LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 3 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 14, 2014 9:35 pm

O ano de 132 se endereçava para o final e o de 133 seria aquele em que novas esperanças surgiriam para todos os que viviam os efeitos de suas jornadas ancestrais, nas vidas de erros e misérias.
Não foi difícil, assim, fazer com que Serápis, a bem de todos os seus e, reconhecendo as agruras experimentadas em uma casa que se tornara ínfima diante das peculiaridades de seus filhos, aceitasse a transferência com o compromisso de ser recebida como simples serva do palácio, como o passado lhe fizera relembrar, carregando consigo aqueles que a ela se uniam como se ela fosse a única esperança de seus dias aflitos.
Cláudio e Serápis se mantinham nos limites de um afecto que se respeita e sabe respeitar, sem arroubos irresponsáveis e sem condutas perniciosas e indignas.
Serápis não desejava mais reeditar uma história que ela conhecia por tê-la vivido pessoalmente e estar colhendo os frutos amargos até os dias do presente.
A imagem de Licínio, o generoso administrador do palácio de Marcos, constantemente lhe vinha à retina, nas lembranças de afecto e devotamento que ela tanto desprezara e que, agora, amolecida pelas desgraças da vida, a faziam se sentir envergonhada por tudo o que fizera ao coração generoso daquele que, até então, fora o único ser que lhe demonstrara verdadeira afeição.
Assim, no novo ano, a casa de Cláudio se acha transformada por novos habitantes, a exigirem cuidados diferentes e a imporem rotinas novas que o dono da casa sabia atender com desvelo e cuidado, contando sempre com a presença de Décio, aquele ao redor do qual todos orbitavam e que era o foco luminoso que lhes orientava os passos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 14, 2014 9:36 pm

13 - Forças negativas e sentimentos viciados

Como já noticiamos ao querido leitor, as agruras da família de Serápis se tornaram superlativas por causa do afastamento irresponsável do progenitor Marcus, aquele a quem incumbia velar pelos destinos dos próprios filhos infelizes, mas que, impressionado pelo tamanho da prova, preferiu a manutenção das próprias conveniências a correr o risco de ser ridicularizado perante a sociedade mundana que ele tanto valorizava.
Assim, afastado da cidade, como a fugir dos deveres imediatos, embrenhou-se em suas propriedades na zona rural e ali permaneceu por longo tempo, de onde saiu em excursão de divertimentos em companhia de quaisquer mulheres que se admitissem no relacionamento íntimo e sem vínculos, tão somente para se aproveitarem de suas facilidades financeiras.
Marcus, desse modo, resvalava para o não muito distante precipício dos prazeres e gozos sem sentido, nos braços de criaturas viciosas e interesseiras, sempre prontas a oferecerem os corpos adocicados e voluptuosos como cálices contendo venenos amargos e ácidos corrosivos da superficialidade, da insinceridade e da cobiça material.
Isso não era tão importante para Marcus que, dotado de recursos, bem sabia que as mulheres daquela estirpe lhe seriam úteis objectos de prazer e que ele não desejava nenhum aprofundamento afectivo, apenas e tão somente o exercício e desfrute de sua virilidade para sufocar a consciência culpada pela defecção ante as responsabilidades de pai.
Trocando de companhia como quem trocava de roupa, para cada horizonte que surgia ao seu olhar, nas inúmeras localidades de diversão e balneários de descanso que visitou, Marcus se fazia acompanhar de uma dama diferente, sempre interessado em reviver com elas as emoções que sentira ao lado de Serápis, nas pequenas, mas confortáveis dependências de seu "pequeno palácio".
No entanto, por mais se sucedessem mulheres em seus leitos, em nenhuma delas conseguira encontrar o encanto, a graça, a sensação emocionada daquele afecto profundo que o escravizara desde quando a vira pela primeira vez, carregando a pequena Lúcia recém-nascida, nos braços torneados.
Os anos tinham passado igualmente para ele e, afastado agora da sociedade preconceituosa e das lembranças ruins acerca dos filhos defeituosos, Marcus se permitia recordar, com saudade, todos os lances emocionantes que vivera com Serápis.
Quanto mais se deitava com outras mulheres, mais se frustrava ao recordar a jovem e antiga serva, transformada em amante e que ele, no momento de torná-la esposa, se vira traído pelo destino que lhe cobrara preço alto demais.
No entanto, sua paixão por aquela moça continuava viva, depois de quase sete anos de afastamento, durante os quais não divisou em mais ninguém as mesmas emoções sentidas em sua companhia.
O tempo fazia a sua tarefa de atenuar as lembranças ruins e revelar as boas coisas, as boas emoções.
Inúmeras vezes Marcus se viu voltando ao antigo lugar de encontros clandestinos para retomar as relações afectivas, beijar Serápis e elevá-la à condição de esposa.
Sempre, no entanto, que se encontrava com a imaginação nesse idílio fantasioso, ocorria-lhe a lembrança dos dois filhos deformados que amargavam toda a cena e o traziam de regresso à própria realidade.
Como homem não acostumado a perder quando se via obstinado em conquistar alguém ou alguma coisa, infantil em sua capacidade de avaliar os desafios e entender as derrotas como ensinamentos, Marcus era ainda o mesmo menino caprichoso e mimado que só crescera no corpo físico, mantendo-se infantil nas reacções íntimas de um espírito imaturo.
Ao lado de seu antigo amigo Licínio, sentia-se escoltado pelo bom senso e pelas sábias orientações que tinham o condão de encaminhá-lo, analisando as coisas e situações com correcção e segurança.
No entanto, depois de sua morte brutal, que era outra coisa que lhe pesava na consciência mais profunda, Marcus voltara à realidade de si mesmo, sempre desejoso de conquistar e concretizar o seu querer, não importava o que custasse.
Serápis, desse modo, continuava em seus planos pessoais de felicidade.
- Depois de todo este tempo em que ela deve ter ficado à mingua, tenho certeza de que será mais fácil que ela aceite voltar ao palácio, como minha esposa, desprezando aquelas crias horrendas, deformadas e indignas de um patrício como eu - pensava Marcus consigo mesmo, tentando convencer-se de seu plano.
Em sua mente, bastava que sua vontade fosse declarada no sentido de tê-la junto de si, que todas as coisas se resolveriam conforme seus desejos.
Sim - pensava ele - entre a fome na rua e o aperto naquela casa, certamente que Serápis não é louca em desprezar as velhas e confortáveis acomodações do Palácio onde viveu como serva e para o qual poderá voltar como senhora.
Dos filhos, aceitaria receber apenas Lúcia que, como ele sabia, era filha legítima de sua união com Druzila e que possuía o reconhecimento público como fruto de seu casamento com a falecida mulher.
Com relação aos filhos de Serápis, ninguém sabia que as crianças eram filhas dele, tendo sido, em realidade, assumidas como prole de Licínio na confissão que este fizera perante o juiz Sérvio Túlio.
Isso tornaria mais fácil descartá-las como coisas indesejadas e refazer a própria vida na companhia daquela mulher que lhe dominava o sentimento, mesmo depois de sete anos de distância e ausência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 14, 2014 9:36 pm

Dessa forma, cansado de aventuras e desgastado emocionalmente pela sucessão de prazeres sem raízes, de sensações sem sentimentos, de instinto animal sem elevação espiritual, Marcus resolveu regressar a Roma e, tão logo se inteirasse das coisas durante o sua ausência, colocaria seu plano simples em prática, atraindo para si a mulher desejada.
Em verdade, o jovem não conseguia sentir por Serápis o verdadeiro amor enobrecido e elevado que caracteriza a maturidade das almas evoluídas.
Sentia saudade das aventuras carnais na companhia daquela que lhe correspondia às emoções.
Embevecido por sua beleza e pelas formas encantadoras, pelos modos submissos e ousados, Marcus sonhava em tomá-la entre seus braços e, na cumplicidade dos velhos tempos, reencetar as mesmas horas de entendimento íntimo que lhe produziram tanta felicidade, aquela que nunca encontrara ao lado de Druzila ou de qualquer outra mulher.
Possuía uma tal sintonia com a antiga serva que não entendia como se construíra, assim, tão espontânea e rápida.
Ambos se sentiam atraídos um para o outro e desfrutavam de uma cumplicidade perfeita que ele nunca mais encontrara.
Em realidade, Marcus relembrava as mesmas sensações que desfrutara outrora, ao contacto com a astuta Fúlvia, aquela mulher cobiçada pela beleza e pelos trejeitos lascivos e que mantivera com o antigo Sávio, agora revivido como Marcus, o romance através do qual pretendia aniquilar Pilatos no exílio.
Eram antigos comparsas, ainda que, logo depois, Fúlvia o tivesse envenenado sem nenhuma piedade.
Tão intenso era o sentimento de Sávio por ela que, mesmo tendo sido sua vítima naquelas circunstâncias, a atracção que sentia por sua atmosfera vibratória era tal que tudo faria para reviver a mesma emoção e conseguir a mesma aproximação daquela época.
No íntimo do espírito imortal no qual se arquivam as sucessivas encarnações, com suas alegrias e dores, Marcus encontrava o material da emoção que o fazia sonhar com o reencontro com a mesma mulher desejada, sem entender a raiz de tal sintonia.
Ao chegar à capital do Império, sua alma se sentia feliz e pronta para resgatar todo o tempo perdido.
Não havia, entretanto, muita diferença entre o Marcus que fugira da paternidade desditosa e aquele que voltava a Roma com os ímpetos do adolescente insaciável.
A chegada ao palácio foi cercada de surpresa e alegria pelos que haviam ficado na administração de seus negócios, entre os quais, o fiel Fábio, aquele que sucedera Licínio, sem ter-lhe, entretanto, a mesma maturidade e intimidade com o senhor.
Depois de ter sido colocado a par de tudo o que ficara sob a vigilância de seus empregados, Marcus pediu a Fábio que apresentasse as notícias sobre Serápis, nas recomendações que fizera para que, ainda que de maneira modesta, lhe prestasse a ajuda necessária.
Fábio se surpreendera com a interrogação do patrão, por acreditar que aquele já fosse um assunto encerrado, sobre o qual o esquecimento tivesse determinado o desaparecimento das preocupações de todos.
No entanto, a fim de não fugir da verdade com que se via comprometido na função honrosa de representante de sua autoridade naquela sumptuosa habitação, Fábio relatou com exactidão as medidas iniciais que foram tomadas, as buscas que Serápis fizera, solicitando a presença de Marcus, a informação de que ele próprio se ausentara da cidade, sem data para regressar, e as poucas vezes que se enviou ajuda até aquele endereço.
- Mas foram tão poucas vezes assim, que você lhes mandou os alimentos necessários, Fábio? - perguntou, algo indignado, o patrão.
- Sim, meu senhor, e isso em cumprimento às suas ordens, que foram muito claras e incisivas.
"Auxilie por algum tempo e, depois, vá rareando para que essas pessoas não nos atormentem com exigências sem fim".
Foram estas as suas textuais determinações, as quais escrevi em minhas anotações pessoais para não me esquecer nem adulterá-las pelo sentimento de piedade por suas desgraças.
E continuando o relato fiel de tudo quanto acontecera na ausência Marcus, Fábio completou:
- Não foram poucas as vezes que, ao sair das dependências do palácio em demanda de algum outro local da cidade, deparei com o semblante ansioso daquela mulher, abrigada à sombra de algum arbusto do caminho, como reles pedinte, carregando a tiracolo três infelizes crianças, uma menina e dois meninos menores, todos no afanoso esforço de sensibilizar os passantes e conseguir alguma moeda.
E pela insistência em permanecer nas cercanias do palácio, parecia que aquela infeliz comunidade familiar desejava, em realidade, produzir algum encontro ou ter algum contacto com alguém que pudesse lhe subtrair do estado de penúria e dor.
Algumas vezes em que eu mesmo mandei interromper a jornada da liteira e entreguei algum recurso à pequena menina que buscava os adultos e lhes estendia as mãos, escutei a mulher, à distância, pronunciando seu nome e indagando sobre a sua presença no palácio.
Sempre que isso acontecia, recordava-me das suas sábias orientações, a determinar que não me alongasse em muito ajudar para que isso não comprometesse a sua reputação com exigências de mendigos ou pessoas inescrupulosas que, valendo-se da memória do antigo administrador, dela se aproveitariam para extorquir a bondade dos que nada devessem.
Por isso, meu senhor, é que obedeci às suas determinações de maneira fiel e inflexível.
Visivelmente contrariado, Marcus não se lembrava mais das orientações que deixara para que não se criassem expectativas em Serápis, vitimada pela desgraça dupla da maternidade traumática e da solidão a que se vira relegada, nas desditas pioradas pela ausência de sustento e amparo do pai de seus filhos.
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No entanto, o relato de Fábio era muito elucidativo e, ao som das palavras do jovem mordomo, reavivaram-se em sua mente as ordens arrogantes com as quais desejava demonstrar a sua distância pessoal daquele caso, não levantando suspeitas sobre a sua íntima ligação com Serápis e com aqueles infelizes aleijados.
Tudo fizera para que Fábio acreditasse se tratassem de companheira e prole vinculadas a Licínio, o falecido amigo, a merecerem dele o acolhimento à distância, em nome da gratidão pelos serviços que prestara nada mais.
Agora, com esse perfil de indiferença, Marcus percebia que, como outrora no caso de Lélia, sua conduta se transformava em sua própria barreira.
No passado, pretendendo condenar Lélia para livrar Serápis de qualquer suspeita, Marcus visitara e corrompera autoridades, tentando apressar as coisas e ver assassinada a serva que lhe parecia a mais adequada vítima, obrigando Licínio ao sacrifício da própria vida para libertara inocente.
Agora, graças ao mesmo procedimento que adulterava a verdade para livrar-se do dever, Marcus criara condições para ser ignorado, senão detestado por aquela que ainda dominava seu coração e era o centro de seus planos de felicidade.
Por sua culpa, agora, Serápis deveria sentir ainda mais ódio de sua fuga e de seu descaso.
Isso o contrariava profundamente, mas ele não tinha como negar que a culpa integral desse estado de coisas era dele próprio.
Enquanto o mordomo se mantinha em silêncio e na cabeça de Marcus tudo isso corria célere, como um rastilho incandescente que ele precisava interromper antes que detonasse o barril de pólvora da indiferença, do rancor mais profundo que afastaria Serápis para sempre, o proprietário retomou a palavra e perguntou, impaciente:
- Está bem, Fábio, mas e agora, onde está essa mulher?
Continua nas proximidades do palácio?
- Bem, meu senhor, desde algum tempo já não a vejo mais, nem mesmo os pequenos pedintes.
E como tal afastamento era de lodo desejável, segundo suas próprias determinações, nunca mais enviei as provisões até a antiga vivenda, deixando que caísse no esquecimento.
A generosidade de seu coração a fim de que não se transformasse em vulnerabilidade a ser explorada por pessoas inescrupulosas e interesseiras.
Dando-se por satisfeito, Marcus dispensou o ajudante eficiente e trancou-se em seus aposentos de trabalho, dentro dos quais iria traçar melhor os planos, rectificando a sua estratégia para que conseguisse atingir seus objectivos.
Importaria, primeiramente, inteirar-se das condições da família e saber como estariam vivendo.
Com esse intento, Marcus mandou chamar empregado de sua confiança, dentre aqueles que eram destinados ao seu serviço íntimo e determinou que ele se dirigisse até aquele local onde deveria estar vivendo a família abandonada para obter maiores informações sobre o seu estado geral.
Que observasse à distância, em primeiro lugar, sem revelar-se como enviado do palácio, para melhor apreciar as condições gerais.
Que perguntasse aos vizinhos, que se informasse sobre as crianças e, principalmente, sobre a mulher.
Assim, foi enviado até o local o jovem servo, devidamente trajado para que não levantasse suspeitas e pudesse passar por singelo curioso.
No entanto, não foi difícil para ele encontrar informações sobre a família.
Poucas horas depois, o jovem regressava à presença de Marcus com as informações que eram ansiosamente esperadas.
- Meu senhor, a casa está vazia.
- O que? - perguntou surpreendido, o patrão.
- Sim, meu senhor, ninguém mais mora ali, estando ela totalmente fechada.
- Mas o que aconteceu com eles? Você perguntou para os vizinhos?
- Sim, senhor Marcus.
Segundo me contaram, a mulher que ali morava com um grupo de crianças deformadas, três meninos e uma menina, se mudara.
Parece que, por ter conseguido emprego em uma das obras de César, ali conhecera um importante funcionário que, interessando-se pelo destino das crianças, tanto quanto pelos encantos da mãe delas, recolheu-as em sua casa ampla, já que todos estavam submetidos a uma vida de dificuldades extremas.
- Você tem certeza do que está me dizendo, Salústio?
- Bem, meu senhor, essas informações foram as que consegui na vizinhança que, segundo o senhor bem o sabe, é o melhor tipo de noticiário que obtemos, porque são muitos olhos a vigiar os passos dos outros, cada um procurando bisbilhotar e concluir à sua maneira.
Por isso, fiquei sabendo que um homem vinha todos os dias buscar a moça para levá-la ao trabalho e, logo depois, uma mulher se apresentava para cuidar da casa até que, no período da tarde, ausentava-se horas antes do regresso da mãe, sempre acompanhada do mesmo homem, na volta do trabalho.
Intrigado e indignado com as informações que recebia, Marcus, a muito custo, conseguiu controlar a emoção fervilhante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 14, 2014 9:36 pm

- Mas será que é esse o homem que a levou para sua casa, Salústio?
E que outro filho é esse que existe?
Segundo minhas informações, são apenas três.
- Bem, senhor, não tenho maiores informações a respeito.
Só sei que ela trabalhava nas obras do Panteón e que, ali, encontrara o homem que lhe modificara o destino.
Quanto aos filhos, estou seguro de que se trata de três meninos e uma menina.
Vários vizinhos falaram acerca deles, até mesmo porque eram causa de muito medo, devido ao estado de enfermidade que apresentavam.
Os três eram aleijados.
Arrepiando-se com o calafrio que sentia, Marcus dispensou o servo e permaneceu trancado no interior do escritório.
Seu espírito mesquinho tirava as suas primeiras conclusões.
Serápis havia encontrado outro homem em sua vida, com o qual, talvez, já tivesse inclusive outro filho.
Não, isso ele não aceitaria.
Ela teria que lhe pertencer novamente, e a presença de outro homem aguçava-lhe o instinto masculino de competir e vencer.
Precisava melhorar o plano para que conseguisse retomar o bem que julgava lhe pertencer.
Afastaria Serápis de quem quer que fosse e, se necessário, daria um fim naqueles filhos indesejados, poupando apenas a pequena Lúcia que, a estas alturas, já devia estar com mais de oito anos.
Em seus gabinetes mais íntimos, Marcus começara a traçar os sinistros projectos com os quais pretendia vencer a distância que o separava de Serápis, como se as ideias truculentas e cruéis lhe brotassem espontaneamente dos pensamentos, orquestrados com natural sucessão e com aparente lógica.
Primeiramente, sondaria as condições de vida actuais daquela família.
Depois, arrumaria uma maneira de afastar o intruso e os filhos aleijados da mulher desejada, fosse pelo sequestro, fosse pelo assassinato.
Tudo faria para que a antiga amante se desencantasse de seu actual protector, mobilizando seus contactos, suas influentes amizades para alijar um do outro, arrasando o competidor que ousara meter-se no caminho de seus planos.
E, depois de tudo pronto, sem que ninguém suspeitasse de suas artimanhas ocultas, surgiria como o salvador, retirando-as da desgraça o da fome, do abandono e da dor, confessando-se arrependido e disposto a consolar a jovem ferida no afecto que se frustrou. Então, livre dos filhos problemas, poderiam retomara jornada da vida a dois, apenas com a filha maior ao seu lado.
Deveria agir rapidamente, pois a notícia de seu regresso a Roma não tardaria a ser conhecida.
Assim, para evitar publicidade prejudicial aos seus planos, evitaria deixar a mansão e, se as circunstâncias o compelissem a fazê-lo, sairia disfarçado para não levantar suspeitas, usando roupas simples e não se valendo das sumptuosas liteiras de transporte dos patrícios.
Espalharia uma rede de espiões e procuraria usar os servos para conseguir o maior número de informações a fim de agir prontamente.
Nesse desiderato, as ideias lógicas iam brotando de seu cérebro esfogueado, como uma cascata de pensamentos que se sucediam sem que precisasse se esforçar muito para concatená-las.
A noite ia alta quando o cansaço envolveu-lhe o corpo pedindo o repouso.
O dia seguinte seria muito activo para a organização dos primeiros passos no sentido da reconquista do afecto que ele houvera desprezado.
Não sabia, nosso invigilante Marcus que, inspirando-lhe os sinistros projectos, se associara ao seu desejo afectivo e se aproveitava de sua ânsia vaidosa de conquista, o espírito astuto de Druzila que, desde muito tempo, seguia os passos de todos os componentes daquele grupo familiar, espreitando o melhor momento para levá-los ao pagamento dos débitos dos quais ela se julgava credora, como esposa injuriada, enganada, traída e assassinada.
Assim, logo depois da morte por envenenamento e das cerimónias fúnebres, seu espírito não encontrou descanso, passando a seguir, qual espectro sinistro, todos os passos das criaturas envolvidas com o seu drama pessoal.
Pôde, então, constatar a efectiva gravidez de Serápis e seu envolvimento com o marido, numa traição perpetrada no sítio aprazível que Marcus elegera para tais relações espúrias e que se arrastara para dentro do próprio palácio, por entre os corredores, através dos olhares cúmplices, das insinuações e sinais secretos, através dos quais se revelavam apaixonados.
Druzila, em espírito, perturbara-se ainda mais com tais descobertas, sobretudo por saber-se envenenada pela própria Serápis que, ainda que não suspeitasse ser corrosivo letal aquilo que colocara no jarro de água, dera curso à ideia de adormecer Druzila para sequestrar Lúcia para, com isso, fustigar o espírito de Marcus e forçá-lo a elegê-la como a primeira entre seus interesses afectivos.
A gravidez de Serápis foi o mais doloroso espinho no coração de Druzila, que tudo fez para piorar-lhe as condições e danificar-lhe os sentimentos.
A ausência de Marcus, o afastamento de Licínio, deixavam caminho livre para sua influência directa, que só era atenuada pelos cuidados espirituais de Zacarias e Lívia, zelosos protectores tanto de Serápis quanto dos espíritos de Pilatos e Suplício, que iriam renascer por intermédio dela.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 14, 2014 9:37 pm

No entanto, tão logo Marcus regressou a Roma naquela noite Inste da execução de Licínio no circo, Druzila agarrou-se vibratóriamente ao ex-marido para infundir-lhe sentimentos contraditórios e instigá-lo a recusar a paternidade daqueles seres que ela vira renascerem como monstros em uma sociedade que enaltecia a beleza e a boa forma.
Foi ao peso de sua influência mais directa que Marcus se viu inclinado a dar curso aos seus temores, ao invés de ouvir a voz da consciência que lhe ditava o dever de amparar a mãe de seus filhos, linda que deformados pelo destino.
Alimentado no medo e na vergonha de ser o gerador de uma estirpe de aleijões, o espírito da ex-mulher lhe feria o sentimento com intuições sarcásticas que eram recebidas na acústica de sua alma e o aconselhavam a fugir ao dever paterno, aproveitando-se do clima criado por Licínio.
Depois que o abandono se dera, Druzila se dividia entre a vigilância que mantinha sobre Serápis, deleitando-se com suas dores e os prazeres que sentia na companhia de Marcus, envolvido com tantas e tantas mulheres, volúveis como ela própria o fora quando na vida física.
Sempre desejosa de conquistar o marido, Druzila induzia sua fraqueza masculina a requisitar todo o tipo de jovem disponível, num prazer que parecia insaciável e que, através dos processos de influenciação e simbiose espirituais, permitia a Druzila como que desfrutar os momentos de gozo carnal, colando-se ao corpo das mulheres com as quais o ex-marido se envolvia, igualmente moças levianas e dispostas a tudo.
Assim, sem o saber, apesar de Marcus modificar suas companhias como quem trocava de roupas, seu prazer era compartilhado sempre com Druzila, que se fazia imantar ao corpo das doidivanas mariposas e fruía as sensações prazerosas de estar com o homem que tanto desejara dominar, desde os tempos em que se mantinha viva fisicamente ao seu lado.
Agora invisível, manipulava-o como um fantoche, estimulando a sua cupidez e a sua natural inclinação à sexualidade sem freios para dela desfrutar tanto quanto o desejasse, plasmando em sua mente os quadros mentais de sedução e volúpia com os quais despertava o seu desejo de novas aventuras, como a um faminto se aguçam as papilas gustativas ao contacto com os odores agradáveis de um prato saboroso.
Todavia, nas muitas idas e vindas entre Serápis, a qual pretendia fazer sofrer, e Marcus, que dominava pela fraqueza do prazer, Druzila se viu surpreendida pela acção generosa de Décio e de Cláudio Rufus, os quais, pela bondade natural de seus corações e pela inspiração superior, passaram a demonstrar o interesse invulgar pelo destino daquele grupo de seres que deveria sofrer a sua vingança.
A partir da presença de Décio e de Cláudio nas suas vidas, Druzila viu começar a esmorecer o seu plano de vingança, o que ela não concebia, já que Serápis era o foco de seu ódio constante e doentio.
Quando, então, ela pôde perceber que Cláudio se interessava sincera e honestamente por Serápis e que a jovem se sentia aquecida por saber-se objecto de sua afectividade, Druzila tremeu de ódio, arquitectando um novo plano para fustigar-lhe a felicidade nascente.
Não! Serápis jamais poderia ser feliz.
Era uma víbora que precisava provar do próprio veneno.
E, com esse propósito, Druzila passou a estimular em Marcus o desejo pela antiga amante, já que ela o dominava plenamente, nos anseios e sonhos masculinos.
Passando a projectar as imagens da jovem Serápis e a permitir que Marcus se recordasse dos momentos idílicos que viveram juntos, Druzila criou condições psicológicas no espírito do ex-marido para que ele voltasse a desejar a antiga serva, com a dupla finalidade de fazer a infelicidade da mulher e de produzir novas dores no falso e miserável esposo que, segundo as suas pérfidas intenções, jamais haveria de ser feliz novamente.
Nos mecanismos espirituais de afinidade e sintonia, Marcus recebeu-lhe as provocações suaves e se deixou levar pela multiplicação das emoções mais queridas, de um tempo em que seus sonhos eram a antessala da própria felicidade, representados pelo carinho da serva com quem tanto se afinizava.
Druzila já sabia que Serápis se encontrava enamorada de Cláudio e que este se voltava para ela como um homem sincero e digno, capaz de fazê-la feliz para sempre, apesar de todos os crimes que ela havia cometido no passado.
E por causa desse passado de delitos, o espírito ignorante não descansaria enquanto não impedisse que Serápis concretizasse a sua ventura.
Jamais aceitaria a felicidade daquela mulher que lhe fora a causadora da própria desgraça.
Desgraçaria a sua vida, ainda que tivesse de usar o próprio marido como ferramenta de sofrimento na jornada de todos.
E era isso que levava Marcus a ver-se tomado por uma torrente de ideias que se encadeavam naturalmente, como se ele próprio não precisasse se esforçar para elaborar o plano a fim de que pudesse recuperar a estima de Serápis.
Ingénuo, como um homem carente que perde a noção da correcção e do bom senso, Marcus era o boneco dócil que Druzila manipulava para que as lágrimas jamais secassem na face daqueles que ela via como seus inimigos figadais.
E naquela noite de sono em que Marcus se deixara cair, entrevendo o Início de sua luta para reconquistar Serápis dos braços de outro homem, a astuta Druzila, tão logo o espírito do ex-marido se projectou fora do corpo físico, apresentou-se perante ele, modificando a própria forma espiritual e assumindo o rosto de Serápis, aproximando-se dele como a pedir socorro, como a solicitar que ele a salvasse de algum perigo.
Assim que Marcus, manipulado em seus sentimentos, se viu diante da mulher amada, deixou-se empolgar pela proximidade e tomou-nos braços para compartilhar o beijo apaixonado e arrebatador, no qual colocou toda a sua emoção de homem vitorioso, imaginando que, normalmente, estava diante da antiga amante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 14, 2014 9:37 pm

Embalado por essa doce lembrança, agora materializada à sua frente e viva sob seus braços, Marcus conduziu a visão da mulher amada ao leito para que revivesse com ela os impulsos da sexualidade, imaginando que voltavam aos antigos tempos de prazeres e aventuras, sem imaginar que, em realidade, era o espírito de Druzila que a ele se entregava, lasciva e sedutora, para fortalecer na alma de Marcus o desejo obstinado de retomar Serápis para si mesmo.
No meio da noite, envolvido pela emoção erotizada do sonho inusitado, Marcus despertou com a sensação de que aquela havia sido uma visão premonitória a lhe comunicar o sucesso de sua nova empreitada, a dizer-lhe que ele se encontrava no caminho certo e que a vitória lhe estaria assegurada, interpretações oníricas estas que faziam parte dos costumes de todos os romanos, como que a consultarem os arcanos invisíveis e escutar o vaticínio da sorte, antes de cada desafio da vida.
Os augúrios lhe pareciam favoráveis e os deuses lhe davam o sinal de que ele estava no caminho correcto.
Mal sabia ele que, ao seu lado, um espírito horrendo se contorcia em gargalhadas, satisfeito por perceber o quão tolo Marcus se permitia ser, dando sequência à trama através da qual ela haveria de desgraçar de uma vez para sempre os sonhos de sua adversária.
Não esqueça o leitor atento, que estamos falando daquelas que haviam sido mãe e filha na existência anterior, a astuta Fúlvia, jogadora e assassina, e a filha Aurélia, criada pela mãe à sua imagem e semelhança, aprendendo a ser cruel, sedutora e volúvel, segundo os interesses imediatos.
Perdidas nas teias das misérias do mundo material, se permitiram chafurdar no lodo dos sentidos inferiores e não foram capazes de desenvolver o verdadeiro afecto sincero e puro que deve existir entre pais e filhos.
Agora, eram as que se perseguiam e davam-se uma à outra, como o fruto amargo que semearam para si mesmas.
Por esse motivo, queridos irmãos e irmãs que abrem o coração para os ensinamentos espirituais, não se permitam tornar-se pedras de tropeço no caminho dos outros.
Não acedam ao desejo de seduzir quando deveriam aprender a respeitar os compromissos dos irmãos de jornada, tanto quanto não subordinem a própria felicidade à dor alheia, fustigando o semelhante com os efeitos dolorosos das suas conquistas.
A vida é muito breve e a pequena satisfação que os troféus humanos produzirem em sua alma serão poeira diante das infindáveis consequências amargas que esperarão por seus espíritos logo depois do sepultamento de seus corpos ditosos e pachorrentos.
Evitem as armadilhas da sedução, com a exposição indevida de corpos bem modelados para produzirem a atracção sobre os carentes ou os cúpidos; afastem-se da ostentação que causa a revolta nos seres infelicitados pela miséria; não se permitam o falso contentamento de produzirem a inveja nos que não podem possuir o que vocês conseguiram obter; jamais se permitam as artimanhas da desonestidade e da imoralidade bem escondidas para a obtenção de bens materiais porque, em muitos casos, os cânceres e as doenças mais dolorosas são o derradeiro troféu a esperar por tais competidores do estelionato social.
E, sobretudo ao espírito feminino, que a renúncia à vingança possa ser o mais importante ensinamento destas linhas, porquanto na alma da mulher, sensível e preparada para as belezas superiores, a capacidade de amar plenamente está muito perto da possibilidade de odiar sem trégua, se a mulher se permitir trilhar o caminho perigoso da auto comiseração.
Ao considerar-se vítima, o espírito feminino estará muito propenso, pelas peculiaridades de sua sensibilidade, a aventurar-se pelo terreno perigoso da vingança, a perseguir com obstinação e crueldade aqueles que, à sua vista, surgirem como os responsáveis pela sua infelicidade ou pela frustração de seus ideais.
Observe-se pessoalmente e, longe de imaginar que isto é manifestação preconceituosa, pergunte-se se você, como mulher, sente prazer de ceder seu lugar a outra mulher.
Pergunte-se se você já consegue olhar para outra do mesmo sexo e não suspeitar ou temer suas intenções. Se não existe sempre uma desconfiança e um pré-julgamento dos interesses e dos trejeitos quo usam todas para se fazerem charmosas, carentes ou frágeis.
Se no íntimo de sua própria alma, todas as outras não surgem como potenciais ameaças à sua felicidade, aos seus interesses e aos naus objectivos.
Pergunte-se e escute a resposta com honestidade.
Pergunte-se se você não sabe quando está usando uma roupa pouco adequada à função de cobrir o corpo como deveria e qual é o seu objectivo ao fazê-lo.
Se você não deseja mais se vingar dos que a traíram ou enganaram, sejam eles homens ou mulheres.
Observe-se no espelho e veja as suas preocupações em agir de maneira estudada para conseguir chamar a atenção da pessoa que lhe interessa.
Perceba como existem sinais típicos para enviar na direcção daqueles que se pretende conquistar e como há um prazer sinistro em se sentir dominando o desejo de suas vítimas, ainda que seja para, logo a seguir, descartá-las pelo simples prazer de se fazer difícil.
Se observarmos em nós nossos comportamentos e inclinações, perceberemos em que nível evolutivo nos encontramos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 14, 2014 9:37 pm

Se você já é capaz de, no exercício da experiência feminina, se manter elevada e não se contaminar com todas as tendências tão comuns que expusemos acima, esteja certa de que sua jornada terrena a levará a excelcitudes jamais imaginadas, pela nobreza de seus pendores como alma eleita por Deus para dividir com ele os sublimes mistérios do governo da Vida.
Mas se ainda existem as inclinações que se fizeram agulhas em sua vaidade de mulher, em sua cupidez e astúcia, cuidado.
Vestindo essa nobre roupagem física, você pode estar tratando-se mais como fêmea do que como uma verdadeira mulher, cujos destinos superiores o Criador endereçou para ser a que modela o carácter dos homens e os encaminha para o crescimento, já que, por mais importantes ou poderosos que eles possam ser, todos eles tiveram que chegar ao mundo através de uma mulher.
Pense bem, porque suas condutas, seus impulsos íntimos e suas vibrações mais secretas denunciarão a todos os espíritos que a observam, se há em sua alma a nobreza e elevação de uma filha legítima da bondade, ou se você é, apenas, mais uma Druzila vivendo no mundo baptizada com um outro nome.
No mundo de hoje, vivenciar as experiências num corpo feminino é a mais bela oportunidade de elevar-se aos céus espirituais ou o mais perigoso caminho para projectar a alma nos tormentos íntimos desse inferno moral do arrependimento e do ódio milenar.
E é você, querida irmã, quem vai escolher que caminho seguir. Só você!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 14, 2014 9:37 pm

14 - Os planos do bem e as armadilhas do mal

Com as modificações que a transferência para junto de Cláudio aduziu nas vidas das personagens desta história, acostumadas a lutarem sem trégua pela sobrevivência mais precária, parece que um momento de paz e esperança invadiu o coração de toda a desventurada família de Serápis.
O ambiente mais confortável da moradia de Cláudio, a companhia de pessoas amigas, a modificação dos sentimentos e a presença carinhosa de Décio, o benfeitor de todas as horas, transformava aqueles momentos tristes do passado em alvissareiras bênçãos para o futuro.
As crianças se viam melhor instaladas, atendidas em suas necessidades básicas, ajudadas por outras criaturas que se viam contagiadas pelo exemplo carinhoso de Décio e pelas atitude solícitas do Cláudio que, ao espírito sofrido e cansado de Serápis, não passavam desapercebidas.
Em seu íntimo, como mulher que experimentara todo o tipo de emoções violentas e soubera usar seus atributos para encantar os homens, não era difícil perceber o interesse masculino, ainda que, agora, já tivesse sofrido o suficiente para não mais atirar-se a aventuras que poderiam comprometer todo o equilíbrio de sua posição.
Considerava-se serva na casa de seu benfeitor e, como já foi filiado anteriormente, foi nessa condição que aceitara a transferência da moradia.
No entanto, os modos respeitosos e cordiais, atenciosos e fraternos de Cláudio, igualmente no coração vazio de Serápis, iam produzindo os efeitos suaves que atraem os mais violentos animais, serenados pelo poder doce da melodia harmoniosa do Bem.
Serápis passara a sentir, no vazio que a envolvia, no coração cicatrizado depois de tantos dramas e feridas, o alento balsâmico do sentimento sereno e sincero, desse que não mais é acompanhado pela efusão vulcânica das paixões físicas, desequilibradas pelos excessos e pela ilicitude de sua vivência perante os costumes e compromissos legais, como houvera sido, anteriormente, com Marcus.
Aliás, a figura do antigo amante, irresponsável e covarde, se tornava ainda menor ao contacto com a postura verdadeiramente nobre de Cláudio, cujas virtudes e cujo carácter eram mais do que roupagem superficial e mentirosa, a esconder as chagas morais da perversidade e do desrespeito.
A companhia agradável das crianças, agora mais felizes e fortes, possibilitava que todos se sentissem transportados ao ambiente de sonhos que nunca imaginaram capazes de encontrar na Terra.
Nem parecia mais aquele cortejo de aleijados, a perambular por toda Roma, transportados em carrinhos e atirados nas sarjetas a pedir a compaixão dos transeuntes.
Domício também acabara se beneficiando de todas as novas circunstâncias, já que fora para ele que Cláudio voltara toda a sua atenção, compungido pelo seu drama e pelo desejo de algo fazer por sua melhoria.
Graças ao interesse do jovem administrador de Adriano pelo destino de seus filhos legítimos, tanto quanto pelo bem-estar do infeliz leproso adoptado por Serápis, a mãe aumentara o seu afecto por todas as crianças, percebendo que, da desgraça em que viviam, haviam surgido, para todos, as bênçãos que lhes chegavam e que eram atribuídas, a partir do encontro com Décio e com a nova doutrina cristã, à intercessão de Jesus pelos aflitos do mundo.
Nada mais poderia justificar essa modificação tão miraculosa, a transportá-los da sarjeta para o interior de uma faustosa moradia que, se não era tão exuberante quanto o palácio de Marcus, não lhe ficava muito distante na beleza e aconchego.
Quase quatro meses de ventura haviam transcorrido, desde a mudança.
Cláudio e Décio se esmeravam nas actividades diárias, sendo que o primeiro se via envolvido com as obrigações legais e administrativas, já que o retorno de Adriano e os seus planos de nova viagem para a antiga Hélade, demandando o embelezamento de Atenas e demais cidades antigas, impunha-lhe mais e mais deveres.
No entanto, ao final das tarefas de cada dia, quando a tarde se encaminhava para o poente, naquele início do ano 133, todos os dias se reuniam em sua moradia, a buscar a palavra confortadora de Décio, que informava do andamento das actividades e avanços da nova doutrina no seio da sociedade depravada e egoísta.
- Cada dia mais e mais romanos nos procuram, ainda que seja no anonimato e na escuridão da noite, recorrendo às orações de nossos grupos - informava Décio, entusiástico.
Acostumados a toda sorte de crenças e deuses durante o dia, durante a noite boa parte dos romanos vai em busca de sortilégios, magias, filtros amorosos ou venenos com os quais pretendem dar uma "ajudazinha" aos deuses na realização de seus desejos pessoais.
Dessa forma, acostumados a viverem de uma crença hipócrita e formalista, não é difícil que a frustração que sentem diante da impotência das estátuas os faça dirigirem-se para nossas reuniões anónimas e protegidas das vistas imperiais já que, apesar de não se estar mais ao tempo dos grotescos massacres, não foram invalidadas as leis que nos impedem as reuniões e a publicidade em matéria de fé.
No entanto, ocultos e disfarçados sob mantos, capuzes e túnicas humildes, mais e mais romanos e romanas se apresentam para escutar as exortações nocturnas, no isolamento do campo santo, para onde os patrícios tradicionalistas não se animam a ir depois que cai a noite.
Principalmente depois que meu pai regressou a Roma, temos visto muita gente a procurar-lhe o conselho através das alocuções que são testemunhadas pela noite e pelas pessoas que procuram Jesus no meio do temporal da vida e do sofrimento da alma.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 14, 2014 9:37 pm

Ouvindo-lhe a palavra emocionada, sentiam-se todos preenchidos de esperanças, pelo triunfo da nova doutrina sobre os enganos e desenganos do paganismo frio e indiferente.
Cláudio, com seu espírito mais jovem e idealista, acompanhava com interesse o relato do amigo, em cuja residência modesta igualmente comparecia em dias certos da semana para ouvir-lhe a palavra evangelizadora e trocar ideias que pudessem orientar seus passos na caminhada da vida através das novas estradas da renúncia, da confiança em Deus e do esforço de amar o próximo como a si mesmo, sem qualquer condição.
- Mas como é que se sabe da procedência dos que procuram as reuniões se a ela comparecem disfarçados? - perguntou o romano, admirado.
- Bem, Cláudio, nada que a boa observação não seja capaz de descortinar, seja pelo receio de serem vistos e identificados, o que faz com que se mantenham ocultados por detrás de capuzes e cobertas, seja pelos modos um pouco confundidos, inexperientes diante de nossas rotinas.
Qualquer servo humilde nos conhece os cânticos.
No entanto, os patrícios e os demais romanos pagãos nada sabem sobre nossas maneiras e nossas cantigas.
Por isso, basta observar para que aquilatemos quantos são dos nossos e quantos ainda estão nos buscando pela primeira vez, na esperança de serem ajudados de alguma forma por alguma força superior que desconhecem, mas que imaginam ser como seus antigos deuses.
Quando sentem a pureza de nosso Jesus e seus ensinamentos de Amor, de Confiança e de Optimismo, se encantam e, na maioria dos casos se vêem surpreendidos pelas lágrimas.
- Que maravilha, Décio.
Isso parece muito com nossas reuniões em sua casa - exclamou Cláudio.
- Sim, meu amigo, só que em tamanho maior, porque o ambiente agreste comporta algumas centenas de pessoas.
E as palavras de papai são incomparavelmente mais inspiradas que minhas toscas expressões de fé.
- No entanto - respondeu Cláudio - seja transportada em vasos de cerâmica ou em preciosos recipientes de alabastro, a água pura é sempre a linfa refrescante e inspiradora, tanto nos lábios de Policarpo quanto nos seus, meu amigo.
Procurando dar outro rumo à conversa, Décio acrescentou, com uma ponta de preocupação:
- Tal publicidade, no entanto, me preocupa um pouco.
- Ora, Décio, não estará Jesus atento a tudo isso e feliz pela jornada próspera de suas ideias?
- Claro, Cláudio, que o Senhor está ciente de todos os passos de sua mensagem no mundo.
No entanto, foi ele próprio quem nos ensinou que sua vinda ao mundo não tinha o condão de trazer a paz e, sim, a espada.
Assustando os próprios discípulos mais chegados, o Senhor afirmara que havia vindo atear fogo à Terra e que o que mais desejava era que ela se incendiasse rapidamente, para queimar as impurezas e preparar a nova semeadura.
- Mas que quis ele dizer com isso?
- Pelo que posso entender - respondeu o antigo pedreiro do Panteón - trata-se de uma referência directa às lutas que surgirão por causa de sua mensagem.
Naturalmente, os pobres e aflitos verão nela uma barca segura que lhes garantirá uma vida mais nobre, dando-lhes a oportunidade de aspirar às benesses que lhes são negadas nesta vida.
No entanto, para os abastados senhores terrenos, aqueles que dirigem os negócios do mundo pela velha ordem de interesses e estratagemas, essa nova fé lhes ferirá profundamente as vantagens e os bens.
Ajudar os que sofrem, dividir o pão, amar os inimigos, igualar escravos e senhores, tudo isso é por demais revolucionário.
Esse foi o motivo para as perseguições cruéis do passado recente.
Agora que as coisas se fixaram de forma menos dolorosa para todos, no entanto, a vulgarização da doutrina, a receber mais e mais interessados romanos para que se dissemine a maior número pode reverter esse processo drasticamente.
Facilitado o acesso dos candidatos a cordeiro, não há como evitar o ingresso dos que ainda se comprazem em ser lobos, que podem invadir o redil onde se reúnem almas aflitas e esperançosas e, ocultos igualmente pelo manto da noite, testemunharem nossas práticas proibidas para, logo depois, de forma fácil e violenta, fustigarem com a perseguição e o cárcere a todos os que forem surpreendidos.
E, mais uma vez, os que tiverem ascendentes de nobreza e tradição acabarão poupados enquanto que os pobres, sem defensores, pagarão o preço.
Não que isso deva ser temido pelos que pretendem, verdadeiramente, dar a vida em testemunho da própria fé, mas, de uma forma ou de outra, sinto que esses dias de perseguição se aproximam de nós, à medida que vejo o aumento do número dos adeptos de ocasião, aqueles que vêm para ver, por curiosidade, mais do que por convicção.
Já falei isso com meu pai que, mais lúcido do que eu, me fez ver que tais eventos devem estar na base de seu regresso a Roma.
Perplexo com a informação, Cláudio pediu maiores informações sobre a opinião de Policarpo, cuja figura tinha muita vontade de conhecer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:45 pm

Não se fazendo de rogado, Décio acrescentou:
- Sim, Cláudio, meu pai acredita que o seu regresso à nossa cidade esteja nos planos superiores para que ele próprio possa ser testado na fé que procurou espalhar por onde passou.
Como diz em suas exortações luminosas, a palavra não pode ser submetida ao fogo do testemunho.
Os que falam do Bem precisarão, forçosamente, ser convocados à vivência de suas expressões para selar com seus exemplos a grandeza dos conceitos que veicularam.
Assim, em seu íntimo mais profundo, Policarpo sente que chegou o momento de suas próprias provas, para as quais por tão longo tempo se preparou, no cumprimento da promessa que fizera outrora às luminosas mãos que me curaram da enfermidade no interior do casebre pobre onde vivíamos.
Segundo meu pai, não deve tardar o início da nova etapa e, demonstrando a sua convicção acerca disso, seus discursos evangélicos têm se tornado ainda mais contundentes e profundos, no sentido da implantação do Reino de Deus no coração das criaturas.
No interior do santuário dos mortos, à luz do luar como testemunha e enfrentando o frio nocturno, a palavra dele aquece os corações e parece fazer enrubescer as próprias pedras, diante das contradições mundanas, das hipocrisias de uma vida faustosa cujo principal fruto tem sido o crime e a devassidão, a infelicidade e a doença, contra as quais, deuses e sacerdotes remunerados nada conseguem fazer.
Recentemente, falando da grandeza da mensagem de Jesus, Policarpo exortou os ouvintes a que recusassem todas as efémeras coisas do mundo, os brilhos dourados de uma corte de homens iníquos, os interesses de poder e de grandeza tão agradáveis ao patriciado e às tradições de toda Roma, a fim de que agasalhássemos apenas a figura da humildade, a conduta da singeleza, como o fizera o Divino Amigo em sua jornada terrena.
Muitos dos que estavam lá entreolharam-se como que espantados de tamanha ousadia, como a se sentirem exortados a viver uma vida absolutamente impossível de ser encarada, diante do cenário de glórias e grandezas materiais.
Muitos, aliás, estavam ali a buscarem formas de conquistar de maneira mais rápida aqueles mesmos patamares ilusórios, esperando contar com a aquiescência desse nazareno que, como eles podem supor erroneamente, seja dotado dos mesmos interesses dos deuses romanos.
No entanto, ao invés de ouvirem promessas e palavras de condescendência para os ideais espúrios que agasalhavam, se viram desnudados no mais mundano de seus sentimentos.
Não contente com essa reacção, talvez inspirado por uma poderosa e sobrenatural coragem, tocado de uma auréola de santificadora verdade, Policarpo se dirigiu aos próprios romanos ali ocultos entre os capuzes, a lhes dizer que o Reino de Deus conta com homens que tenham coragem de se expor e de arriscar os próprios interesses perante os falsamente poderosos da Terra.
Aqueles que se acovardam por baixo de panos e cobertas ainda não estariam prontos para o reino de esperanças tanto quanto o trabalhador que, colocando a mão na charrua, olhasse para trás e ponderasse as vantagens e desvantagens de seguir adiante.
Que o Senhor respeitava as escolhas de cada indivíduo e não os obrigava a revelarem-se, mas que não se iludissem, porquanto, para todos os que preferissem as glórias de César estariam garantidas as belezas dos festejos que tanto agradam aos que seguem a César, ou seja, as agruras do circo, porquanto, entre imperadores que vêm e vão, os interesses humanos oscilam de um lado ao outro e, os que hoje são aliados, amanhã podem ser considerados traidores ou inimigos.
Somente Deus e Jesus não exigem esse tributo mesquinho, pois, como houvera ensinado quando de sua passagem na Terra, o jugo que Ele exerce é suave e o seu fardo é leve.
Era a mais directa alusão aos que, novéis e curiosos na fé cristã, ali estivessem à espreita de interesses imediatos, ansiosos por conseguirem objectivos mundanos, desejosos de favores e vantagens que lhes garantissem poder e riqueza, opulência e gozo.
Os próprios cristãos estremeciam ante as palavras de Policarpo.
Alguns vibravam de idealismo por entenderem-lhe a profundidade dos conceitos, enquanto que outros pareciam invadidos por uma coragem transcendente e inexplicável, não faltando, no entanto, aqueles para os quais essas referências directas e firmes eram perigosas para a segurança de todos.
Alguns que se apresentavam ali pela primeira vez, mulheres em sua maioria, tocadas pelas exortações carinhosas, mas firmes daquele ancião, encorajaram-se e tiraram os capuzes escuros, oferecendo ao olhar brilhante de Policarpo, os olhos húmidos e marejados.
Houve, entretanto, aqueles que continuaram ocultos e dali se retiraram tão logo se encerrou a reunião.
Nesse dia houvera sido muito grande a assistência e não se podia controlar com o adequado zelo e cuidado os que ingressavam no recinto e os que dele saíam.
Ao término da reunião, papai me comunicou uma visão familiar que muito me emocionou.
Havia visto, depois de muito tempo, as mesmas mãos luminosas a brotarem do vulto brilhante e indevassável que houvera encontrado no passado, como já me referi.
As mãos de luz flutuavam sobre a assistência, mas só eram vistas por ele próprio e, de onde elas se postavam, um jacto safirino chegava até ele para inspirá-lo nas palavras que falava, como se não estivesse falando por si próprio, mas reproduzindo, apenas, as vontades da rutilante entidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:45 pm

E enquanto ia falando sem controle directo, via as mãos luminosas se posicionarem sobre as cabeças ocultas pelos capuzes, como se a elas se entregassem com mais pronunciado carinho, fazendo-me adivinhar que ali estavam os mais perigosos elementos adversários das novas ideias, aos quais se fazia necessário despertar por palavras directas e candentes.
Essas mãos passearam por todos os que ali estavam reunidos, mas aos ocultos elementos da velha ordem mundana, entregaram-se mais demoradamente, como a lhes tocar a mente e o coração, sem que percebessem.
Por fim, ao término da operação luminosa, ao afastar-se de mim, o facho luminoso me fez entender a mensagem de que o fogo estava ateado no coração daqueles irmãos clandestinos e espiões, e que eles se incumbiriam de atear o incêndio para que a Terra fosse iluminada pela verdade de forma mais rápida, como houvera desejado fazer o próprio Jesus.
Fazendo uma pausa na descrição, durante a qual Décio secava as lágrimas de emoção que lhe invadiam a alma, logo a seguir, retomou:
- E, assim, Cláudio, creio que estamos muito próximos dos momentos de dor pessoal que ensejarão o testemunho de alguns para a melhoria de todos.
- Mas eu gostaria de conhecer seu pai antes de que qualquer coisa de ruim viesse a lhe acontecer.
Como posso ter essa alegria?
- Bem, sei que hoje ele estará falando novamente no mesmo local, depois que a noite se fizer mais escura.
Se você desejar, poderemos ir até lá.
No entanto, não sei se será conveniente para você, um importante funcionário do imperador arriscar-se tanto...
- Sei dos riscos que corro, mas, ainda assim, irei com você, protegido como fazem todos dos olhares curiosos dos circunstantes.
- Está bem, faremos como você deseja. No entanto, esteja seguro de que ninguém mais saiba de nossos planos.
E assim, despediram-se os dois.
Dando asas à sua planificação, Marcus também desejava informar-se dos detalhes da vida nova de sua amada Serápis, tendo espalhado seus informantes por todos os lados e, sem muita dificuldade, descoberto que ela se havia mudado para imponente residência de região respeitável da cidade, na qual vivia com sua família sob a protecção de importante funcionário de Adriano.
Essa informação aguçara ainda mais o impulso masculino de indignação na alma daquele jovem imaturo para a vida.
Não lhe valiam os conselhos espirituais das entidades amigas que procuravam abrandar-lhe os ímpetos de vingança na busca de retomar o antigo idílio amoroso com Serápis.
Estava conectado com as influências nocivas de Druzila e se via alimentado pela volúpia de ter a antiga amante nos braços, aumentada pela sensação de disputa que a sua nova condição lhe impunha.
Para isso se serviria de todos os meios disponíveis para que a vitória fosse sua e não do outro intruso.
Sabendo onde estava a família, buscou informar-se sobre os mm ursos o as relações de Cláudio, logo notificado de que, apesar de romano de estirpe tradicional e de íntimo auxiliar do imperador, era ,adepto da seita cristã, para onde estaria levando a própria Serápis, todos influenciados pelos malignos conselhos de Décio, um reles operário de obra.
Estas informações, regiamente remuneradas por Marcus, abriam-lhe uma ampla gama de possibilidades, já que precisava obter provas e favorecer o afastamento de Cláudio da mulher amada, a qual, agora, considerava envolvida pelos sortilégios mágicos dos seguidores daquela doutrina repulsiva que já houvera produzido tantos mártires.
Sim, Serápis deveria estar sob a acção de algum encantamento, o que motivava a sua modificação e o transformava em salvador da mulher amada e restaurador da ordem na manutenção dos costumes tradicionais da vida romana.
Valendo-se de seus espiões, passou a enviar informantes às diversas reuniões dos cristãos em todos os lugares onde soubesse que se reuniam, sempre esperando os relatórios de seus empregados de confiança.
Não foi sem surpresa que ficou sabendo do número elevado de romanos que iam a tais encontros, ainda que disfarçados sob mantos ou tecidos pesados.
Certamente que Cláudio deveria usar desses estratagemas para ocultar-se, tanto quanto Décio, dos olhares curiosos.
Assim, resolvera que iria ele próprio, igualmente, a uma dessas reuniões para presenciar o ambiente e ver se seria fácil identificar o concorrente de seu afecto ou, quem sabe, avistar-se com a própria Serápis e falar-lhe directamente.
Far-se-ia acompanhar de seu servo de maior confiança, Tito, além de alguns seguranças igualmente disfarçados que o escoltariam para sua protecção.
Alguns de seus homens montavam guarda nas cercanias da casa de Cláudio para seguirem seus passos e informar Marcus sobre suas rotinas normais, o que permitiu que o ex-amante de Serápis soubesse do movimento inusual que ali era observado com a saída fora de hora do dono da casa, acompanhado pelo amigo fiel, em direcção ignorada e ocultados por roupas modestas e pesadas.
Haviam saído em veículo de transporte ocultados da visão pública por dosséis que vedavam as janelas, mas, ao longo do caminho, depois de se afastarem das casas mais conhecidas, fizeram parar o veículo e desceram, tomando o rumo das reuniões dos cristãos, já entrada a noite pelas horas em que a maioria dos romanos dormia para um novo dia de trabalho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:45 pm

Com essa informação, igualmente disfarçado como já dissemos, Marcus partiu na mesma rota a fim de observar seu rival de mais perto, buscando inteirar-se pessoalmente dos detalhes como deveria proceder para atingir seus objectivos com astúcia e rapidez.
Não demorou muito e todos estavam no interior do mesmo recinto, protegido por muros antigos, onde, além das tumbas ancestrais, se reuniam os novéis cristãos, à distância da cidade que dormia, sendo de espantar o volume dos presentes, adeptos ou não das novas ideias.
Imediatamente Marcus viu que estaria em desvantagem numérica para adoptar qualquer tipo de postura mais reveladora de suas intenções enquanto que, da mesma forma que qualquer outro, sua presença poderia ser identificada por algum espião dos governantes da cidade, o que viria a depor contra suas intenções.
Logo Policarpo surgiu ante os olhares curiosos e emocionados e a palavra fácil brotou de sua boca, como sempre, para espanto e alento de todos os ouvintes.
Generoso e dócil, suas verdades seguiam o mesmo bordão das reveladoras notícias do novo Reino, um Reino de Amor e Bondade que viria a desbancar os reinos pobres existentes sobre a Terra.
E por esse caminho sua pregação seguiu, de forma a confirmar as suas supostas tendências revolucionárias tanto quanto a dos seguidores que lhe apoiavam os conceitos.
Como houvera predito a luminosa entidade naquela noite anterior em que as bênçãos foram espargidas sobre os adversários do Bem, além de Marcus, Tito e seus servidores, outras criaturas pouco simpáticas ao movimento haviam se dirigido para lá, no intuito de se certificarem do teor insuflador das palavras do pregador.
Não tardou muito para que isso ficasse patente e fora de dúvidas, aos ouvidos de funcionários sempre prontos a agradar seus superiores na defesa das velhas e mesquinhas tradições.
Ao término de suas palavras, vários se aproximaram do ancião, entre os quais, Décio e Cláudio, sem os capuzes protectores, enquanto que a maioria se afastava para regressar aos lares e Marcus, atrasando o passo, vislumbrava à distância, a figura dos dois junto a Policarpo, antevendo o gozo de sua vitória pela facilidade com que manejaria as coisas para consecução de seus planos.
Junto dele, Tito confirmava se tratar dos dois homens que estavam seguindo e que tanto interessava ao seu senhor.
Tudo estava correndo melhor do que tinha imaginado e, diante de tantas provas, não seria difícil dar início às suas jogadas.
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 3 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:45 pm

15 - A acção das trevas e a resposta do amor

Accionando todas as suas influências junto aos administradores romanos naquela mesma noite, particularmente a Lólio Úrbico, o prefeito dos pretorianos e seu amigo de noitadas e orgias célebres, Marcus levou ao seu conhecimento a ocorrência que testemunhara, relatando-lhe todos os pormenores do discurso de Policarpo, considerado ofensivo aos padrões romanos, noticiando, inclusive, a participação de outros elementos da alta sociedade romana, entre os quais citara a figura de Cláudio Rufus que, segundo ele próprio pudera vislumbrar, lá estavam não como curiosos, e sim, como adeptos convictos.
Fizera questão de ressaltar que ele próprio comparecera ao local afastado para averiguar a conduta suspeita de empregado de seu palácio, o qual desde há algum tempo vinha se conduzindo de forma estranha e que, segundo suas suspeitas, se havia transferido para as fileiras dos rebeldes cristãos.
Com essa desculpa, Marcus explicara a sua presença naquele ambiente de forma a não fazer com que o amigo imaginasse que ele também se houvesse contaminado com as novas ideias.
Graças às suas denúncias, às quais se somaram outras de diferentes espiões, inclusive do próprio guarda-costas, Tito, logo ao amanhecer do dia, Policarpo fora detido e conduzido às celas horrendas do Esquilino, onde permaneceria encarcerado até o término do processo apuratório.
Movimentando as suas poucas influências, Décio tentou obter notícias do progenitor encarcerado, não conseguindo mais do que genéricas informações que em nada o ajudavam sequer para conseguir levar-lhe algum alento ou propiciar-lhe algum tipo de amparo na hora mais dolorosa de seus testemunhos.
Vendo seu amigo em situação delicada diante do aprisionamento do venerável ancião, Cláudio Rufus buscou obter uma maneira de chegar até o local onde se achava detido, valendo-se de seus contactos para favorecer a Décio na aproximação do pai.
Visitou os escritórios administrativos, as autoridades responsáveis pela detenção, tendo, inclusive, buscado acercar-se dos mais intimamente ligados a Adriano com a finalidade de se fazer ouvido pela maior autoridade romana, sem, contudo, parecer que advogava uma causa que, às vistas imperiais, era de todo nociva para a convivência e para as práticas tradicionais.
Era, pois, muito delicada a sua posição, buscando ser a ponte de ligação que permitira o acesso de Décio ao pai encarcerado, sem parecer que ele próprio, Cláudio, fosse simpatizante das mesmas práticas.
Ainda mais que não sabia que as próprias autoridades já haviam sido alertadas por Marcus sobre a sua presença e participação nos cultos proibidos, o que tornava mais suspeita ainda a sua conduta interessada no destino do velho e rebelde pregador da insurreição popular I outra os costumes do império.
Por isso, não foi surpresa para Lólio Úrbico e seus asseclas quando, dias depois, sob o comando de Quinto Bíbulo, sub prefeito dos pretorianos, mais de trezentos indivíduos foram flagrados em nova reunião, acabando por abarrotarem os cárceres disponíveis, fossem os do já citado bairro, fossem os da prisão Mamertina, encontrando-se entre os que se viram levados à cela para as averiguações de praxe e para explicarem seus actos, os cidadãos romanos Décio e Cláudio Rufus que, diante do insucesso de todas as diligências no sentido de se avistarem com o venerável ancião, haviam se dirigido à fatídica reunião dos cristãos naquela noite para buscarem forças e inspiração para o momento difícil em que se viam envolvidos.
Para todos, segundo as ordens pessoais de Adriano, foi aberto um processo individual no sentido de se apurarem os factos e de, dentro dos avanços próprios dos institutos legais de sua época, garantir-se ao menos a possibilidade de se investigarem as provas, caso a caso, além de ser forma mais discreta e silenciosa de se conseguir pressionar individualmente, forçando-se a reforma da convicção, diante das consequências materiais trágicas e das pressões psicológicas muito fortes que se abatiam sobre cada prisioneiro.
Por isso, dos mais de trezentos presos, depois que lhes era feito o interrogatório sumário e mostrado o destino que os aguardava, a maioria se manifestava arrependida, prostrava-se diante da estátua de Júpiter Capitolino e, depois de algumas chicotadas ou bastonadas, era posta em liberdade, até mesmo porque o espaço nas prisões não permitia a manutenção daquele contingente de presos por tanto tempo em seu interior.
Não obstante a defecção de tantos, trinta e cinco indivíduos se mantiveram irretratáveis na fé, fincando suas convicções em Jesus acima de todas as ameaças e crueldades psicológicas ou físicas a que fossem submetidos.
Entre esses trinta e cinco estavam Décio e Cláudio.
Naturalmente, a figura de Décio como romano do povo não causou nenhum espanto entre as autoridades, acostumadas a encontrar esse tipo de perfil entre os adeptos dos ensinos do Cristo, o que era motivo para que seus sequazes tratassem-no com desdém, como costumavam fazer com aqueles que eram considerados traidores das antigas tradições.
No entanto, a prisão de Cláudio Rufus, inserido no meio dos adoradores daquele deus estrangeiro, era um profundo golpe na consideração recebida do próprio Imperador Adriano que, notificado pessoalmente do encarceramento de seu administrador de confiança nas obras do Panteón, determinou que o mesmo fosse conduzido à sua presença, a fim de explicar-se.
Para Cláudio Rufus, aquela situação inusitada e imprevista representava a perda de tudo o que de mais caro havia conquistado em sua vida.
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 3 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:46 pm

Não tanto no que se referia aos bens materiais, mas, sim, ao que já há vários meses, representava sua própria família.
Doía-lhe superlativamente a dor da separação daqueles cuja necessidade ele buscava amparar com seu afecto sincero e sua protecção firme.
Sua convicção nas forças do Bem, que já lhe eram naturais desde antes de se converter ao Cristianismo, só se viram ampliadas depois da descoberta daquela filosofia religiosa que tanto vinha ao encontro de suas certezas.
Além do mais, a presença de Décio ao seu lado significava garantia de coragem para as horas difíceis, já que, sem ilusões vãs, imaginava as tragédias dolorosas que teriam de enfrentar a partir de então.
A sua apresentação diante do imperador foi doloroso golpe em sua estrutura emocional, uma vez que entre eles havia, além de respeito, uma demonstração de mútua confiança, pelos dotes de equilíbrio e prudência, honestidade e devotamento que Cláudio sempre demonstrara.
No entanto, acostumado à corte dos bajuladores, para Adriano, a situação de Cláudio, flagrado no meio dos cristãos, transparecia aos seus olhos imperiais como traição de sua confiança omnipotente e tornando-o indigno de qualquer condescendência.
Nos bastidores seguia Marcus, pressionando as autoridades e seus amigos influentes para que Cláudio fosse levado ao suplício, distribuindo subornos, presentes e promessas a todos quantos pudessem ter alguma influência no caso, já que não pretendia que o rival sobrevivesse e pudesse continuar a ser uma ameaça aos seus planos de felicidade.
Não obstante, apesar de tudo e de todas as suas pressões através de Lólio Úrbico ou mesmo de Cláudia Sabina, mesmo depois de se ter recusado a renegar sua condição de cristão ou de fraudar a sua convicção em Jesus, o espírito de razoável benevolência de que o imperador era dotado propiciou que o jovem, ao invés de ser condenado à morte, sofresse pena menos grave, tendo-lhe sido imposta a sentença do banimento perpétuo, como forma de afastá-lo do meio social romano, confiscadas todas as suas propriedades na cidade e garantindo-lhe apenas pequeno farnel para que lhe servisse de começo de vida na distante província da Hispânia, para onde tivera decretado o exílio forçado.
Não é preciso dizer do estado desesperador de que todos os seus comensais foram tomados ao saberem da prisão de Cláudio e Décio, tanto quanto, dias mais tarde, da sua sentença de banimento perpétuo, sem qualquer recurso à piedade soberana, já que tal decisão emanara do próprio César.
Décio também recebera a sentença de banimento para outra província do império uma vez que, como cidadão romano, esta havia sido a forma de Adriano não supliciar romanos na arena, evitando os traumas no seio da comunidade que desejava controlar com gestos magnânimos e, ao mesmo tempo, afastar esses perniciosos elementos da convivência dos demais, já que, resolutos na pregação e na vivência das crenças proibidas, tornar-se-iam, cedo ou tarde, focos de novas actividades religiosas da doutrina proscrita.
Dos trinta e cinco corajosos e intimoratos, treze tiveram o mesmo destino, ou seja, o exílio nas diversas províncias do império vasto, cada qual para uma região, a fim de que não se reunissem à distância, proibidos que estavam de deixar o local do último destino, até que a morte os viesse buscar com suas asas resolutas.
Serápis, seus filhos e os demais servos viram-se na condição antiga, desventurados do mundo novamente, sem condições ou amparo imediato.
Não tardou para que autoridades imperiais viessem ao lar de Cláudio para retomá-lo em nome de Adriano, confiscando-lhe todos os bens e valores e despejando sem qualquer condescendência todos os que lá dentro se mantinham protegidos do mundo cruel pelas vibrações de entendimento que tinham construído para viverem em paz.
Sem qualquer piedade pela condição dos filhos doentes, os soldados agiram de forma a que tivessem tempo apenas de retirar seus próprios pertences simples e ganharem a via pública, antes de os atingir com golpes de chanfalho para acelerar-lhes o passo.
Era assim que o poder se impunha aos pobres e destituídos de recursos.
Carregando o coração oprimido e as lágrimas nos olhos, Serápis não sabia para onde ir.
Levava consigo quatro criaturas que dependiam de seu amparo, dois filhos adoptivos e dois filhos legítimos, todos já em condições de entender o drama que estavam enfrentando.
Domício, o mais velho, cada vez mais frágil com o avanço da doença, era o que precisava de maiores cuidados. Lúcia, sadia e ágil, era o seu ponto de apoio enquanto que Demétrio, sem os braços, e Lúcio, sem a visão, eram, um para o outro, braços e olhos que se ajudavam, sempre amparados pelo concurso amoroso de Lúcia, a irmã paterna.
No entanto, Serápis carregava, ainda, a frustração de um novo afecto perdido, de um coração esvaziado das esperanças da felicidade que, como madrasta ou sádica, se acercava mais uma vez para, imediatamente, desaparecer como fumaça.
Pensou em buscar formas de encontrar-se com Cláudio e Décio, aqueles seres cujo amor verdadeiro havia esculpido na sua alma fraca e viciosa uma nova forma de ver a vida e enfrentar os problemas, tornando-a menos fria e indiferente.
Sentia-se órfã na jornada da vida, sem imaginar ou suspeitar ainda que a acção de Marcus estava por trás de toda esta tragédia, no esforço do antigo amante para recuperar seu afecto ou a sua companhia feminina.
De volta à rua, carregando os quatro filhos desditosos ao seu lado, Serápis não imaginava o que fazer, buscando, na via pública, alguma sombra mais afastada ou isolada na qual pudessem todos se abrigar até que ela pensasse melhor, organizando suas ideias embaralhadas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:46 pm

Tudo ia tão bem e, de repente, em poucos dias, eis que seu mundo desmoronava novamente, tanto o mundo material quanto o mundo emocional.
Seu espírito alquebrado sofria tanto pelo regresso aos dias de penúria quanto pelo afastamento daquele que se houvera tornado seu protector e o objecto de seus sentimentos mais sinceros, que não tivera oportunidade de exteriorizar a contento, sequer de se confessarem mais intimamente, no afecto que, desde já há algum tempo era recíproco e, por ambos, compartilhado.
Tinha vontade de chorar, de que o mundo se abrisse e ela fosse consumida por suas entranhas.
Estava cansada o sem esperanças, sentindo-se vencida e sozinha, sabendo, entretanto, que não podia dar vazão aos seus sentimentos porque precisava ser escora na vida das quatro crianças que haviam recebido um destino tão ou até mais miserável que o seu.
No plano espiritual à sua volta, duas cenas se apresentavam simultaneamente aos olhares que pudessem penetrar o invisível.
De um lado, exultante e desafiadora, apresentava-se Druzila, gargalhando como uma bruxa em êxtase, a gritar para a mulher odiada que aquilo era só o começo de suas dores.
- Você pensa que vai ficar só nisso?
Você me tirou tudo e eu tirarei tudo de você, sua víbora malévola.
E enquanto gritava, puxando os próprios cabelos ensebados, vestida de andrajos que lhe davam a aparência de uma alma enlouquecida, girava ao redor da pequena família de Serápis que recebia igualmente o seu ódio.
Por outro lado, observando a cena dantesca em que o ódio de uma alma descontrolada induzira outro ser frágil e invigilante - Marcus - a agir dessa forma sob a hipnótica ideia de que, assim, conseguiria recuperar a antiga amante, encontravam-se Lívia, Zacarias, Simeão e Licínio, orando a Jesus por todos aqueles que estavam tão envolvidos no mal a ponto de que não se poderia dizer quem seria algoz e quem seria a vítima.
Ao redor de Druzila, que saltava como alucinada, e dos infelizes sentados à sombra, posicionaram-se os quatro espíritos amigos, buscando uma forma de levar ânimo e confiança aos irmãos de desgraças humanas.
Aproximando-se da pequena Lúcia, Lívia soprou-lhe ao ouvido a ideia de fazerem uma oração a Jesus.
Sem escutar a intuição pelos ouvidos físicos, a pequena garota, a caminho do início da adolescência, sentiu-se tocada por uma vontade de orar que a levou até os braços daquela Serápis arrasada e sem vontade, dizendo:
- Mamãe, por tudo o que aprendemos de Décio e do Sr. Cláudio, não podemos nos deixar abater.
Jesus deve saber da nossa situação e deve estar tentando, de alguma forma, nos ajudar.
- Ora, filhinha, Jesus deve estar muito ocupado com outras coisas para pensar em nossa desgraça - foi a resposta pessimista daquela mulher alquebrada.
- Mas podemos orar juntas, mãe, e nossas orações farão o "barulho" que vai chamar a atenção de Jesus para nós - insistiu Lúcia, tentando convencê-la da importância da prece naquele momento.
Vendo o esforço de Lúcia no sentido de elevarem o pensamento, Druzila, que não via os espíritos luminosos que cercavam a todos, gritou, mais irritada:
- Ah!Ah!Ah! - gargalhou, sinistra.
Que prece, que oração coisa nenhuma... isso é inútil... nossos deuses estão mortos ou surdos e mesmo que não estivessem, não seriam capazes de ajudar pessoas tão baixas e más como vocês.
No entanto, envolvidas por Lívia que, agora, se mantinha mais próxima de Serápis também, a luminosa entidade conseguiu fazer com que a palavra da mãe autorizasse a filha a pedir a Jesus por todos.
- Está bem, Lúcia, vamos orar juntas.
Mas você deve fazer a oração por todos nós, com seu coração firme e confiante..
- Está bem, mãezinha, eu farei do meu jeito...
E procedendo como de costume quando aprenderam a orar com seus benfeitores, Lúcia ajoelhou-se ali, à sombra silenciosa daquele rincão isolado do mundo e proferiu singela oração:
- Jesus, o senhor deve estar muito ocupado mesmo com muitos sofredores.
No entanto, assim que der um tempinho, ajude a gente que está sofrendo também por causa da maldade dos homens.
Parece, Jesus, que o mundo persegue as pessoas boas como Cláudio e Décio, prendendo quem faz o bem.
Eles devem estar sofrendo muito e nós, aqui nesta sombra, não temos para onde ir.
Minha mãe e meus irmãos estão muito doentes e cansados e você sabe que eu, sozinha, não tenho como ajudar, apesar de ter muita vontade de tirá-los daqui.
Acreditamos em você sem condições e pedimos o seu auxílio ou que você mande alguém que nos ajude.
Envolvida pelo coração magnânimo de Lívia, que conduzia seus pensamentos na súplica que fazia, Lúcia lembrou-se de sua primeira mãe, coisa rara em seu dia-a-dia, sentindo-se inclinada a incluir na prece o pedido a benefício de Druzila que, naquele momento, pouco se sentia ligada a Lúcia como assim estivera desde o nascimento da criança.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:46 pm

Dando seguimento à oração, Lúcia continuou:
- Jesus, você teve sua mãe que orou por você ao pé da cruz do sofrimento.
A mim, a bondade de Deus me concedeu duas mães.
A primeira, eu quase não conheci, mas estou certa de que, onde ela estiver, estará ao pé de nossa cruz orando igualmente a Deus para que nos ajude e proteja.
Por isso, Jesus, se você estiver muito ocupado para nos ouvir, mande mamãe Druzila com suas bênçãos para nos ajudar nesta hora difícil.
Sem entender o motivo daquela lembrança, Serápis nada manifestou de contrariedade à menção do nome da antiga concorrente, respeitando na filha adoptiva a natural rememoração daquele nome que, para seu espírito infantil, quase nada representava de bom ou de mau.
No entanto, a lembrança verbal que saía das palavras de Lúcia haviam atingido Druzila de forma fulminante, já que, desde o seu desencarne, ninguém havia orado por ela até então, de forma a colocar os sentimentos elevados a serviço das bênçãos do Amor.
Druzila era uma ensandecida pelo ódio em que vivera pela forma como fora criada e pelas ilusões que guardara no próprio íntimo, sem que, jamais, houvesse sentido as alegrias do afecto sincero.
A prece de Lúcia, ali, no clamor da desgraça que o espírito vingativo da própria mãe natural produzia sobre eles, era uma chuva de bênçãos e de vergonha para sua alma desequilibrada.
Como seria possível que uma criança como aquela pudesse pedir a Deus por sua alma?
E que sentimento de bondade era esse que sentira quando Lúcia, ajoelhada e de mãos elevadas ao céu, pronunciara seu nome qual cascata brilhante que chegava ao seu desventurado coração?
Ali estava Druzila, confundida entre o ódio da vingança e o sentimento de alento produzido por uma simples oração de uma criança que, longe de se lembrar de sua indiferença como mãe, confiava na sua condição de poder ajudar a todos.
Que santa inocência possuía essa criança, que pedia a bênção aos próprios demónios de seu destino?
Não podendo suportar esses sentimentos tão contraditórios em seu íntimo, Druzila afastou-se apressada daquele ambiente de energias sublimes que se formou ao redor do grupo, durante e depois de terminada a oração.
Ao seu encalço, no entanto, dirigiu-se Licínio, o antigo perseguido de suas artimanhas sedutoras, a fim de amparar-lhe o momento de crise durante o qual, esperavam se conseguiria melhorar as suas condições de espírito infeliz e mesquinho.
Envolvidos pela vibração de confiança dos espíritos amigos que os amparavam, Serápis teve uma ideia que poderia, por enquanto, auxiliar os filhos aflitos naquele momento difícil.
- Filha, - exclamou ela mais animada - bendita a hora em que suas palavras nos elevaram o coração até Jesus.
Creio que, por hoje, teremos como nos valer do recurso para a protecção e o abrigo na noite fria.
Procuremos a casa de Décio, nos subúrbios da cidade e, ali, encontraremos alguma ajuda.
- Isso, mamãe, boa ideia.
Lá nós encontraremos onde ficar por esta noite.
E como não desejassem perder mais tempo, levantaram-se todos, como se novas forças lhes tivessem preenchido os vazios da alma e, tomando o rumo mencionado, depois de uma caminhada pesada e difícil, atingiram a casinha de Décio, igualmente vazia e sem ninguém para ocupá-la.
Não foi difícil a Serápis conseguir abri-la, contando com a ajuda de Demétrio que, sem os braços, conseguia passar mais facilmente pelos vãos que davam acesso ao interior, de onde regressou, orgulhoso e vencedor, depois de ter destravado a porta que dava acesso à moradia modesta.
Entraram todos e, ali abrigados, mantiveram-se em silêncio para não levantarem suspeitas nas vizinhanças.
No entanto, a fome era uma companheira constante e, atendendo às necessidades emergenciais dos filhos, Serápis teve de sair em busca de algo para alimentar os pequenos.
Lembrou-se de Flávia, a irmã cuja bondade fora usada por Décio para cuidar dos filhos em sua ausência, quando trabalhava junto ao Panteón e, sabendo-a conhecida e cristã, imaginou não ser difícil encontrar sua moradia e pedir ajuda.
Além do mais, sabia que a mesma era trabalhadora em uma padaria na região onde morava e, por isso, saiu a informar-se, nas poucas padarias próximas, sobre o paradeiro da moça que sempre cuidara de seus filhos sem que nunca tivessem se encontrado por causa da incompatibilidade de seus horários.
Depois de muito procurar, de porta em porta, encontrou o local de trabalho de Flávia que, segundo as informações obtidas, só ingressaria no serviço mais tarde, devendo estar, naquele horário, na casa modesta em que vivia na companhia da mãe e do filho, não muito longe dali.
Recebendo indicações incertas do local onde a jovem benfeitora de seus filhos morava, Serápis saiu à rua, na tentativa de localizar-lhe o paradeiro.
Depois de muito perambular, de vagar pelas ruelas e caminhos, sempre com as informações entrecortadas por erros e orientações equivocadas, depois de muito tempo e cansaço, eis que, por fim, Serápis avista a casinha onde Flávia deveria morar, o que acabou confirmado pelas pessoas que viviam nas proximidades, identificada como mãe de um filho e filha de uma senhora idosa a quem ajudava.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:46 pm

Assim, esperançosa, Serápis dirigiu-se até a entrada da moradia singela, na qual se fez anunciar pelo ruído característico de palmas e expressões de quem está chamando alguém no interior da vivenda.
Não demorou para que uma das janelas laterais se abrisse e uma voz fraca, denotando ser oriunda de uma mulher idosa, respondeu ao chamamento de Serápis:
- Pode falar o que deseja... - foi a expressão da anciã.
- É aqui que Flávia mora?
- Qual é o problema?
O que você está procurando? - respondeu a velha, com medo de afirmar ser ali a moradia da filha por temer algum tipo de perseguição.
- Não, minha senhora, é que eu sou amiga dela e estou precisando lhe falar.
- Mas não parece que você a conheça, pois eu nunca vi a sua cara por aqui, moça.
- Bem, na verdade, nós nunca nos vimos pessoalmente, mas somos amigas de Décio e ela cuidou de meus filhos enquanto eu trabalhava fora.
- Ah! Já sei.
Espere um pouco aí que vou colocá-la para dentro e chamar Flávia para atender você. Já faz um bom tempo que isso se deu, não é?
- Sim, minha senhora, já faz um bom tempo... - respondeu
Serápis, aliviada por, finalmente, encontrar uma forma de equacionar seus problemas imediatos, ao menos com um pouco de comida para seus filhos.
Assim, não demorou muito para que a velhinha abrisse a porta e convidasse Serápis a entrar em sua casa, dizendo que a filha não demoraria, já que estava terminando de se arrumar para ir trabalhar na padaria.
- Flávia, Flávia, a moça está esperando você, filha.
Não demore... - falava a mãe, dirigindo-se a alguém no interior de outro cómodo da casa.
- Sim, mamãe, já estou terminando - respondeu uma voz macia lá de dentro.
Serápis sentou-se e esperou a chegada daquela que representava d único ponto de apoio para suas misérias imediatas e a que seria capaz de alimentar as esperanças de seus filhos.
Pouco tempo depois de ter sido servida com uma caneca de água, trazida pela anciã, que percebera o seu estado de cansaço e sede, eis que uma jovem simples e de tez sofrida entra no pequenino cómodo que, durante o dia, servia de sala para os encontros da família e, à noite, era usado como quarto para o filho adolescente que ali vivia com elas.
Sem esperar as apresentações formais, Serápis levantou-se rápida para que sua condição de necessitada fosse, de pronto, percebida pela jovem que, serenamente, trazia um sorriso amistoso nos lábios.
Tão logo, no entanto, Serápis fixou o olhar no rosto da jovem, um estremecimento ganhou-lhe o corpo e uma vertigem quase a levou ao solo, não fosse o esforço sobre-humano de permanecer erecta, numa hora de surpresa tão amarga ao seu espírito.
E sem poder pronunciar outras palavras, os lábios de Serápis apenas puderam dizer:
- Mas... é você?
Enquanto isso, seus olhos deixavam escorrer lágrimas abundantes de emoção e angústia, naquele momento tão delicado de sua vida.
Lembre-se sempre disso, querido(a) leitor(a):
Jamais conseguiremos fugir de nossos próprios actos e, como aprendizes da vida, nos compete reencontrar na jornada do futuro, tanto o bem quanto o mal que semeamos nos caminhos e nos corações no passado.
O tempo passa mais depressa do que imaginamos, mas as responsabilidades se perpetuam para sempre.
Melhor corrigir o erro hoje do que ter que suportar o sofrimento e a vergonha amanhã.
Nossa evolução espiritual depende dessa limpeza de alma, sem a qual não poderemos ser aceitos no Tribunal da Verdade nem mereceremos a absolvição da própria consciência.
Não adiemos essa faxina interior.
Mágoas, mentiras, erros, rancores, são tantas mazelas morais que nos fustigam e que nos impedem a felicidade plena de poder andar de cabeça erguida sem temermos a presença dos outros ou lastimarmos o encontro com certas pessoas.
Se você não pode ser a mesma criatura em todos os lugares, natural, espontânea, amiga, sincera, fraterna, aí você já encontra motivo para se preocupar, porquanto Deus nos fez uma só criatura, mas nós nos fantasiamos de um cem número de personagens mentirosos e mascarados de acordo com as nossas mentiras.
Dia chegará em que todas elas ruirão estrondosamente para que surja, apenas, a essência espiritual que nos represente verdadeiramente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:46 pm

16 - Amar os inimigos

Não bastassem as dores dos últimos dias, o destino havia reservado para Serápis surpresas ainda mais fortes, a testar suas convicções e a demonstrar a inutilidade de todos os planos e artimanhas que usamos para torcer as forças que dirigem nossos passos ao bel-prazer de nossos caprichos.
Por isso, desde que se vira devolvida à rua da solidão e da necessidade, sem o intuito de regressar ao antigo tugúrio onde vivenciara os momentos de paixão avassaladora nos braços do amante, naquilo que o leitor conhece pelo nome de "pequeno palácio", Serápis se vira particularmente envolvida pelas vibrações de Licínio, o espírito que lhe devotava o mesmo carinho do passado, apesar de desprezado pelo seu afecto de mulher interessada, não em um homem digno e de coração recto, mas na posição financeira e nos interesses imediatos.
Lá estava o antigo amigo de Marcus, o mesmo que houvera conseguido o emprego para Serápis e que havia morrido no sacrifício do circo justamente no mesmo dia em que Demétrio e Lúcio haviam regressado ao mundo das formas.
Licínio sabia que a transformação de Serápis estava exigindo dela um testemunho a que não estava acostumada a oferecer, na superação de obstáculos e na vitória sobre suas próprias imperfeições.
Por isso, ao mesmo tempo em que Lívia a envolvera nas vibrações femininas durante a prece de Lúcia ao pé da frondosa árvore em que se haviam abrigado, Licínio, depois de atender Druzila em fuga, encaminhou-se com a família até a vivenda vazia onde Décio se abrigava, inspirando-lhe a ideia de ir em busca de Flávia pelas ruas e caminhos de Roma.
E era Licínio quem, naquele momento doloroso e de superlativa vergonha para Serápis, sustentava suas energias a fim de que não fraquejasse diante da dor que, já grande com a perda de Cláudio e da sua protecção, agora se tornaria maior ao encontrar-se com Flávia naquelas condições.
Serápis, de pé no meio da pequena sala, estava diante da mulher que, por vários meses cuidara de seus filhos e os orientara no caminho do bem, enquanto ela própria ganhava a vida nos trabalhos estafantes das obras públicas para as quais Cláudio a havia convocado.
E, novamente, não havia muito o que falar, além daquela expressão surpresa e triste que exclamou, aterrada:
- Mas... é você?
- Sim, Serápis, sou eu, ...Flávia,... para servi-la!
- Não - disse Serápis depois de rápido silêncio durante o qual as lágrimas escorriam com facilidade.
Você não é Flávia... você é aquela Lélia... a mulher que eu acusei e que, graças à minha mentira, foi levada para a prisão e ia ser assassinada...
E era verdade.
Apesar do tempo decorrido, das mudanças físicas que o tempo impõe a todas as criaturas, era fácil que Flávia fosse identificada como aquela que servira na mansão de Marcus, aquela que fora serva de confiança da própria Druzila e que, cumprindo suas funções, acabara por levar-lhe o jarro com a água envenenada.
Entendendo o constrangimento de Serápis, Flávia aproximou-se dela e a fez sentar-se com um toque delicado em seus ombros.
Segurando-lhe as mãos trémulas, as igualmente trémulas mãos de Flávia demonstravam um carinho que Serápis não podia entender e que, à medida que sentia ser verdadeiro, ainda mais a apequenava diante daquela que havia sido vítima de seus planos diabólicos.
Fora Lélia a empregada que Serápis acusou a Marcus e a Licínio como a que possuía o tóxico letal que envenenara o antigo funcionário da fazenda que a assediava, tanto quanto que matara a primeira esposa de Marcus.
Jamais imaginara que um dia iria estar diante daquela mulher que, salva da execução pelo gesto heróico e abnegado de Licínio, não havia mais deixado nenhuma pista de seu paradeiro.
- Sim, Serápis, um dia eu fui Lélia, a serva interesseira, a serva invejosa, aquela que estava a serviço da senhora Druzila, para satisfazer sua ânsia persecutória.
- E você sabe o que foi que eu fiz a você e quais eram os planos de Marcus com relação ao seu futuro, não sabe?
- Sim, minha irmã.
Eu soube de tudo.
- E apesar de tudo isso, você cuidou de meus filhos, de minha casa, como minha empregada e sem receber nada, sem nunca dizer uma palavra a ninguém... - falava Serápis, admirada e sincera.
- Eu aprendi a amá-la, você amando seus filhos infelizes e vendo em todos vocês aquele Jesus que nos pediu compaixão para os que sofriam.
Sem que pudessem suspeitar da sua presença, as duas mulheres, que tinham seus destinos novamente sobrepostos pela dor e pela necessidade, achavam-se envolvidas pelo amplexo generoso de Licínio, aquele espírito fraterno que, na vida das duas mulheres, foi capaz de fazer o melhor, mesmo ao preço dos próprios interesses, ajudando sempre para que ambas crescessem em espírito.
Acariciava a fronte de ambas, como o pai amoroso se coloca entre duas filhas muito amadas e busca fazer com que se reconciliem e esqueçam suas diferenças.
Emocionado, seu coração vibrava de afecto transformando-se em um diamante de radiante luminosidade, a penetrar-lhes o peito na hora do testemunho e do acerto de contas, para que nenhuma nesga de mágoa, de rancor, de ingratidão se mantivesse dentro de suas almas.
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 3 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:47 pm

Mergulhando a cabeça no meio das mãos, em soluços de arrependimento, Serápis não sabia mais o que dizer.
Estava, literalmente, vencida.
Sem forças para agir, envolvida pelo arrependimento mais profundo de sua alma, deixou-se escorregar para o chão e, num gesto trágico e emocionante, ajoelhou-se diante da antiga adversária que não conseguia encarar directamente e, colocando a cabeça sobre seu colo, em prantos de dor, exclamou, agoniada:
- Perdão, Lélia, mil vezes perdão, eu lhe suplico.
A vida me puniu por tudo o que pensei em conquistar sobre o sofrimento dos meus semelhantes.
Eu não sei como é que você se libertou da minha maldade e até que ponto as atitudes de Marcus a prejudicaram.
No entanto, peço perdão por mim e por ele mesmo, que me abandonou com os dois filhos aleijados que você conhece e mais a pequena Lúcia que você viu nascer tanto quanto eu.
- Esqueça o passado, minha amiga.
Eu já o esqueci, tanto que não me identifico mais por aquele nome que me traz lembranças amargas pelos erros que cometi, também em relação a você, quando busquei agradar o interesse doentio de Druzila por notícias picantes, levantando calúnias contra a sua conduta e realçando com tintas torpes os pequenos detalhes da sua vida no interior do palácio.
- Mas, apesar disso, você aceitou servir em minha casa, não foi?
Você sabia que aquela mulher que nunca encontrava era eu?
E buscando ser sincera naquele momento de confissões dolorosas, Flávia respondeu, documente:
- No começo, me senti atraída para lá pela história triste que Décio me relatou, sobre uma mulher que precisava de amparo para que trabalhasse para sustentar seus quatro filhos infelizes, abandonando a profissão de pedinte nas ruas. Inclinada pela gratidão que devo ao meu benfeitor na promessa que lhe fiz quando recuperei a liberdade, e entendendo as agruras dolorosas do coração desditoso que tem de criar filhos em condição tão cruel de abandono e solidão, ali pude encontrar uma forma de retribuir ao mundo os benefícios que me vira recebendo tanto de minha mãe adoptiva quanto de meu benfeitor, Licínio, e que me haviam poupado a vida nos sacrifícios que fizeram por mim.
No entanto, depois que comecei a trabalhar em sua casa, a presença de Lúcia, as coincidências de certas histórias, o seu nome, foram me fazendo suspeitar da personalidade que se fizera tão infeliz no meio daquele turbilhão de dores e lágrimas, doenças e necessidades.
Até que, certo dia, depois de ter deixado o trabalho em sua casa para ir na direcção da padaria que me aguardava, atrasei a entrada na segunda jornada de trabalho para que, à distância, pudesse constatar minhas suspeitas e, então, pude ver a sua chegada, ao lado de Décio, confirmando a identidade daquela mulher infeliz como sendo a mesma que conhecera no passado.
Alisando carinhosamente os cabelos retorcidos e desalinhados como se acarinhasse uma filha abatida, Flávia escutou Serápis dizer:
- Mas mesmo assim, você continuou trabalhando lá e cuidando das coisas como se fosse a mãe das crianças!
De onde você retirou forças para tamanho sacrifício?
Eu quase fui a responsável por sua morte violenta, pelas afirmações maldosas que fiz a seu respeito!
- Eu não poderia agir de outra forma - respondeu Flávia - depois de tudo por que passei na vida, de tudo quanto recebi de Deus e dos corações generosos que me ampararam.
Você não sabe de meus sofrimentos, mas um dia lhe contarei as minhas angústias, a dor, o medo, a solidão que me fizeram compreender melhor os sentimentos humanos.
Depois que nos conhecemos, tivemos que enfrentar problemas juntas e se é verdade que, de um lado, estava seu interesse e o de nosso patrão em condenar alguém pela morte da senhora, por outro a bondade de Deus colocou um anjo a salvaguardar a minha inocência, já que, desde a primeira vez, eu jamais suspeitei de que aquele conteúdo do frasco fosse um veneno tão letal.
Recebi-o das mãos da própria Druzila como se fosse um sonífero para me livrar da perseguição que Um criado me fazia, desejoso de possuir-me como pagamento por seu auxílio nas tramóias de sedução que ela pretendia realizar para envolver o senhor Licínio.
Veja Serápis, como eu também fui má com meus benfeitores e, n despeito de todas estas coisas, de ter ajudado a criar os factores que o colocariam em uma situação delicada perante a honradez na qual lhe competia viver, ainda assim foi ele quem Deus enviou para salvar-me no momento doloroso.
Como me envergonhei de mim mesmo quando, ao invés de esperar a fúria das feras ou o calor das chamas, encontrei o interesse devotado daquele homem cuja bondade nunca encontrei igual, a não ser aquela que aprendi a encontrar em Décio!
Foi graças ao senhor Licínio que, ao ser posta em liberdade, pude me encaminhar até o local por ele indicado, onde me veria ajudada como ele próprio o fora, por ocasião de suas dores morais mais profundas.
Encaminhada por Licínio, encontrei Décio e, por isso, encontrei Jesus que me pedia que perdoasse os que me feriram a fim do que eu própria conseguisse o perdão pelos actos errados que cometi.
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Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz - Página 3 Empty Re: Série Lúcius - Sob as Mãos da MISERICÓRDIA / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:47 pm

Para mim também foi difícil o momento de constatar que aquele que eu houvera ferido ou prejudicado, se levantava para defender-me a vida, entregando a própria existência para me salvar.
Foi olhando as coisas pelo prisma de hoje, chego a considerar que essa foi a forma mais doce e generosa pela qual Licínio vingou-se de minhas condutas más.
Graças a tudo o que fez, Licínio me mudou para sempre.
Por isso, depois que passei a entender as belezas espirituais da vida ao contacto com esse Jesus amoroso e compassivo, eu, que recebi da mãezinha que me adoptara em momento de desespero o nome de Lélia Flávia, passei a utilizar meu patronímico Flávia para me fazer conhecida, deixando de lado o pré-nome Lélia, para que me fizesse esquecida daquela personalidade.
Depois de ter descoberto a verdade sobre você, passei a admirar as leis espirituais da vida e a sua dor passou a ser, para mim, o pesado fardo das angústias que a nossa ilusão garante como colheita para nossas sementeiras insensatas.
E como aprendi que somente quando se ama de verdade é que se consegue compreender a essência do Bem, amor este que Jesus ensinara que deve chegar sobretudo aos próprios inimigos, não me vi em outra situação senão a de continuar no seu serviço doméstico, sem me declarar, para que isso não viesse a causar-lhe dissabores ou suspeitas de que pretendia me valer dessa condição para prejudicar seus interesses, no exercício da vingança.
Aprendi a amar seus filhos, a admirar sua coragem moral por não tê-los abandonado, a entender suas necessidades de afecto e corresponder-lhes, ao menos em parte, aos pedidos de carinho próprios de crianças distantes da mãe querida.
E em seu lar, aprendi a cantar a musiquinha que você ensinara para enfrentar os momentos de pobreza extrema, quando a fome fazia com que outra solução não existisse a não ser aquela em que vocês se tornavam pão uns para os outros, mordendo-se como se estivessem saciando a própria fome.
A lembrança desses detalhes fazia Serápis sorrir e chorar ao mesmo tempo.
Sim, lembrou-se da musiquinha que cantavam nas horas do desespero da fome, como aquela em que, mais uma vez, agora, eles se encontravam.
- Foi por isso, Serápis, que eu me mantive em silêncio, buscando ajudar você e seus filhos na superação de suas dores.
Cada um de vocês é um Jesus para mim, um Jesus que está a me pedir o melhor de meu sentimento, do mesmo modo que, um dia, eu fui um Jesus que Licínio salvou da morte do corpo tanto quanto salvou da morte do espírito na qual eu me encontrava.
E procurando mudar o rumo das coisas para que a amiga saísse daquela condição humilhante e interiorizada, acrescentou:
- Somos, portanto, irmãs no erro e na necessidade. Não somos mais adversárias.
Somos filhas de Deus e, juntas, seremos dois braços para que Jesus os utilize como seus próprios braços que foram imobilizados na cruz do martírio para que Ele sofresse sem merecer.
Tanto tempo depois, Serápis, ainda temos sido aquelas criaturas para as quais continuam valendo as rogativas derradeiras do Cristo, a solicitarem do Pai que ele nos perdoasse porque não sabíamos o que estávamos fazendo...
E forçando os ombros de Serápis para cima, obrigou-a a sentar-se novamente na cadeira, oferecendo-lhe um pano para secar o rosto.
Depois, esperando que a amiga se sentisse mais controlada, abriu-lhe o sorriso sincero e perguntou qual o motivo daquela visita inesperada.
Serápis relatou todo o acontecido, a prisão de Policarpo, da qual Flávia já sabia, as prisões colectivas de tantos simpatizantes e o detalhe do se encontrarem entre os detidos tanto Décio quanto Cláudio, o que Flávia ainda desconhecia.
Com isso, de relance, a jovem percebeu a dificuldade por que deveriam estar passando tanto Serápis quanto seus filhos.
Foi então que ela relatou que, naquele dia, as forças imperiais haviam ido confiscar os bens de Cláudio que, por ordem de César, havia sido banido para região distante e perdido tudo o que possuía, lendo sido despejados do local, sem condições de recolher quase nada, a não ser as poucas roupas e objectos que lhes pertenciam.
E sem saberem para onde ir, já que Décio lhe inspirara sempre a figura protectora, agora igualmente banida para outro sector dos vastos domínios romanos, não lhe ocorreu outra coisa a não ser buscar abrigo nas dependências de sua pequena vivenda, na qual conseguiu entrar com a ajuda dos naturais pendores contorcionistas do filho aleijado.
No entanto, sentia-se uma invasora em propriedade alheia e, ademais, carecia de recursos alimentares para a manutenção dos filhos, não restando outra pessoa além dela própria, Flávia, a quem a sua miséria o a tome dos seus rebentos poderia recorrer.
Esclareceu que não desejava buscar o amparo de Marcus diante da sua postura esquiva e irresponsável, ao abandonar a família às necessidades cruéis da vida, o que motivou a sua abstenção em procurá-lo naquele transe difícil por que estavam passando.
E diante de tão sincera confissão de necessidade, Flávia já não conseguia sentir outra coisa por aquela antiga e arrogante conhecida a não ser verdadeira compaixão e vontade de agasalhar a todos com os poucos recursos de que dispunha, mas que, à toda evidência, eram insuficientes para satisfazer às necessidades tanto de sua casa quanto das outras cinco bocas que se apresentavam ansiosas e vazias.
Por isso, lembrou de ir com Serápis até a padaria onde ela trabalhara antes da mudança para a casa de Cláudio e onde, estava convicta, conseguiria algum alimento, em troca de trabalho para a amiga.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:47 pm

Para aquele dia, arrumou alguma comida, buscou ajuda de outras irmãs cristãs que conhecia na redondeza e voltou com Serápis até a casa de Décio para levar o fruto da primeira colecta fraterna.
Aquilo era um soberano golpe no orgulho de Serápis, tanto quanto no de Demétrio e Lúcio que, já tendo se acostumado ao ambiente humano e generoso da casa de Cláudio, viam-se, agora, restituídos à condição de pedintes e devedores da caridade alheia.
Lúcia, mais velha, os dominava com sua palavra de afecto, apoiando os esforços da mãe adoptiva que, ao contacto das atitudes de Flávia, encontrara novo ânimo para não desistir de tudo, buscando na morte e no assassinato de seus filhos a solução mentirosa para seus problemas, o que viria a complicar todas as coisas.
Eufórico e ansioso, Marcus seguia o curso dos acontecimentos e, ainda que não conseguisse levar à morte o homem que encarava como seu adversário, se contentava em poder vê-lo afastado de seu caminho, deixando aberta e trilha que ele poderia usar para aproximar-se da mulher desejada.
Seus espiões o mantinham informado de tudo o que se passava e, imaginando que, com o despejo, Serápis o procuraria ou tentaria voltar para o antigo ninho de prazer, muito estranhou que ela preferisse afastar-se de sua presença, sem sequer solicitar o regresso ao tugúrio onde viviam antes.
Espantado, foi informado de que ela buscara embrenhar-se em bairro pobre, vindo a abrigar-se com a família em pequeno barraco, precariamente.
Apesar de admirado com essa escolha, para ele absolutamente ilógica, não deixou de se sentir vitorioso, porquanto imaginara que, tão logo as necessidades da família se avolumassem, Serápis buscaria seu amparo ou, se isso não se desse, seria mais fácil que ele se fizesse presente como um benfeitor a oferecer a ajuda aos aflitos.
Usaria a miséria e a dor deles como instrumentos a seu favor, na realização dos planos que tinha em mente.
Naturalmente que, dentre tais objectivos, não se encontrava resgatar as crianças deformadas que ela conduzia para todos os lados o que, na interpretação de Marcus, eram a força de trabalho que ela contava para ganhar esmolas.
Sua conduta masculina e distorcida imaginava a retomada dos antigos sonhos, sem incluir neles os filhos aleijados, deixando espaço, tão somente, para a pequena Lúcia já que, ainda que não nutrisse qualquer afecto mais profundo por ela, tinha o seu sangue e era filha legitima perante a lei romana, titular dos direitos legais então vigentes.
E para ele seria fácil administrar aquela menina, enchendo-a de presentes e mantendo criados para educá-la, mesmo se valendo de meios para afastá-la do palácio onde pretendia instalar Serápis como se fosse a sua verdadeira esposa.
Não poderia expor-se ao ridículo em transferindo para lá toda a corte dos aleijados de Roma, o que seria motivo de chacota e humilhação nas bocas de toda a nobreza imperial.
Retomaria a mulher e desprezaria os filhos que, pela lei, pertenciam a Licínio e não a ele.
Forçaria as coisas para que Serápis, em posição de inferioridade, não se visse em outra contingência a não ser a de aceitar-lhe os galanteios novamente, refazendo as aventuras antigas e o calor da paixão dos tempos venturosos.
Assim foi que Marcus deixou correr os dias, que se transformaram em semanas nas quais Serápis, ajudada por Flávia, passou a morar na antiga casinha de Décio a título de protectora do seu património ao mesmo tempo em que, graças à indicação da amiga, fora admitida no trabalho da padaria por módico pagamento, no qual estava incluído o fornecimento de comida para a manutenção dos filhos.
Tais recursos, no entanto, não alcançavam suas exigências básicas, fazendo com que todos se vissem em precário estado geral, piorado a cada dia pelo acúmulo de necessidades sobre necessidades.
Domício adoecia ainda mais, tornando impossível levá-lo à rua para servir de chamariz à caridade alheia.
Lúcia precisava cuidar dele, enquanto Demétrio e Lúcio tinham que começar a se virar sozinhos, fosse na arrumação da casa, fosse na obtenção de outras fontes de recurso.
Foi aí que a figura do jovem filho de Flávia mais uma vez se fez importante escora na vida de todas as crianças.
Aproximados pelos laços de amizade, Flávia apresentou a todos eles seu único filho, rapazote esperto e atirado, que sempre arrumava formas de ajudar a mãe na sobrevivência naquela cidade cruel.
Era o antigo funcionário de Cláudio, o pequeno Fábio, aquele que corria a levar-lhe informações sobre o paradeiro de Domício, e que se considerava empregado do importante administrador do Panteón.
Fábio entrosara-se na vida da família e passara a ser aquele que, mais velho e experiente nas armadilhas daquela cidade grande, explicava as coisas para os seus novos amigos, ajudando-os a encontrar meios para amparar o esforço da mãe na manutenção de suas necessidades.
Todos os dias, pela manhã, Fábio que, agora, já se encontrava na adolescência, levava os dois novos amigos para as ruas e, de uma forma ou de outra, ia orientando seu passos na conquista de recursos através do pedido, tanto quanto na busca de trabalho que pudesse ajudar de alguma forma.
E entre as possibilidades disponíveis, estava a de fazer dos dois aleijados, uma dupla que pudesse chamar a atenção dos que passavam, desempenhando alguma função interessante.
Precisava pensar em como fazer com que o cego aprendesse a tocar alguma coisa e o aleijado conseguisse cantar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:47 pm

Lembrou-se dos hinos e canções que os cristãos entoavam nas suas reuniões familiares e aí pensou encontrar o caminho para levar os dois a desenvolverem algum tipo de habilidade para dela extraírem os recursos.
Foi assim que, pela primeira vez, Demétrio e Lúcio foram levados pessoalmente ao ambiente onde os cristãos daqueles tempos difíceis se reuniam, em um sábado pela tarde, a fim de apresentá-los à comunidade e pedir ajuda para que pudessem aprender a tocar, que fosse uma flauta e a cantar de maneira um pouco decente.
O próprio Fábio havia abandonado a carreira de pedinte profissional nas ruas de Roma e se esmerara, desde os tempos em que Cláudio o remunerava pelos pequenos serviços, buscando fazer pequenas coisas, encaminhando-se para actividades ou ofícios que ia aprendendo por si próprio, graças à ajuda de um ou de outro artesão que abrisse espaço para a sua juventude, sempre interessada em se fazer útil e receber algum dinheiro para levar para sua casa.
Afinal, estava se fazendo o único homem da família, a quem incumbia o dever principal de ser o mantedor das despesas e o protector da avó e da mãe que, até então, se haviam sacrificado para criá-lo.
Esse era o conceito da época, a enraizar-se na consciência dos homens até os dias de hoje.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:47 pm

17 - Vendo o hoje, lembrando o ontem e prevendo o amanhã.

Começava, assim, uma nova fase nas lutas daquele grupo de espíritos infelicitados pelos compromissos assumidos por eles mesmos em pretérito doloroso, no qual desejaram realizar todas as vontades e caprichos sem considerar as dores que espalhavam no caminho de seus semelhantes.
Graças ao apoio de Flávia, não foi difícil que Serápis se visse em condições de garantir, ao menos parte dos recursos de que necessitava para a sobrevivência precária na modesta casinha de Décio, cujo paradeiro era desconhecido para todos os que haviam se acostumado a ouvir-lhe as exortações do Bem.
A família desditosa se havia dividido em grupos para que todos tivessem condições de cuidar uns dos outros.
Lúcia permanecia em casa ajudando Domício com seus sofrimentos aumentados a cada dia, sem muita coisa a ser feita a não ser tentar-se diminuir seus padecimentos com alguma medicação paliativa que estivesse à mão, representada por infusões de folhas ou coisa similar.
Além disso, o estado piorado do jovem tornava-o uma atracção horrenda à visão pública, produzindo quadros constrangedores em face da hostilidade de muitos, incapazes de aquilatarem a dor moral do próprio doente.
Era muito comum que o outrora poderoso espírito obsessor de Nero, comandante de facções trevosas, temido por todos os que a ele se ligassem, pelos castigos que dispensava, agora, reduzido a um amontoado de carnes disformes e malcheirosas, incapaz de cuidar de si próprio, recebesse todo o tipo de impropério e xingamento de tantos quantos o encontrassem na via pública, sendo que, alguns mais exaltados e horrorizados com sua enfermidade atiravam-lhe pedras, excrementos, frutas ou ovos estragados para que saísse dali deixando as pessoas livres de uma cena tão deprimente, além do temor de contágio que sentiam.
Depois de algumas tentativas de se conseguir ajuda através da antiga fórmula mendicante, agora que ele crescera e que já não contava mais com o escudo protector da infância que sensibilizava os transeuntes, Serápis e Lúcia concluíram que não seria possível mais valer-se do pedido público de ajuda, devendo-se mantê-lo resguardado em casa, .até que pensassem em outra solução.
Lúcio e Demétrio se viravam como podiam, cada um ajudando o outro, amparados pelo concurso de Fábio, filho de Flávia, que conseguira ajuda para que tivessem rudimentos de música e de canto, aprendendo a fazer alguma coisa juntos para ganharem algumas moedas nas exibições públicas.
Lúcio se desempenhava razoavelmente com uma velha flauta, da qual tirava algumas notas que iam sendo juntadas para a composição de algumas músicas tristes, cujas letras os três criavam para melhor expressarem suas necessidades aos ouvidos dos que passavam.
No entanto, o exercício respiratório que era necessário implementar para que o instrumento pudesse ser executado, produzia no jovem candidato a flautista muito incómodo, porquanto desde pequeno, Lúcio trazia o ventre lacerado por ferida que não cicatrizava, conquanto não se tornasse pior, exigindo sempre cuidados com o atrito com roupas ou quaisquer cintos ou coisas do tipo, para que não viesse a ampliar a área atingida.
Isso o obrigava a andar um pouco arcado, como se estivesse tentando afastar a ferida de qualquer contacto com o meio exterior.
Somada à sua cegueira de nascença, Lúcio era uma figura abatida e triste, caminhando graças ao apoio que Demétrio lhe oferecia já que este, ainda que sem braços, tinha a visão que faltava ao irmão, de forma que, nas desgraças pessoais que carregavam, usavam das possibilidades que lhes restavam para dividirem-nas e se ajudarem.
Graças aos braços de Lúcio, Demétrio se alimentava, pois um, ainda que cego, valia-se das mãos para levar a comida até a boca do outro.
As necessidades da vida, agravadas pelas condições de dificuldade de ambos, haviam transformado os dois em criaturas que tinham que se ajudar mutuamente, se desejassem continuar vivendo com menores desafios.
E, entre desatinos gerais, ambos eram capazes de conseguir algumas moedinhas nas ruas de Roma, moedas que depositavam nas mãos de Serápis com o orgulho de dois vencedores, como se houvessem vencido as maiores guerras, contra os maiores adversários.
Em realidade, poder-se-ia dizer que, realmente, estavam lutando guerras verdadeiras contra os instintos animalescos que permitiram se misturassem à sua personalidade, enfrentando adversários cruéis que habitavam seus corações na forma de orgulho, vaidade, prepotência, indiferença pelo sofrimento alheio e maldade sádica.
Lembremo-nos novamente do passado, na última encarnação desses espíritos.
Ninguém conseguiria imaginar que naqueles dois míseros artistas de rua, encontravam-se o outrora poderoso governador da Palestina - Pilatos - cego e ferido, de um lado, e de outro, o seu braço direito, seu ajudante fiel, o executor de suas ordens infelizes, o lictor Suplício, contido no cárcere de uma deformidade que dele retirara todas as oportunidades de queda pela acção equivocada dos braços, outrora acostumados a manusear o chicote, a espada, os instrumentos de tortura, mas, agora, amputados do corpo para que não fossem mais motivos de escândalo.
Serápis, a orgulhosa Fúlvia, amante de Pilatos, manipuladora de homens para a obtenção de seus interesses, fomentadora de intrigas e mentiras, agora trabalhadora miserável de uma padaria, padecendo da solidão afectiva, imperiosa necessidade ao reequilíbrio de seus sentimentos.
Havia sido amada por Licínio, mas não soube valorizar seu afecto por ver, em sua expressão, apenas o amor de um subalterno empregado, um serviçal, um homem menor na expressão daquela sociedade.
Preferiu investir, como já dissemos, em seus antigos sonhos de grandeza, em conquistar varão melhor posicionado, que lhe facultaria o crescimento social e a colocaria na condição de rainha daquele castelo de belezas e poderes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 15, 2014 10:48 pm

Sonhara criar seu reino ao lado do marido de outra mulher e, no fim, perdera tudo, ficando apenas com os problemas que havia causado, representados na figura de seus dois filhos, Lúcio e Demétrio, os antigos amantes Pilatos e Suplício.
Nova tentativa de construção afectiva através da aproximação de Cláudio e, no fim, o destino a afastá-la do ombro amigo e devolver-lhe o espólio de dores e misérias para que ela as administrasse pessoalmente.
Ao seu lado, tão somente, o carinho da pequena Lúcia, a filha de Druzila, ambas, igualmente, almas conhecidas suas, com as quais se comprometera profundamente na ocasião em que estivera na Terra como Fúlvia.
Druzila, como já sabe o leitor, a mesma Aurélia, sua filha com o pretor Sálvio, a quem desencaminhara nos mesmos deslizes e estratégias sedutoras, e que, afastada de toda consideração filial, ministrara o veneno tóxico à própria mãe, antecipando-lhe a morte que já se aproximava em função de câncer agressivo que poria fim natural a uma existência de erros e delitos muito graves.
E a jovem Lúcia, a mesma Cláudia, esposa de Pilatos, irmã de Fulvia, que, apesar de ser sua irmã, nada impediu que Fúlvia se tornasse a amante de seu marido, levando-a a se comprometer moralmente com ambos.
Cláudia, no entanto, por ser um espírito melhorado, já possuía certa compreensão das coisas e, sabedora de que o marido era homem do mundo, suportava as traições de Pilatos como se elas correspondessem ao tributo que a esposa precisaria pagar para manter a paz nas relações do afecto, jamais imaginando, no entanto, que a infidelidade do marido chegasse a ponto de se expressar até mesmo com a própria irmã, por quem Cláudia nutria verdadeiro sentimento de carinho.
Agora, décadas depois, regressam todos na mesma estrada, cada qual carregando consigo os frutos e problemas pessoais, somados às responsabilidades colectivas que nascem dos relacionamentos interpessoais e que obrigam a cada qual defrontar-se com aquele que prejudicou, não para receber-lhe a vingança, a retribuição do mal pelo mal, a mesma moeda ou o olho por olho, mas, sim, para devolver-lhe, em bênçãos, em esforço, em devotamento, tudo aquilo que se lhe houvesse negado em outra vida ou que se lhe tivesse privado pela ambição ou egoísmo.
Essa era a condição essencial de todos os que ali estavam.
Sendo Lúcia o espírito de menores compromissos com a lei de causa e efeito naquele grupo, apesar de carregar falhas de carácter que teria de corrigir, seguia a vida sem maiores dramas de saúde, aceitando renascer ao lado da antiga irmã cujos compromissos do afecto estariam sendo provados no cadinho quente de sofrimentos pungentes para colaborar no seu resgate e, ao mesmo tempo, poder dela receber as demonstrações de atenção que lhe haviam sido negadas outrora.
Serápis, no entanto, carregava consigo os três espíritos com quem se comprometera fragorosamente, além de ter aceitado tutelar aquele infeliz irmão que necessitava de uma reencarnação de dor atroz para propiciar o reequilíbrio de suas vibrações enfermiças, aquele "grande imperador" que, agora, outra coisa não era do que o amontoado de carnes apodrecidas em vida.
O gesto de sacrifício de Serápis, no entanto, ao aceitá-lo como filho, mesmo que fosse para explorá-lo publicamente, era um pequeno mérito que se somaria a todos os outros conquistados pelas renúncias que fizesse e pelas lutas que empenhasse pelo bem dos filhos.
Tudo isto estava previsto pelo mundo espiritual no processo de evolução daqueles espíritos desde antes de seus reencarnes.
No entanto, Serápis havia sido preparada para unir-se a Licínio, o mesmo Lucilio, amigo e protector de Pilatos ao lado de Zacarias, e encontrar nele o companheiro generoso que a ajudaria nas lutas da vida.
Teriam dois filhos enfermos que criariam juntos, à luz de um lar amigo, com os aportes materiais que ele conseguiria pelo trabalho honesto na administração dos interesses de Marcus.
Atraída pela proximidade de sua antiga irmã e seu antigo marido, Lúcia se acercaria da família como a pequenina amiga dos filhos do casal para conectar-se com seus destinos e seguir a trajectória comum que os esperava.
A morte da mãe permitira que os laços afectivos já existentes entre eles se mantivessem naturalmente, com todos vivendo sob o dossel abastecido dos recursos do viúvo Marcus, o antigo amante de Fúlvia -como o soldado Sávio - responsável pela tentativa de envenenamento de Pilatos no acampamento distante que acabou levando à morte o velho Zacarias.
Marcus serviria como o abastado armazém de recursos para que todos, inclusive ele, pudessem quitar suas dívidas com a lei e limpar-se perante a Justiça do Universo.
Tudo havia sido preparado para que todos pudessem viver dentro do melhor padrão que permitisse superar os obstáculos com o menor sofrimento.
Mais adiante, a compaixão levaria Licínio a trazer Domício ao ambiente familiar, promovendo-se, assim, a ajuda àquele irmão desditoso, completando-se o quadro dos compromissos assumidos, sem as lágrimas e dores ampliadas.
No entanto, os principais interessados resolveram reescrever seus projectos com as letras tortas e as linhas inclinadas de seus caprichos.
Serápis queria ser a dona do palácio, conquistando o que pertencia à antiga filha.
Desprezou Licínio e aceitou ser a amante de Marcus, acabou envenenando a primeira esposa - sua filha de outras vidas -, recebeu os filhos do sofrimento - os antigos amantes - e se viu abandonada por aquele cuja riqueza ambicionava tanto, mas que não tinha os compromissos directos na criação daqueles aleijões tanto quanto ela.
Ave sem Ninho
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