pensado em um plano melhor do que esse.
Estarei a serviço da causa de Jesus em qualquer lugar, sobretudo tendo comigo estes dois desventurados.
- Pois então, estamos acertados.
Conto com a sua discrição e esteja certo de que isso será um segredo nosso, e desse ... Jesus...
A referência directa fizera Décio perceber certa emoção no timbre de voz do capitão.
- Parece que o senhor se entende bem com Ele - falou, fraterno, o aguadeiro.
Poucos romanos importantes se dão ao trabalho de se referirem ao seu nome com certa consideração.
- É verdade, Décio.
Os importantes romanos estão mais preocupados com seus negócios e seus lucros, seus roubos e suas estratégias de vencer na vida. No entanto, eu carrego comigo certos pesos que me parecem ser maiores do que todo este navio e suas palavras me foram muito importantes para perceber a extensão dessa nova filosofia.
Somente os que sofreram o suficiente poderão entendê-la melhor e nela serão capazes de encontrar a linfa que ameniza a consciência pelo Bem que se pode fazer aos que sofrem.
- É verdade, meu senhor.
Suas palavras denotam grande sabedoria.
- Não é isso, Décio.
Não tenho qualquer sapiência.
Apenas, a noite me foi muito especial e meu despertar ainda mais sereno e pleno de esperanças.
Minha alma vinha se corroendo por causa de certos erros que pratiquei e que não eram do conhecimento senão de pouquíssimas pessoas, entre as quais, o nosso querido Cláudio Rufus, graças ao qual, pude me localizar à distância do cenário de minhas quedas morais, segundo o desejo de preservar minha alma das desagradáveis lembranças de minha derrocada pessoal.
No entanto, ao contacto com suas palavras, esta noite foi para mim um refrigério de esperanças na certeza de que eu mesmo possuo salvação pelo Bem que puder realizar.
E me sinto inclinado a ver nestes meninos e em você os primeiros destinatários desse impulso que me foi dado por almas amigas a fim de que, um dia, possa conquistar essa bondade que é deles, mas que poderá incorporar-se a mim também.
Deixando que o comandante desse curso aos seus desabafos pessoais, sem demonstrar pressa ou curiosidade, Décio seguia ouvindo em silêncio.
- Até ontem eu era um escravo que se fazia de livre para afastar-me de Roma e de mim mesmo.
Hoje, posso dizer que sou um homem livre, compreendendo que uma força maior me conhece e que se incomoda comigo, apesar de saber o tamanho de meus erros.
O sonho desta noite jamais sairá de minha mente e de meu coração, Décio.
Ele me transformou no homem que eu ainda não havia sido, desde que me vi envolvido pelos dramas do destino que minha vaidade ferida piorou com atitudes tresloucadas.
Sem saber que forças sobre-humanas me levaram para um local de bênçãos desconhecidas da Terra, as experiências que senti ao lado de uma luminosa alma, que me falava de coisas que pertenciam tão somente aos meus mais bem guardados segredos, foram decisivas para me fazer perceber que minha vida tem sido um constante conduzir-se coniventemente com os erros que critico, com as forças negativas pelas quais nos deixamos governar os destinos e com as mesmas falhas que temos eternizado através dos anos.
Não posso revelar a você o teor dos conselhos recebidos porquanto não os tenho gravados claramente na memória, mas, sim, incorporados à minha alma, através da necessidade que passei a sentir de fazer o Bem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:20 pm

No entanto, uma coisa posso revelar-lhe.
E fazendo com que seu interesse estimulasse o desejo de contar o teor que conseguia relembrar do sonho que tivera na noite anterior, Décio se fez mais curioso, demonstrando ser importante que o comandante falasse sobre sua experiência.
Estimulado, então, o comandante continuou:
- Não sei como saí do barco, mas senti como se alguém me levasse para o alto, como se eu tivesse asas semelhantes às gaivotas que voam suaves no céu sobre o oceano.
Quando fui trazido de volta, no entanto, a voz amiga que me conduzia me perguntou onde estava o meu barco.
E como ainda estava escura a noite, ao longe, no céu, não conseguia imaginar onde encontraria a embarcação que nos transporta.
Foi então que a voz amiga me informou para que fixasse o olhar no ponto mais luminoso que encontrasse abaixo de mim, já que era como se eu estivesse flutuando no ar.
E, em realidade, comecei a perceber que na escuridão da noite um ponto de luz se apresentava em região litorânea, pensando eu que se tratasse de alguma pequena cidade ou vilarejo que mantivesse suas luzes acesas.
No entanto, por mais tochas que ficassem acesas, sua luz não seria forte o bastante para ser observada de tão elevada altitude.
- Continue observando a luz - falava-me a voz, firme e veludosa.
E enquanto íamos baixando, ela ia se tornando mais intensa, apresentando rutilâncias especiais e multicores como nenhuma de nossas lâmpadas possui.
Um pequeno Sol começou a ser visualizado por meus olhos espantados e encantados ao mesmo tempo, quando pude perceber que essa luminosidade indicava a localização exacta do porto onde nós estávamos e, mais especificamente, da galera que me recolhia o corpo adormecido.
Emocionei-me com o fenómeno inexplicável para minha Ignorância.
Quanto mais nos acercávamos, mais vislumbrava o farol a ganhar novas formas até que, por fim, parecia representarem a escultura primorosa de duas mãos diamantinas a segurarem as madeiras da proa, como se dirigissem a nau a partir daquele ponto, sem se incomodarem com o leme.
Percebi, então, que essas mãos radiosas eram as que mantinham o navio no curso seguro, apesar de todos os meus esforços humanos para garantir o bom trajecto, isento de problemas e riscos.
Foi então que a mesma voz se fez ouvir novamente, como que testemunha vigilante de meus próprios pensamentos:
- Não, meu filho. Sua conduta correcta e competente é parte da protecção que o céu confere a esta embarcação e é muito importante que você a continue exercitando porque transportar pessoas é das funções mais sérias e valorizadas que os homens podem realizar na terra, já que, de uma forma ou de outra, estarão se expondo para dar segurança aos seus passageiros.
No entanto, - continuou a voz a me falar - Décio, estas mãos são a garantia superior pelo Bem que você esteja fazendo a todos os passageiros e, em especial, aos dois infelizes que estão entre os que você transporta.
Estas mãos se ocupam pessoalmente de você e deles, pela protecção que sua conduta têm dispensado aos que se mantêm sob seu comando e pela bondade natural de sua alma, no atendimento humano aos que se vêem sob sua responsabilidade.
Por onde você seguir, espalhando esses sentimentos, esteja certo de que esta luz o acompanhará sempre.
Visivelmente emocionado diante das lembranças, Caio não conseguia mais falar sobre o momento do regresso, enquanto que Décio, surpreso, pensava na coincidência de tal visualização, correspondente exactamente às próprias constatações quando da chegada da nau ao porto de Óstia.
Aproveitando-se do silêncio, Décio exclamou feliz:
- Graças a Deus que você pôde ver o que tenho visto desde o momento em que a galera aportou em Óstia, meu senhor. Isso é a protecção de Jesus aos nossos bons desejos, demonstrando que em seu coração há bondade suficiente para merecer a atenção do Divino Mestre. Isso não foi ilusão, meu senhor.
Eu também pensei assim quando era criança e vi, pela primeira vez, os contornos luminosos dessas mãos, cujo contacto generoso me curou para o desempenho de tarefas que, segundo suas próprias afirmativas, um dia me caberiam realizar.
E a presença delas neste momento, me indicam que estou diante do testemunho que me cabe viver, segundo a gratidão de tudo quanto recebi de suas emanações.
Visivelmente tocado pelas revelações de Décio, Caio se deixou levar pela emoção e, ali mesmo, sem se importar com a condição submissa e subalterna do exilado, pediu-lhe que lhe explicasse sobre esse Jesus tão generoso que sabia de todos os nossos problemas e se importava tanto connosco.
Foi, então, que Décio passou a lhe contar tudo quanto conhecia sobre o Divino Mestre, prometendo que lhe forneceria uma cópia dos escritos que possuía consigo para que o comandante os apreendesse pessoalmente e os copiasse durante a viagem, se o desejasse.
Mais uma vez, a sublimidade do espírito havia encontrado, no coração aflito e fustigado do capitão, a terra fecunda e preparada para que a semente pudesse ser atirada e germinasse, robusta.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:20 pm

Enquanto isso, a situação de Tito seguia entre a impaciência e as reflexões taciturnas.
Também ele havia tido sonhos incongruentes e cheios de reveladoras informações.
Em determinado momento daquele novo dia, passou a sentir que precisava livrar-se daqueles dois monstros que, desde o momento em que aceitara a tarefa que Marcus lhe propusera a troco de dinheiro grosso, parecia terem se tornado duas maldições em seu caminho.
Suas lembranças negativas do passado as quais procurava afugentar para sempre pareciam regressar lhe à mente, fixando-se na figura da moça iludida pelas suas promessas e engravidada pela sua astúcia masculina, para logo depois abandoná-la, sem apoio de ninguém, entregue à incerteza da vida.
- Por que tais lembranças, agora? - perguntava-se, irritado.
Ela também não quis a aventura, não aceitou o prazer no momento em que tudo estava agradável?
Eu não a enganei.
Ela pensava que iria me prender arrumando um filho meu, isso sim.
Mas eu não sou homem de ser enganado ou ser engaiolado como se fosse um pássaro bisonho, não...
Com estas palavras, Tito tentava se livrar da memória de Sabina, como se ela fosse um fantasma que ele deveria exorcizar e que, naquele dia, se fizera mais vivido em suas lembranças.
- Ora, nem sei por que esta coisa me veio à mente... deve ser por culpa destas duas desgraças que tenho que levar para longe e não vejo a hora de largar em qualquer canto - pensava Tito, tentando jogar a culpa de sua consciência pesada nos ombros inocentes daqueles dois seres.
Não vejo a hora de pegar o caminho para Roma.
No entanto, a agonia interior lhe impunha manter a lembrança dos seus sentimentos por Sabina, apesar de não ter correspondido ao desejo de formar uma família.
Com quem será que ela estaria, será que existia algum filho dele que andasse pelo mundo, sem que ele mesmo o conhecesse?
Com quem será que se pareceria?
Teria a sua feição ou teria puxado as aparências da mãe?
Todas estas eram perguntas que se fazia, ao mesmo tempo em que se via na condição daquele que era responsável por duas crianças desconhecidas.
E se a ironia do destino estivesse lhe trazendo os próprios filhos para abandoná-los ao acaso em um porto distante?
Marcus não lhe informara de quem se tratavam aqueles infelizes.
Não haveria a possibilidade de serem seus próprios filhos?
Não - respondia para si mesmo - não pode ser que os deuses tivessem castigado a minha fuga trazendo ao mundo como meus filhos estes seres deformados e horrendos.
Mas que culpa teriam eles pelas minhas atitudes ao recusar-me a assumir a paternidade?
Esses pensamentos feriam fundo, mais fundo do que desejava, a mente e os sentimentos de Tito, que não se lembrava conscientemente do sonho da noite, mas que, dentro de sua alma, carregava a marca de sua ocorrência, reagindo segundo lhe fora solicitado, buscando uma forma de se livrar dos dois pequenos sem lhes produzir qualquer mal, como se eles o fizessem se lembrar das próprias tragédias.
Um misto de dor e vergonha invadia lhe a alma, preparando o caminho para os fatos que se avizinhavam na alma de todos.
Mais dois dias e a embarcação chegaria ao porto, onde o destino de cada personagem sofreria as mudanças necessárias para a continuidade do crescimento espiritual de cada um, no caminho da melhoria através da dor, do arrependimento e da correcção dos próprios erros.
Sem explicações plausíveis, na tarde daquele dia Décio sentiu-se indisposto e solicitou autorização do comandante para descansar no tombadilho da embarcação.
Suores invadiam o corpo dolorido e uma constante náusea tornava impossível caminhar carregando o recipiente de água.
Os sintomas pareciam confundir-se com os males que acometiam os marinheiros de primeira viagem, mas eram mesclados com tremores e alterações de temperatura pouco comuns nesses casos.
Décio se resignara à condição de necessitado de auxílio, mas que, em face de seus sintomas, poucos se apresentavam dispostos a ajudá-lo.
Caio, o capitão, adoptou as medidas disponíveis a bordo para ajudá-lo a suportar as reacções orgânicas e, como ninguém se dispusesse a lhe servir as rações de água e comida, ele próprio se propôs a enfrentar o desafio que, aos olhos dos outros, era gesto de heroísmo ao qual se via obrigado o comandante do navio.
Já não era mais serena a atitude dos tripulantes que, estando reunidos em um local colectivo e sem saídas, sempre se tornavam nervosos diante do adoecimento de alguém a bordo, ainda mais quando o doente fosse um condenado, geralmente tido como endividado moral, perseguido pela maldição dos deuses.
Não tardou para que os oficiais subordinados se apresentassem ao capitão para solicitar uma medida drástica a fim de preservar a todos de eventuais enfermidades.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:21 pm

Caio, que se mantinha sério e altivo diante de todos os que comandava, para não lhes dar a impressão de fraqueza, continuou firme no propósito de cumprir suas ordens e levar o enfermo até a Hispânia.
- Mas como, capitão... a província demorará mais de uma semana para ser atingida.
Até lá, todos poderemos ter morrido caso este miserável nos transmita sua maldição e sua doença...
Os deuses não nos perdoarão.
Se os escravos adoecerem não teremos quem reme e sem os remos a tragédia pode se estender por mais e mais tempo.
- Eu sou o comandante e decido o que fazer...
- Mas o senhor pode dar um fim nesse infeliz e garantir o prosseguimento de nossa viagem até o destino, sem deixar de cumprir as ordens - falou seu subordinado imediato, estimulado pela postura tolerante do capitão da galera.
- Você se refere a jogá-lo ao mar?
O homem acabou de ficar doente.
E se ele melhorar, por que iremos matá-lo?
- Antes ele do que todos nós, capitão.
Eu tenho família que me espera em Roma e não pretendo fazer viúva minha mulher, que está para ser mãe de meu primeiro filho, senhor.
- Verei o que fazer, Petrônio.
Antes de minha decisão, não permita que nada aconteça àquele que, até hoje, nos serviu com desvelo.
Transfira-o para minha cabine e mantenha um vigia à porta.
Em breve eu estarei lá e eu mesmo me exporei para cuidar de sua doença.
- Pois bem, meu senhor.
Assim, ao menos tiramos ele das vistas dos demais tripulantes que, facilmente, executariam a ordem que o senhor tarda em emitir, livrando-se do fardo para que os peixes adoeçam em lugar de todos a bordo.
E dizendo isso, Petrônio se retirou para conduzir o enfermo até os aposentos do comandante, onde um leito simples o esperava e onde, mais tarde, Caio se fizera presente para informar-se de sua condição e confirmar os planos que haviam feito.
- Bons ventos possam ser estes que o fizeram cair doente a pouco mais de um dia de Narbonne, Décio - falou Caio, sereno, ao amigo abatido e confuso diante da aparente indiferença do capitão.
- Ora, meu senhor, o servo ínfimo de Deus não discute os desígnios do Pai.
Apenas os aceita sem murmurar... - foi a resposta do indisposto acamado.
- Seja menos trágico, Décio, porquanto ainda não chegou o momento de você se entrevistar pessoalmente com seu Deus.
Você está passando mal em virtude de uma erva que tive o cuidado de colocar no alimento que lhe foi oferecido durante o almoço.
Afinal, você estava tão preocupado com a motivação para expulsá-lo que não vi outra forma de fazê-lo, liberando-o do peso da mentira através do procedimento que adoptei para que a própria tripulação viesse até mim solicitar que eu o expulsasse da nau, custasse o que custasse.
Agora já tenho o motivo de que precisávamos para que nosso plano fosse perfeito.
Fique tranquilo, porque esses efeitos passarão logo que você estiver em terra, já na segurança e, se tudo correr bem, com os meninos sob seus cuidados.
Quanto a mim, peço desculpas pela atitude desleal, mas que nos garante os resultados planejados.
Que Deus coloque mais esta culpa junto às muitas outras que estão a meu cargo.
Ao menos esta, representa compromisso que contraí a benefício de alguém.
Décio entendera o inexplicável mal súbito e, impossibilitado de fazer qualquer coisa, respondeu, apenas:
- Se é assim, Caio, peço a Jesus que compartilhe sua culpa comigo também para que o destino desses dois meninos seja menos doloroso e que o nosso seja a expressão da vontade de ajudá-los, por amor a Jesus.
- Pois então, Décio, que sejamos sócios no delito também - respondeu o capitão, sorrindo e deixando o amigo a sós em seu camarote.
Em breve, para alívio de toda a tripulação, o comandante decidiria deixar o enfermo no porto da capital da província ao qual chegariam a qualquer hora do dia seguinte, justamente onde desembarcariam Tito e os dois meninos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:21 pm

23 - Um novo começo para todos

Ao se aproximarem do referido porto, situado nas costas mediterrâneas daquele que é, hoje, o litoral francês, Caio foi procurado por Tito que lhe comunicou a disposição de deixar o navio com os dois infelizes que lhe competia transportar e, por isso, solicitava que a maior autoridade daquela nau procedesse de forma a facilitar-lhe o desembarque.
- Não há problemas, Tito, pois a sua solicitação vem ao encontro de uma necessidade nossa.
Temos a bordo um outro enfermo que precisamos deixar em Narbonne para que sua doença não contagie todos os tripulantes.
Por isso, já providenciei para que um pequeno barco possa levá-lo até o desembarcadouro, aproveitando a ocasião para transportar você e os meninos até o mesmo destino.
E por falar nisso, espero que possam ter sorte no novo caminho.
Ouvindo as referências do capitão, Tito sentiu um calafrio a percorrer lhe a espinha, sobretudo pelo temor de se ver contagiado ao contacto com um doente que seria transportado no mesmo escaler que ele próprio, não podendo, entretanto, opor-se às decisões do capitão.
Depois de adoptar as medidas necessárias à transferência, Caio dirigiu-se à sua cabine onde, desde o dia anterior, Décio se encontrava recolhido, entre o abatimento físico, as náuseas constantes e uma certa palidez decorrente do efeito levemente tóxico da raiz que lhe fora ministrada pelo próprio capitão, no dia anterior.
- Tudo está pronto, meu amigo - falou Caio, radiante pelo sucesso de sua estratégia.
- Ora, meu senhor, com a sua inteligência, não tenho dúvidas de que tudo sairá de acordo com seus planos - mencionou sorridente o aparentemente enfermo.
Entendendo sua referência indirecta ao "adoecimento", solução que Caio encontrara para conseguir desembarcá-lo antes do destino para acompanhar os dois infelizes, o comandante respondeu:
- Ora, meu amigo, não se amofine por tão pouco.
Poderia ter escolhido droga mais forte do que essa que você ingeriu, mas como sabia que estaríamos próximos do destino, preferi algo mais leve para que você estivesse em condições de seguir substituindo o responsável junto aos jovens.
- Mais uma vez, senhor, o seu discernimento seguro foi decisivo para que até mesmo o grau de meus padecimentos fosse dimensionado adequadamente - falou Décio.
- Pois o que necessitamos agora, meu amigo, é planejar os passos finais do desembarque.
Já informei a Tito que vocês serão levados num pequeno barco de transporte até o porto, deixando-o visivelmente preocupado pelo fato de estar colocando um "doente" tão próximo dele.
Quero que, no momento em que estiverem no barco, você estabeleça contacto físico com os dois jovens, como que os acariciando paternalmente, a fim de que Tito se veja obrigado a abandoná-los o mais rápido possível, livrando-se do risco de contrair sua doença.
Certamente, o covarde tudo fará para ficar o mais longe de você e, sabendo disso, esse medo será um trunfo para que estejamos adiante de seus interesses de fazer qualquer mal a ambos.
Eis aqui os recursos de que lhe falei e espero que sua jornada na nova vida possa estar iluminada por esse Jesus que você tanto ama e que tanto me tem servido nas horas de meditação.
Saiba que a cada três meses costumo passar por aqui e, se precisar de alguma coisa, envie-me uma mensagem por qualquer galera romana que, através dos canais próprios de nossas actividades náuticas, eu a receberei e tudo o que puder fazer, esteja certo de que me incumbirei de conseguir.
Percebendo a admiração silenciosa e a surpresa agradecida de Décio, Caio ajuntou:
- Não pense meu amigo, que isso é fruto de minha bondade.
Talvez seja fruto de minha consciência pesada que o seu Jesus está conseguindo fazer mais leve à medida que me tem ensinado seus conceitos, seus exemplos, suas lições.
Reconheço-me como um endividado moral que, antes, imaginava fugir das próprias responsabilidades afundando-se na vastidão do oceano para esquecer.
Hoje, graças a esse Jesus e a você, Décio, aprendi que, por onde for, meus erros me perseguirão como minha própria sombra, já que eles estão impressos da minha personalidade falível.
Preciso mudar, preciso me transformar e, assim, meus esforços para fazer o Bem serão as únicas coisas verdadeiras que poderão me corrigir, que me farão mais humano, que melhorarão o peso de minhas culpas.
Estes recursos em dinheiro que lhe entrego pertencem a todos os que se vejam na tarefa de amar em nome desse Jesus que me conquistou o coração, graças a você.
Não se trata de um favor que lhe faço, mas, sim, de uma modesta ajuda que possa chegar a esse Cristo que não negou nada para que todos nós acordássemos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:21 pm

Se você se dispõe a amparar estes filhos de ninguém, esteja certo de que tais recursos são ínfimos perto dos valores que você mobilizará de dentro de si próprio.
Jamais o esquecerei Décio, por todos os benefícios que sua alma generosa concedeu ao meu próprio ser necessitado.
E dizendo tais palavras, o vigoroso comandante, num gesto espontâneo de submissa admiração, tomou as mãos daquele homem maduro que lhe serviria de pai e beijou-as, emocionado.
Sem dizer qualquer palavra, Décio, igualmente tocado nas mais profundas fibras de seu ser, puxou-o pelo braço e enlaçou aquele irmão em um abraço carinhoso dizendo:
- Meu filho, que Jesus ilumine seu coração por todo o Bem que nos está fazendo.
Jamais se esqueça de que é o Amor que cobre a multidão dos nossos pecados.
A Justiça rectifica, a Verdade esclarece, a Caridade salva, mas é o Amor que conforta sempre e em qualquer condição.
Tão logo se apresentaram prontas às medidas atinentes ao desembarque do grupo, como fora previsto por Caio, Tito se fizera colocar no local mais distante em relação a Décio, fiscalizando lhe os menores gestos e relegando a segundo plano os cuidados com os dois meninos enfermos, ainda tontos sob a acção do medicamento narcotizante.
Sabendo das orientações de Caio, Décio se fez todo carinhoso com os dois infelizes, tornando-os entre seus braços e afagando lhes os cabelos, como se se irmanassem na mesma desdita.
Sem poder fazer nada para impedir, Tito não esboçou qualquer atitude que obstasse esse contacto físico do doente com os dois miseráveis seres que ele teria que abandonar logo mais, para que morressem no porto gaulês.
- Já são dois infelizes que morreriam de fome ou de qualquer coisa mesmo... pois que morram igualmente doentes como esse pestoso que os afaga - era o pensamento de Tito.
Que se abracem tanto quanto desejem, pouco me importa.
Estou cumprindo minha tarefa, por fim.
Não vejo a hora de regressar a Roma e receber o restante de meu pagamento.
Tão logo o pequeno escaler tocou as pedras que margeavam o ancoradouro de madeira, Tito saltou para terra, sem se preocupar em prestar qualquer auxílio aos meninos.
Vendo a sua disposição para a fuga, Décio lhe indagou:
- Ora, Tito, agora que chegamos ao destino, venha recolher o que lhe pertence por obrigação...
- Nada me pertence, velho infecto.
Estes infelizes não deveriam ter nascido e, se ousaram enfrentar a vida nessas condições, melhor que morram ao lado de outros que lhe sejam igualmente infelizes como você, por exemplo.
Eu tenho minha vida e estou muito novo para me ver envolvido entre desgraças e aleijões.
Vocês, que parece gostarem de misérias, que se entendam.
Lastimo seus futuros, mas não posso expor minha vida pela vida de vocês.
Percebendo que Tito já estava se despedindo, como a deixá-los ali, Décio aproveitou a oportunidade e exclamou:
- Eu aceito de coração esse encargo, meu filho.
Quanto a você, peço a Deus que o ajude na viagem de regresso ao seu mundo de medo e sofrimento, porque por mais que fujamos de nós mesmos, Tito, jamais conseguimos encontrar refúgio nos prazeres e coisas da Terra. Lembre-se de que chega sempre o dia em que teremos que nos encontrar frente a frente com nossas próprias verdades e, por mais que estejamos fugindo dos deveres, eles nos alcançarão solicitando a correcção de nossas condutas.
Volte a Roma como deseja, mas não se esqueça de que Jesus o acompanha e que, de seus erros do passado surgirão as oportunidades para a reconstrução do futuro.
Pare de fugir de si mesmo, pois se isso continuar, você acabará perdendo todas as oportunidades de se melhorar. Avise ao seu patrão, o nobre Marcus, que os filhos dele encontraram a morte ao lado de um doente da peste.
Isso garantirá a você uma maior recompensa e a ele um alívio.
Mas para os dois, o prémio do dinheiro e do alívio serão muito pobres se comparados ao preço que a dor vai cobrar pelo gesto desumano que um cometeu e o outro ajudou.
Da lei do Universo ninguém conseguirá fugir, Tito.
Que Jesus ilumine sua consciência.
Dizendo isso, deu por terminada a despedida e, agarrando os dois meninos, ajudados por um dos remos de que um romano tosco se servia para empurrá-los para fora da embarcação, sentiu caírem sobre si os pequenos sacos de objectos que lhes pertenciam, voltando a se sentir diante do desconhecido, agora como tutor moral e material de dois infelizes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:21 pm

Tito se afastara confundido.
Como é que aquele velho desconhecido sabia que ele era empregado de Marcus, e por que motivo havia chamado os dois infelizes de filhos dele?
Seriam, de verdade, dois filhos carnais de seu patrão?
Isso explicaria o seu desejo de livrar-se de ambos e o receio de tirar-lhes a vida, mesmo de forma indirecta?
Mas que mistério havia por detrás de toda esta história?
Ao mesmo tempo em que caminhava rápido para fugir daquele lugar que o oprimia, notadamente depois das palavras de Décio que, sem o saber, haviam tocado coisas muito profundas na sua consciência de culpa, Tito, agora livre, não conseguia deixar de pensar em todas as possíveis explicações para aquelas tão directas e importantes revelações que acabara de ouvir.
Meninos abandonados pelo pai, ignorados pela sorte e enjeitados por suas mãos, relegados ao sofrimento do mundo.
Esse era um quadro que fazia com que rememorasse a sua conduta com Sabina, a jovem namorada que engravidara nos arroubos da juventude de muitos anos atrás.
Sonhando com a liberdade, fugira ao dever uma vez para manter a possibilidade de gozar nos prazeres do mundo.
Afinal, não haviam sido os homens feitos para isso e as mulheres criadas para lhes servir?
Ainda que essa houvesse sido a maneira tradicional da compreensão dos laços familiares por longos séculos, a lembrança de sua conduta em relação às esperanças de Sabina haviam feito com que um amargor voltasse a lhe invadir a alma, como a lhe dizer sobre suas próprias misérias, sua vergonha e covardia morais, sua falta de decência como homem e como companheiro de uma moça que confiara a sua intimidade à sua carícia apaixonada, para ver-se frustrada com a sua fuga desesperada.
Um vulcão ameaçava explodir em seus pensamentos e sentimentos, que lutavam uns com os outros para se justificarem sem se condenarem, levantando argumentações favoráveis tanto à condenação quanto à inocência.
As palavras de Décio, no entanto, eram um atestado de que mais alguém sabia o que ele fizera e que, oculto pelo véu do mistério, os olhos da Verdade seguiam seus passos, não importasse onde ele tentasse se esconder, nem quanto tempo já tivesse se passado desde que rompera o relacionamento afectivo com Sabina.
Afastou-se de Narbonne e buscou dormir em uma estalagem modesta existente à beira da estrada romana que dava acesso da província gaulesa até a sede do império.
No dia seguinte, seguiria sua jornada através do caminho mencionado, fosse usando montaria, fosse esperando conduções para ver-se transportado, carroções que faziam o intercâmbio primitivo de mercadorias entre os diversos entrepostos.
No entanto, por todo o percurso, seus pensamentos doíam sempre quando imaginava qual teria sido o destino daqueles que abandonara junto a outro infeliz, no porto que ficava para trás.
Seria a segunda vez que estaria se conduzindo da mesma maneira, só que, nesta ocasião, estimulado pelos interesses materiais.
Havia-se vendido e aceitado tornar-se um algoz na vida alheia apenas e tão somente para se ver remunerado por algumas moedas que, de maneira absolutamente precária, jamais iriam conseguir proporcionar-lhe a paz íntima, a leveza de alma e a noção de que ele era um ser íntegro ou, ao menos, a caminho da integridade.
Tentou esquecer distraindo-se pelo caminho, conversando com pessoas diferentes, bebendo nas estalagens, deixando-se ficar mais tempo afastado daquele monstro - Roma - que parecia devorar todas as esperanças, depois de estimular nos seus habitantes todos os sonhos como bem o sabia fazer aquela cidade imponente por fora e suja por dentro.
E algumas semanas depois que iniciara o regresso, dera-se conta de que já não tinha tanta pressa em chegar à capital imperial, desejando evitar os compromissos que lá o esperavam, conforme vaticinara o próprio Décio, junto ao porto em Narbonne semanas antes.
Não haveria como manter-se por muito mais tempo, já que, passados quase dois meses, os recursos escasseavam e se fazia urgente atingir a cidade para prestar contas daquilo que já estava consumado.
No entanto, para não revelar seus conhecimentos sobre aquele segredo do patrão, deliberou nada dizer sobre a condição de filiação que Décio lhe expusera.
Falaria com Marcus como a lhe informar do destino dos desconhecidos, nada mais.
Isso lhe garantiria a gratidão e a generosidade de seu senhor.
Depois pensaria no que fazer de sua vida.
Ele não tinha ideia do que se havia passado em Roma naqueles meses em que estivera ausente e, tais transformações iriam surpreendê-lo quando de sua chegada.
Voltemos ao porto.
Vendo-se, agora, sozinho naquela cidade, tendo sob sua responsabilidade os dois meninos, Décio concluiu ser imprescindível sair dali e buscar o interior para ocultar das vistas curiosas e maléficas aqueles dois seres em provações acerbas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:21 pm

Assim que pôde, tomou rústica carroça que se dirigia ao norte em direcção a vilarejos circunvizinhos nos quais pretendia encontrar lugar para estabelecer uma vivenda onde pudesse velar pelos pequenos infelizes. Dispondo de alguns recursos, não lhe foi difícil adquirir modesta choupana, tão ao estilo dos moradores campesinos daquela área e, ali, constituir sua improvisada moradia, tanto quanto providenciar o abastecimento para as necessidades gerais, enquanto auxiliava os dois jovens a se recuperarem da experiência desgastante do sequestro e do banimento forçado, mantido à custa de remédios e narcóticos que Tito lhes ministrava mesmo no navio.
Arrumara o ambiente, providenciara palha limpa e nova para usar como leito, conseguira alimento fresco e algumas roupas limpas para trocar já que, em ambos, as condições eram precárias e humilhantes para qualquer ser humano.
Providenciou para que os dois pudessem se banhar, levando-os à margem de pequeno riacho que corria pela região agreste e bela, auxiliando para que ambos conseguissem se livrar das roupas e se higienizassem da melhor forma possível.
Foi aí que Décio se surpreendeu com o estado de Lúcio, o cego, que trazia o ventre extremamente ferido em área extensa na região umbilical, a exigir os maiores cuidados possíveis para que não se complicasse ainda mais o seu estado.
Era isso o que fazia com que seu corpo estivesse sempre arcado para a frente, no esforço de afastar o ventre do atrito com as vestes, o que motivava os constantes gemidos que emitia.
No entanto, Lúcio se acostumara à indiferença das pessoas e, sabendo que poucas criaturas além de sua mãe e de Lúcia, sua irmã, se ocupariam de aliviá-lo, relegara a plano secundário as queixas dolorosas.
Da mesma maneira, como dependia da generosidade pública nas exibições de música e canto que ele e Demétrio apresentavam na rua, não podia se permitir a exibição de rosto sofrido, queixando-se diante da plateia.
Quando sua dor o obrigava a gemer um pouco mais, Demétrio se virava para ele e lhe dizia:
- Cale a sua boca, Lúcio, que as pessoas podem achar que nós temos a peste e isso vai afastar todo mundo...
Para Décio, no entanto, a revelação daquele estado era enternecedor, diante das agonias morais e das dores físicas que aquela quase criança estava enfrentando desde os primeiros dias de sua vida.
Assumindo-lhes a paternidade informal, Décio passara a organizar a vida de ambos segundo as próprias necessidades, procurando infundir-lhes ânimo, coragem, optimismo e saúde ao corpo e à alma.
A rotina da pequena família, afastada da curiosidade dos centros urbanos permitira que, entre eles, se estabelecesse uma afinidade espontânea que significava um momento de paz no meio da turbulência.
Foi, então, que Décio escutou a versão dos meninos para as ocorrências de que haviam sido vítimas.
Percebera que, de uma forma ou de outra, havia a maldade humana por detrás daquele destino triste.
No entanto, acostumado a entender que a vontade de Deus deve ser sempre compreendida e, em vez de nos rebelarmos contra ela, nosso dever é o de fazer todo o bem que nos seja possível, para que os efeitos nocivos dos instantes de aflição sejam diminuídos, Décio se limitou a escutar e a dizer que o mais importante, era que eles estavam juntos e, enquanto tivesse condições, seria o pai que eles não haviam tido, cuidando de ambos para que fossem felizes, apesar das próprias dores.
Esse gesto de bondade natural aliviou os corações agoniados dos dois meninos que, sem saber o que o destino lhes reservava, ao menos agora podiam contar com algum conhecido amoroso que aceitara se esquecer da própria vida para doar-se, em forma de esperança, ajudando o sofrimento de ambos.
Com o esforço de Décio, Lúcio recuperou parcialmente o equilíbrio e as feridas em seu ventre diminuíram sensivelmente, apesar de permanecerem abertas em alguns pontos.
Demétrio, mais rebelde e contrafeito com o destino, parece que encontrara um pouco de serenidade, sob a sombra do carinho do novo tutor, que tudo fazia para agradá-los, principalmente lhes falando sobre as coisas que Jesus havia ensinado e que, agora, a eles todos competia viver da forma mais pura e sincera possível.
Ali, nessas condições especiais, cercados de paz e singelo conforto, os três encontrariam refrigério e refazimento para as lutas que ainda teriam que enfrentar.
Lembre-se, querido leitor, de que a nossa vida nunca pode ser somente pouso nem somente guerra.
Entre as lutas e os descansos estamos posicionados para que aprendamos a superar todos os limites de nosso ser, vencendo nossas inclinações à preguiça e aprendendo a cultivar forças nas vibrações íntimas da alma durante os desafios dos problemas.
Se o repouso é garantia para a recuperação do corpo e o refazimento do espírito ao contacto com belezas e bons sentimentos, não nos devemos deixar arrastar pelo ócio que intoxicaria nossos tecidos fluídicos com o narcótico da preguiça que produziria tempos difíceis pela frente.
Se as lutas da vida são os momentos decisivos para a aferição de nossa capacidade de resistência e combate, lembre-se de que não estarão para nos fornecerem medalhas ou troféus de lata e, sim, para avaliarem como é que cada um reage às provocações e às dificuldades.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:22 pm

Não é mais válido vencer de qualquer jeito.
É necessário obter a vitória através da vivência de princípios, sem os quais, o crime, o engodo, a mentira, a força, a violência, acabariam sendo ferramentas de um sucesso na vida que corresponderia tanto quanto corresponde sempre a um fracasso moral do espírito reencarnado.
Não basta vencer. É preciso VENCER-SE.
E para tanto, é indispensável CONHECER-SE.
E depois de conhecer-se, é urgente DOMINAR-SE.
Assim, as lutas da vida esperam de nós comportamentos compatíveis com a nobreza de princípios que adoptemos como norma de conduta.
Se você acredita na honestidade, não se deixe arrastar para o delito do furto de qualquer tipo, apenas porque a prova da dificuldade material surgiu em seu caminho.
Vencer a carência tomando o que não nos pertence é contrair nova dívida connosco, com o próximo e com Deus.
Se acredita na bondade, não seja mau porque sua bondade foi ludibriada.
Se você não fizer mais nenhum Bem, esteja certo de que você nunca foi Bom.
Apenas se fantasiava.
Se acredita na alegria, não se permita entristecer pelas surpresas desagradáveis.
A carranca da face ou o mau humor na alma não modificarão a sisudez do problema.
No entanto, a capacidade de fazer troça das próprias desditas o auxiliará a conseguir a simpatia dos que o cercam e aliviará as tensões naturais que surgem de qualquer situação difícil que nos ocorra.
Lembre-se: você é aquilo que esculpe em si mesmo, com o material que Deus colocou em seu coração segundo as orientações e os projectos à sua disposição.
O mundo apresenta uns e Jesus oferece o dele.
Escolha certo e você não se arrependerá.
Nesse momento de decisão, lembre-se das palavras do Divino Mestre:
Não é possível servir a dois senhores.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:22 pm

24 - Enquanto isso, Roma...

Retornando ao cenário da capital do império, lembremo-nos de que encontraremos nossas personagens envolvidas no drama da morte de Domício e do desaparecimento dos irmãos, sequestrados por ordem de Marcus.
Naturalmente, aquele havia sido um dos piores dias na vida de Serápis e de sua filha adoptiva, Lúcia, já que ambas não sabiam para que lado correr, diante das agruras decorrentes tanto do desaparecimento de Lúcio e Demétrio quanto da triste surpresa representada pela morte do filho adoptivo, supostamente envenenado, de acordo com as informações do experiente curandeiro, suspeitas estas que apontavam directamente para a acção de Flávia, eis que os indícios conhecidos davam a entender ter sido ela a última pessoa a encontrar-se com o rapaz, carregando consigo o fatídico bolo através do qual o veneno teria sido ministrado.
Terminados os actos funerários simples e rápidos, ficaram os envolvidos diante uns dos outros.
Mantendo a serenidade de alguém que trazia a consciência tranquila, Lélia permanecia ao lado da amiga e da pequena Lúcia, como a demonstrar o seu desejo de confortá-las.
Por sua vez, Serápis não sabia mais o que fazer nem em que pensar.
A perda de Domício, graças ao qual conseguira recursos para viver durante muitos anos, doía-lhe no coração mais do que seria capaz de supor.
A resignação do garoto, a sua história de abandonos e sofrimentos haviam produzido no coração daquela mulher interesseira do passado uma transformação sensível a ponto de, com o passar do tempo, já não se sentir feliz em recolher moedas através da exploração da desgraça de Domício.
A convivência e a confiança que o jovem depositava em suas palavras, muitas vezes grunhindo de alegria quando ouvia sua voz no ambiente, tanto quanto o brilho de seu olhar quando Serápis lhe dirigia a palavra nas rápidas demonstrações de atenção que lhe dava, haviam esculpido no íntimo daquela mulher uma nova forma de sentir e considerar a dor e o sofrimento daquele menino.
E isso, agora, vinha à tona, uma vez que a ausência de Domício fazia doer-lhe a consciência de maneira mais profunda.
Ao mesmo tempo, enquanto chorava pela sua morte física, Serápis misturava a dor da perda à angústia do afastamento misterioso de seus outros dois filhos legítimos, sem deixarem qualquer pista ou sinal de paradeiro.
De nada havia adiantado recorrer aos circundantes à cata de informações.
Todas as diligências a autoridades e pessoas importantes haviam sido vãs tentativas que se frustraram diante de sua incapacidade financeira e da insignificância de sua influência.
Não estavam mais por ali nem Décio nem Cláudio que, certamente, a ajudariam na solução de tal dificuldade.
As lágrimas eram mais abundantes quando a angústia da perda de Domício se somava à incerteza do paradeiro dos filhos que ela aprendera, igualmente, a amar já que, por força das modificações que os ensinamentos do Evangelho lhe haviam propiciado, Serápis sentia pesar duplamente a consciência por não ter podido fazer nada para protegê-los.
Afastada dos filhos adoptivo e legítimos, sua vida se resumia apenas a Lúcia, a outra adoptiva a quem se ligava profundamente pelos laços benditos das vidas sucessivas, única forma de explicar a maneira natural e espontânea através da qual as duas se relacionavam, como velhas conhecidas.
Ao lado de toda essa tragédia concentrada em um único dia, pesava a possibilidade de encontrar, na única benfeitora, a víbora traiçoeira a tramar contra a sua paz pessoal, quem sabe por motivo de vingança do pretérito.
Lélia Flávia poderia ter sido a causadora da morte de Domício?
Parecera-lhe ser uma pessoa tão íntegra, cuja dor anterior modelara e cuja fé em Jesus parecia ser sincera manifestação de uma essência purificada pelo sofrimento.
Como poderia ter feito tal atrocidade?
No entanto - pensava Serápis - o ódio guardado continua quente mesmo que anos se passem, décadas sejam vencidas e, como era da tradição romana daqueles tempos, a vingança era um prato que se comia frio, para poder saboreá-lo melhor.
Serápis havia denunciado Lélia a Marcus para que fosse responsabilizada pela morte da esposa, livrando o caminho pessoal da suspeita de ter sido, ela própria, a criminosa com a ideia fixa de tomar-lhe o lugar junto ao homem amado.
Lélia só não fora morta no circo pela intervenção pessoal de Licínio.
No entanto, havia sido humilhada e maltratada no cárcere por longo período, antes de ser colocada em liberdade.
Isso poderia ter deixado marcas profundas, a estabelecer um processo de revide que se alongaria no tempo, como é muito comum ao espírito humano moralmente menos elevado.
Além do mais, ela poderia ter estabelecido o plano de se aproximar da família de Serápis, trabalhando em silêncio no seu lar, conhecendo a rotina de seus filhos, graças ao fato de ter aceitado a solicitação de Décio.
Tudo fazia sentido, levando as suspeitas na direcção da antiga conhecida.
No entanto, o comportamento e as manifestações de Lélia Flávia eram contrárias a tal conclusão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:22 pm

Sua palavra era sempre generosa, seu carinho sempre parecera ser espontâneo, seu interesse pelas crianças sempre demonstrou-se verdadeiro no sentido mais puro e generoso.
Alguma coisa não combinava nessa história.
A cabeça tumultuada de Serápis, no entanto, não tinha como pensar em todas as hipóteses simultaneamente.
Assim, agradeceu a solicitude da amiga e, dizendo que necessitava descansar um pouco naquela noite, pediu-lhe que, no dia seguinte, lá pela hora do almoço, Lélia Flávia pudesse voltar à sua presença para que conversassem melhor.
Depois das despedidas, durante as quais Serápis procurou parecer o mais natural possível, todas recolheram-se em suas casas.
Enquanto isso, Marcus agia com a euforia típica dos adolescentes imaturos que ante vêem o sucesso de suas empreitadas, como se ele fosse o arquitecto do destino dos seus semelhantes, ao sabor de seus caprichos.
Em sua mansão ficava, agora, imaginando o que estaria acontecendo aos meninos que, por força de sua inteligência e astúcia, havia tirado de seu caminho, para que, ao livrar-se de todos os estorvos, pudesse conseguira companhia de Serápis, restabelecendo os ideais afectivos alucinadamente desequilibrados.
Lembramos o leitor querido que, naquele mesmo dia, Marcus havia solicitado audiência frente ao magistrado a que lhe competia recorrer para a retomada do pátrio poder sobre a jovem Lúcia.
Assim, antevia o fechamento da armadilha sobre Serápis, de forma a possibilitar a sua capitulação definitiva, restabelecendo a relação amorosa anterior.
E não demoraria muito tempo para conseguir a autorização de que necessitava para ir até a moradia de Serápis e resgatar a jovem filha, usando as prerrogativas legais da paternidade, sempre tão defendidas pelo direito romano.
No dia seguinte, no horário marcado, Lélia compareceu novamente ao pequeno tugúrio de Serápis quando puderam conversar com um pouco mais de calma.
A noite havia sido agitada, e o sono pesado de Serápis permitiu que seu espírito descansasse um pouco depois de tantas tormentas reunidas.
- Bem, Lélia, hoje creio que me encontro melhor para conversar com você. Sua presença em minha vida tem sido uma constante e, como você sabe, ela é a única força com a qual passei a contar depois do infausto destino de Décio e Cláudio.
Nosso passado não precisa ser lembrado, pois ele se encontra vivo dentro de meus pensamentos, pelo mal que procurei fazer-lhe e do qual não consigo me perdoar.
Assim, a sua conduta generosa para comigo ainda me diminui sobremaneira, porquanto somente uma alma lidimamente purificada é capaz de superar as torpezas que construí em seu caminho por ocasião da morte de Druzila.
Ouvindo atentamente, Lélia dava mostras de discordância silenciosa quanto às afirmativas elogiosas de que era objecto.
No entanto, sabia que isso era apenas o manto claro de neve delicada que cobria a boca fumegante dos altos vulcões, prontos a explodirem em lavas comburentes.
Assim, Serápis prosseguiu:
- No entanto, minha amiga, não posso negar-lhe a surpresa que me acometeu quando do descobrimento da possibilidade do envenenamento de Domício, facto este que, conforme o próprio curandeiro afirmou, só poderia ter sido praticado por alguém próximo, que tivesse como se adentrar no ambiente modesto desta casa e trouxesse consigo um bolo ou uma torta, como aquela que foi encontrada, um pouco deteriorada, na garganta de meu filho, tudo isto apontando na sua direcção.
Não imagine que dei crédito a tais suspeitas, mas necessito ser honesta com você acreditando que você, em nome de Jesus, haverá de ser honesta igualmente comigo.
Não consigo imaginá-la planejando envenenar aqueles infelizes que já estavam condenados pela vida de dores aos tormentos do inferno, antes mesmo de terem morrido.
No entanto, reconheço que o mal que lhe fiz um dia poderia ser combustível poderoso para facultar um processo de vingança tardia que, confesso, é totalmente contrário à sua inclinação e bondade actuais.
Ajude-me, minha amiga, a matar em mim todo o germe da injustiça e do mal, porquanto não desejo fazer nada que possa, novamente, corresponder a um julgamento erróneo ou interessado, levada apenas pela força das aparências.
E falando assim, quase em súplica, Lélia pôde compreender o grau de desespero que tomava conta de sua amiga, entendendo os conflitos entre a lógica do passado e a lógica do presente, na avaliação dos fatos que haviam sucedido.
- Eu sei que não foi você, Lélia - exclamou Serápis, num desabafo desesperado.
Mas eu preciso ouvir isso de você pessoalmente, para que não fique nenhum laivo de dúvida, nenhum resquício de desconfiança entre nós, a atrapalhar nossa convivência verdadeira sob os mesmos princípios do Evangelho que nós aceitamos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:22 pm

- Se isso a faz mais tranquila, Serápis, eu posso afirmar-lhe que, em momento algum procurei, mesmo em pensamento, ferir ou fazer sofrer os seus filhos, que sempre considerei como meus mesmos.
Se desejasse matar algum deles, tive todas as oportunidades possíveis para fazê-lo, sem levantar qualquer suspeita e acobertada pelo anonimato conferido à condição de serva de sua casa.
Também não compreendo o que se passou, mas esteja certa de que todas estas questões serão solucionadas a contento. Seria bom que orássemos pedindo a Jesus que nos ajudasse a reencontrar o equilíbrio e a nos lembrarmos de Domício com todo o nosso carinho, entregando-o ao Pai.
Em realidade, Lélia não desejava mencionar a presença de Marcus nas redondezas para não agir com leviandade diante de uma acusação sem provas.
Ela mesma houvera sido vítima de um procedimento desse tipo e não desejava, agora, seguir pela mesma estrada perigosa e comprometedora.
- Eu também preciso pensar mais em certos detalhes desse assunto para poder tirar conclusões mais justas, Serápis.
Esperemos mais alguns dias e trabalhemos juntas para encontrar os meninos.
A sua afirmativa franca e segura trouxera certa serenidade ao espírito de Serápis, ainda confundido pelas sucessivas notícias ruins e a conversa se perdia nas questões que envolviam o desaparecimento dos filhos legítimos.
Estabeleciam planos para pedir informações, para ficarem de plantão nas portas mais movimentadas da cidade, fiscalizando o transito de pedestres para identificar alguma pista do paradeiro dos filhos aleijados.
E nesse processo de pesquisa, ambas se entregaram, gastando os dias seguintes, sempre trazendo com elas a companhia de Lúcia, agora adolescente, a aproximar-se da idade considerada pelos romanos como a que possibilitava a mulher unir-se a um homem para a constituição de uma família.
Ao fim do terceiro dia, no entanto, quando regressaram ao lar de Serápis, foram surpreendidas pela presença de um destacamento militar à porta da casinha, a fim de executarem a diligência que retiraria da antiga amante de Marcus a última razão que possuía para viver.
Estarrecidas com o comunicado da autoridade que exercia a magistratura inflexível, Lúcia deveria ser levada directamente à casa paterna, sem qualquer direito de recusa ou tentativa de fuga.
Por isso se fazia necessária a presença da milícia, a garantir, pela intimidação prévia, o cumprimento da sentença.
Serápis, Lúcia e Flávia não acreditavam no teor da medida desumana por todos os motivos.
Lúcia se agarrara à Serápis como quem se prende à única tábua de salvação, já que ao pai não devotava qualquer afecto.
Como estar, agora, submetida à sua autoridade se ele nunca se fez presente em sua vida nem nunca se interessou pelo seu futuro?
Fora Serápis quem conseguira comida e roupa para ela, quem a protegia do frio, quem a ajudara nos pequenos problemas de uma criança.
Percebendo a rusticidade dos homens que ali estavam para cumprirem as determinações da autoridade, Serápis procurou manter serenidade para ajudar a filha a não acabar ferida pela força bruta dos soldados, que não titubeariam em executar um santo, que dizer, então, de agarrar uma menina frágil para levá-la embora.
As lágrimas de Serápis, no entanto, se fizeram espontâneas, como se o último fio de esperança lhe estivesse sendo cortado a frio e como seja não houvesse mais por que viver neste mundo.
Em menos de uma semana, havia perdido tudo de uma vez.
Só lhe restava a amizade de Lélia Flávia, único conforto ao qual se apegava para não acabar se afogando no Tibre sonolento que circundava aquele antro de mármores e maldades.
- Calma, filha, não fique assim, porque estes homens são violentos e podem machucar você.
Eu irei até o juiz para pedir que isso seja cancelado.
Vá com eles e, em breve, você estará de volta para continuarmos a viver nossa vidinha - eram as palavras que a chorosa Serápis, nos dramas de uma cruel despedida, se via obrigada a dizer, única forma de criar certa esperança no espírito da filha adoptiva para que ela não se opusesse à condução forçada de que era objecto pela ordem judicial.
E solicitando um breve instante à autoridade militar que comandava o destacamento de homens, foi até o interior da casa e trouxe algumas roupas e objectos pessoais da menina para que ela tivesse o que usar, carregando consigo as lembranças daquele período de penúrias e dificuldades.
Vendo o pequeno amontoado de roupas desgastadas, o soldado incumbido do cumprimento da determinação sorriu, irónico, e acrescentou:
- Para que gastar esforço por carregar esse lixo, se a menina vai directo para o palácio onde a esperam roupas dignas da família a que pertence?
E como a se insurgir em silêncio contra essa insinuação arrogante e desumana, Lúcia agarrou-se aos tecidos pobres como se ali estivesse toda a sua condição humana e disse:
- Mãezinha, ainda que Jesus me viesse buscar no lugar desses diabos em forma de gente que aqui estão e me oferecesse o paraíso, os palácios no céu e as mais belas roupas que existissem, eu só iria se você fosse comigo.
Fique certa que, se você não conseguir nada com o juiz eu encontrarei um jeito de fugir daquele palácio e, então, fugiremos desta cidade para sempre.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:23 pm

Sem permitir mais qualquer entendimento, a cena sombria e constrangedora que transcorria na via pública começava a produzir o ajuntamento de pessoas curiosas para entender o que se passava, obrigando os soldados a agirem com rapidez para terminarem a tarefa que lhes fora encomendada.
Seguindo entre dois homenzarrões, ia a pequena Lúcia agarrada aos seus pobres pertences, entre a revolta e o medo.
Serápis, inconformada com o destino, seguiu o contingente à distância, a fim de se certificar do verdadeiro destino de Lúcia, para que pudesse tomar as medidas que acreditava possíveis no sentido de liberar a filha adoptiva do cativeiro paterno.
Por fim, constatou ser verdade que a menina havia sido levada ao palácio de Marcus, tendo Lélia ao seu lado como o ombro amigo no qual se deixou debruçar e secar mais uma fonte de lágrimas, a mais dolorosa e ácida que o destino lhe havia aberto na alma naqueles dias.
- Por que, Lélia?
Os demónios devem estar organizados contra mim, conspirando contra a minha felicidade mínima.
Eu sempre quis grandezas e poderes mundanos e, por isso, fiz muita besteira na vida.
No entanto, fui reduzida a um amontoado de trapos, morando em uma tapera emprestada, mãe de três filhos doentes e da única criatura com quem mantinha uma profunda ligação e que, por ironia, é a filha da pior rival que já tive nesta vida.
Quão má eu devo ter sido para que minhas culpas recaiam sobre os pobres inocentes que tiveram a desgraça de ser meus filhos, legítimos ou adoptados!
E enquanto falava, sua voz saía como um lamento, ora gritada ora sussurrada, ocultando o rosto no colo de Lélia, que se mantinha igualmente emocionada a orar em silêncio, pedindo pelo equilíbrio da mulher que se perdera por si mesma e se via fustigada pelas forças invisíveis do destino doloroso.
O que é que aquele maldito homem do qual se tornara amante desejava ao tomar-lhe a menina que servia de último apoio de sua alma solitária?
Por que tamanha crueldade gratuita?
Não tinha ele o dinheiro, o poder, as facilidades, os prazeres que sempre desejara?
Por que não as deixava em paz para sempre se, já há algum tempo, nem mesmo a casa em que viviam pertencia ao antigo amante?
Uma sinistra sensação fez percorrer toda a espinha e alojar-se no coração daquela mulher, como a lhe prenunciar dores maiores pela frente.
Sem mais o que fazer, regressaram para a casa e, naquela noite, Lélia permaneceu em companhia de Serápis para garantir-lhe o equilíbrio e para velar por seu descanso, se é que se poderia chamar aquele desprendimento nocturno de sono.
No interior do palácio, Marcus exultava com a última cartada.
Segundo seus planos, pouco faltava agora para convencer Serápis a aceitar o convite para voltar ao antigo ambiente, agora na condição de dona da casa.
Precisava, apenas, dar tempo ao tempo para que as dores da separação esculpissem nela o necessário panorama que lhe aconselharia a retomada da antiga ligação afectiva com aquele que fora o único homem de sua vida.
Inspirado negativamente por Druzila e pelos asseclas que a obedeciam nos processos de perseguição, Marcus deliberou retirar-se da cidade por alguns dias, apenas para deixar que a poeira baixasse e para impedir que a menina lograsse fugir do palácio, tentando voltar para a companhia da mãe adoptiva.
No dia seguinte, ao despertarem, Lélia serviu o pouco pão e leite que havia conseguido e, tão logo Serápis se alimentou, a amiga tomou a palavra para revelar certas coisas que, até agora, estava ocultando por prudência.
- Serápis, preciso falar sobre uma coisa que pode ajudar a retomada de Lúcia perante a autoridade judicial.
Ouvindo a notícia, a abatida mulher que, agora, se poderia comparar a um trapo de gente, voltou seu olhar apagado na direcção da amiga, como a lhe dizer que estava pronta para escutar, ainda que não fosse capaz de acreditar que se pudesse modificar o curso das coisas.
E então, passo a passo, Lélia revelou-lhe o encontro que tivera às portas do pequeno barraco, com Marcus disfarçado, que saía apressado carregando um embrulho nas mãos, como quem foge do local do crime.
Na ocasião ela não havia entendido o que motivara ao antigo patrão a comparecer naquele ambiente tão pobre.
Qual não fora a sua surpresa maior quando, ao entrar, constatou a presença tão somente de Domício no lar desguarnecido.
Depois da ingestão do bolo e do diagnóstico de envenenamento, não foi difícil a Lélia imaginar que fora o próprio Marcus quem estivera ali para levar a dose letal a alguém daquela casa, já que sabia que o veneno não estava no bolo que ela portava.
- Eu não havia falado nada, ainda, porque precisava entender melhor todos os factos, porquanto me parecia estranhíssima coincidência a morte de Domício no mesmo momento do desaparecimento inexplicável dos meninos.
Agora, tudo se torna mais claro.
Esse relato novo produzira uma transformação no espírito de Serápis.
Com a rapidez do raio, a mulher logo imaginou, tanto quanto Lélia que, com a retomada de Lúcia, Marcus estivesse por detrás, também, do desaparecimento dos dois filhos legítimos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:23 pm

E se ele pudesse ser acusado de ter envenenado o filho inválido e desprotegido, poderia conseguir recuperar a guarda da menina que, obviamente, não poderia permanecer na companhia de um progenitor perigoso e homicida.
Essa rapidez de raciocínio permitiu a Serápis sair do abismo do desânimo para o patamar da euforia, em questão de rápidos minutos.
- Sim, Lélia, essa é a chave de todo este mistério.
Somente a cabeça maldosa e astuta de um homem como ele poderia ter pensado em tudo isso.
Não duvido, inclusive, de que tenha sido também o responsável pelo desaparecimento dos meninos.
Ouvindo-lhe as conclusões da intuição feminina, Lélia procurou ser mais prudente, afirmando:
- Bem, Serápis, quanto a isso eu nada posso afirmar, porquanto não pude presenciar nenhuma coisa nesse sentido.
No entanto, concordo com você, que é muita coincidência tudo acontecer como aconteceu.
- Você precisa me ajudar, Lélia.
Precisamos ir até o juiz falar dessa situação que poderá reverter todo o caso a nosso favor.
Você me ajudará, não? - era o pedido súplice de Serápis para a amiga que sabia ter o dever de revelar os factos para preservar a integridade de Lúcia e o equilíbrio de Serápis.
- Bem, minha amiga, eu não pretendo prejudicar com acusações falsas a ninguém.
No entanto, tomo Jesus por testemunha de que irei revelar toda a verdade que pude presenciar aqui naquele dia triste de nossas vidas.
- Então iremos, nós duas, à presença do juiz para solicitar uma intervenção favorável no processo de retomada de Lúcia.
- Antes, então, Serápis, oremos a Jesus para que nos ajude em nosso esforço de conseguir reverter a situação, já que, na condição de pobres como somos, não podemos contar com nenhum outro tipo de influência ou de apoio que nos facilite as coisas nesse sentido.
Se não for por Jesus, não será por ninguém.
Daí, ajoelhadas no solo pobre da casinha de Décio, ambas se dirigiram ao Divino Mestre a solicitar-lhe ajuda para que a pequena Lúcia pudesse ser trazida de volta à companhia da mãe adoptiva e da amiga, já que o Mestre se apresentava como a única fonte de esperança em suas vidas.
Na tarde do mesmo dia, ambas estavam às portas da casa de Justiça na qual o representante da lei pontificava segundo os cânones da "lex" romana.
Naturalmente que não lhes foi fácil o acesso ao magistrado que se responsabilizava pelo caso, mas depois de inúmeras diligências nas quais foram ajudadas por alguns funcionários da casa de Justiça que eram, secretamente, simpatizantes do Cristianismo nascente e que Lélia conhecia, terminaram diante da autoridade que as recebera de muito má vontade, sempre demonstrando pressa na escuta das queixas do populacho.
E então, buscando segurar o ímpeto e domar seus impulsos de mãe ferida para manter-se com a temperança necessária à clareza da exposição, Serápis apresentou o caso, explicando tratar-se da questão de tutela legal sobre a menor Lúcia, que já se encontrava com ela há mais de 12 anos e que, inexplicavelmente, dela fora retirada por solicitação do pai.
- Mas o progenitor nunca deixa de ser pai, enquanto que a senhora nunca será nada para essa menina - respondeu o magistrado, rispidamente.
Contendo o nervosismo e a vontade de esbofetear aquele homem indiferente e grosseiro, Serápis continuou, buscando aparentar humildade a todo custo:
- Sim, poderoso magistrado, reconheço a razão de seus argumentos baseados na tradição de nossos ancestrais.
No entanto, ouso solicitar a sua nova avaliação porque a lei romana também não reconhece ao assassino de inocentes a condição normal para exercer o poder paternal, de forma que, na defesa da lei, a vossa sapiência pode ter colocado a jovem em companhia de um perigoso homicida.
- A senhora está ciente do quanto é grave a acusação que está fazendo - disse o juiz, solenemente, levantando os olhos dos papéis que tinha diante de si.
- Tão ciente que, se for preciso assinar qualquer documento, eu o assinarei agora mesmo.
- E que provas tem a senhora dessa acusação?
Usando das melhores palavras que podia, teceu o quadro que Lélia lhe contara naquele dia, revelando os detalhes do dia do desaparecimento dos filhos, da morte de Domício e da testemunha que presenciara a saída de um disfarçado Marcus, deixando a casinha e carregando o embrulho nas mãos, certamente o bolo com veneno que matou o inocente leproso.
Intrigado com aquela narrativa grave e acusadora, o magistrado voltou-se para a acompanhante a fim de ouvir dela, pessoalmente, os detalhes do encontro.
E as informações de Lélia foram ainda mais convincentes, já que provinham de uma pessoa mais serena e que presenciara os factos de forma decisiva, carregando as informações que, no mínimo, indicavam a participação clandestina de Marcus em um delito que ainda não havia chegado ao conhecimento das autoridades.
- E por que a senhora não veio denunciar o possível homicida antes?
- Porque, meu senhor, as tragédias se sucederam e eu só tomei conhecimento desse detalhe no dia de hoje, quando Lélia me revelou, certamente por passar a entender o motivo desse homem em retirar de mim a pequena Lúcia.
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 5 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 18, 2014 9:23 pm

Não possuo outras provas, mas, na intuição de mãe, sou compelida a afirmar que ele deve estar envolvido também no desaparecimento dos próprios filhos aleijados que abandonara desde o nascimento.
Serápis exaltava-se em acusações e, discretamente, Lélia desferiu rápido beliscão em seu braço, longe das vistas do magistrado, a fim de que ela se contivesse nas palavras para que não parecesse uma mulher desequilibrada pelo sofrimento, a procurar culpados por suas dores.
Entendendo o recado, Serápis silenciou não sem antes afirmar que, da última suspeita não possuía qualquer acusação que pudesse incriminar o ex-amante.
No entanto, da acusação de ter matado Domício, podia apresentar Lélia como prova que se disporia a manter sua versão, custasse o que custasse.
O magistrado, então, mandou anotar os pormenores da acusação de Serápis e o teor do depoimento de Lélia para que isso fosse juntado aos documentos do caso Lúcia, e determinou que Marcus fosse convocado à sua presença para esclarecimentos directos sobre o assunto.
Dispensando as duas mulheres, inclinou-se o juiz romano sobre o caso para meditar sem o calor das emoções e buscar desvendar tal mistério que se ocultava por baixo das aparências sociais.
Seria Serápis uma mulher ferida no afecto, que desejava prejudicar gratuitamente o homem que a abandonou?
Haveria razão em sua postura firme e resoluta, embasada, inclusive, no testemunho de outra mulher, que lhe parecera insuspeita e correcta?
Além do mais, havia o interesse da menina que, à toda evidência, poderia estar correndo um risco muito grande se fosse verdade a informação que Serápis lhe fornecia.
Expediu-se a convocação a Marcus para que comparecesse urgentemente diante da autoridade legal, convocação essa que só pôde ser cumprida dias mais tarde quando de seu regresso da viagem que fizera em companhia de Lúcia.
Assim que regressou ao seu palácio, tomou conhecimento da determinação oficial que o convocava à casa da Justiça onde o magistrado o esperava, naturalmente para lhe dar notícia do andamento regular do processo, com o encerramento da questão graças à retomada da guarda da filha.
Para sua surpresa, no entanto, as coisas não seriam desse modo.
No dia seguinte ao da sua chegada, estaria sendo informado solenemente de que alguém o acusava de homicida e apresentava provas contra ele
O suor frio que lhe percorreu a espinha só fora disfarçado pela existência da rica túnica que trajava nas ocasiões especiais perante autoridades importantes.
Naturalmente que negaria qualquer envolvimento e lançaria sobre os depoimentos a acusação de leviandade e de interesses contrariados, que buscavam reverter a exactidão da sentença que lhe concedera a guarda da filha.
- Mulheres frustradas, bem sabe vossa sabedoria, são capazes das piores mentiras, das mais pérfidas acusações para que não se sintam perdedoras em seus interesses.
- Sim, nobre Marcus.
No entanto, não se trata apenas da versão da mulher que cuidava de sua filha.
Trata-se do depoimento embasado em uma prova testemunhai que garante ter visto a sua pessoa saindo do local onde, minutos depois, um romano veio a morrer envenenado.
E como Marcus não havia visto Lélia naquele dia, já que tinha pressa para seguir com Tito até o ponto de encontro a fim de dar destino aos dois menores sequestrados, não sabia que Lélia também tinha levado um bolo para dar de comer aos filhos de Serápis.
Isso o fez imaginar que alguém de seu círculo pessoal havia denunciado sua atitude.
"Impossível" pensou ele.
"Somente Tito sabe de todos os detalhes do caso e ele está longe, nesse momento, levando os dois inválidos para o inferno.
Ninguém poderia ter revelado nada, fora ele.
E, ainda assim, é o mais fiel de meus servidores".
- Bem, meu senhor, eu não sei o que dizer a não ser que isso é uma invenção de gente que se sente prejudicada com a vossa decisão justa e sábia, valendo-se de calúnias contra mim.
- Penso que esta possa ser uma argumentação coerente com os fatos.
No entanto, deliberei investigar a morte do menor na casa da senhora Serápis a fim de apurar as duas coisas ao mesmo tempo.
Assim, em breve o senhor será novamente convocado para estar aqui diante de suas acusadoras para vermos que rumo tomarão as coisas.
E dizendo isso, dispensou Marcus, que voltou para o palácio, pensativo e preocupado com seus passos.
Tão logo se viu encerrado em seu escritório de trabalho, deliberou enviar outros empregados de confiança às proximidades da casa de Serápis a fim de obterem informações sobre a morte de Domício naquele dia em que seu plano foi posto em acção.
Que perguntassem a todos os vizinhos, aos passantes e aos donos de estabelecimentos próximos sobre o caso e lhe trouxessem informações.
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 5 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 10:21 am

E foi através desse expediente que Marcus ficou cientificado, antes do próprio magistrado, de que o curandeiro que atendera o caso no momento em que a morte ocorria, encontrara, apenas, uma mulher no local, a mesma que o fora chamar para cuidar do menino envenenado, tendo sido ela a portadora do bolo suspeito.
Aquilo era misterioso para Marcus.
Outra mulher e outro bolo...?
Que coisas poderiam ter acontecido ali depois que ele saiu? Teria sido essa mulher a mesma que alegava tê-lo visto saindo da casa?
De qualquer forma, ela poderia ser apontada como a principal implicada no crime, e isso o tranquilizava naqueles momentos, pois saberia como fazer as coisas para que a culpa lhe fosse atribuída, eximindo-o de qualquer responsabilidade.
Os dias seguintes veriam o desenrolar dos fatos.
Enquanto isso, esperava ansioso o regresso de Tito de sua missão derradeira, levando para longe os dois filhos indesejados.
Pagar-lhe-ia pequena fortuna quando de sua chegada, aumentando-a significativamente para que se apresentasse em juízo com a versão dos factos que fosse mais conveniente à inocência de Marcus.
Tito, no entanto, tardava a chegar e o magistrado já havia deliberado a data do encontro entre ele e suas acusadoras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 10:21 am

25 - A ajuda espiritual durante o sono

A partir daquela noite, Marcus passou a ser vítima de estranhos sonhos, envolvido pela pressão psicológica de Druzila e seus asseclas, todos eles mantendo estreito domínio sobre suas ideias, notadamente no controle de suas emoções, lutando para que não acontecessem preocupações maiores que viessem a modificar o rumo da jornada vingativa de sua ex-esposa.
Inicialmente temia pelo insucesso de seus planos já que aquela testemunha imprevista surgira para atrapalhar lhe o desenrolar da estratégia.
Ao mesmo tempo, a perspectiva de se ver diante do juiz, que voltaria a averiguar as questões da morte de Domício, faziam com que sua alma se incomodasse, ainda mais agora que Tito não se encontrava em Roma.
Diante de todo o novo cenário, Marcus passara a dar guarida à ideia de movimentar-se nos bastidores políticos da capital do Império e conseguir junto às autoridades maiores, o afastamento do magistrado de suas funções, já que lhe parecera uma conduta pouco adequada aos seus interesses a união dos dois problemas sob uma mesma investigação.
Lúcia se encontrava sob sua responsabilidade, ainda que não mantivesse qualquer tipo de aproximação afectiva da jovem.
Era ela a isca com a qual seu sonho de reconquistar Serápis se mantinha vivo e luminoso, apenas isso.
No entanto, com a possibilidade de se apurarem os dois casos, seja o da capacidade de tutelar a filha, seja a sua condição de assassino de crianças, atormentava-se Marcus com a perspectiva sombria de ver-se revelado em sua astúcia e perfídia.
Por isso, ocorria-lhe a ideia de actuar nos bastidores para que, através de influências escusas obter o afastamento do referido magistrado do comando da questão específica, para que um outro fosse designado para o caso, sem que parecesse que tal se dera por sua intervenção directa.
Segundo as determinações do magistrado oficial, dentro de duas semanas os pleiteantes se encontrariam diante dele para as apurações decisivas do caso, com a tomada das informações de ambas as partes.
Visando influenciar o juiz oficial, Marcus fez chegar-lhe ao conhecimento a existência de testemunhas da morte do menino, informando o nome e o local de moradia do curandeiro que na data dos factos pôde presenciar tudo e identificar a possível suspeita de ter envenenado o menor, afastando sua culpa.
Ele mesmo, através de seus enviados, conseguira a aquiescência do referido indivíduo a fim de que aceitasse comparecer perante a autoridade para manter o depoimento sobre os detalhes do caso.
Por outro lado, Lélia e Serápis aguardavam ansiosas, o momento de voltarem ao tribunal, único recurso para que a filha adoptiva pudesse ser reconduzida à antiga condição de companheira de lutas.
Relembramos o leitor de que Marcus, na anterior trajectória humana, houvera sido o mesmo Sávio, aquele que, por ser amante de Fúlvia - a actual Serápis - levara o veneno que esta destinava a Pilatos no cativeiro, veneno esse que, por fim, acabou sendo ingerido por Zacarias, na defesa do governador exilado.
Regressando aos braços de sua amante, terminou por ela igualmente envenenado e, no plano espiritual, acabou recolhido pelo espírito Zacarias, tendo sido mantido em modesto casebre nas regiões umbralinas para servir de base para o resgate dos demais personagens da história.
Zacarias lhe destinava atenção e carinho paternais e, por sua Intercessão, obteve Sávio a oportunidade de renascer na mesma Roma, desta vez como Marcus, com a função de auxiliar a recuperação de
Pilatos e Suplicio, que chegariam ao mundo para uma reencarnação de testemunhos e dores.
Marcus, no entanto, amedrontado e fragilizado pelas convenções sociais próprias daqueles que vivem uma vida aquinhoada, afastou-se do cumprimento das promessas feitas anteriormente e, não apenas abandonou a mãe dos dois infelizes sofredores, como também passou a conspirar para pôr fim à existência daqueles dois problemas em seu caminho.
Continuava cultivando a mesma veneração sensual com relação à antiga Fúlvia, agora sua ex-amante Serápis.
No entanto, nada queria fazer no sentido de ajudar os dois infelicitados indivíduos nos processos de reparação pela dor.
Ligando-se aos espíritos de mais inferior condição vibratória, passou a nutrir-se dos alimentos mentais e das sensações compartilhadas nos excessos das festas mundanas, nas quais seus ímpetos inferiores ganhavam força e se enraizavam os vícios em seu espírito.
Aumentava-se, assim, a ligação de Marcus com entidades de padrão vibratório negativo, já que comungavam todos das mesmas vontades, nos actos igualmente compartilhados e usufruídos.
Com isso, o pai de Demétrio e Lúcio se deixou arrastar para o resvaladouro onde se precipitam aqueles que perdem a solidez dos princípios morais para se permitirem chafurdar na lama das condutas ilícitas ou sem nobreza.
Planejara o golpe na vida de Serápis para que pudesse retomar o controle sobre ela, imaginando que, se a privasse de todos os seus pobres e horrendos tesouros, mais fácil seria atraí-la ao seu redil astuto e mau.
Não imaginava que a própria Serápis já houvera se modificado, deixando para trás aquele período de insensatez afectiva graças ao qual se estabeleceu o romance apaixonado com o patrão, na esperança de assumir, um dia, a mesma posição de Druzila, não só no coração do homem desejado, como também na estrutura social daquela capital depravada.
Marcus contava com as ambições de Serápis para elaborar aquele que lhe parecia o melhor plano para reconquistar-lhe o afecto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 10:22 am

Quando seu corpo adormecia, seu espírito se via envolvido pelos eflúvios pestilentos de Druzila que, valendo-se da peculiaridade plástica do perispirito, activado por uma forte vontade, apresentava-se aos seus olhos com a forma de Serápis, pegajosa e sedutora, iludindo-o com carícias provocantes, despertando mais desejos em seu íntimo e agindo para que, em momento algum, Marcus desistisse da ideia de ter Serápis em seus braços como antigamente.
Agora, as forças negativas que se uniam ao desejo negativo do homem que se julgava poderoso, percebiam que o momento de ferir Serápis se aproximava rapidamente, fosse com a retomada de Lúcia, fosse com a acusação de homicídio que, pela acção dos espíritos vingadores, se faria recair sobre Lélia.
Druzila exultava com a perspectiva de massacrar todos os envolvidos em sua tragédia, infelicitando Marcus, Serápis e Lélia de uma só vez.
E com isso, a própria entidade perseguidora estimulava em Marcus a ideia de trocar o juiz do caso para que ele não atrapalhasse as coisas com uma postura que parecia inclinar-se na direcção daquelas duas mulheres.
Imaginavam os 'romanos importantes que a Justiça era um instrumento que lhes pertencia e que deveria ser usado para garantir e proteger os interesses da classe dominante, não cogitando, em geral, da legalidade dos procedimentos e da imparcialidade dos magistrados que, quando se mantinham firmes em seus princípios, eram sempre considerados amantes da plebe, instrumentos da desordem, indignos da confiança das classes mais elevadas da sociedade romana.
Com tais conceitos estabelecidos em seu pensamento, envolvido pais intuições de Druzila, Marcus tratou de mover seus influentes contactos, como já se disse, para que o julgamento final do caso estivesse a cargo de outro magistrado que não aquele que, originariamente, lhe havia concedido a guarda da filha Lúcia, mas que, agora, estava dando demasiada importância às acusações de Serápis.
No entanto, sabendo de suas andanças pelos gabinetes importantes, sempre com promessas de recompensa e favores na forma de presentes, o espírito Zacarias acompanhava os tortuosos passos que Marcus resolvera empreender para comprometer-se novamente com as forças do destino.
Chamado a um testemunho verdadeiro de renúncia e devotamento, para o qual lhe haviam sido concedidos recursos materiais abundantes com os quais poderia garantir facilmente os bens e as facilidades aos filhos aleijados, preferira caminhar pelo mundo de braços dados com a inutilidade, com o gozo fácil, com a irresponsabilidade gastadora.
Apesar do muito que houvera recebido antes da reencarnação em curso, a fim de se preparar para estar na Terra no cumprimento de parte de importante missão de reajuste, Marcus tergiversara, fugira e se embrenhava por trilhas muito mais dolorosas do que ele mesmo fosse capaz de supor.
Assim, amando aquele jovem doidivanas e imaturo, Zacarias houve por bem preparar Marcus para um encontro espiritual durante o seu repouso, através do qual o alertaria para os dias do futuro e lhe solicitaria que não modificasse o curso das coisas, comprometendo-se ainda mais com as leis sagradas que regem a Justiça no mundo.
Envolvido pelo magnetismo superior de uma plêiade de espíritos fraternos que, ainda que à distância, mantinham a observação sobre o antigo amante de Serápis, sem que os espíritos trevosos tivessem como impedir, tão logo deixou o corpo físico em virtude do sono nocturno, Marcus foi acolhido por entidades luminosas e encaminhado a delicada região, incompreensível aos seus olhos, na qual sentiu-se despertar de um brando e agradável sono.
Estaria sonhando acordado?
Sentiria aquela sensação para o resto de seus dias?
Que lugar seria aquele?
A morada de algum dos deuses romanos que ele não conseguia identificar?
E enquanto suas divagações se acumulavam em sua cabeça, buscando respostas para suas angústias, eis que vê se formar à frente de seus olhos, a imagem de Zacarias, que parecia sair do nada, como uma miragem que ganha forma depois de abandonar a bruma da madrugada, à feição de alguém que construísse com ela as próprias vestes luminosas e fofas.
A face brilhante e serena, o sorriso generoso e afável, a barba longa e branca, a face segura e doce, eram impressionantes características que faziam com que Marcus se lembrasse de alguma coisa no mais profundo de seu ser, sem saber identificar de onde vinha aquela sensação de amistosidade, de veneração que ele carregava dentro de si mesmo e que se perdera ao longo dos anos vividos.
A presença generosa de Zacarias, no entanto, envolvia o homem deslocado em espírito para aquela região etérea em uma atmosfera de paz indizível e certeza de que aquilo não havia sido apenas um sonho em maiores consequências.
- Venha em paz, meu filho! - disse Zacarias, com sua voz doce e cativante.
Ao timbre suave daquela cantiga paternal, Marcus sentiu-se tremer o mais íntimo, já que ele tinha certeza já ter escutado aquela voz.
Impotência absoluta tomou conta do seu espírito que, diante de uma grandeza tão humilde, não sabia nem o que falar, nem como se postar.
Segurou nas mãos daquele venerável espírito que a consciência não lhe sabia informar com exactidão o nome, mas que, indubitavelmente, fazia parte de sua vida pretérita, e parecia o náufrago que chegou até um tronco flutuante que poderia ser-lhe a salvação no mar revolto.
- Não se preocupe em me identificar para que você não desperdice suas energias com coisas inúteis.
Somos espíritos ligados por Jesus já há muito tempo e sempre estarei ao seu lado para que o Divino Mestre seja compreendido por você.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 10:22 am

Este encontro, no entanto, tem a finalidade de solicitar à sua consciência que reveja as deliberações que está buscando para influenciar no curso dos destinos alheios.
Sempre que nos colocamos na função de Deus, Marcus, acabamos fustigados com a chama do mesmo fogo que endereçávamos aos outros.
Você deliberou fazer coisas nocivas a inocentes que lhe competia proteger, numa escolha livre que nós respeitamos, apesar de lastimá-la.
No entanto, agora você está buscando envolver outras pessoas na transformação dos destinos, valendo-se de uma instituição de responsabilidade e nobreza que somente os séculos futuros poderão entender e descortinar.
Não leve estas coisas mais longe do que já foram, meu filho.
Lúcia era feliz ao lado de sua mãe adoptiva.
Você não conhece as ligações do passado entre elas e não pode imaginar quanto elas estão necessitando caminhar juntas, agora.
Não imagine que será a melhor forma de reconquistara mulher do coração, usando de estratagemas que, assim que descobertos, o farão o mais odiado dos homens no mundo.
Os conselhos de Zacarias eram curtos e directos porque ele sabia das grandes dificuldades de Marcus em reter todo o conteúdo daquele entendimento.
Marcus, por sua vez, empalidecera de tal forma diante das advertências directas de Zacarias, como se alguém muito poderoso lhe tivesse descoberto os planos, que mais se assemelhava a uma estátua de mármore do que a um espírito humano.
- Não se oponha aos ditames da lei do Universo, meu filho.
Não se arvore em julgador, em condenador, em administrador da Justiça, pois você não está preparado para tal e, assim, corre o sério risco de ver as coisas se tornarem ainda piores do que estão.
Devolva as coisas ao estado anterior. Traga os meninos de volta ao seio de sua mãe, ainda que os ignore para sempre.
Deixe Lúcia seguir o seu destino na companhia de Serápis.
Não interfira na ordem administrativa que comanda a Justiça dos homens, valendo-se de quaisquer artifícios ou influências.
Já há sangue suficiente em suas mãos para um bom período de dores reencarnatórias.
Por que fazer as coisas ficarem piores?
Por muito amá-lo, venho junto ao seu coração como paizinho que é grato por tudo o que você pôde fazer quando do resgate de Pilatos, Fúlvia e Suplício nas zonas umbralinas.
Agora, estou tentando auxiliá-lo a resgatar-se dos erros já cometidos, a fim de que eles não se tornem maiores ou piores.
E aproveitando o momento de silêncio emocionado através do qual Marcus, em espírito, escutava a exortação de Zacarias, a fim de que desistisse de seus planos, longe das influências de Druzila e dos espíritos que a obedeciam, o ancião luminoso acrescentou, terminando:
- Se você me ouvir e reparar os erros já cometidos dessa forma espontânea, esteja seguro de que eu poderei estar ao seu lado e fazer muito pela sua recuperação.
No entanto, se der seguimento às ideias inferiores, isso abrirá profundo fosso entre nós, que somente as décadas ou os séculos serão capazes de vencer, naturalmente me mantendo ligado a você pelas forças da oração, mas me impedindo de auxiliar pessoal e directamente no seu caso, meu filho.
Você possui a chave de seu destino, Marcus.
Não a transforme em adaga contra seu próprio peito.
Use-a como remédio, como alento, como tratamento para os males já praticados.
Enquanto Marcus se mantinha impressionado junto de Zacarias, as luminosas expressões do velhinho penetravam em seu perispirito apagado para ajudá-lo no armazenamento daqueles momentos de elevação, para que eles não ficassem esquecidos, já que, como sabia o ancião, ao regressar ao corpo físico as ideias principais ficariam gravadas em sua consciência, mas de uma forma nublada, confusa, sobretudo se ele acabasse sendo atraído para o exercício dos mesmos prazeres extenuantes oferecidos por Druzila como forma de manter o ex-marido sob seu controle hipnótico.
- Repare os erros, meu filho e não interfira nos mecanismos da Justiça dos homens, é tudo quanto eu lhe peço.
Encerrada a conversação, Zacarias impôs as mãos sobre a cabeça de Marcus e dirigiu a Jesus comovedora oração solicitando as concessões adicionais para que aquele homem em teste não se permitisse trilhar os piores caminhos.
Espíritos amigos cuidaram de trazer Marcus novamente ao corpo físico, sem que as entidades ignorantes tivessem como impedir ou actuar sobre ele, de imediato.
Afinal, como sabiam, eram incapazes contra os "filhos do cordeiro", como costumavam chamar os seguidores de Jesus.
No entanto, tão logo Marcus voltou ao corpo, acordando lentamente daquele primeiro encontro com o mundo invisível, sentindo as inefáveis e inexplicáveis sensações da presença superior e familiar de Zacarias, recebeu novamente o convite e o envolvimento de Druzila, que se atirara sobre ele como verdadeiro morcego a requisitar a posse de sua presa, agarrando-se aos centros vibratórios que comandavam a sua sexualidade e projectando em sua mente as imagens sedutoras de uma Serápis fácil e apaixonada, a esticar-lhe os braços e solicitar seus carinhos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 10:22 am

Era assim que estas entidades buscavam neutralizar as forças do Bem junto das pessoas invigilantes, fazendo-as experimentar, por causa de suas próprias fraquezas, aquelas sensações mais candentes que, por esse motivo, encobriam qualquer beleza ou subtileza espiritual superior decorrente do encontro com Zacarias.
Naturalmente invigilante, logo que as influências mentais se fizeram mais fortes sobre um Marcos entorpecido, as suas tendências sensuais e os impulsos masculinos se fizeram sentir mais intensamente e, embalado pela sensação dos carinhos da mulher amada, voltou à atmosfera do mundo invisível, desta vez abraçado ao espírito horrendo de Druzila, que se travestia de Serápis para melhor representar o seu papel e mais facilmente enganar o tolo que tinha sob seu comando.
Mais uma vez, querido leitor, o mundo espiritual amigo se esforçava para tentar ajudar aqueles que, prestes a enveredarem pelo terreno da arbitrariedade, recusam-se a escutar os conselhos da razão, da lógica, da lei, dos amigos, da consciência e das próprias entidades protectoras, desejando correr os riscos e fazer valer as próprias metas, contrariamente a todas as leis da vida.
No entanto, o amor e a bondade se haviam feito presentes para impedir que Marcus se arrependesse dos seus actos quando isso já fosse tarde demais para ele.
Envolvido pelos seus impulsos inferiores e sem desejar resistir ao convite da sedução carnal que se apresentava, inclusive, durante os momentos de repouso para o seu espírito viciado, Marcus repelira com facilidade os conselhos elevados de que fora objecto e, ao amanhecer do outro dia, sem que qualquer alteração fosse observável, encontraremos sua imaginação excitada tão somente pelos sonhos que tivera com Serápis naquela noite, presságio positivo, segundo costumava-se interpretar naqueles tempos, de que tudo sairia como planejado, apesar dos pequenos percalços do caminho.
Somente sua consciência profunda mantinha o registo do encontro com Zacarias para que, no futuro, estivesse registada em si mesmo a prova de que o mundo invisível tudo fizera para que ele não sofresse.
No dia seguinte, conforme seus planos, compareceu à casa de julgamentos para levar pessoalmente o curandeiro à presença do magistrado, o qual, considerando a sua condição principesca e patrícia, recebeu a ambos e demonstrou interesse nos depoimentos do homem que, mantendo a sua versão dos factos, relatava os pormenores da conversa com Lélia sem identificar-lhe o nome, mas referindo-se constantemente à ideia central de que ela levara até aquela casa o bolo que lhe parecia ter sido o causador do envenenamento.
Revelou que, ainda que sem se lembrar do nome, seria capaz de identificar a mulher se estivesse em sua presença.
O magistrado, no entanto, ainda que tratasse Marcus com consideração e respeito, não se inclinava servil à sua importante e abastada condição social.
Em vez de dar logo por encerrado o caso e mandar as pessoas para suas casas, mantinha-se firme na apuração de todos os fatos, não sem antes agradecer a presença da testemunha, ressaltando que, por causa desse depoimento, se tornava ainda mais urgente a audiência que já houvera deliberado realizar para daí a alguns dias, ocasião em que todos os envolvidos directamente estariam ali presentes, o que ainda mais contrariou os desejos de Marcus.
Quanto mais ele se movia para antecipar as coisas, mais parecia que as coisas se tornavam piores para ele, forçando a realização da audiência que ele pretendia abortar com as informações antecipadas.
Saiu da presença do magistrado ainda mais decidido em lutar pela sua substituição.
Se não o conseguisse por meios legais, arrumaria uma forma de criar obstáculos ilegais para que não se mantivesse à frente do processo.
Contactaria bandidos assalariados para que, no dia do encontro, criassem problemas para o juiz, para a sua família, ou qualquer outra coisa que viesse a impedir a sua tarefa como juiz daquela causa.
Já se haviam passado quase dois meses desde aquele dia em que tudo acontecera e, sabendo que Tito era o único homem de confiança e o único a quem revelara todos os pormenores do plano, precisava muito de sua presença para que, com base em seu depoimento forjado; atestasse a inocência do patrão, informando ao magistrado de que ambos se encontravam ausentes de Roma no dia dos factos.
Para Tito não seria difícil mentir, já que ele próprio se achava envolvido naquele negócio escuso, pelo qual iria receber pequena fortuna, que lhe tornaria suave a vida pelo resto dos dias.
Tito, no entanto, não chegava.
Marcus enviara seus empregados por todos os caminhos que saíam de Roma para ver se encontravam o emissário que regressava, tudo em vão.
O dia da audiência se aproximava e sabia ele que, naquela data, tudo se resolveria a seu favor.
Acusado por Serápis, levaria testemunhas que provariam a sua inocência e apontariam a verdadeira culpada pela morte de Domício.
E percebendo a sua inocência, tanto quanto a possibilidade de estar junto de Lúcia, Marcus aproveitaria da audiência para externar seus mais sinceros desejos de trazer Serápis para o palácio, diante da autoridade legal que tudo testemunharia.
Ali, na sua presença, uma vez afastada a suspeita de homicida ou infanticida, confessar-se-ia apaixonado por Serápis e solicitaria que ela o aceitasse como seu marido legítimo, oferecendo-lhe as vantagens materiais que detinha, tanto quanto a oportunidade de voltar ao convívio da filha.
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