LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:24 pm

Por isso, renovo o meu pedido perante a sua generosa oferta de auto sacrifício:
E sem conseguir mais conter a emoção que carregava no peito, Fábio desabafou, em lágrimas:
- Pai..., aceite a minha companhia ao seu lado.
Nesse momento, Tito não mais conseguiu, igualmente, conter as lágrimas e, colocando a cabeça entre as mãos, mergulhou em um convulsivo choro emocionado, como se o peso de um mundo inteiro começasse a ser tirado de cima de seu coração, como se a vida, a partir daquela frase curta, começasse a valer a pena ser vivida, como se nada mais importasse, a partir dali.
Ele, que se oferecera para ir buscar os filhos alheios, ele, que se fizera sensível à dor do coração materno que chorava a ausência de dois aleijados do mundo, ele, que se fizera o último elo de contacto com tão desimportantes criaturas, ao dispor-se ao resgate dos estranhos, naquele momento, estava encontrando o próprio filho que abandonara.
Num átimo, relembrou-se das palavras proféticas escutadas no sonho daquela noite no navio:
- "A Bondade Divina está se ocupando de todos vocês porque está também se ocupando do destino destes dois infelizes no mundo.
Você foi escolhido para ser o responsável temporário por conduzi-los, Tito, porque Deus conhece a sua dor íntima e deseja ajudar, fechando feridas produzidas por abandono no passado.
Deus conhece o peso de sua consciência por haver relegado ao abandono pobre mulher que se vira engravidada no relacionamento que ambos mantiveram.
Seu receio diante da paternidade fizera daquela situação um tormento para seu futuro de homem sem compromissos, levando-o a fugir sem explicações.
No entanto, seu coração e sua mente, muitas vezes, no silêncio de suas ideias e sentimentos, se perguntam o que deverá ter acontecido à Sabina, a jovem que se entregou aos seus argumentos sedutores.
Olhe para estas crianças, Tito, como o filho de Sabina, aquele que você ajudou a colocar no mundo sem que tivesse tido a coragem de criar.
Pense que estes poderiam ser os seus e que, efectivamente, de alguma sorte, como filhos de Deus e irmãos uns dos outros, na pessoa destas crianças desditosas, você estará dando o primeiro passo no sentido de obter o perdão dos próprios erros no tribunal inflexível da consciência.
Você haverá de encontrar Sabina um dia e, nessa hora, será necessário ter alguma coisa para apresentar diante da realidade da fuga para que seja levado em consideração como forma de arrependimento.
Não lhes faça mal, nem prejudique estes inocentes que nenhuma maldade lhe fizeram.
Mais do que isso, eles representam a sagrada oportunidade de recuperação diante de seus próprios erros.
Um dia você pretenderá que seu filho perdido o aceite como um verdadeiro pai, apesar de sua covardia inicial.
No que você fizer por estes dois meninos estará a chave para que a sua consciência o perdoe e que seu filho o reconheça como verdadeiro pai.
É isso tudo quanto lhe pedimos.
Ajude-os já que o destino que eles mesmos escolheram se tem apresentado difícil na solidão que precisarão enfrentar doravante."
Todos choravam e, envolvendo o ambiente daquele lar, as luzes espirituais de Simeão faziam eco em seus corações, despertando os detalhes mais marcantes daquele compromisso em meio do mar.
Era o momento da gratidão, da retribuição da espiritualidade amiga ao irmão arrependido que modificara o próprio destino ao enfrentar a verdade em vez de conspurcá-la ou violá-la com a mentira e a injustiça.
Lívia, ali presente tanto quanto Zacarias, Cléofas e Licínio acercou-se de Lélia e, tocando-lhe as fibras da alma, lhe sussurrou aos ouvidos:
- Filha, eis o amado de seu coração.
Não permita que um equívoco apenas se eternize no afastamento de uma vida.
Seu esforço na superação de seu delito é notória flor pura a nascer do charco de suas quedas.
Eis o momento da verdadeira reaproximação, Lélia.
Seu coração precisa encontrar neste filho o homem que, no passado, não soubera ser mais do que o menino assustado.
Ele suportou tudo isto por sentir um verdadeiro amor por você.
Um amor que supera os impérios dos homens, supera a duração das estrelas do céu, que ultrapassa a fronteira do tempo.
Não desperdice esta oportunidade.
Safirinos raios luz partiam do coração daquela heroína do afecto, daquele espírito que soubera amar sem ser amada, que se fizera vítima da injustiça sem revoltar-se e sem esquecer o sentimento verdadeiro pelo insensato esposo, iludido e tolo.
Lívia incendiava com sua luz espontânea todo o ambiente, e não havia, ali, quem não sentisse suas vibrações de pureza e ternura. Lélia, Serápis e Lúcia recebiam-lhe o impacto emocional directamente no centro do afecto.
E sem que seus ouvidos escutassem as palavras da nobre entidade, Lélia viu despertado no coração os sentimentos sonhadores da adolescente que amava com confiança, que sentia uma pulsação de carinho desconhecida dos que não se entregam com plenitude e verdade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:24 pm

Uma igualmente gigantesca ternura penetrou-lhe o ser, observando a comovente cena de Tito entregue às lágrimas amargas e doces, viu a reaproximação entre o filho abandonado e o pai que o ignorara e sentiu-se premida a fazer alguma coisa para que seu afecto selasse aquele recomeço de família, adiado por quase duas décadas, mas que renasceria com base na verdade, no arrependimento, no carinho mútuos e na fé de um Amor que nunca esquece e que é Perdão sempre.
Lélia, então, encorajada pelas forças de Lívia, mas fundada na própria decisão compassiva de esquecer o mal e transformá-lo em Amor, aproximando Fábio com um dos braços, enlaçou o antigo companheiro com o outro, num abraço triplo que, no silêncio das lágrimas de felicidade e ternura, vinha fecundar o solo seco onde a semente da reaproximação espiritual fora plantada quando os processos de reencarnação para uma nova jornada terrena estavam sendo organizados entre eles, no plano espiritual.
Assim, a partir daquele dia, todos se reuniriam ao redor dos novos objectivos, preparando a partida da viagem, estudando os melhores itinerários e sonhando, entre preces e invocações colectivas, com a difícil, mas possível circunstância de encontrar os filhos perdidos, ou, ao menos, notícias deles.
Ao longe, Lúcio, Demétrio e Décio se achavam perdidos no intrincado cipoal da sobrevivência, no meio hostil de uma Gália violenta, pobre e cheia de desafios aos indivíduos normais, que dizer, então, aos que traziam o corpo marcado pelas chagas e deficiências.
Agora, nos sonhos nocturnos dos nossos dois caravaneiros da esperança, duas mãos luminosas apareciam como a lhes indicar, veladamente, a protecção para o caminho, as mesmas mãos de luz que haviam guiado a embarcação romana, as mesmas que iriam marcar os passos do Bem no escuro trajecto pelas furnas da dor e da ignorância, aceitando os desafios de se erguerem como os benfeitores dos demais, não se incomodando com obstáculos, não se valendo das mesmas armas do mal, não se intimidando com as agressões, suportando a incompreensão e as injustiças.
Aquele era um período de semeadura para a implantação do Reino de Deus no coração das pessoas.
Espíritos elevados vinham à Terra para desempenharem sacrificiosas missões, enquanto muitos outros, arrependidos, que se alistaram como soldados do Bem, mergulhavam no escafandro físico para dar testemunho dos novos rumos espirituais escolhidos.
Assim, na Roma daqueles tempos estavam renascidos muitos dos que haviam perecido no Circo Máximo, nas inúmeras perseguições desde Nero e que, ouvindo a palavra de amor do Divino Amigo, haviam aceitado o caminho áspero como forma de recomeço de sua própria epopeia evolutiva, como fora descrito no início desta obra.
Ali estavam eles, os que serviam de postes incandescentes, os que eram alimento para as feras, os que se viam perdidos nos calabouços daquela cidade devoradora sem malbaratarem a fé, sem titubearem no testemunho, sem fugirem da exemplificação na hora difícil.
Na figura de muitos dos que foram vitimados, encontraremos espíritos cujo desejo de superação fez a diferença entre seu atraso moral e a sua capacitação para tarefas mais nobres no seio da humanidade.
Tito estava seguindo seu caminho de arrependimento espiritual e de decisiva colaboração com as forças do Amor que mourejavam na Terra daqueles tempos, tanto quanto seguem trabalhando na Terra de hoje contando com você próprio, querido leitor.
Deixaremos, agora, que as lutas demoradas e dolorosas do trajecto possam ir esculpindo o carácter espiritual daqueles dois seres que, na condição de pai e filho, agora aprendiam a vencer as adversidades construídas quando, em vidas anteriores, haviam sido adversários no afecto de Lélia, inimigos que se hostilizaram para a conquista de um coração feminino o qual, agora, se lhes apresentava como mãe e companheira, cimentando as novas edificações com o cimento de seu carinho a estimular em ambos o desejo de se aproximarem para que mais sentissem o afecto daquela que seguiam amando.
Transportar-nos-emos para o interior da antiga França, a Gália de outrora, onde encontraremos Lúcio e Demétrio, aqueles cuja trajectória evolutiva se fazia mais áspera do que a dos demais e que, no meio de deficiências e sofrimentos, haviam encontrado a mão luminosa a se lhes apresentar através de Décio, o devotado servidor do Bem que a Misericórdia do Pai enviara para lhes servir de esteio e apoio nas horas difíceis.
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31 - Resgates necessários

Desde que deixaram o porto, depois de abandonados por Marcus, já acompanhamos a trajectória das três personagens desta narrativa sobre os quais nos compete, agora, tecer maior aprofundamento.
Ingressando pelo interior da Gália em busca de isolamento, Décio conseguiu modesta propriedade na qual passou a viver com os dois meninos que, para a curiosidade alheia, passaram a ser apresentados como seus dois filhos, chegados ali para se esquecerem da morte de suposta esposa amada e mãe, vitimada por violenta enfermidade.
Com essa explicação simples e conveniente, as pessoas mais próximas se davam por satisfeitas e, por isso, aos dois meninos não foi difícil começarem a chamar Décio de pai.
Como o estado de saúde de ambos precisava de cuidados, Décio entregou-se de forma devotada e carinhosa a fornecer-lhes os melhores tipos de alimentos e cuidados, tornando a recuperação de ambos um processo que lhe consumia boa parte do dia.
Demétrio, sempre mais revoltado com suas limitações, custava a aceitar com paciência as situações que se apresentavam, muitas vezes, a desafiarem sua capacidade de acção.
Naturalmente, o que suas mãos ausentes não eram capazes de fazer e seus braços inexistentes não conseguiam realizar, sua boca e suas palavras realizavam em impropérios e xingamentos, já que, à medida que ia crescendo e ganhando mais contacto com o mundo, lhe era muito difícil conviver com as posturas preconceituosas dos outros.
Não aceitava que qualquer pessoa dirigisse o olhar espantado em sua direcção e sua boca se transformava em uma metralhadora de insultos. Isso levara Décio a não permitir que se aventurasse sozinho muito além dos limites da pequenina chácara onde passavam a maior parte do tempo.
O crescimento físico tornara Demétrio mais amargo e rebelde, sendo causador, muitas vezes, de desentendimentos com os estranhos que, por causa disso, outra coisa não tinham prazer em fazer do que provocá-lo, com ditos chistosos, apelidando-o com toda sorte de adjectivos pejorativos.
Graças ao sofrimento que os resgates das passadas faltas lhe impunham, Lúcio fora modelado de forma a tornar-se menos temperamental e agressivo naquela encarnação, ainda que, em seu íntimo, os antigos defeitos que se acumularam em sua alma pelas reiteradas práticas ilícitas, quando vivera sob a personalidade de Pilatos, continuassem presentes. Tal atenuação episódica, entretanto, se tornara possível também em face da interferência de Lúcia, de seu carinho fraterno, tanto quanto pela influência positiva e amorosa de Décio que, com paciência e devotamento, ia ajudando os dois filhos adoptivos no enfrentamento de seus problemas.
A própria enfermidade visual se tornava uma bênção já que, além de ser uma limitação aos seus impulsos mais agressivos, era, igualmente, um véu protector que impedia que ele constatasse a expressão de repulsa que causava nos demais à sua volta.
No entanto, a dor abdominal seguia inclemente, obrigando-o a limitar seus deslocamentos e manter-se em posição semi-arcada, como a proteger a região ferida do contacto com as roupas rústicas que tinha que usar.
Os cuidados de Décio se tornaram essenciais para a melhoria de sua capacidade física e, depois de alguns meses juntos naquela pequena propriedade rural, sob a disciplina de uma alimentação saudável e protegidos pelo carinho do novo pai que a Sabedoria Divina lhes facultara para aquela etapa evolutiva, a região umbilical se regenerara quase que por completo, apresentando apenas uma delicada membrana cicatricial a indicar a delicadeza da área e a necessidade de constantes cuidados.
Isso aliviou as dores de Lúcio, permitindo que ele pudesse deslocar-se com mais facilidade e independência.
Com a participação directa e decisiva de Décio, Demétrio se viu um pouco liberado da dependência de Lúcio, que podia contar com o novo pai para os cuidados com o cego, permitindo-se, então, agir com maior liberdade.
No entanto, fazia-o no interior da pequena propriedade, evitando deixar os seus limites pelas zombarias de que se via objecto e pela maldade de outros garotos ou jovens de sua idade, sempre prontos a produzirem situações embaraçosas ou perigosas, das quais extraíam boas gargalhadas.
Preferia caminhar no território protegido da pequena chácara, distanciada da presença directa dos olhares indiscretos.
Enquanto isso, Lúcio permanecia na dependência de Décio, recebendo alimentos mais substanciosos, ajudando em pequenos serviços para desenvolver a capacidade de trabalho, apesar da deficiência visual.
Demétrio não se dispunha a esforçar-se para nada, já que a ausência de braços lhe parecia uma convincente desculpa para não tentar fazer nada com os pés ou com o auxílio da boca.
Sempre que estavam juntos, Décio se esforçava em lhes falar de Jesus e explicar as coisas do Evangelho, com a finalidade de fazê-los entender as mensagens do Mestre que, se para muitos eram tão produtivas, para os aflitos do mundo como eles, em especial, eram a base, o pão e o alicerce de suas forças.
Pelo seu carácter um pouco melhorado, Lúcio era o mais aberto às explicações de seu paizinho, enquanto que o irmão, insatisfeito com a vida, vivia contrariando as afirmativas generosas e pacientes de Décio, que não desistia de continuar semeando em seus corações.
O crescimento dos mais jovens foi acompanhado pelo envelhecimento do tutor improvisado que, a despeito disso, continuava a realizar os serviços gerais a benefício da família que Deus lhe concedera.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:25 pm

Os cuidados com o plantio, o crescimento e a colheita eram fundamentais para a existência de víveres que pudessem ser vendidos ou trocados por outros, tomando uma boa parte do tempo de Décio.
Os recursos que Caio lhe tinha oferecido generosamente estavam bem administrados, sendo utilizados apenas em momentos de muita necessidade, obrigando que, de uma forma ou de outra, todos os membros daquele pequeno grupo se disciplinassem na organização das coisas da melhor maneira possível.
O crescimento dos meninos, com o passar dos anos, fizera com que suas personalidades efectivas aflorassem e, uma vez reveladas, demonstrassem o pouco grau evolutivo que lhes era próprio.
No caso de Demétrio, espírito menos evoluído, a singela menção da Boa Nova e do exemplo de Jesus representavam um motivo para rebeldia e discussão.
Demétrio e seu irmão se encontravam na fase que os romanos consideravam como o início da condição adulta, aproximando-se dos dezassete anos.
Ele não era capaz de entender por que Deus e aquele Jesus tinham tanta raiva dele e do irmão para permitirem que ambos nascessem com aquele estigma.
Naturalmente que, ingressando na fase adulta, Demétrio sonhava em encontrar uma companheira, uma mulher com quem construir um lar, um ser que lhe fosse capaz de amparar e servir de apoio para a continuidade da vida, longe da solidão.
No entanto, as primeiras tentativas de encontrar o complemento da afectividade foram frustradas pelas naturais repulsas de que se via objecto, tanto por parte das jovens, mesmo as mais feias, quanto por parte de seus familiares, que não aceitariam ter a sua descendência maculada pela inserção de um membro desfigurado no rol de seus ancestrais.
Não tardou a Demétrio perceber que sua jornada na Terra, a não ser que tivesse dinheiro para oferecer como chamariz, seria a do aleijado solitário e entregue a si mesmo.
Daí, entre se manter resignado, na condição de aprendiz da paciência e da perseverança, abrindo caminhos para se ver admirado pelos outros, graças ao desenvolvimento de suas virtudes, o jovem preferiu enveredar pela construção planejada e meticulosa de uma estratégia que lhe permitisse arrecadar fundos para que, com eles, pudesse se impor ao coração de qualquer mulher e de seus familiares que, olhando para seu património, não seriam capazes de ver suas deficiências como obstáculos.
No entanto, sua falta de braços impedia que seus intentos levianos de furto ou de subtracção dos bens alheios fossem bem sucedidos.
A falta de braços e de oportunidades deixavam-no ainda mais irritado.
Pensava em furtar os outros, mas como é que uma pessoa sem braços poderia fazê-lo?
Por esse motivo, Demétrio voltou ao antigo método que aprendera a desenvolver na Roma de anos atrás, através da exibição pública de seus parcos dotes como cantor popular.
Não dominava a língua do local, mas cantando no velho latim de sua terra, não seria difícil que alguém entendesse suas palavras e correspondesse aos seus desejos.
Conversando com Décio, solicitou-lhe o auxílio para que encontrassem um local adequado no modesto vilarejo na proximidade do qual passaram a viver para que, com o irmão a segurar pequena caixa de madeira, ambos trabalhassem na arrecadação de recursos para as necessidades da família.
Lúcio não poderia tocar nenhum instrumento, já que não mais os possuía, mas estando ali, de olhos apagados, seria aquele que se mantém dominando a caixa de auxílio, recolhendo as espórtulas dos passantes e impedindo que qualquer engraçadinho se visse tentado a furtar o seu conteúdo.
Entendendo as suas necessidades e reconhecendo que seria muito importante que os dois encontrassem uma destinação útil para o tempo de que dispunham, enquanto ele se dedicava à organização da chácara, Décio acedeu, prazeroso, e, sem perda de tempo, buscou na localidade mais próxima um recanto favorável, à beira do caminho de maior movimento e à sombra de uma agradável árvore, para que os dois filhos do coração ali pudessem se apresentar ao longo de uma parte do dia e, com um pouco de sorte, receberem esmolas pela apresentação.
Nas primeiras vezes, Décio se manteve presente para que os transeuntes pudessem entender que ele estaria por perto, como a velar pelas condições gerais dos dois filhos deficientes.
Depois, no entanto, o tempo se incumbiu de tornar os jovens mais conhecidos dos passantes e, cada dia era uma nova empreitada de esforço e entrega, vergonha e esperança.
Nesse novo trabalho, a repetir a mesma função que desenvolviam em Roma, na época do sequestro, os dois jovens enfrentavam de tudo.
Desde pessoas que paravam para escutar o teor das cantigas e sorriam como estímulo aos dois esforçados, até outros que escarravam dentro da caixa de madeira, conspurcando as poucas moedas que ali estavam, numa manifestação animalesca de indiferença e mesquinhez para com a dor alheia.
Os recursos eram poucos, mas, ainda assim, cada dia voltavam para casa carregando alguma coisa para colaborarem nos recursos e gastos da família.
Décio os estimulava sempre, dizendo que a parte que ganhassem juntos, permaneceria com eles, como um depósito para emergências ou para as realizações de seus desejos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:25 pm

Isso alegrou os dois jovens que, agora, tinham redobrados motivos para se exporem sem se importarem de ter que lavar as moedas no riacho próximo, limpando-as do catarro de alguns que, ignorantes, em realidade, davam o que tinham...
Pelo entendimento dos dois jovens, ambos iriam juntar as moedas em um saco para que, reunidas, pudessem mais tarde ser divididas entre eles a fim de que cada um fizesse o que bem entendesse.
Dia após dia, canto após canto, humilhação após humilhação, as pobres moedinhas iam sendo juntadas umas às outras e guardadas em local protegido dos olhares cobiçosos dos possíveis usurpadores.
Lúcio se sentia satisfeito com a possibilidade de estar ajudando na arrecadação dos recursos, ainda que não fosse capaz de ver-lhes o valor.
Demétrio, no entanto, mais interessado nas rendas daquilo que sentia ser trabalho apenas seu, já que seu irmão nada fazia a não ser segurar a caixa, carregava no âmago do ser a ideia de conseguir para si mais do que as moedas que lhe cabiam na divisão dos recursos.
Ao mesmo tempo em que os dois ficavam mais conhecidos, os outros também passavam a lhes ser mais familiares, principalmente a Demétrio, que sonhava muito em encontrar uma companheira que o aceitasse.
Nessa situação, uma jovem romana que todos os dias precisava transitar por aquele local atendendo às obrigações de sua casa, punha-se a admirar o esforço daqueles dois jovens desconhecidos.
E nas idas e vindas, nas palavras que trocavam, no desejo de estimular suas empreitadas, a sua simpatia espontânea foi entendida por Demétrio como sendo interesse afectivo, o que veio ao encontro do incêndio íntimo que ardia em seu coração vazio.
Jamais a moça dera qualquer demonstração de um desejo específico, mas a simples simpatia e a pouca atenção que lhes dedicava, diante da total indiferença dos outros, acabara interpretada por Demétrio como indicativo de potencial estabelecimento de laços mais íntimos, a demonstrar o interesse da jovem que, segundo suas interpretações presunçosas, talvez se tivesse deixado enfeitiçar por sua voz agradável e macia.
Na verdade, Leonora não tinha a menor intenção de demonstrar qualquer interesse mais profundo, além do carinho fraterno dedicado a pessoas cuja deficiência, por si só, já torna a difícil aventura da vida ainda mais insípida e infeliz.
Demétrio, sem saber que a jovem precisava passar todos os dias por ali, interpretava a sua frequência ao local como outro indicativo de que estava criando condições para que se encontrassem ali, o que permitia que se mantivesse cheio de expectativas e esperanças.
Ao regressar para a chácara, depois de algum tempo do primeiro encontro com Leonora, Demétrio passou a agir como alguém que está, ao mesmo tempo, apaixonado e mais impaciente do que de costume.
Sua mente era um vulcão efervescente, pois dentro dele havia um conflito titânico entre o bom-senso que lhe dizia ser impossível que uma jovem como aquela se inclinasse por um monstro como ele, e a esperança de ser feliz, que o fazia pensar que aquela poderia ser a única oportunidade de sua vida.
Não sabia Demétrio que Leonora possuía um jovem que lhe estava prometido e para o qual ela própria se dedicava com amorosa solicitude e que, tão logo reunissem as condições mínimas para a união, estabeleceriam os fundamentos do futuro lar.
Enquanto isso, Leonora continuava servindo na casa modesta dos pais, moradores da localidade e que se serviam dela como ajudante nos serviços gerais, o que a obrigava a comparecer todos os dias à cidadezinha, em busca de víveres e outras coisas importantes para a casa.
Da mesma idade dos jovens deficientes, Leonora não apresentava qualquer distintivo de beleza especial que a transformasse em alguma beldade disputada.
Era uma mulher simples e normal que, no entanto, carregava no íntimo uma natural bondade, que encantava pelo sorriso feliz e com passivo que a acompanhava por onde passasse.
Essa forma de ser, atenciosa e gentil, encontrando Demétrio carente e ansioso, fizera despertar em sua alma sedenta de emoções, o desejo de ser aceito pelo coração da jovem, ainda que outra parte de sua consciência lhe aconselhasse a ter cuidados.
Naturalmente que as condições de segurança daquela época eram muito precárias e, espreitando todos os caminhos, olhos indiscretos sabiam acompanhar as pessoas invigilantes ou frágeis, para delas extrair os pertences que carregassem.
Por isso, era tão importante a presença de Lúcio junto a Demétrio, eis que seria muito mais difícil que alguém conseguisse assaltar a duas pessoas reunidas do que a uma única criatura, isolada e vulnerável.
Com essa ideia, Demétrio pensava numa maneira de estar ao lado de Leonora para descobrir onde ela morava e tornar-se mais fácil a abordagem.
Por isso, na primeira oportunidade que tivera, no intervalo de uma ou outra canção, dirigiu-se à jovem, galanteador, dizendo:
- E a mais bela de nossas ouvintes, não tem o desejo de solicitar nenhuma canção?
Surpresa com a frase certeira proferida por Demétrio, com um sorriso meio tímido nos lábios, Leonora olhou ao redor para certificar-se de que era com ela mesmo que ele falava.
Então, sorrindo meio sem jeito, a jovem exclamou simpática:
- Ora, meu amigo, os que pedem precisam honrar o pedido que fazem e, como nada tenho, não posso me dar ao luxo de solicitações específicas.
Fico, então, como uma ladra das escolhas alheias, a escutar e admirar as suas interpretações, desfrutando delas sem as obrigações do pagamento.
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Encantou-se Demétrio ainda mais, com a segurança e humildade da jovem.
E não desejando perder o fio da conversa, respondeu-lhe, cavalheiro:
- E nós nos deleitamos em furtar da ladra o prazer de admirar a sua beleza e a ternura de seus olhares, o que nos absolve do delito de tomar de quem já está tomando de outro também. No entanto, queremos desfrutar mais de sua companhia e, assim, se não tem pedido específico, aceite a canção que canto agora, como singelo pagamento pelo prazer de tê-la como nossa mais exuberante e simpática plateia.
Não é preciso dizer que tanto Leonora quanto Demétrio se fizeram enrubescer diante dos galanteios ali escutados, além de os outros transeuntes se admirarem dos modos do cantor, tecendo elogios públicos à desconhecida jovem, animando os demais espectadores a comentários insinuantes, desses que se observam até os dias de hoje quando se trata de referir-se a situações potencialmente reveladoras do sentimento.
Sem repelir as palavras doces de Demétrio, e pouco acostumada a ser o ponto central de homenagens daquele tipo, Leonora se viu envolvida por uma natural emoção que lhe produziu um tremor desconhecido, proveniente da mistura da homenagem de Demétrio e da circunstância de se ver no centro das atenções de todos os outros espectadores.
O canto do aleijado veio cheio de trinados e vibrações enlevadas, como se, por um momento, ele se tivesse esquecido da sua condição repulsiva de mutilado.
Ao terminar, os transeuntes aplaudiram e, voltados para Leonora, esperavam a sua reacção como aquela para a qual a cantiga fora dedicada.
Então, sem jeito e sem ter como pagar pela homenagem singela, não lhe ocorreu outra coisa do que dirigir-se até Lúcio, que segurava a caixa de madeira, e depositar-lhe um beijo nas mãos, colocando-as dentro de recipiente a indicar que aquele era o seu pagamento para as emoções daquela homenagem.
Feito isso, discretamente, afastou-se dali e retomou o rumo de sua casa.
Aquela fora a primeira emoção que o coração carente de Demétrio experimentava nas questões do afecto.
Não nos esqueçamos que estamos tratando do mesmo espírito que vivera quase um século antes como Suplício, aventureiro, irresponsável, cultivador dos prazeres sexuais desregrados, inveterado destruidor de lares, desnorteador de consciências, abusador de mulheres, aproveitador das circunstâncias.
Era natural que, agora, despido do poder ou da possível condição física agradável, se visse inclinado a conquistar afectos que se lhe escapavam da influência, a receber um carinho que não via ninguém lhe direccionar, a fugir da solidão e não encontrar outra companheira que não ela mesma.
E os gracejos dos outros ouvintes, as referências estimuladoras que os demais proferiam, diante das declarações afectuosas que ele lançara como forma de galanteio a iniciar uma aproximação, caíam-lhe na alma como um estímulo dos outros à possibilidade de ser feliz com alguém, de construir uma vida afectiva saudável.
Ao mesmo tempo, em seu coração não havia lugar para a menor possibilidade de a jovem não estar interessada e encantada com a sua condição de artista, maior e mais luminosa do que o seu estado de debilidade física.
Iludido pelos desejos de ventura, soltara as rédeas do cuidadoso bom-senso e se permitira enveredar pelas incertas paragens do sonho, do idílio romântico e da construção de castelos nas nuvens do sentimento, sem resguardar a menor possibilidade de que tudo não fosse como ele estava imaginando ser.
Leonora, no entanto, voltara para casa envolvida pela emoção daquela situação inusitada, mas, em momento algum, se deixara levar pela galanteria do cantor, correspondendo-lhe a qualquer intenção.
Dentro dela, nada tinha mudado em relação aos seus planos de felicidade.
No entanto, apesar de tudo isso, a condição de importância de que se viu revestida naquele ambiente, caía-lhe como uma alegre satisfação emocional, como se, naquele dia, tivesse valido a pena ter existido pelo simples fato de alguém ter reconhecido o seu valor ou a sua existência.
Dessa forma, sem contar isso a ninguém, já antevia a oportunidade de regressar ao mesmo lugar, como o cumprimento natural de seu dever de transitar por aquele caminho, esperando que, mais uma vez, o galanteio espontâneo daquele jovem a fizesse sentir as emoções belas de ser alguém importante no mundo.
Os dias seguintes seriam novas oportunidade de desfrutar tais emoções tanto para Leonora quanto para Demétrio que, em sua mente, já preparava os próximos passos de seu investimento, imaginando a aproximação mais directa em relação a seu alvo afectivo.
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:25 pm

32 - Surpresas difíceis

A presença dos romanos emigrados na Gália Narbonensis já durava mais de oito anos desde o abandono de Tito no porto de Narbonne.
Alguns anos antes, Roma havia sido abalada pela morte do imperador Adriano e as naturais incertezas da sucessão haviam marcado as preocupações tanto dos moradores da capital quanto dos habitantes de todo o Império.
Naturalmente, a perda do dirigente maior produzia sempre, em um estado centralizado, a impressão de desgoverno, a estimular a adopção de condutas arrojadas, como se não mais se estivesse sob o domínio do poderoso vigilante.
Nos governos extremamente centralizados e dependentes de uma expressão personalista, toda vez que tal centro se eclipsa, as incertezas naturais abrem espaço para disputas militares, para confusões sociais e para as torpezas de tantos quantos acreditem que, no espaço das turbulências, no vácuo da ordem, consigam obter vantagens ilícitas que não possam ser corrigidas naquela situação de confusão que se instalou na administração dos negócios.
E a lentidão das notícias, as dificuldades de transporte e comunicação faziam com que, somente depois de muito tempo, as coisas regressassem à condição ordenada, quando todo o Império, novamente submetido à autoridade de um outro centro poderoso, se visse domado pelas acções de uma nova cabeça dirigente.
Esse período era aquele em que se encontravam as nossas personagens, turbulento por natureza e dependente da definição das novas directrizes imperiais.
Em Roma, no ano de 139, Antonino Pio havia galgado a posição deixada por Adriano, e a sua origem gaélica tornava a Gália, sua província natal, cheia de esperanças e aspirações naturais.
No entanto, seus habitantes ainda se mantinham sob o impacto do vazio do poder, o que promovia um aumento significativo no número de crimes, na prática de furtos e delitos, uma vez que pessoas de índole má, aproveitando-se do aparente ou suposto enfraquecimento das rédeas da vigilância, se punham a cavaleiro para conquistarem impunemente alguma vantagem ou praticarem actos de vingança e abuso que, antes, não se encorajavam a praticar.
O clima de medo e de perigo aumentara desde a notícia da morte de Adriano e, enquanto não ocorressem modificações no panorama geral com a influência das medidas do novo Imperador, tal situação perduraria.
Assim, nossas personagens viviam esse período delicado, nos perigos e incertezas de um Estado inseguro, com um governo central tão distante quanto recente, além de uma difícil condição social, sem que isso, no entanto, impedisse a elaboração dos sonhos de afecto no coração de todas as pessoas.
Nos dias seguintes, Demétrio viu crescer a sua ansiedade por um momento de maior aproximação com Leonora, apesar das advertências de Décio para que ele não se empolgasse com a simpática moça, forma delicada de alertar o filho adoptivo para que não se iludisse, evitando futuras decepções ou problemas.
Demétrio, todavia, rebelde e teimoso por natureza, à medida que o tempo passava, se demonstrava mais senhor de si e com uma personalidade mais arrogante do que corajosa e, assim, apesar de escutar as advertências do benevolente Décio, em seu íntimo prosseguia determinado a conseguir seus intentos de conquista.
Também Lúcio, apesar da falta de visão física, que delimitava muito a sua capacidade de acção, de maneira mais sensata aconselhava o irmão para que não se infelicitasse em aventuras obviamente impossíveis.
Todavia, como o coração apaixonado não suporta as advertências da razão, nada lhe tirava da cabeça a possibilidade de conquistar aquela jovem simples e sensível que lhe centralizava as mais profundas e agitadas sensações.
Alguns dias depois daquele primeiro momento de aproximação, novamente os dois irmãos se encontravam no mesmo local, já tendo avançado as horas e aproximando-se o final do dia, sem que o coração de Demétrio se sentisse completado porquanto Leonora não se fizera apresentar como naquela primeira tarde.
Dificuldades familiares e certos receios diante das incertezas haviam impedido a sua vinda até o vilarejo, fazendo amargurado o sentimento do pobre cantor deficiente.
No entanto, quando já pensavam em voltar para casa, aproveitando a luz do dia, a figura simples de Leonora apontou no calçamento mais adiante, fazendo com que a pulsação do enamorado artista se acelerasse abruptamente.
A jovem dava sinais de que não se deteria, ainda que se mostrasse atraída pela presença dos jovens artistas infelizes.
Demétrio não podia perder a oportunidade de novo galanteio e, tão logo a aproximação tornou-se maior, elevou a voz, dizendo:
- Eis que, por fim, a nossa inspiração resolveu nos dar a honra da visita!
Sabendo que o cantor se dirigia à sua pessoa, Leonora diminuiu o passo e, voltando a cabeça discretamente, certificou-se de que era para ela mesma que Demétrio se dirigia.
- Estávamos esperando pela bela jovem a fim de que nos certificássemos de que a nossa canção mal cantada daquele dia não houvesse causado a sua morte - falou sorrindo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:25 pm

- Ora, senhor cantor, nenhuma canção bela pode causar mal, sobretudo quando oferecida como um presente generoso - respondeu, educada, a jovem que, a esta altura, já havia interrompido o passo.
Vendo a disposição favorável daquela que lhe correspondia ao diálogo, Demétrio procurou esticar a conversa, diante da ausência de outros ouvintes ou admiradores.
- Pois que nós havíamos pensado que alguma coisa houvesse acontecido com você, já que, desde aquele dia, não pudemos encontrá-la novamente...
- É que as actuais condições em que vivemos não permitem que nos arrisquemos muito, sobretudo por não poder contar com nenhuma companhia para voltar para casa.
- Ora, moça, perigos existem por toda parte...
- Sim, meu amigo, e imagine para uma mulher sem protecção!
- Não me parece que uma jovem tão simpática e bela se veja na situação de não possuir protectores que, em realidade, devem estar fazendo fila na porta de sua casa, com certeza.
Leonora enrubesceu ante a insinuação elogiosa de que se via objecto.
Mas não desejando encerrar a conversa, Demétrio entreviu, naquele silêncio, a possibilidade de Leonora não possuir, efectivamente, nenhum protector que pudesse lhe dar amparo no caminho de volta, o que favoreceria o estreitamento da amizade com a jovem.
Sem pensar em mais nada, disse-lhe:
- Pois eu gostaria de oferecer a nossa companhia a fim de seguirmos juntos pelo caminho até o seu destino.
Tanto eu quanto meu irmão teremos muito prazer em servir de companhia.
Não é lá muita coisa em virtude do nosso estado pessoal, mas é melhor do que nada.
Afinal, o número já é um factor que intimida.
- Não desejo criar qualquer dificuldade nem quero que vocês tenham que parar o trabalho a fim de caminharem para um destino diferente.
Leonora não pretendia criar embaraços aos dois jovens, que ali estavam para ganhar o pão através da caridade alheia.
Ao mesmo tempo, sentia-se constrangida por negar peremptoriamente a generosa oferta, estando no dilema de quem que não deseja comprometer-se, mas que, no fundo, não vê qualquer maldade em se ver acompanhada por um mutilado e um cego, de regresso pelo mesmo caminho.
Acertando as coisas de acordo com seus interesses, Demétrio respondeu:
- Pelo que vejo, seu caminho é na mesma direcção do nosso e não nos será nenhum sacrifício acompanhá-la.
Tentando conciliar as coisas e para evitar qualquer problema para sua reputação em face dos olhares indiscretos, Leonora acedeu, dizendo:
- Faremos assim, então:
Caminharemos até o trecho que nos seja comum e, depois, cada um segue para seu destino para não nos atrapalharmos demais, está bem?
Não desejando ser inconveniente com exigências mais amplas, Demétrio e Lúcio acederam, contentes, já que estariam contando com nova companhia para regressarem à chácara distante.
Os circunstantes não deixaram de notar a conversação de Demétrio e Leonora, acertando o regresso pela mesma estrada e, ainda que ninguém tivesse se aproximado do grupo, várias pessoas puderam ver a cena pouco comum na qual uma jovem solitária era acompanhada por aqueles dois indivíduos cuja deficiência física repugnava à mente normal daquele tempo, vistos por alguns como amaldiçoados ou como ameaça à paz do vilarejo.
Reunidos os pequenos pertences, entre os quais a caixa pobre onde a generosidade igualmente pobre fizera depositar pequenas moedas, o grupo tomou o rumo comum onde, alguns quilómetros adiante, bifurcação natural da estrada os afastaria cada um para o seu lado.
A generosidade e inocência da jovem fizeram-na oferecer o braço ao cego para que ele não precisasse seguir enganchado no ombro de Demétrio, em fila, como costumavam caminhar.
De seu outro lado, mantinha-se o irmão mutilado, como que a protegê-la, colocando-se no meio dos dois homens, ainda que guardando respeitosa distância.
Somente Lúcio se punha mais próximo fisicamente, pelo contacto físico necessário para ser guiado pelos caminhos acidentados que tinham pela frente.
Naturalmente, que o deslocamento se fizera mais lento do que o seria caso Leonora caminhasse sozinha, eis que, agora, ela necessitava respeitar as limitações de velocidade impostas pelo deficiente visual.
Isso fez com que o tempo de caminhada se alargasse mais do que o esperado e as penumbras vespertinas já se apresentassem no céu quando o grupo chegou ao ponto de separação, diante do qual os irmãos seguiriam para sua chácara e ela demandaria seu lar.
Demétrio, encantado com sua conversação leve e divertida, estava decidido a seguir com ela até sua casa, mas a postura firme da jovem se fizera inflexível, já que ela não desejava, igualmente, que seus pais a vissem na companhia daquele jovem mutilado, que poderia dar oportunidade tanto a punições quanto a erróneas suposições.
Leonora seguiria sozinha pelo pouco caminho que restava até o seu destino, enquanto os dois jovens se despediam dela, esperando pela nova oportunidade de se encontrarem, sobretudo agora que sabiam residir na mesma região.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:26 pm

Demétrio, esfuziante, chegara a casa entre o riso e o sonho, feliz pelo encontro e por ter podido se aproximar ainda mais da jovem.
Lúcio também demonstrara a Décio a sua surpresa com a jovialidade da moça e com a simpatia espontânea que demonstrara.
No entanto, Décio mantinha o semblante obscurecido, como se suas intuições o advertissem de que os anos de tranquilidade tinham chegado ao fim.
Naquela noite, durante seu sonho, ele havia sido visitado por visões dolorosas de perseguições e sacrifícios, como se mãos luminosas o guiassem para fora do vilarejo a fim de que não se vissem, todos, vitimados por dolorosos eventos.
Acordara sem entender o que podia ter motivado aquela visão mas, agora que os relatos de seus filhos se faziam mais claros, podia vislumbrar todos os pormenores que sua intuição e maturidade costuravam ao lado das maldades humanas.
Sem que os dois filhos entendessem seus motivos, Décio lhes disse, firme e melancólico:
- Filhos, lamento dizer-lhes isso justamente agora que, pelo que me parece, seus anseios de uma vida feliz parecem estar no caminho da realização.
No entanto, meus deveres são para com uma felicidade que não se mistura com os sonhos juvenis e sim com a segurança de uma alma livre dos tumores do mal.
Precisamos partir daqui, imediatamente, meus filhos.
Aquela palavra serena e segura de Décio caiu-lhes como uma bomba nos ouvidos.
- Como assim? - perguntou afoito e impaciente Demétrio, levantando-se contrariado.
O senhor está louco?
- Não, meu filho. Ainda guardo á lucidez dos velhos tempos e, ainda que a velhice me enfraqueça o corpo, posso lhe garantir que a visão da alma se mantém límpida e serena.
- Que visão de alma o quê! Sempre que as coisas começam a melhorar, vem o senhor com essa conversa de evangelho, de alerta, de cuidados, de perigos, de visões.
Eu já estou cheio disso por aqui e não penso em deixar esta casa, por piores que tenham sido as suas visões, não agora que a sorte está me fazendo, pela primeira vez, um carinho directo no coração.
- Mas meu filho - perdoe-me em falar-lhe assim, abertamente - você acredita mesmo que nesta sociedade rural, onde todos se conhecem, onde a menor enfermidade de um aldeão já é noticiada para todos os outros a fim de que se afastem do doente, em que os que são deficientes são vistos como enviados do demónio ou culpados de graves coisas, você acredita que, realmente, algum laço de afecto verdadeiro poderá ser estabelecido por uma moça daqui com um jovem cujo aspecto é diferente de todos os demais?
O orgulho ferido de Demétrio crescia terrivelmente diante das advertências carinhosas e verdadeiras de Décio.
Ele, no entanto, se mantinha calado, tentando conter a explosão.
Assim, o pai prosseguiu:
- Veja como são as pessoas, meus filhos.
Quão poucos deixam suas moedinhas pobres na caixa e quantos nela atiram a cusparada agressiva e insolente, sem respeitar a condição dolorosa daquele que está pedindo..
Isso já é um demonstrativo do que nos esperará em todos os lugares.
Graças ao Pai e a Jesus, nós encontramos um recanto que nos permitiu, até hoje, a protecção e o sustento, mas que, agora, está ameaçado pela maldade dos homens.
- Como assim, pai? - Perguntou Lúcio, mais atento e menos contrariado.
- Ainda não sei, meu filho, mas tenho sido destinatário de avisos luminosos, que nos alertam para que deixemos este lugar sem demora porque, ainda que não saiba o motivo, forças negativas se organizam para acabar com nossas vidas.
- Eu não acredito nessas coisas - gritou Demétrio, descontrolado.
Isso é coisa de velha medrosa, de crendice miserável para nos tirar do caminho da verdadeira felicidade.
Eu posso ser aleijado, sim, como o senhor está dizendo, mas o que isso impede que uma jovem possa me desejar, possa me querer?
Além do mais, eu tenho dinheiro e isso é outro factor importante para convencer.
- Ora, meu filho, se não houvesse preconceitos de outras pessoas, acredito que o afecto de um para com o outro não dependeria nem de belezas, nem de perfeições, nem de riquezas, ainda que a maioria das criaturas dê muito valor para tudo isso.
Entretanto, esta moça pela qual você se deixou encantar nos seus justos sonhos de ventura, possui uma família, talvez possua um pretendente em melhores condições que todos nós e livre da mácula que se coloca sobre os homens e mulheres que se apresentem diferentes da maioria.
Nem mesmo o seu dinheiro - e ele não deve ser muito volumoso - será capaz de fazer ceder a indiferença, a ironia, a oposição dos que não querem ter uma filha vivendo ao lado de um homem menos capacitado fisicamente.
Isso, para muitos, é uma vergonha, tanto quanto fora para seu próprio pai motivo de fuga do dever paternal ao abandoná-los sob os cuidados de Serápis.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:26 pm

Toda esta era argumentação poderosa e firme, verdadeira e convincente, a tentar trazer a mentalidade de Demétrio à realidade de sua condição de condenado à solidão do afecto, como forma de resgate dos erros do passado na área da afectividade.
Para fazer com que tais desafios fossem vencidos de maneira menos dura, a Misericórdia lhes havia garantido a presença de Décio, como o benfeitor abnegado a lhes proteger o caminho, a trabalhar por eles e a conseguir manter suas necessidades básicas atendidas.
Demétrio, no entanto, não era facilmente tocado pelas argumentações que contrariassem seus desejos pessoais.
Já tornado um adulto para os padrões da sua época, havia momentos em que ele se comportava como se não estivesse no rol dos que não possuíam dois braços, como se pertencesse à classe dos que mandam, dos que dominam, para, somente depois de se perceber incapacitado de agir fisicamente, prostrar-se na condição abatida e revoltada daquele ser limitado e que não pode corresponder, na prática, às arrojadas manifestações verbais da arrogância.
Lúcio, porque mais dependente dos outros e menos inclinado à posturas incompatíveis com sua situação de maior vulnerabilidade, adoptara, desde há muito, uma postura mais introspectiva, que lhe permitia entender as coisas por um outro prisma, fazendo-se mais dócil aos conselhos paternais de Décio e entendendo a ansiedade e o desespero de Demétrio.
No entanto, nada havia acontecido na prática para que essa conversa pudesse modificar tanto a estrutura da vida daquele grupo familiar.
- Não há nada acontecendo, pai.
Nada mudou em nossas vidas, não fizemos nem fortuna nem crime que nos possa impor uma tal transformação radical nos destinos - falou Demétrio, tentando controlar-se.
- É verdade, meu filho.
No entanto, somos cegos que enxergamos, surdos que ouvimos, como falava Jesus.
Olhamos e vemos apenas o que nos seja conveniente, escutamos e ouvimos apenas aquilo que nos seja agradável.
Por isso, não conseguimos ver longe nem escutar com sabedoria o soar do trovão que vem do horizonte.
Corremos para recolher a criação apenas quando as primeiras gotas fortes de água nos surpreendem no impacto com o telheiro.
O céu já está mais escuro, o vento já anuncia a chuva e nós, invigilantes, nos deixamos ficar na situação daquele que espera o inevitável para adoptar as medidas que já poderiam ter evitado toda a correria da última hora, muitas vezes inútil e funesta.
É por isso que os que nos amam, muitas vezes, procuram nos avisar de certas coisas para que nos preparemos a tempo para enfrentá-las, sem necessitarmos passar por determinados dissabores que ainda podem ser impedidos.
E o sonho que tive se encontra dentro dessa esfera de avisos.
Tal era a sua realidade que, diante dos fatos que vocês me contaram agora, tenho certeza de que se trata de uma verdade profética, a alertar-nos para nos proteger, ainda que, de fato, nenhum de vocês tenha feito nada de errado.
E como o tempo passava rápido, Décio não procurou aprofundar muito mais a conversa, dizendo que, como fiel seguidor de Jesus, não deixaria de acatar a orientação de alerta que recebera das hostes invisíveis, comunicando aos dois filhos para que preparassem suas bagagens simples já que, valendo-se da escuridão da noite, todos deixariam para trás a pequena e acolhedora chácara, em carroção rústico, puxado pelo cavalo já atrelado.
- Eu não irei, pai. Vocês podem sair, mas eu vou ficar aqui para que possa seguir meu destino - falou Demétrio, abatido.
- Mas meu irmão, papai nunca nos enganou, nunca nos deixou sofrer mais do que o destino nos impõe que soframos, tratou de nós todos estes anos e não é justo que nos separemos dele - exclamou Lúcio, tentando trazer o irmão à razão.
- Nós sempre estivemos juntos, Lúcio, mas quando você sentir por alguém, no coração, o que eu estou sentindo, será mais fácil entender a minha necessidade de ficar.
Décio não contrariou o filho determinado, buscando entender suas posturas, agora já mais próprias do homem independente do que do garoto de anos atrás, que lhe pedia ajuda para tudo.
Olhando-o com compaixão, apenas lhe disse, tristemente:
- Filho querido, que você não precise aprender no sofrimento aquilo que Jesus tem tentado ensinar-lhe no calor pobre do nosso carinho.
Aceite nosso convite e caminhe connosco.
Outras jovens existem pelo mundo e em outros lugares você também pode se apaixonar e construir a felicidade.
- Não, meu pai. Eu agradeço sua devoção por mim durante todos estes anos, mas chega o dia em que temos que nos tornar independentes de tudo e de todos, ainda que seja para chorar ao pé dos deuses esmolando ajuda e amparo.
E esse tempo chegou para mim.
Vendo que não adiantaria nada tentar mais, Décio, então, lhe
disse:
- Pois então, Demétrio, tome cuidado com tudo e com todos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:26 pm

Deixaremos para você recursos suficientes para que nada lhe falte por um tempo, mas não se esqueça fora nossos corações que o amamos por aquilo que você é, ninguém mais será capaz de amá-lo tanto quanto nós.
Todos quererão seu dinheiro, seus bens e aquilo que você possui para desprezá-lo tão logo obtenham suas conquistas imediatas.
E tomando a palavra, por sua vez, Lúcio acrescentou:
- E eu deixo para você o meu saco de moedas já que, ao lado de papai não precisarei dele tanto quanto você, meu irmão.
Aquele gesto de bondade natural emocionou profundamente Demétrio que, em realidade, vinha roubando o irmão nas horas da divisão, deixando-lhe com as moedinhas mais insignificantes, valendo-se da sua deficiência visual.
Agora, sem qualquer questionamento ou qualquer suspeita, Lúcio entregava-lhe o pequenino pacote de moedas pensando que ali estava a metade justa que lhe cabia, enquanto que, na realidade, ali se encontrava apenas pequena fracção do que havia sido conquistado ao longo desses meses de petições públicas.
Demétrio, emocionado, controlou-se diante da demonstração de desprendimento de Lúcio, pela qual agradeceu beijando sua cabeça e lhe dizendo do muito carinho que tinha por ele, ao mesmo tempo em que lhe agradecia por toda a ajuda que havia recebido de seus braços prestativos.
Sem tempo a perder, valendo-se de suas palavras no sentido de orientar as mãos de Lúcio, Demétrio ajudou o irmão a reunir suas poucas coisas enquanto Décio se via às voltas com a carroça pobre, organizando-a da melhor maneira e preparando tudo para que o trajecto nocturno pudesse ser produtivo, de maneira que, ao raiar do dia, estivessem distantes, ainda que sem rumo certo.
A despedida foi triste e o coração dos três ficou apertado diante da primeira separação efectiva em vários anos de convivência.
Ao mesmo tempo, a chuva fina que começara a cair tornava ainda mais lúgubre o cenário, esfriando ainda mais a despedida.
Não obstante essa dor, era necessário seguir adiante, obediente e fiel ao amparo superior que lhe chegava, oriundo directamente do coração generoso de Licínio que, em espírito, ladeado por Simeão, Zacarias, Lívia e Cléofas, acercara-se daquele querido amigo para fortificá-lo e afastá-lo dos dissabores e armadilhas das forças negativas.
Os mesmos espíritos amigos vinham orientando os passos desse grupo tanto quanto se dividiam nos cuidados com aqueles que ficavam em Roma, em busca de notícias dos filhos desditosos.
No entanto, para eles seguia desconhecida a motivação de tal alerta onírico misterioso, fazendo com que a incerteza se apresentasse no coração de todos, com a única diferença de que, em Décio, a falta da compreensão dos porquês não o impedia de obedecer ao aviso, enquanto em Demétrio, as conveniências pessoais, os caprichos do afecto, as ilusões dos sonhos materiais, os desejos imediatos se antepunham à condição de obediência ou de acatamento dos avisos espirituais, sempre subtis e preservadores do livre-arbítrio de cada um daqueles aos quais se destina.
A noite se prolongava e o frio era mais intenso, quando Décio sentiu a serenidade voltar-lhe à alma, como a autorizar que pudessem abrigar-se, interrompendo a marcha que já acontecia há mais de oito horas, sem interrupção.
Já passava das quatro da madrugada, quando a carroça estacionou sob a protecção de um rochedo que lhes serviria de abrigo mais seguro contra a chuva que continuava a cair, ora mais forte ora mais fraca.
Ajudando Lúcio a deixar o interior do carro rústico, abrigaram-se ao redor da carroça, depois de Décio certificar-se de que não havia ninguém adormecido ou à espreita no mesmo ambiente.
À noite na chácara, no entanto, fora sem alegrias.
Demétrio não conseguira dormir, fosse pela euforia das lembranças de Leonora, fosse pela ausência dos entes amados e pelas derradeiras palavras de Décio a alertá-lo para a diferença do afecto que encontraria no coração dos demais.
Para contrapor a tais lembranças, Demétrio divagava sobre o futuro, contentando-se em avaliar as perspectivas alvissareiras que os recursos materiais lhe permitiriam colocar a serviço de seus sonhos.
Em sua alma impetuosa e arrogante, no entanto, nem em sonho se fazia viva a ideia de que tudo poderia dar errado, nem que os factos, independentemente de sua vontade e de suas condutas, conspirassem contra seus sonhos verdadeiros e justos.
Acontece que, naquele mesmo dia, depois de terem-se despedido no entroncamento dos caminhos, Leonora fora vítima de violento malfeitor que, já há algum tempo vinha espreitando os passos da moça, sonhando em impor-se a ela como o primeiro homem, desrespeitando sua condição virginal e abusando de sua fragilidade.
Por isso, no dia seguinte, a família, desesperada, saíra em busca da jovem que não regressara da cidade.
Seus parentes dirigiram-se para o burgo onde normalmente a jovem ia para as compras básicas regulares e, outra informação não conseguiram senão a de que fora vista deixando o local acompanhada dos dois jovens que pediam esmolas.
Essa notícia verdadeira tornava os dois as únicas possíveis testemunhas do destino final da jovem.
Com isso, enquanto alguns davam buscas em outros lugares, outros foram até a chácara onde sabiam residirem os dois jovens e, antes do nascer do Sol, bateram a pedir informações sobre a moça.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:26 pm

Assustado com a algazarra, Demétrio acudiu dizendo que não tinha conhecimento de seu paradeiro, pois que haviam se despedido antes, seguindo cada qual para seu caminho.
Nessa ocasião, o rapaz tomou ciência de que a jovem não chegara à sua casa e que, por isso, seu destino era incerto.
Talvez tivesse se abrigado na casa de alguém, onde passara a noite até que a manhã lhe permitisse terminar o percurso.
A opressão no peito de Demétrio se estabeleceu, parecendo fazer sentido, agora, os presságios de Décio.
Num instante, ele entendeu que, como as coisas se passaram, pesaria sobre os dois irmãos a culpa por qualquer coisa má que tivesse ocorrido com Leonora.
Uma vez sozinho na choupana, sua mente como que se viu cercada de todas as possibilidades sombrias da aproximação da tragédia e outra coisa não lhe ocorreu senão a de, a duras penas, vestir rústico manto em cujos bolsos Décio colocara os sacos de moedas e sair dali antes que qualquer desgraça se abatesse sobre sua vida.
No entanto, ele não contava que, lá fora, sentinelas vigiassem a chácara para evitar qualquer fuga até que o destino de Leonora fosse conhecido.
E assim, para sua surpresa, braços fortes e rudes envolveram seu pescoço a impedir-lhe o prosseguimento da jornada, quase que no mesmo instante em que familiares chegavam, desesperados, informando que o corpo de Leonora havia sido encontrado no meio de arbustos afastados, vitimada pela violência e brutalidade sem nomes.
A gritaria envolveu Demétrio enquanto outros mais invadiram a chácara não muito distante, procurando por seus supostos comparsas no crime hediondo que havia acabado de ser cometido e para o qual os dois aleijados eram os únicos suspeitos.
Ali, não tendo encontrado mais os traços do cego nem do pai, além de terem observado os sinais de viagem por faltarem seus objectos, tanto quanto a carroça e o cavalo, trataram de atear fogo à choupana, na antecipação da condenação sumária, enquanto faziam correr a notícia da morte da jovem inocente e da fuga dos outros dois suspeitos, na alucinação da dor e no desejo cego de vingar o crime.
Cavaleiros saíram a galopar por todas as estradas, informando onde paravam sobre os fatos e espalhando a notícia do estupro e morte da moça para que mais e mais pessoas ajudassem na prisão dos outros suspeitos, um ancião e seu comparsa, um jovem cego.
Demétrio foi levado até a casa da família de Leonora para que todos os seus membros pudessem conhecer o suspeito e pessoas foram trazidas do burgo não muito distante para contarem suas versões sobre os factos.
Não houve quem não se lembrasse do galanteio de dias antes, através do qual Demétrio demonstrara sua inclinação para a moça nem aqueles que pintaram com cores negras o inocente caminhar dos três, no regresso aos lares naquele dia fatídico em seus destinos.
A estas alturas, apesar de inocente, Demétrio já se achava com o rosto ensanguentado, vítima dos socos e pauladas que caíram sobre ele, apesar de sua alegação de inocência.
Havia sido despido de sua roupa, privado de seu pequeno tesouro com o qual pensava comprar o afecto ou a consideração dos outros, agredido e amarrado a um poste de madeira, onde esperava seu destino entre o medo e a dor da agonia.
À sua volta estavam muitos que o conheciam nos momentos de suas canções populares, outros mesmo que haviam cooperado com suas necessidades dando-lhe moedas, outros que vinham pedir canções específicas, todos agora transformados em acusadores, todos prontos para levantar suspeitas cada vez mais maldosas e mentirosas, a fazer aumentar os indícios de sua culpa na morte violenta da jovem.
E as mentes infantis, desejosas de encontrar explicação para tal evento cruel, se faziam mais enegrecidas nas suposições de que os três misteriosos personagens se haviam consorciado para a prática da atrocidade contra a moça, seja Décio, com sua força de homem e seus braços acostumados aos trabalhos do campo, seja Lúcio e Demétrio que, apesar de suas deficiências, facilmente poderiam ter-se sucedido no nefasto delito, seviciando a jovem, imobilizada pelo mais velho dos três.
Assim, como se tratavam de seres diferentes da maioria, para todos aqueles seria o melhor momento para fazer com que suportassem o peso das suspeitas que poderiam recair sobre qualquer um, roubando seus pertences e afastando-os, com tal atitude, da convivência dos fisicamente perfeitos.
O movimento de busca dos outros dois, então, incrementou-se por todos os lados, com a versão mais conveniente de que seriam comparsas desumanos, que se uniram para a satisfação de seus prazeres indignos, confirmando a tese de que o demónio os estava usando para levar a infelicidade àquela aldeia.
No entanto, graças à condição de fidelidade ao Bem, a esta altura, Décio e Lúcio já se encontravam suficientemente distantes das vistas de todos e, por terem viajado na escuridão da noite, não foram vistos por olhos curiosos, não tendo deixado qualquer rastro para ser seguido ou qualquer testemunha ocular de sua passagem.
Quanto a Demétrio, aquele destino que o leitor imagina, o aguardava, efectivamente, como o que teria de responder tanto pelo homicídio de Leonora quanto pela fuga dos outros supostos dois cúmplices.
Seria supliciado com o chicote, amarrado ao poste.
Depois de ter sido dilacerada sua pele, sobre ele seria atirado um punhado de sal por cada pessoa do vilarejo que quisesse vingar a morte cruel da jovem.
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:26 pm

Salgado em vida, numa mistura grotesca de sangue, lágrimas e impropérios, o infeliz e arrogante mutilado via a morte como a salvação mais ansiada para seu destino, morte essa que parecia recusar-se a chegar, como se também ela estivesse satisfeita em assistir à sua agonia.
- Demétrio, pense em Jesus, meu filho. Lembre-se de sua bondade para com todos nós e ore como se fazia junto de sua mãezinha Serápis.
Essa era a voz doce, mansa e emocionada de Simeão, envolvendo o busto do irmão querido que lhe houvera sido o algoz implacável em situação muito parecida, na distante Samaria, quando vivera sob a veste do implacável Suplício, perseguidor de mulheres, adulterador de esperanças, sequestrador, torturador e braço direito do governador Pilatos.
O torturado e infeliz aleijado não escutava com os ouvidos, mas, nesse mesmo instante, uma nostalgia profunda acometeu seu espírito e ele recordou-se das horas felizes que vivera sob a protecção de Cláudio Rufus, os carinhos de Lúcia e de sua mãezinha Serápis, e tal lembrança foi um momento de paz interior, ainda que as dores que lhe queimavam a pele tornassem quase insuportável qualquer forma de consolação.
O espírito arrogante desse Suplício começava a pressentir o outro lado da existência, como se seu espírito deixasse a mortalha corpórea sem perceber, passando a vislumbrar o clarão no qual se inseria Simeão, o velhinho simpático que lhe falava, com o olhar cristalino e o coração rutilante de uma estrela.
- Eu conheço você... - falou titubeante Demétrio.
Eu não... sei quem ... você é, mas ... sei que o conheço...
- Oremos a Jesus, meu filho.
De agora em diante lembre-se de que você é meu filho e eu sou o seu pai.
Recorde-se do Cristo que nos ama e que nos permite estabelecer este momento de paternidade e filiação em nome de um Amor que vence todas as misérias.
- Mas eu sou vítima desses homens miseráveis - respondeu Demétrio, algo confundido, dando espaço à sua condição revoltada.
- Nunca se esqueça meu filho, de que quando os homens se deixam conduzir por seus actos até às suas ilusões, acabam sempre levados aos tribunais de Justiça que lhes fornecem, exactamente, o que deram aos outros.
No entanto, quando nos deixamos conduzir pelo Pai e por Jesus, somos arrastados pelo império da Misericórdia, que procura nos amparar antes que a Justiça nos venha cobrar o que devemos.
Você preferiu confiar em si mesmo, enquanto Décio e Lúcio acataram o convite superior.
Assim, meu filho, a Justiça chega para você através da aparente injustiça que os homens cometem, enquanto a Misericórdia traça o destino daqueles que atenderam o seu chamado.
Bendiga este momento, Suplício.
Perdoe os que matam seu corpo pensando matar o espírito, para que as nódoas de sua alma comecem a ser apagadas pela força de suas lágrimas de arrependimento.
Nunca se esqueça de que Deus não se equivoca.
Venha comigo, aceite meus braços paternais, para que novos caminhos possam ser construídos doravante.
E sem entender como isso podia acontecer, Demétrio viu-se transformar em outro ser, vestido à moda dos lictores romanos, assumindo uma personalidade mais velha e entendendo que, naquele momento, uma transformação muito importante estava acontecendo em sua jornada.
À sua frente já não via mais apenas um ancião luminoso.
Via também uma cruz rutilante que, por detrás do velhinho, fulgurava como no dia em que fora retirado do vale escuro e tenebroso onde comandava as forças malignas que obsediavam Pilatos, Fúlvia e outros, já relatada na obra "A Força da Bondade".
E, envergonhado, identificava ali a presença de Simeão, a sua mais inocente e compassiva dentre todas as vítimas.
Revia a cruz rústica, o velho amarrado, o chicote em suas mãos, as pessoas ao redor, ironizando sua condição de impotência, o sangue a brotar de sua pele, o abandono e a solidão a que fora relegado, a espada sendo enterrada no peito por suas mãos e a sua figura descontrolada e animalesca a espancar o corpo inerte do ancião, como um alucinado demente.
Sem conseguir mais se conter diante da memória que lhe voltava, violenta e acusadora, viu fugirem-lhe os sentidos, sem entender como poderia ser vítima e algoz ao mesmo tempo.
Perdendo a lucidez, Demétrio foi amparado por Simeão, que o encaminhou aos planos espirituais compatíveis com a sua vibração, à espera da hora adequada para o despertamento da própria consciência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:27 pm

33 - A viagem e a busca

Conquanto o trágico destino de Demétrio se concretizava e repercutia por todo o vilarejo e arredores, sobretudo por constituir-se numa tragédia a envolver a pobre Leonora, vítima da violência inescrupulosa e selvagem de criaturas tão viciosas quanto desconhecidas da lei humana, Lúcio e Décio se mantinham protegidos no interior da cavidade rochosa que os abrigara, ampla o suficiente para ocultar a carroça e o cavalo também.
Afinal, a chuva não dera trégua, intensificando-se com o passar das horas. Quando a manhã chegou, tornara-se torrencial e impedira o prosseguimento da jornada.
As incertezas de ambos eram compensadas pela fé e pela oração, coisa que lhes era comum nas práticas e que permitia sentir as vibrações de coragem e amparo espiritual que nunca são negados a todos os seres humanos que recorram à prece sincera, mobilizando as próprias forças nas lutas da vida, mas entregando-se aos desígnios de Deus nas horas em que se tornem nebulosos os caminhos.
Décio deveria escolher o destino e, sem bússola, sem mapas e desconhecendo as estradas da região, não sabia qual o melhor rumo a seguir.
Ao longe, sem que o soubessem, corria a notícia da morte de Leonora e do linchamento brutal de Demétrio bem como se empenhavam as pessoas do vilarejo em procurar pelos dois, considerados fugitivos, para lhes dar o mesmo destino, na sede de vingança cega que acomete a todas as pessoas imaturas e ignorantes.
Nem imaginavam os dois viajores, abrigados da inclemência dos elementos naturais, que estavam sendo procurados como assassinos cruéis.
Ao mesmo tempo em que a chuva castigava o ambiente, aprisionando-os na caverna, também impedia que a busca empreendida pelos homens do antigo vilarejo, fossem parentes de Leonora, seus amigos ou simples justiceiros de ocasião, tivesse continuidade, já que a precipitação pluviométrica apagava qualquer pista, tornava lamacentos os caminhos, aumentava o volume dos riachos, dificultando a sua travessia.
Com isso, os perseguidores se viam obrigados a regressar ao ambiente aquecido e protegido de suas choupanas campestres, aguardando a melhora do tempo para voltar à perseguição.
Não obstante, a notícia da morte de Leonora corria de casinha em casinha, como história trágica a tornar-se ainda mais grotesca com a informação de que os culpados eram um grupo estranho, composto por dois deficientes e um ancião.
Esse cenário de fria humidade a embaraçar as actividades de todos naquela região prosseguiu por todo o dia, obrigando Décio e Lúcio a se manterem ocultos, agasalhados como podiam, com as precárias vestes que possuíam.
Com o cair da tarde, o frio se tornou maior, mas a chuva praticamente dera uma trégua temporária, o que estimulou em Décio a necessidade de seguirem viagem.
Sua alma se sentia inquieta e a sua sensibilidade captava com clareza as exortações do mundo invisível para que retomasse o rumo a fim de atingir a segurança de um destino mais longínquo.
Foi retomada, então, a trajectória cega que os levaria a um novo porto seguro, não sem antes rogarem a protecção para a jornada através de singela oração feita por Lúcio no interior da caverna isolada.
Em seu íntimo, Décio se lembrara daquele dia em que estava recluso no porto de Óstia, aguardando a sua transferência para o destino incerto do exílio quando percebeu, ao longe, uma estrela fulgurante, como que um farol a flutuar sobre o mar escuro que a noite abraçava.
Intrigado, colocara-se a observar o estranho fenómeno que se mantinha cada vez mais ampliado até que pôde divisar que, por detrás - da forte luminosidade, imponente galera romana se movia, sendo que o farol luminoso que a precedia outra coisa não era do que duas mãos de luz que lhe seguravam a proa, como a puxá-la para o destino do porto, em segurança.
- Sim! - pensou Décio consigo mesmo - por que não pedir a Deus que nos mande um sinal, para que saibamos o caminho a seguir, em busca da segurança?
E enquanto Lúcio suplicava a protecção segundo seus modos simplórios, Décio mentalizava a ajuda de Policarpo, o paizinho querido, como a rogar-lhe que intercedesse por eles naqueles momentos de incerteza, a fim de que, estando na situação de ser responsável por um irmão desditoso, incapacitado para levar uma vida independente, Deus haveria de escutar-lhe as orações e atender às necessidades imediatas tanto de protecção quanto de rumo para suas vidas.
- Senhor, - dizia ele mentalmente - tantas provas recebemos de seu amor, que nos envergonha invocar-lhe o nome com se estivéssemos a duvidar de sua solicitude.
No entanto, você sabe de nossas fragilidades e, por entender as fraquezas humanas, conhece as necessidades de força e orientação de que estamos carecendo.
Por isso o buscamos, como os filhos órfãos da esperança, aqueles mesmos que, ao pé da sua cruz no dia triste de nossa queda moral, olhavam sua agonia com os olhos ansiosos daqueles que vêem apagar a chama luminosa de suas candeias na noite escura da vida.
Aqui, Mestre Amoroso, dois cegos pedem seu amparo e a luz de sua sabedoria.
Lembramos a estrela generosa que guiou os peregrinos que o buscavam na noite do nascimento na Belém adormecida e indiferente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 19, 2014 9:27 pm

Não pedimos o privilégio de uma estrela, mas lhe suplicamos um guia que nos mostre o caminho, neste momento em que a jornada recomeça, porque temos a certeza de que nossos entes queridos, em seu nome, velam pelos nossos passos.
Emocionado com as lembranças e com o envolvimento que lhe propiciavam os espíritos que atendiam às suas súplicas, Décio se deixou envolver em um estado de êxtase rápido, como não era incomum acontecer quando todos oravam em conjunto na casinha da chácara, o que não causou nenhuma surpresa em Lúcio que, sem constatar visualmente o que acontecia, entendia que o silêncio do pai representava um momento de elevação mística que duraria alguns minutos e depois passaria.
A respiração de Décio se fizera mais ruidosa e um estado de entorpecimento lhe tomara o corpo físico enquanto o espírito se desdobrava, levado pelos amigos espirituais que lhe amparavam os esforços no Bem, para entrever o caminho a seguir.
A jornada que lhe era apresentada ao espírito era longa e envolvia a árdua tarefa de atravessar a cordilheira que separa a Gália da Hispânia, valendo-se de caminhos que as expedições romanas tinham aberto para o deslocamento terreno de seus exércitos e expedições.
Deveriam seguir por estradas menos usadas e, por isso, mais difíceis de serem percorridas.
No entanto, se tivessem coragem e determinação, não lhes faltaria a protecção para a jornada, tomando o cuidado de, enquanto não tivessem cruzado a protecção montanhosa, viajarem somente durante o cair da tarde e o anoitecer, preferindo a pousada em algum abrigo da natureza do que em hospedarias precárias pelo caminho.
E para as dúvidas que lhe surgissem nas encruzilhadas, que ele recorresse a Lúcio para que, com sua sensibilidade natural, observasse a situação, pois seria capaz de divisar sempre uma indicação para definir qual o melhor roteiro a seguir.
Fora rápida a jornada de seu espírito fora do corpo físico, mas suficientemente esclarecedora para servir de estímulo e alimento para a alma que, no seu caso, deveria comandar um corpo já alquebrado e enfraquecido pelas carências da idade, ainda que disposto ao trabalho e à demonstração de destemor ante o testemunho.
Passados alguns minutos do encerramento da oração de Lúcio, Décio voltava a si mesmo do estranho fenómeno mediúnico de que se vira protagonista e, com palavras de alegria, relatava ao filho cego as suas experiências e a certeza de que mãos amigas os amparavam para a caminhada a seguir, cujo rumo já lhes fora traçado, e exigiria deles os esforços maiúsculos até então ainda não exigidos.
Mais do que depressa, aproveitando o cair da tarde, o parar da chuva e as perspectivas novas que se lhes apresentavam, Décio e Lúcio tomaram seu lugar sobre a carroça e, cuidadosamente, deixaram o refúgio que lhes servira de protecção e amparo gratuitos, como se Deus o tivesse reservado para acolher filhos em dificuldades nos momentos mais cruéis ou dolorosos do abandono.
Nunca se esqueça, leitor querido: quando os homens, que são irmãos, fecham as portas uns para os outros, a Misericórdia de um Deus que é Pai, esculpe a rocha dura e abre nelas o espaço que não conseguiu abrir no coração das pessoas.
Jamais se permita levar pela angústia de se pensar abandonado, por mais indiferentes lhe possam parecer as pessoas, as circunstâncias e a própria sorte.
Deus não precisa da conjunção fortuita dos factores a que os homens denominam sorte para fazer o Bem aos que necessitam.
É verdade que a Misericórdia sai à procura de corações macios e sensíveis para usá-los a fim de que diminuam as agruras alheias e ajudem nas horas mais difíceis daqueles que estão às portas do desespero.
Mas quando lhe parecer que não há mãos estendidas, não há pousada nos corações humanos, nem há esperanças, nunca se esqueça de que Deus construiu suas próprias pousadas gratuitas no seio da natureza para que os mais necessitados pudessem se abrigar e proteger até que o Sol voltasse a imperar no céu de um novo dia.
Seja, pois, aquele que Deus usa para amparar as inúmeras aflições que o circundam, porque dia vai chegarem que as adversidades também o visitarão para testar sua fé e sua capacidade de lutar.
E se, antes, você fez todo o Bem que podia, esteja certo de que as forças da vida saberão orientar seus esforços para encontrar o abrigo de que necessita, nem que seja no oco de uma árvore ou no coração da rocha, por falta de espaço no coração dos semelhantes indiferentes.
Se os homens não tiverem sentimentos de compaixão para entregar-lhe, a Bondade do Pai é rica em Misericórdia para acolher você.
Seguindo a jornada, definida para oeste através de caminhos ora pedregosos ora lamacentos, iam os dois homens na direcção assinalada, retomando a viagem ao longínquo destino.
E por mais que soubessem qual a meta a ser atingida, se lhes apresentava confuso, muitas vezes, o meio para chegar até ela.
Os caminhos rurais não tinham indicações claras, eram cheios de atalhos pouco confiáveis e, por mais que se procurasse seguir os trilhos mais definidos, o cenário chuvoso e frio os tornava mais indefinidos.
Então, quando as coisas pareciam mais complicadas, sem saberem qual a direcção a seguir ou defrontando-se com duas rotas que brotavam da estrada em que estavam, Décio interrompia a carroça e dizia para que Lúcio orasse a prestasse atenção, pois lhe havia sido indicado que, através desse procedimento, ele seria capaz de observar, mesmo cego, algum sinal que definiria o melhor a fazer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 06, 2015 1:15 pm

Naturalmente que isso se apresentou como uma surpresa para o rapaz, nunca imaginando que a sua incapacidade visual pudesse ser útil para encontrar alguma coisa através do sentido da visão.
No entanto, apesar de seus protestos, Décio reafirmou lhe a orientação de que dependeria dele a jornada a seguir, e que, confiando em Deus, confiasse em si mesmo, para que isso fosse mais uma prova do amparo superior que os mantinha protegidos do mal.
Estimulado pelo pai, Lúcio se pôs em prece, falando em voz alta para que suas palavras pudessem ser ouvidas por Décio:
- Senhor, somente Você poderia colocar um cego para guiar um homem que enxerga.
E é tão inusitada essa situação que, se não fosse uma ordem sua, poderia representar uma insanidade de nossa parte.
No entanto, na minha cegueira, me lembro da história do velho cego que gritava o Seu nome incessantemente ao saber de sua passagem pelas proximidades.
Como o velho Bartimeu, eis que invocamos o Seu nome para pedir, sem entender como isso será possível, que permita que vejamos qual o caminho a seguir.
As lembranças das diversas passagens em que Jesus curara os cegos brotavam-lhe na mente.
Será que Jesus poderia fazer novo milagre e permitir-lhe, pela primeira vez naquela vida, divisar a luz?
Será que se repetiria a mesma situação de Bartimeu que, gritando-lhe o nome em plena rua, conseguiu atrair-lhe a atenção e ter a visão restituída, para espanto dos indiferentes que o tratavam como lixo do mundo?
Jamais havia tido a possibilidade de enxergar e, por isso, não tinha a menor ideia de como seriam as coisas.
A prece o emocionava profundamente, como se, ele falasse ao Cristo a partir de sua própria desgraça.
Antes, seguia a prece dos outros e escutava as rogativas de protecção que as pessoas faziam.
Agora, ele estava na condição principal, graças à qual a caravana encontraria o caminho certo.
Como e por que, um cego de nascença, estaria nessa função tão pouco favorável de guia, enquanto seu companheiro de jornada, cuja visão era perfeita, ficava à mercê de um deficiente visual?
E enquanto estava nessas cogitações sobre a própria limitação física, sobre as dificuldades naturais de hão poder ver, eis que Lúcio dá um grito de surpresa e emoção, exclamando:
- É o da direita..., da direita... eu estou vendo... está tudo escuro, mas, não sei como, eu estou vendo...
Décio, paizinho, eu estou enxergando que é para ir para a direita.
Emocionado com aquela inusitada circunstância e tocado pela emoção do próprio filho adoptivo, Décio tratou de puxar as amarras do cavalo, endereçando-o para o novo trajecto.
Lúcio por sua vez, eufórico e em pranto convulsivo, não parava de dizer:
- Paizinho, eu vi, não sei como...
Jesus me fez ver... ainda que continue cego...
Deixando que o filho extravasasse sua emoção, Décio esperou o momento e, tão logo se apresentou a oportunidade, indagou de Lúcio:
- Mas me conte filho, o que é que deu tanta certeza de ter visto qual o caminho a seguir, se você ainda continua sem enxergar?
- Ah! Paizinho, em momento algum eu saí da minha costumeira escuridão, mas não sei por que milagre, eu vi, na minha frente, uma cena que representava dois caminhos que começavam de uma estrada e, no caminho da direita, como que flutuando sobre ela, pude ver duas mãos que brilhavam com os dedos entrelaçados, como nós fazemos quando oramos com as nossas mãos postas.
No outro caminho não havia nada disso e, por faltar-lhe a luz das mãos, ele se encontrava escurecido e apagado.
O da direita, no entanto, parecia dotado de luz própria e, então, tive certeza de que se tratava daquele que deveríamos seguir.
A descrição das mãos correspondia a uma senha confirmatória para Décio, já que ele próprio tinha em sua mente aquele mesmo símbolo a se apresentar nos momentos difíceis, estabelecendo os rumos seguros a serem seguidos.
Agora, mais tocado pelas revelações de Lúcio, Décio abraçou o filho que chorava baixinho e lhe disse:
- Bendito seja Jesus, meu filho, que nos transforma para sempre os espíritos e que nos ensina que um cego pode guiar um vidente pelos caminhos duros da vida.
Obrigado, Lúcio, a sua alma pôde ver aquilo que seus olhos continuam impedidos de enxergar.
Agora você pode entender o que, às vezes, acontece comigo nas horas em que me ausento ou em que me mantenho em silêncio.
É mais ou menos a mesma sensação de visão interior, a orientar nossos passos, a mesma que pude receber dias atrás, aconselhando-nos a deixar nossa chácara, sem maiores explicações.
E a partir daquela experiência, isso se repetiu ao longo de toda a trajectória da viagem, ficando Lúcio como o instrumento espiritual para a identificação do melhor caminho a seguir.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 06, 2015 1:15 pm

A travessia dos Pirenéus demonstrou-se penosa e sacrificial já que o frio e a fome tornavam mais cruentas as lutas de ambos.
Os recursos materiais escasseavam e a ausência de vivendas ou lugares para a compra de alimento ao longo do trajecto piorava as coisas.
Além disso, o frio ia fazendo os estragos naturais na saúde desgastada de Décio que, como alguém com maiores recursos biológicos, privilegiara o oferecimento dos agasalhos ao jovem frágil que transportava, colocando sobre Lúcio o maior número de cobertas que podia.
Quando o rapaz protestava, Décio se valia da cegueira do filho para lhe confirmar que ele também estava suficientemente agasalhado, usando um pequeno pedaço de pele de ovelha que colocava sobre o próprio braço para que Lúcio se certificasse pelo toque de que era verdade o que o pai lhe afirmava.
Depois de muitos e ingentes esforços, conseguiram cruzar a elevação montanhosa referida, atingindo a província cujo destino lhes demarcara como o novo território de suas vidas.
Enquanto isso, Tito e Fábio empreendiam a busca incessante dos filhos de Serápis, seguindo pelos caminhos conhecidos, entrando em todas as cidades do trajecto terrestre, perguntando por dois meninos cujas características físicas eram tão marcantes que se transformariam no documento de identidade facilmente observável em qualquer local.
Encontraram muitos que eram cegos, outros que eram mutilados, mas em nenhum lugar souberam de dois meninos que, cego e mutilado, andavam juntos.
Essa procura se alargou no tempo e, dentro de seus propósitos, Tito e Fábio se recusavam a regressar a Roma sem notícias.
Eventualmente, escreviam uma mensagem breve que entregavam a algum mensageiro que se dirigia à capital para que informassem às mulheres que lá haviam ficado acerca dos progressos que tinham feito.
A ascensão de Antonino Pio ao poder, anos antes, parecia ainda não haver influenciado a distante região onde já estavam os dois peregrinos, que, finalmente, chegavam àquele porto onde Tito havia desembarcado ambos os filhos de Marcus e Serápis, mantendo-se turbulenta a vida já agitada daquele centro de comércio, capital da província da Gália Narbonensis.
Muitos anos já se haviam passado desde o seu desembarque naquele local para que alguém se lembrasse dos dois meninos por ali.
Assim, envolvido pela esperança de encontrá-los, como se uma força incógnita o fizesse caminhar para a frente, misto de sua culpa e do desejo de redimir-se ante a própria consciência e ante os corações amados que confiaram nele, Tito afastou-se do porto e informou-se quais vilarejos poderiam ser atingidos a partir dos caminhos que saíam de Narbonne.
Seleccionou as mais importantes vilas do interior e, acompanhado do filho Fábio, saiu a procurar pelos dois meninos, sem fazer ideia que, desde o porto, ambos haviam sido acolhidos por Décio.
Foram frustrantes as primeiras tentativas, nas quais perderam várias semanas entre perguntas, caminhadas e negativas dos moradores.
No entanto, depois de se cansarem nessas rotinas e sem saberem mais para que burgos seguirem, estavam saciando a fome em miserável estalagem quando escutaram uma conversa misteriosa entre os homens daquele local.
Tratava-se do assunto trágico da morte de uma virgem depois de ter sido violentada.
Mas o que lhes chamou muito a atenção foi o fato de que os suspeitos eram dois rapazes, um cego e o outro sem os braços e seu pai, certamente, o responsável principal por tal acto, ao que se supõe, para iniciar seus filhos nas experiências da maturidade.
E a notícia dava detalhes da tragédia, sempre ampliadas pelo imaginário popular que atribuía o crime à acção do demónio no corpo dos dois infelizes jovens, que se disfarçavam de cantor e pedinte durante o dia, mas que se transformavam em entidades malfazejas durante a noite.
A menção aos dois atraiu a atenção de Tito que, chamando o mal encarado indivíduo para sua mesa, como a se interessar pela notícia, propôs-lhe pagar a bebida em troca dos detalhes sórdidos daquele crime.
E não foi difícil obter as principais informações, inclusive do local onde o delito ocorrera, do linchamento do mutilado, da fuga dos outros dois, fuga essa que já fazia mais de três meses que tinha acontecido.
Mais do que depressa, pai e filho dirigiram-se para a região como se fossem dois viajores de passagem, adoptando os cuidados para não levantarem suspeitas sobre o interesse que demonstravam, já que poderiam ser interpretados de maneira errada pelos moradores que, certamente, estavam ainda muito atentos a qualquer indício dos supostos criminosos evadidos.
Custava a Tito acreditar que se tratavam dos dois meninos que ele abandonara, mas em nenhum outro local de seu longo percurso, encontrara referência tão marcante quanto ali.
Assim que chegaram ao burgo onde os fatos se deram, não lhes foi difícil escutar as versões que confirmavam as notícias tristes a responsabilizarem os dois deficientes e seu pai pelo crime.
Quando Tito se informou dos nomes dos envolvidos, o arrepio que sentiu na espinha foi difícil de esconder, já que ali estavam os nomes de Lúcio e Demétrio, além de um tal de Décio, que ele não se lembrava ser aquele mesmo que pudera ver de longe quando da sua ida à reunião clandestina dos cristãos no cemitério da via Nomentana, em dias distantes do passado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 06, 2015 1:16 pm

Deveria ser algum oportunista que se valeu das deficiências dos meninos para ganhar dinheiro, explorando-as - era o que imaginava.
Mas Lúcio e Demétrio eram os mesmos que abandonara.
Agora sabia que Demétrio já não mais vivia e que havia recebido todo o peso da culpa tanto pelo crime quanto pela fuga dos outros dois suspeitos.
Imediatamente, a mente arguta de Tito passou a imaginar o que estaria no pensamento de alguém que desejasse fugir do local do crime e que rumo deveria tomar para conseguir se manter em segurança.
Não lhe foi difícil supor, portanto que, próximos de outra província, seria mais provável que os fugitivos, ainda mais havendo um cego entre eles, portanto de fácil identificação, tivessem procurado afastar-se da Gália, onde seriam muito mais facilmente encontrados pelo favorecimento de comunicação que a língua comum propiciava.
- Não, Fábio - argumentava Tito, enquanto andavam, distanciando-se dos outros curiosos - ninguém que está fugindo de um crime tão bárbaro permaneceria aqui nesta província nem em uma outra cuja proximidade de língua permitisse que a notícia se espalhasse e os encontrasse.
Você mesmo foi testemunha de como é que as notícias correm de boca a boca e, mesmo para nós, que não entendemos as palavras deste povo nativo, há sempre alguém falando latim e espalhando as novidades.
Que dizer, então, entre os que se expressam numa mesma língua natal.
- Isso é verdade, meu pai.
- Sim, Fábio, quem está fugindo não poderia ficar na Gália, mas, ao contrário, deveria arriscar-se a seguir para a Hispânia, como forma de encontrar protecção em outro território e em outros costumes, para que pudesse começar uma nova jornada a salvo de perseguições.
- É, pai, acho que você está certo.
- Iremos para a Hispânia amanhã mesmo.
E com um pouco de sorte, Tito contava que não seria tão difícil conseguir informações sobre dois homens, um velho e outro cego, que caminhassem por alguma estrada ou parassem em alguma estalagem a pedir um prato de comida, um pouco de água ou um canto para dormir.
Se a morte de Demétrio já era um facto consumado e irrevogável, restava a possibilidade de encontrar Lúcio, o que motivava a ambos para que tal fato representasse uma alegria, mesmo tardia, ao coração das mulheres em Roma.
Por isso, Tito e Fábio iniciariam também a mesma peregrinação à província vizinha, pouco tempo depois que os dois procurados já o tinham feito a duras penas.
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34 - Conselho e despedidas

A travessia dos Pirenéus, nos esforços dolorosos e sacrifícios constantes, cobrara o seu preço tanto de Décio quanto de Lúcio.
O frio cortante e a preocupação com a saúde do jovem haviam exposto Décio em demasia, e a chegada ao território novo da província hispânica foi acompanhada por uma nova realidade para ambos: a enfermidade.
Enquanto o corpo cansado de Décio pedia um repouso indispensável para qualquer prognóstico de melhora, Lúcio começava também a apresentar os sinais da antiga enfermidade abdominal que, recrudescente, tornara a romper a delicada camada da pele do ventre, abrindo-se em flor sanguinolenta e dolorosa como resultado dos rigores daquela peregrinação sempre difícil e desabastecida da antiga tranquilidade que existia na chácara Gaulesa.
Apesar disso, Décio era obrigado a seguir no comando da carroça salvadora até que pudessem encontrar algum vilarejo onde se abrigariam adequadamente, com os poucos recursos que lhes restavam.
A alteração da natureza era notável, mas a nova província possuía características mais rústicas do que a antiga Gália Narbonensis, onde haviam vivido mais de oito anos.
O povo da Hispânia era diferente e distante, desconfiado diante de forasteiros, fechado em suas condutas, como se podia notar pelos transeuntes que encontraram pelas rústicas estradas, que se recusavam a responder ao mais singelo cumprimento.
No entanto, sabendo do estado de saúde de Lúcio, mais delicado e precário em face das dores que produziam, Décio fez com que o jovem se deitasse na parte posterior da carroça a fim de que mantivesse o corpo estendido, sem obrigar o ventre a dobrar-se na posição sentada, o que aliviava um pouco seus penares.
Enquanto isso, algo febril, Décio conduzia o conjunto adiante, ansioso por encontrar sinais mais seguros de civilização.
Andaram durante todo o dia até que, ao cair da tarde, avistaram pequeno aglomerado de casas ao longe, para onde Décio fez encaminhar-se o cansado animal que, até aquele momento, lhes havia sido a garantia da sobrevivência na árdua jornada.
- Pela dureza de nossos sofrimentos, meu pai, acho que Demétrio escolheu a decisão mais certa, ficando em segurança lá na chácara, não é? - perguntava Lúcio, a quebrar o silêncio que se impunha devido aos sofrimentos do condutor do veículo, igualmente alquebrado.
- Sabe, filho, os olhos dos homens costumam se iludir com coisas exteriores e prazeres fáceis, enquanto a sabedoria de Deus, que tudo vê e a todos auxilia, desejando nos ajudar nas lutas, muitas vezes não é compreendida.
Nós achamos que Ele não deve fazer outra coisa senão nos preservar a saúde, manter a mesa abastada, garantir o conforto de um leito quente, abastecer os nossos cofres de moedas e favorecer nossos negócios para que não tenhamos os problemas materiais.
No entanto, Deus age como um pai que, vendo o precipício mais adiante, prestes a dragar o filho amado e distraído, providencia inúmeros recursos para impedir que a queda fatal aconteça.
Vendo a estrada frágil que, não suportando o peso do carro, dos passageiros e das bagagens, os fará projectar-se no vazio, manda alertas para que seu filho diminua a velocidade, coloca pedras na estrada, buracos no caminho para tornar mais lenta a jornada, coisas estas que fazem o carro andar aos solavancos, atrapalhando o conforto dos seus ocupantes que, nestas alturas, começam a reclamar de Deus.
Não entendendo a lição, o condutor continua desatento, sem saber que o carro está muito pesado para a estrada delicada que não o suportará e, então, não tendo como alertá-lo de outra forma, a sabedoria divina permite que num desses solavancos do caminho a roda do carro se parta e ele fique imprestável para seguir à frente.
O seu condutor e seus ocupantes, naturalmente, vão dizer que não compreendem esse Deus que, em vez de ajudá-los, está fazendo de tudo para que aquela jornada, que já estava insuportável e cansativa, agora, se tornasse quase impossível.
Deus, todavia, não lhes dá ouvidos e deve estar muito feliz por ter conseguido evitar que o carro, seu condutor e todos os passageiros se vissem rolando despenhadeiro abaixo, quando não mais teria como salvá-los da dor desnecessária.
Assim somos nós, Lúcio, crianças mimadas, que achamos que a bondade de Deus pode ser medida pelo bem-estar de nossos corpos e por nossas barrigas cheias.
A vida, no entanto, me ensinou filho, que nós nunca perdemos por confiar na Bondade de Deus, ainda que, naquele momento, nossos sonhos e objectivos estejam perdidos para sempre.
Esperamos que Demétrio esteja bem e feliz, apesar de sabermos que seu amor por nós deve estar sentindo saudades, como acontece com nossos corações.
No entanto, não me arrependo por ter seguido o que o aviso celeste apontou para que, certamente, nos afastássemos de algum precipício que a maldade humana facilmente poderia abrir em nossos caminhos.
E é melhor seguir adiante enquanto há tempo, do que se ver consumido pela tragédia depois que ela se apresenta.
Lembra-se você do esforço de Noé ao obedecer as ordens do Senhor?
A pergunta de Décio chegara aos ouvidos atentos de Lúcio, que respondeu afirmativamente.
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 06, 2015 1:16 pm

- Pois então, meu filho. Deus mandou fazer um barco no lugar onde não havia rio, mar, lagoa ou qualquer coisa na qual aquela imensa estrutura pudesse navegar.
Deu as medidas e orientou o filho obediente como edificar.
As pessoas que nada faziam para ajudá-lo, ainda o consideravam um louco e sem juízo por acreditar que aquele imenso navio pudesse valer para alguma coisa.
Naturalmente que Noé deve ter encontrado oposição dentro da própria família, em um ou outro que tinha ideias próprias e uma fé em Deus menor do que suas ambições.
Quantas coisas não devem ter dito ao destemido e corajoso ancião que, apesar disso, não interrompeu a jornada edificante aparentemente sem objectivo lógico.
Deus, que lhe disse o que fazer e como fazer, não poderia lhe ter explicado POR QUE fazer?
Talvez fosse possível dar detalhes mais específicos, fazer uma conferência com Noé, perguntar se ele estava de acordo com os planos divinos, expor o problema e, depois, fazer uma votação para eleger que medidas tomar.
Entretanto, talvez, o Pai estivesse desejando salvar um filho fiel, testando-lhe a confiança e a obediência de seguir Suas orientações sem questionar ou exigir contas do Criador.
Gesto de humildade de Noé que, acatando as orientações sublimes, colocou mãos à obra, como aquele que não questiona seus patrões nem espera tratamento superior ao que merece ou esclarecimentos de que não necessita.
Ao mesmo tempo, depois de pronta a embarcação, a generosidade divina ordenou que ele convidasse todos os que quisessem entrar a fim de que tomassem assento no navio.
Os homens, que se pensam racionais e inteligentes, ridicularizaram mais uma vez o velho insensato que resolvera construir um navio que não tinha onde navegar.
No entanto, conta a tradição que os bichos, os animais aceitaram o convite e entraram, dois a dois, no interior da nau.
Os parentes mais próximos de Noé, filhos e mulheres, acreditando na integridade do ancião, foram também os que o ajudaram e puderam com ele estagiar no interior do navio que, conforme as orientações, deveria estar pronto até certo período, devendo ser lacrado e, depois disso, não ser mais aberto sob nenhum motivo, por mais justo que parecesse.
Noé explicava aos que o ironizavam, que uma grande chuva iria cair e uma inundação sem precedentes destruiria tudo e a todos.
Mas isso não tocava o coração das pessoas que, olhando para o céu, davam risadas grossas diante da ausência de nuvens.
Depois de ter obedecido, coube-lhes esperar o tempo predito pelo Senhor e, então, ... começou a chover.
A inundação foi desastrosa e os mesmos que achavam o velho um louco, corriam a bater à porta do navio suplicando a sua ajuda, em desespero, para que não sucumbissem afogados, coisa que, infelizmente aconteceu, porque o fiel Noé soube ser obediente até o fim, mantendo a arca lacrada.
Lúcio ouvia, atento e impressionado, as referências bíblicas que seu pai adoptivo proferia, como que inspirado por forças sublimes, sem interrompê-lo.
- Assim acontece connosco, meu filho. Agora estamos aqui, nesta nossa pequena arca, transpondo as enchentes, os obstáculos e os problemas, privados das facilidades da vida a que estávamos acostumados, com dores e fome, com o corpo cansado e doente, mas, fora desta empreitada, não sabemos de que enchente a bondade de Deus nos livrou, não temos ideia de que perigos ela pôde nos afastar apenas porque nos avisou que deveríamos construir a nossa arca e convidar os que quisessem seguir connosco.
Demétrio foi convidado, mas na sua condição naturalmente rebelde à disciplina necessária, acreditou que suas deliberações eram mais sábias que os conselhos divinos.
Não sabemos como ele está, mas, pelo menos, sabemos que nós estamos aqui, ajudados a vencer essa cadeia de montanhas, suportando as agruras da estrada, amparados pelas breves visões que você pôde perceber quando nos caminhos confusos, tudo a nos fazer flutuar no turbulento mar das incertezas da vida para que pudéssemos atingir o porto seguro que nos espera.
Estou certo de que nossos momentos presentes são de transição e que, mais adiante, não sei quando nem onde, estará o pouso sereno que receberá nossa arca tanto quanto a montanha generosa acolheu a barca de Noé, ocasião em que todos os humildes e resignados retomaram suas vidas e voltaram à liberdade da natureza.
Os egoístas, irónicos, mesquinhos, indiferentes, preguiçosos, arrogantes, àquela altura, estavam todos mortos afogados.
Nós chegaremos a algum lugar tanto quanto aportamos na acolhedora chácara depois de uma caminhada de incertezas e lutas.
A misericórdia divina colocou muitos em nosso caminho para nos ajudar a chegar até aqui e, se nos recordarmos do passado, entenderemos como a vontade do Pai se faz em nossas vidas de forma subtil, mas firme.
Graças a ela, encontramos Cláudio, que, encontrando
Domício, acabou encontrando Fábio, que encontrou Serápis e, assim, descobriu Demétrio, Lúcio e Lúcia.
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 06, 2015 1:17 pm

Todos encontramos Jesus e, por causa dele, eu encontrei Flávia, que também encontrou vocês e, assim, pudemos viver momentos de alegria em família.
Mas ao mesmo tempo que a mesquinhez dos homens nos afastou, colocando você e seu irmão na condição de sequestrados e eu na de exilado, essa mesma Misericórdia sublime nos fez embarcar no mesmo navio, cuidou que Tito não os matasse, nos fez achar o capitão generoso, Caio, que nos ajudou.
O tempo correu e, juntos, encontramos alegrias, progressos, e a Misericórdia de Deus nunca nos abandonou, nem mesmo quando nos permitiu servirmo-nos deste humilde animal que nos transporta desde que saímos da chácara, que toma chuva e passa frio mais do que nós dois, que tem de trabalhar para que nos salvemos das agruras do caminho, que come qualquer coisa sem exigir pratos diferentes e que, humilde como Noé, nos ensina a entendermos que a Misericórdia de Deus está em todos os lugares, sempre tentando fazer o melhor para cada um que a aceita e a escuta, sem exigir suas explicações ou seus motivos.
Graças a esta carroça, meu filho, estamos vivos e endereçados a um destino que, sabemos, Deus prepara com carinho e amor de um Pai que não se olvida dos que Ama.
Calara-se Décio, impressionado com a fluência das próprias palavras, que se sucediam em uma torrente de conceitos luminosos, provocada pelo contacto directo das mãos benditas do espírito Zacarias, que os acompanhava em todo o trajecto, fornecendo forças e ajudando naquilo que podia.
O caminho seguia adiante, mas, naquele momento, aproximando-se de um vilarejo isolado, Décio achou por bem interromper a marcha e descansar na estalagem.
Desceu e acertou os detalhes para a acomodação dos poucos pertences, para dar descanso ao animal e guarida ao meio de transporte de que necessitariam para seguir adiante, para obterem alimento e recursos para um banho, depois de muito tempo sem fazer a higiene completa do corpo e, finalmente, uma cama para que pudessem descansar e se tratar.
Para tudo isso, o proprietário do local exigiu pagamento adiantado, o que fez com que Décio quase extinguisse os recursos de que dispunha.
Felicitado com a condição de bom pagador, o dono do local não pôde protestar quando Décio trouxe para o interior, em direcção às acomodações rústicas, mas protegidas, o filho cego e ferido, apesar de sentir-se contrariado por ter que acolher um deficiente, considerado por muitos como portador de maus presságios.
Décio sabia desses preconceitos desumanos a dificultarem qualquer tipo de acolhimento mais generoso.
Por isso, não protestou em pagar antecipadamente já que, de posse do dinheiro, poucos se permitiriam devolvê-lo para não acolher o filho doente.
Mais comum era que engolissem seus medos e preconceitos para poderem guardar no bolso o peso das moedas.
Assim se deu e, não demorou muito, ambos já ocupavam um quarto simples, mas abrigado da noite fria, tanto quanto já haviam comido o suficiente para espantar o fantasma da fome que rondava seus passos e consumia suas reservas de forças.
No entanto, ali começava a despedida de Décio do mundo físico, já que parecia que lhe faltava apenas abrigar Lúcio das intempéries do mundo estranho para que sua tarefa se desse por concluída na Terra.
A noite chegou e a febre tornou-se mais devastadora.
Procurando não assustar o filho cego e doente, Décio se via no estreito limite da lucidez, à beira do delírio, o que impôs que acordasse o filho para revelar-lhe a precariedade do estado de saúde em que se achava.
Assim que Lúcio trouxe a pequena candeia que permanecia acesa nas proximidades da cama, atendendo às orientações de Décio, o pai adoptivo lhe comunicou seu estado debilitado, trémulo em decorrência da febre abrasadora, dando-lhe as instruções antes de perder a consciência.
Falou para Lúcio do que lhe restava em termos de dinheiro, passando às suas mãos a pequena sacola que abrigava os poucos recursos remanescentes.
Explicou que, segundo seus sentimentos mais profundos, ele não sobreviveria mais do que algumas horas, já que entrevia, nas penumbras do quarto pequeno, vultos que dele se acercavam, sorridentes e fraternos, como que a lhe darem boas-vindas para o regresso à casa do Pai.
Assim, antes de perder a consciência completa, orientou o filho para que não gastasse seus poucos recursos com os cuidados funerários, que não perdesse tempo em permanecer ali naquela estalagem e que seguisse adiante para alguma cidade maior, já que ali ele ficaria exposto a muita maldade enquanto que, em um centro maior, sempre era mais fácil encontrar um pouco mais de bondade nas pessoas, até porque haveria mais romanos nos grandes ajuntamentos populacionais.
Ali só havia pessoas nativas do local, diferentes nos costumes, nos hábitos e na forma de tratamento para com aqueles que eles considerassem estrangeiros.
Lúcio ouvia, emocionado e triste, tentando fazer com que o paizinho não se permitisse morrer, deixando-o sozinho.
Entendendo seu drama pessoal, Décio respondeu-lhe carinhoso:
- Filho, lembre-se da nossa conversa de ontem, na carroça.
Deus conhece você e sua Misericórdia está buscando meios de amparar a sua condição.
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 06, 2015 1:17 pm

Mantenha-se atento, humilde, confiante no Pai porque, se para mim a jornada não demorará em encerrar-se na Terra, para você ela deve prosseguir.
Ore muito e lembre-se de Jesus como o melhor amigo que você possui.
Sua cegueira será sua aliada e não se permita odiar os que não o amarem ou entenderem.
Siga adiante porque esses são os testes de que você necessita para demonstrar sua convicção no Bem.
Amigos invisíveis o ajudarão sempre, como sempre me ajudaram, e as mãos de luz guiarão seus passos.
Nunca desanime nem desista...
A palavra, agora, tornava-se difícil, misturada com delírios febris.
Vendo o estado de descontrole, Lúcio, mesmo na escuridão de seus olhos mortos, saiu a pedir ajuda, tacteando as paredes e gritando por alguém que pudesse atender.
Depois de algum tempo, o proprietário da estalagem acudiu, encaminhando-se para o quarto de Décio, que ardia em febre e se mantinha na inconsciência.
Diante do seu estado, o homem se ocupou de procurar os poucos recursos que tinha para tentar ajudar.
Chamou a mulher que, rápida, trouxe água e compressas para diminuir a febre, providenciando os remédios caseiros de que a prática diária lhe permitia valer-se para o atendimento de estados como aquele.
Ao amanhecer, a febre um pouco controlada pelas medicações e o estado de lucidez mais recuperado, Décio voltou a conversar um pouco, agradecendo aos seus improvisados enfermeiros pela ajuda que lhe era oferecida, rogando-lhes que cuidassem do filho enfermo, já que ainda não sabiam que Lúcio estava, igualmente, fragilizado pela ferida do ventre, necessitando de cuidados.
Um curandeiro da região foi trazido e, depois de ver o estado geral do doente, ordenou a preparação de algumas beberagens, que se mostraram inócuas ou inúteis para a reversão da enfermidade que, atingindo os pulmões, se espalhava pelos demais órgãos do corpo sem defesa.
Ao final daquele dia, Décio voltava à inconsciência, depois de despedir-se, emocionado, do filho, a quem pediu para beijar as mãos, em sinal de gratidão por ter-lhe sido a companhia, ao mesmo tempo em que Lúcio beijava, em desespero, as velhas e rugosas mãos daquele que desempenhara o papel do pai que nunca conhecera na vida, desde o nascimento.
Pela primeira vez, Lúcio sentira de perto a condição solitária de não poder contar com mais ninguém além de si próprio.
Ao anoitecer, a agonia dolorosa de Décio terminou e, com a frieza natural das pessoas que se fizeram duras ao contacto com as durezas da vida, o dono do local determinou que se procedesse ao enterramento quase que imediato do corpo, em local afastado e, de preferência, ainda durante a noite, para que a morte não viesse a prejudicar os seus negócios, espantando os poucos clientes que ali paravam para matar a sede ou para dormir um pouco.
Como Décio não tinha parentes e como o único que possuía era Lúcio, igualmente doente além de cego, o estalajadeiro deu-se pressa em se livrar da incómoda ocorrência, mantendo o deficiente no quarto com a desculpa de que iria receber o tratamento para suas feridas, sem que, em realidade, fosse esse o verdadeiro intento.
O motivo principal era, realmente, afastá-lo da visão dos outros usuários de sua estalagem, consumidores de suas bebidas e sua comida simples ao longo do dia.
Lúcio mantinha-se obediente no quarto, enquanto a mulher do proprietário providenciava uma empregada da casa para ajudar o jovem no curativo da ferida.
O estado dela era de impressionar os olhos menos experientes, o que repugnava a qualquer pessoa que, sem o preparo do afecto, se visse obrigada a fazer aquele serviço.
Naturalmente que a empregada, depois de ver-lhe o aspecto e colaborar pela primeira vez com seus cuidados, recusou-se a voltar ali para fazer novos curativos, alegando que não ganhava para isso e que preferia ser demitida a ter que atender aquele quase pestoso.
Não tardou para que, sem a protecção de Décio, o estalajadeiro comunicasse a Lúcio que não poderia mais mantê-lo ali, o que viria a prejudicar seus interesses pelo afastamento da clientela.
Já havia conseguido evitar o prejuízo com a ocultação da morte de Décio, mas não poderia continuar exposto ao mesmo risco com a manutenção de seu filho doente e cego no mesmo estabelecimento que abastecia outras pessoas.
Que se preparasse para a viagem porque, naquela mesma noite, a carroça estaria esperando por ele para seguir em frente.
A sua condição de cego não impediria que ele partisse, já que o proprietário, mediante o pagamento de pequena gratificação, convocara o mesmo indivíduo que sepultara Décio para transportar o rapaz e suas coisas até um outro vilarejo maior, onde ele deveria ser deixado para que se virasse para sobreviver.
Assim, com a chegada da noite, depois que os poucos clientes se afastaram para voltar às suas casas, lá estava a mesma carroça pronta para receber o cego e seus pertences, estacionada nos fundo da estalagem, com um desconhecido envolvido por cobertas para a protecção contra o frio nocturno a esperar para ao transporte de sua carga infeliz até o próximo destino.
Ali estava Lúcio, novamente, sendo levado por um desconhecido, a fim de que suas dores e seu aspecto doentio fossem administrados por outras pessoas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 06, 2015 1:17 pm

35 - Testemunhos individuais

Dessa forma, sem a protecção de seus verdadeiros amigos, em uma terra estrangeira, sem contar com o apoio de ninguém, sem ter capacidade de enxergar, com uma ferida no corpo que reduzia ainda mais a sua mobilidade, tornando-o ainda mais dependente de qualquer um, Lúcio encontrava pela frente o momento crucial no qual o velho Pilatos precisaria aprender a enfrentar o fruto amargo de seus actos, nos testemunhos indispensáveis que servirão de avaliação para o nosso verdadeiro aprendizado.
E ainda que as mãos amigas das entidades fraternas o acompanhassem, esse momento de solidão e aparente abandono era necessário para o amadurecimento de seus valores, de sua confiança em Deus, humildade e resgate de seus compromissos pesados do passado.
A jornada nocturna prosseguiu por longo trajecto, entre marchas e paradas, sendo que o condutor da carroça, sem nenhum escrúpulo ou caridade, carregava na mente a ideia de espoliar aquele infeliz.
Assim, antes que chegassem ao novo vilarejo, o infeliz condutor já tinha estabelecido seus planos, graças aos quais - pensava ele -iria conseguir mais algum lucro daquele transporte.
Cobiçava a carroça e o animal que haviam servido a Décio e Lúcio até aquele momento.
Por isso, depois de atingirem as cercanias do novo destino, quando os raios solares tingiam de rubro o céu, no anúncio da nova aurora, o condutor informou ao cego que tinham chegado ao destino.
No entanto, faltava ainda um bom pedaço de estrada para que se vissem, realmente, em contacto com as pessoas naquele novo burgo.
Sem se atentar para as necessidades do infeliz passageiro, os planos do condutor para se apropriar do veículo envolviam a necessidade de não chegar até a cidade com a carroça, mas, sim, voltar com ela do caminho, o que o obrigava a deixar Lúcio a pé já que, na presença de outras pessoas, o rapaz poderia dizer que a carroça lhe pertencia e não ao condutor.
Por isso, a determinada altura do caminho, o indiferente manejador das rédeas do carroção informou a Lúcio que haviam chegado e que era necessário descer.
Sem poder ver onde estava, o rapaz, com muito esforço, desceu do veículo, no que foi ajudado pelo homem que, com medo de se contaminar com os objectos e pertences do cego, recusou-se a ficar com qualquer coisa que lhe pertencesse, descarregando a pouca e leve bagagem.
- Você deve caminhar mais um pouco porque, daqui para a frente, a carroça não pode seguir por causa da estrada ruim.
Vou colocar você na direcção e nos encontraremos na cidade porque precisarei fazer outro caminho.
- Mas, seu moço... eu não sei para onde ir... me leve com você...
No entanto, enquanto falava isso, escutava o barulho da carroça que se afastava e o homem a gritar para que seguisse em frente, sempre em frente...
Naturalmente que, naquele instante, Lúcio se deu conta de que o manejador do veículo se estava evadindo, levando o único meio de locomoção que poderia servir-lhe.
Estava sendo furtado pela primeira vez na nova condição de vítima, não apenas nas coisas materiais, mas, sobretudo, nas esperanças do futuro.
Um impulso de ódio brotou-lhe do íntimo e sua garganta estava pronta para esbracejar os piores palavrões que os xingamentos populares usam para extravasar a inferioridade dos sentimentos humanos.
No entanto, quando pensava em vomitar os impropérios, sentiu um calor estranho no próprio coração e, sem conseguir proferir nenhuma palavra, pôs-se a chorar diante da própria desdita.
Acabava de perder Décio, o único verdadeiro amigo que tivera, sepultado no vazio do desconhecido, e isso o fazia relembrar a trajectória de uma vida que, apesar de tão breve, já se mostrava tão desditosa.
Fora abandonado pelo progenitor ao nascer, uma vez que chegara à Terra debilitado e enfermo.
Depois, foi usado como mercadoria para conseguir esmolas.
Mais adiante, quando trabalhando honestamente, foi sequestrado, o que o privou do carinho materno.
Agora, abandonado por tudo e por todos, se via roubado da única forma de transportar-se menos penosamente.
Como sobreviveria?
Enquanto pensava nisso tudo e as lágrimas rolavam pelo seu rosto, uma ideia insidiosa lhe passava pela mente:
- Matar-se. Isso mesmo... morrer seria mais fácil e aliviaria a vergonha de uma vida inútil...
Por que não?
Morrer aqui seria o coroamento digno de uma existência de dores atrozes e de desilusões completas. Jamais seria uma pessoa respeitada naquele mundo, onde os preconceitos faziam os destinos das criaturas.
Seria sempre o cego ridicularizado pela maioria, aquele que dependeria de esmolas para comer, aquele no qual as crianças travessas jogariam pedras, excrementos, aquele que teria que lavar as moedas que se misturavam aos escarros na caixinha de ofertas.
Seriam amargos seus dias, sempre cheios de lágrimas.
Por que esperar por elas?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 06, 2015 1:17 pm

Melhor não seria abandonar este mundo e acabar no nada, já que as dores se sucediam em dores piores?
Estava doente, seus ferimentos não melhoravam, suas pernas doíam, sua fraqueza não se refizera com o descanso turbulento das últimas noites e, agora, lhe restava uma caminhada, às cegas, para chegar a outro vilarejo desconhecido, como um forasteiro desgraçado que aporta no meio de pessoas que estão com suas vidas razoavelmente arrumadas, e nas quais não existe lugar para mais alguém, principalmente para um rapaz como ele.
Todos estes pensamentos lhe brotavam do íntimo por força da fragilidade de seu carácter, a aconselhar-lhe a mesma conduta aparentemente fácil da última existência quando, despido de todas as pompas e regalias, Pilatos aceitara sair da vida pela forma mais dolorosa: a via do suicídio.
Agora, na nova jornada humana, seu espírito fora levado a condições de penúria e degradação material para que, dentro da preparação que fizera antes de renascer, acabasse testado nesse poder de resistir ao mesmo erro, de impedir a mesma queda, de vencer a mesma fraqueza que o fazia fugir diante da vergonha, da derrota, da penúria e da desonra.
Não eram pensamentos originados na acção nociva de nenhuma entidade perturbadora que, deforma insidiosa, se fazia sentir para induzi-lo ao sofrimento suicida, não.
Eram suas tendências, as mesmas marcas ou vincos que nós decalcamos em nossos espíritos através de nossas atitudes no Mal tanto quanto no Bem e que regressavam à tona de nossa personalidade, despertadas de sua dormência pela experiência que o fazia sofrer, que o desafiava e que parecia querer derrotá-lo.
A personalidade arrogante e depressiva de Pilatos era convocada ao presente para, na forma de Lúcio, aconselhar seus comportamentos e interferir em suas condutas.
Nesse momento, o jovem não poderia ser auxiliado por nenhuma entidade amiga já que, naquela hora, sua capacidade pessoal de reacção é que estava tendo a oportunidade de manifestar-se.
Deveria encontrar em si mesmo os recursos para defender-se, as forças para não aceitar a mesma conduta criminosa do passado e a coragem para poder agir por si mesmo, sem interferências dos que o amavam e protegiam.
Isso porque, desde que se viu com alguma consciência na nova existência, como filho de sua antiga amante Fúlvia, foi cercado de conceitos e ensinamentos enobrecedores, através dos quais, a coragem da fé, a certeza da vida, a compreensão do Amor de Deus através do Amor de Jesus permearam suas ideias, recebendo demonstrações dessa afectividade através do carinho de Décio, de Cláudio Rufus, de Flávia, de Lúcia, sua irmã, entre outras criaturas.
Ali encontraria material para pavimentar as novas construções ou para atirar para longe de si mesmo e preferir a repetição das antigas quedas.
O exemplo já lhe havia sido dado, sem contar a protecção e a intuição dos amigos invisíveis, dos espíritos que se comprometeram em auxiliar a sua jornada nova, os quais, em nome da Celeste Misericórdia, empreendiam esforços para que aquela não fosse uma vida desperdiçada na pauta reencarnatória de Pilatos, que já havia ignorado muitas oportunidades de crescimento.
Agora, ao mesmo tempo em que as privações o convocavam a uma decisão, os ensinamentos de Décio, ao longo daqueles oito anos de convivência diária, precisavam fazer a sua parte no íntimo de Lúcio para que, germinando de forma a dar-lhe novas esperanças, fossem aceitos como factores impeditivos de nova queda desastrosa.
Desse modo estava Lúcio, entre lágrimas de auto piedade e pensamentos sinistros, tendo pela frente uma jornada incerta e perigosa para a precariedade de seus recursos.
- Sim - pensava ele - morrer seria mais fácil, mas ali, no meio do nada, não teria como matar-se rapidamente, o que tornaria seus padecimentos ainda mais atrozes.
Até mesmo para matar-se, precisaria chegar até a cidadezinha, cujos ruídos, ao longe, ele conseguia captar pela sensibilidade auditiva aumentada pela falta de visão.
E, ainda que com a ideia de morte a rondar-lhe o pensamento, decidiu seguir adiante para ver se conseguia chegar até a urbe, como esforço final para, depois, quem sabe, encontrar o descanso eterno na mão do vazio aliviante da morte.
Não foi sem muita dor que, passo depois de passo, tropeçando, caindo e levantando, quase ao meio-dia Lúcio chegou à periferia das casas, praticamente desfigurado e sem forças.
Assim que escutou vozes de crianças que brincavam, barulhentas, entendeu que nelas estaria a sua esperança de alguma ajuda.
Precisava de um pouco de água, estava com dores e exausto.
Apalpou as paredes da primeira construção que identificou pelo tacto, procurando uma região onde o calor do sol não o ferisse mais ainda, sentou-se no chão e, percebendo a proximidade da algaravia dos meninos, procurou falar-lhes, com voz abatida e fraca:
- Hei, meus amiguinhos, algum de vocês pode me ajudar com um pouco de água?
Eu não enxergo e estou muito doente...
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 06, 2015 1:17 pm

Percebeu que o barulho dos jogos infantis se interrompeu por um lapso de tempo e foi substituído por palavras infantis, misturando surpresa e curiosidade:
- Alguém ouviu uma pessoa pedindo água? - perguntava um.
- Eu ouvi - respondia o outro.
- Eu também, mas não sei de onde veio...
- Olha, veio dali, na sombra da casa do Morán...tem um moço sentado...
- Nossa, como ele está sujo... será que está doente?... vamos ver...
- Ah! Cuidado... nossa mãe sempre falou para não ficarmos perto de gente estranha...
E vendo que a conversa dos meninos ia nesse sentido, Lúcio falou, como numa súplica:
- Sua mãe tem razão, meu amiguinho, mas, vejam bem, eu não posso lhes fazer nenhum mal.
Eu sou cego e estou com tantas dores, que não me aguento de pé.
Vendo que o jovem estava à beira das lágrimas, as crianças perceberam que seu sofrimento era muito grande e, num instante, os temores foram substituídos por uma compaixão que só o coração puro das crianças é capaz de sentir em profundidade e que os adultos acabam perdendo quando crescem e se metem nos problemas da vida, nas mentiras do interesse, nos jogos da conquista.
Ali, no entanto, estavam aqueles a quem Jesus havia aconselhado que todos nós nos assemelhássemos, aqueles cujo impulso no Bem representava a única esperança daquele jovem explorado e roubado pelos adultos.
- Ramón, ele está quase chorando de dor... vá lá na sua casa e traga um pouco de água.
- Quem sabe ele também está com fome... falou o outro, vendo a tragédia do rapaz quase caído ao solo. Vou ver o que é que consigo para ele...
- Eu vou ficar aqui, conversando, para saber o que mais ele precisa - falou um terceiro...
- Vamos, vamos pedir ajuda para ele, é nosso amiguinho também, está sofrendo mais do que a gente...eu já fiquei doente uma vez, quando caí da árvore e machuquei minha perna... não é fácil, não...
E assim, enquanto seu pensamento infeliz se via inclinado a partir da vida, como a fugir da desgraça, vitimado pela indiferença dos adultos que, recentemente, o haviam expulso da estalagem para não perder fregueses, e haviam-no espoliado da carroça protectora, aqueles meninos inocentes e fraternos sabiam se fazer solidários com suas dificuldades.
E em pouco tempo, de três ou quatro, umas dez crianças rodeavam Lúcio, cada uma carregando alguma coisa para dar ao novo amigo, uma vez que as primeiras que viram a sua penúria, falaram da sua situação para outras que, do mesmo jeito, queriam conhecer o novo visitante.
Brotavam, das mãozinhas sujas e ávidas em ajudar, frutas simples, colhidas nas árvores próximas, pedaços de pão roubados da cozinha das próprias casas, uma cuia de água fresca trazida gotejando, pela pressa de outra criança feliz em aliviar-lhe a sede.
Um outro menino, junto com sua irmã, veio correndo e trouxe um gorro para que Lúcio protegesse sua cabeça, mas que, como pertencia ao próprio menino, era muito pequeno para caber-lhe.
Mesmo assim, o garoto disse para que ficasse com aquilo, que poderia servir para alguma coisa.
Aquele foi um alvoroço no coração dos pequeninos que, reunidos ao redor do infeliz ceguinho, sentiam o impulso que o verdadeiro amor produz diante da necessidade cruenta de um outro ser.
As próprias crianças sabiam que alguns adultos maldosos não iam gostar de saber que um novo morador da cidade estava ameaçando a segurança de seus filhos e, por isso, entre eles, fizeram um pacto de silêncio, como se aquele fosse um segredo de todos.
- Vamos ajudar nosso amiguinho, mas não podemos deixar que os grandes saibam, porque isso pode significar problemas.
O pai do Miguel é muito bravo e não gosta de ajudar ninguém.
- É verdade.
Mas nós temos que arrumar algum lugar para que ele fique abrigado.
- Olha - respondeu o menino de nome Luíz - no fundo da minha casa tem um quartinho onde meu pai coloca o milho que colhe na época em que as espigas ficam maduras.
Como ele está começando a plantar agora, acho que ali podemos colocar nosso amigo para que fique protegido.
Além disso, minha mãe sempre falou que devemos ajudar os que sofrem porque, um dia, nós também sofreremos e vamos precisar que nos ajudem.
- Isso mesmo, Luíz, acho que lá é um bom lugar.
Além disso, sua casa fica perto e podemos ir pelos fundos dos terrenos até chegarmos lá, sem chamar muito a atenção.
Por isso, acho que devemos fazer isso no fim do dia.
Eu e mais dois de vocês vamos arrumar as coisas por lá, colocar uns panos para ele não passar frio, levar alguma comida e um pouco de água, aproveitando que nossos pais estão no campo trabalhando.
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