LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz

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Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:25 pm

Se Marcus cometia algum deslize moral, era tão somente em relação à sua esposa a quem a fidelidade lhe imporia um dever de respeito e consideração, se verdadeiros fossem os laços que os uniam.
No entanto, aquele não seria o primeiro comportamento inadequado e infiel do esposo.
Ao mesmo tempo, a própria Druzila vivia se insinuando a fim de romper os laços formais da união e, com certeza, revidar as ofensas morais que o marido não fazia questão de ocultar de seus olhos raivosos.
Em verdade, se ele houvesse contado a Marcus seus sentimentos por Serápis, estava certo de que o amigo não se deixaria levar pelo interesse.
Talvez fosse apenas o desejo de um homem por uma serva bonita.
Quem sabe?
No entanto, Serápis sabia de tudo, tinha sua palavra sincera, seus anseios revelados e, apesar de sua confissão de afecto, em momento algum deu a entender que não o desejava, repudiando sua manifestação com um NÃO!
Seus pensamentos ferviam tentando dar um contorno real ao mundo de surpresas que o envolviam, sentindo, num momento, que as coisas que existiam à sua volta não eram verdadeiras.
Aquela cidade de aparências e poderes parecia-lhe repulsiva.
Diante das coisas que ele pensava serem concretas, via-se descobrindo outras realidades que sempre existiram, mas que nunca haviam sido entrevistas.
Seriam verdadeiras as pedras sobre as quais ele estava sentado?
Ou seriam, apenas, outras ilusões que, em breve, se desvaneceriam para atirá-lo num abismo escuro.
As horas se haviam passado e, ao lado dele o espírito Zacarias o afagava paternal, amparando-o nas reacções e nas dores mais íntimas.
O velho amigo invisível, sentado ao seu lado no chão frio daquela cidade, tinha também orvalhados os olhos lúcidos.
Seus braços enlaçavam Licínio como um pai desejaria fazer para proteger o filho do tiroteio da vida, das pedradas do mundo, oferecendo-lhe o único recurso de que dispunha para dar-lhe energias e equilíbrio à emoção atacada pelas ideias negativas.
Ao mesmo tempo, Zacarias olhava ansioso para os lados, como se estivesse aguardando alguma outra pessoa que estivesse prestes a chegar.
Não tardou muito tempo e Zacarias sorriu, vendo a aproximação do espírito João de Cléofas, acompanhando um homem de aparência descuidada, mas de coração muito bom, que não era capaz de lhe identificar a presença espiritual.
- Ah! Que bom que você conseguiu, meu filho.
Estava preocupado com sua demora - falou o velhinho, sorrindo satisfeito.
- Sim, meu paizinho - respondeu Cléofas àquele a quem se sentia ligado por laços de profunda gratidão e respeito.
Foi um pouco complicado, mas consegui fazer com que nosso irmão Décio me escutasse as rogativas.
Enquanto os dois conversavam, Décio, que se apresentava como um passante comum, viu-se atraído por aquela cena constrangedora, representada por um homem da estatura e das vestes de Licínio, sentado à beira do caminho, chorando como uma criança desamparada.
Envolvido pelos sentimentos de Cléofas que, de longe, o estavam intuindo espiritualmente para que se dirigisse àquele local, Décio sentiu uma compaixão inesperada por aquele desconhecido e, recordando-se das lições da Boa Nova que tinha tido a oportunidade de conhecer, lembrou-se do Cristo que dizia:
"Toda a vez que visitaste um doente, que deste comida a um faminto, que foste à prisão visitar um condenado, que atendeste um desconhecido, por menor ou mais insignificante seja ele, foi a mim que o fizeste."
Décio sentia bater diferente o coração.
O esforço espiritual de Cléofas, a intuir aquele devotado cristão simples e modesto para que passasse por aquele caminho havia valido a pena.
Nos planos espirituais, havia chegado o momento de levar Licínio até a mensagem de Jesus, que já era cultivada na grande capital por inúmeros núcleos, estando a se expandir graças à sua força e ao exemplo de resignação e devotamento heroicamente demonstrados nas execuções e nos circos, onde os espectáculos apresentavam as crueldades e sandices de sempre, usando pessoas e cristãos indefesos.
Além do mais, inúmeros espíritos convertidos se haviam candidatado a nascer novamente em Roma para, expurgando seus erros do pretérito anonimamente, difundirem a excelsitude daquela mensagem de esperança e de fé em um Deus generoso e amigo.
Ao lado de uma grande corte de entidades luminosas e idealistas, multidões de espíritos endividados haviam solicitado e recebido a autorização para descerem ao palco da vida com o propósito de enfrentarem os obstáculos da fé nascente e, se necessário, entregarem suas vidas como o maior património a serviço da própria elevação.
Décio, portanto, estava entre estes que, cheios de compromissos no ontem, haviam recebido a semente do Evangelho no espírito, com a sinceridade dos verdadeiros lutadores e, desde então, nas suas actividades diárias, sempre procurava ajudar as pessoas a encontrarem o mesmo caminho.
Aquela cidade monstruosa, cheia de ritos e de interesses confusos e conflituantes não tinha muito tempo para aqueles que se mantinham professando fé diferente do tradicional politeísmo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:25 pm

Somente quando era conveniente e necessário, os seus dirigentes arrebanhavam tais seguidores como material incandescente ou comida para os bichos, no entretenimento barato para o povo.
Décio, no entanto, não se descuidava do pequenino rebanho que procurava orientar, levando a leitura dos textos cristãos para dentro de sua pequenina moradia onde recebia, sempre, pessoas em busca de consolo e esperança.
Lá dentro, muitas curas haviam sido realizadas e, no sentido cristão primitivo, nenhum comércio se fazia das coisas sagradas e nobres.
Isso fazia com que mais e mais interessados buscassem Décio como aquele que lhes poderia dar orientações.
Amparado por espíritos amigos que assessoravam o trabalho do nascimento e da implantação do Evangelho na sede imperial do mundo dito civilizado, Décio era sempre protegido e inspirado por pensamentos e entidades superiores que dele se serviam pelo trabalho que ele realizava, mais do que pelo ser humano endividado que ele era.
As dívidas, ele se responsabilizaria por elas oferecendo a moeda do trabalho desinteressado em prol do semelhante.
E ali estava, trazido pela intuição de Cléofas e conectado por seu magnetismo ao irmão caído e desditoso.
Vendo que ninguém se importava com as lágrimas solitárias de Licínio, Décio abaixou-se ao nível dos olhos molhados e, procurando parecer amistoso, perguntou:
- Desculpe, meu irmão, mas eu posso fazer algo para ajudá-lo?
Envolvido pelas forças de Cléofas e pelo amor emocionado de Zacarias que, de igual sorte, abraçou o recém-chegado, Décio se sentiu tocado ainda mais por uma emotividade profunda.
Seus olhos, pouco acostumados a chorar por suas próprias dores, também tiveram que se esforçar para não permitir que as lágrimas o revelassem.
Vendo-se procurado assim, de maneira fraterna e singela por um homem do povo que não o conhecia, Licínio abaixou os olhos envergonhado e respondeu:
- Não existem remédios para as dores do coração, meu amigo.
Ouvindo-lhe a resposta, indicadora que seus sofrimentos não eram físicos e sim morais, Décio ajoelhou-se à sua frente e respondeu:
- É verdade que nossos velhos deuses nunca se ocuparam de nossas lágrimas anónimas, preocupados que sempre estiveram com o tamanho de nossos exércitos, o poder de nosso império.
Órfãos de sua protecção, não encontraremos neles o remédio para nossas mais íntimas lágrimas, meu irmão.
Todavia, há uma grande e luminosa esperança para nós...
E as reticenciosas palavras daquele homem, que parecia mais um rude operário do que um pregador de filosofias, atraíram a atenção de Licínio que, interessado pela sua sinceridade e doçura, voltou para ele o olhar novamente, perguntando:
- Como assim, meu amigo?
- Sim, meu senhor.
Há esperanças para todos os nossos problemas e sofrimentos, esperanças que não custam nada, que são luminosas pétalas da mais bela flor que a Terra conheceu um dia e que, aromatizadas pelo perfume da verdade, deixam envergonhados os deuses de pedra que reverenciamos, corados ante a profundidade das revelações que a bondade divina nos oferece através da mensagem do Evangelho de Jesus.
Ante o silencioso interesse de Licínio, Décio prosseguiu.
- Nossos corações falidos encontram consolo, nossas desilusões passam a compreender os motivos de sua existência e, uma vez entendido o valor da vida, orientamos nossos passos para outras rotas, modificando nosso modo de ser e avaliando melhor o valor de cada experiência na Terra.
Não mais esperamos dos nossos irmãos, falhas criaturas tanto quanto nós mesmos, comportamentos mais perfeitos ou isentos de erros, passando a compreender-lhes as fraquezas e a relevar-lhes o mal que nos façam, lembrando que o mal pertence sempre a quem o pratica não a quem o recebe.
Nossos espíritos, famintos de compreensão, são banhados pela verdade que nos diz que bem-aventurados seríamos todos os aflitos do mundo, se soubéssemos entender as lições que a dor nos ministra.
Que cada um pode ser luz na escuridão e que nem o dinheiro, nem o poder, nem o nome são capazes de enganar a Soberana Justiça do Deus Único que tudo vê, tudo conhece e tudo julga com sabedoria e bondade.
Todos estes conceitos, na boca de um homem tão rude, impressionariam qualquer um.
O próprio Décio se via admirado com a fluência das palavras, como se ele próprio não fizesse nenhum esforço mental para proferi-las, nem precisasse pesquisar no arquivo pobre de sua capacidade limitada para encadeá-las com a lógica precisa e tão aplicável ao caso concreto do próprio Licínio.
Naturalmente, o poder de Zacarias estava envolvido nessa transmissão nítida de conceitos que Décio não poderia reunir com facilidade e verbalizar com tal lucidez, por si mesmo.
Era uma das inúmeras manifestações mediúnicas que a doutrina espírita dos tempos modernos aprofunda e explica com clareza.
Naquele momento, Zacarias envolvia a mente espiritual de Décio que, dócil instrumento, verbalizava todas as ideias que lhe brotavam, misteriosamente, da acústica mental, levando Licínio a escutar exactamente o que precisava para ser tocado no seu mais profundo e ferido sentimento.
Envolvidos naquela atmosfera forte e luminosa, Licínio se deixou encantar pelas afirmativas de Décio como a criança que começa a descobrir o mundo ignorado e se deixa conduzir para que sua curiosidade e sua fome possam ser satisfeitas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:25 pm

- Venha comigo, meu irmão.
Conversaremos melhor em minha casa.
Não é muito longe daqui.
Lá lhe darei algo para comer e beber e poderemos trocar ideias sem os incómodos da via pública.
Sentindo-se amparado, Licínio aceitou ser erguido pelos braços fortes daquele novo amigo que o "acaso" havia trazido até ele no momento mais difícil de seus sentimentos.
O carinho espontâneo numa comunidade de ególatras, interesseiros, manhosos e astutos, era, por si só, um bálsamo que, de há muito, Licínio não experimentava em lugar algum.
Era sempre ele quem tentava ser bom para os outros.
Agora, estava encontrando alguém que se importava com ele e que, sem conhecê-lo, ocupou-se de sua dor e se oferecia para auxiliá-lo.
Assim, deixou-se conduzir até a modesta vivenda de Décio que, naquele dia, não estava trabalhando nas obras de engenharia da cidade, nas quais emprestava o seu suor para ganhar o pão de cada dia.
Junto deles, Zacarias e Cléofas, como espíritos amorosos que os amparavam, seguiram e buscaram envolvê-los em uma atmosfera ainda mais fraternal e estimulante.
Licínio não entendia direito que nova forma de ver a vida era aquela.
Décio contou-lhe, então, tudo o que sabia e como é que a mensagem de Jesus havia chegado a Roma e até ele.
Depois disso, passou a relatar os fatos que ocorreram na vida do Messias e todos os exemplos de elevação e nobreza que ele havia legado à humanidade.
Encantado, Licínio parecia entender tudo aquilo com facilidade.
Era como se ele não estivesse conhecendo e, sim, reconhecendo todas aquelas realidades que, para ele, eram ouvidas pela primeira vez na presente existência.
Uma emoção entusiasmada tomou conta de sua alma.
Ele reconhecia que se conduzia por princípios muito próximos ou até mesmo idênticos àqueles que Décio lhe apresentava.
- Mas parece que eu já sei disso tudo, meu amigo - exclamava Licínio, intrigado e feliz.
- Sim, meu irmão, isso às vezes acontece com as pessoas.
Elas falam que aquilo parece que já lhes é muito familiar e, sem qualquer dificuldade, incorporam os princípios cristãos e mudam a própria vida.
- Será que eu poderia ter comigo algum escrito onde lesse mais detidamente tais ensinamentos? - perguntou Licínio.
- Claro, meu irmão. Tenho comigo algumas cópias que circulam entre nós e que, pela sua história, vieram da velha Jerusalém trazida pelos primeiros adeptos dessa Boa Nova.
Você não precisa copiar.
Pode levar e ficar com os apontamentos.
Mais adiante, nós produziremos mais cópias e passaremos para os outros que precisarem.
- Muito obrigado, meu amigo - falou o administrador, emocionado, tendo em suas mãos a reunião dos ensinamentos de Jesus pela primeira vez.
Naquele ambiente de pobreza e simplicidade, Licínio conseguira encontrar o remédio que medicara a sua alma ferida nos ambientes de luxo e prazeres nos quais vivia.
A traição de Serápis, as tramas de Druzila, as decepções da vida, pareciam ter se empalidecido diante da perspectiva de encontrar a explicação para todas as suas dúvidas e a confirmação para todas as suas certezas.
Outro ser muito mais luminoso e inocente que ele havia existido e, apesar de todo o bem que havia feito, como ele também, tinha recebido do mundo a carga de espinhos, o açoite da ignorância, a traição das moedas, a solidão da injustiça e o abandono da cruz.
Quem seria esse ser tão valoroso que entregara tudo para dar testemunho de sua palavra?
Licínio era a terra generosa e fértil, devidamente revolvida pelos instrumentos que a lavravam na dor, nas decepções, na lágrima, para que a semente fosse depositada no solo preparado de sua alma, a fim de que, reunidas as condições essenciais, cada uma delas fosse capaz de produzir cem outras, conforme o próprio Jesus ensinara.
Naquela noite, Licínio despediu-se de Décio, já que se fazia tarde e ambos haviam estado juntos por mais de seis horas conversando sobre todas essas verdades.
- Poderei voltar amanhã, meu amigo? - indagou o administrador, um pouco tímido.
- Claro, meu irmão. Amanhã, ao pôr-do-sol, depois que sair do meu trabalho, nos reuniremos aqui com um pequeno grupo de irmãos para falarmos dessas coisas e de muitas outras e você é muito bem-vindo.
Não se preocupe, pois são todas pessoas muito simples como eu, sem importância e sem realce social.
Ninguém o reconhecerá aqui como alguém importante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:26 pm

Se lhe parecer mais adequado, pode vir com roupas mais simples para que não fique muito diferente dos outros.
- Obrigado, Décio. Estarei aqui amanhã no horário marcado.
Abraçaram-se os dois homens, que a dor e o amor fraterno haviam aproximado pelas mãos invisíveis dos nossos amigos espirituais, que estão sempre a postos para que tenhamos os caminhos aplainados e para que aprendamos a arte de construir nossa felicidade em bases sólidas da verdade e do bem.
Aquela noite Licínio passou acordado, lendo os apontamentos que tinha sob seus olhos e meditando sobre eles, procurando extrair todo o ouro que se achava escondido sob cada frase que Jesus proferira no encaminhamento da humanidade.
Princípios de amor ao próximo, de caridade e de perdão das ofensas, que eram mais revolucionários naquela comunidade egoística do que um grito de liberdade no meio de sanguinária tirania.
Bebendo os conceitos, sob a inspirada intuição de Zacarias, ele passara a observar a conduta de Druzila, de Serápis, de Marcus, de todos os outros homens e mulheres de seu tempo pelo prisma das leis verdadeiras do espírito e, assim, todos os conceitos que tinha em sua alma e que norteavam sua vida, ganharam um sentido de realidade insofismável.
Havia alguém, além dele, vivido de maneira plena todos esses princípios e, tal fora a sua força, que nenhuma mentirosa doutrina poderia ser capaz de imitar.
Nada que fosse humano poderia ter produzido uma tal reacção no coração dos homens.
Deuses de pedra egoístas e indiferentes, frios e cínicos eram apenas a face reflectida dos homens que os criaram, igualmente duros, egoístas, indiferentes, frios e cínicos.
O Deus verdadeiro haveria de ser outro, muito maior, muito mais belo, muito mais justo e generoso do que aqueles que, imperando no coração da humanidade dita a mais civilizada da época, tinha produzido apenas aquele monte de lixo moral, de entulho material em que se resumia a grande capital do mundo de então.
A falência moral de Roma era a falência dos deuses que a dirigiam ou que a deveriam conduzir por caminhos melhores.
A falência dos homens está sempre apontando para a falência de suas bases ou da maneira como os seres se relacionam com elas.
Quando o dia amanheceu, Licínio, sem saber como nem por que mecanismos, apesar de possuir o mesmo rosto e ocupar o mesmo lugar naquela sociedade, sem cirurgia plástica nem modificação de figurino, na verdade, era uma outra pessoa.
Poder-se-ia dizer que ele sempre fora um cristão que se desconhecia a si mesmo como tal.
Ao seu lado, Zacarias e Cléofas o amparavam, reunidos a Lívia que, acompanhando Serápis, procurou, naquela noite em especial, envolvê-la em forças revigorantes para as provas que a esperavam.
Na alma da serva, forças por ela ignoradas a estavam preparando para as agudas provas da maternidade que a esperavam, já que do encontro licencioso com Marcus, as leis do Universo haviam determinado que o imperativo dos resgates deveria ter o seu curso através daqueles que haviam semeado a dor, o desencanto e a tragédia no pretérito, quando haviam exercitado a liberdade preciosa pelo padrão da libertinagem irresponsável.
Havia chegado, para todos eles, o momento de restaurar os antigos erros.
Serápis iria gerar a partir do elemento fecundante de Marcus, gravidez essa que, num primeiro momento, ela gozaria como uma vitória sobre Druzila, sem pensar nas difíceis consequências de tal evento no cenário da vida onde todos estavam inseridos.
Lívia se incumbira de auxiliá-la nesses momentos tão delicados para o espírito feminino.
Naquele mesmo dia, enquanto Licínio estava com Décio, aprendendo sobre as verdades cristãs, Lívia acompanhava a serva que regressara ao palácio para cuidar dos primeiros passos da fecundação que ocorreria em seu interior daí em breve, naquela noite, amparada por muitos espíritos enviados pelo próprio Senhor, interessado pessoalmente nos destinos de todos os que compõem o seu rebanho, para que nenhum deles se perca nos desafios do caminho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:26 pm

37 - A INSENSATEZ SEMEANDO DORES

Apesar do amparo do mundo invisível, as criaturas envolvidas em suas experiências evolutivas tinham que caminhar segundo suas necessidades de aprendizado, realizando suas escolhas e agindo de acordo com a liberdade que cada espírito possui no âmbito da lei de causa e efeito.
Nem são os bons espíritos aqueles que substituem os encarnados nas soluções de seus problemas nem são os espíritos necessitados que os obrigam a agir no mal.
Ambas as influências existem e estão disponíveis para a sua faixa vibratória específica, cabendo ao indivíduo que habita o mundo físico, sintonizar com uma ou outra.
Licínio se empenhava em elevar sua compreensão da vida no alimento que dava à própria alma, buscando o aprofundamento das lições aprendidas com Décio e com os novos conceitos cristãos que recebia da pequena comunidade de adeptos da nova fé, que se reunia, todas as semanas.
Ao mesmo tempo, seguia cumprindo suas obrigações na casa de Marcus, procurando fazer todo o bem que lhe cabia, ainda mais do que sempre fizera.
Serápis, no entanto, nos primeiros dias da gravidez, ainda sem qualquer suspeita do seu estado, guardava o coração intimamente satisfeito pela aventura a que se entregara, nos braços daquele que julgava ser a solução para todos os seus anseios femininos de elevação social. Ao mesmo tempo em que sua alma se inebriava com a imaginação de seu sucesso, o antagonismo com Druzila passara a ganhar um novo componente que o tornava mais áspero.
Afinal, agora ela era a preferida do marido da megera mulher e, com esse trunfo na alma, sentindo-se mais segura, passara a ser mais desleixada com relação aos seus deveres, principalmente quando se referia aos cuidados que Druzila exigia.
Com relação a Lúcia, no entanto, Serápis seguia carinhosa com a pequena criança, ainda sem ter completado o primeiro ano de vida.
Algo de maternal era despertado no íntimo de Serápis ao contacto com a menina, sem que a serva soubesse explicar o motivo.
Talvez fosse porque a mãe, em especial, lhe devotasse tão pouca atenção, relegando-a aos cuidados dos empregados.
Nesse sentido, Serápis se identificava com ela, na infância triste e vivida praticamente no abandono, sem o afecto de seus pais.
Quantas vezes Serápis pensava consigo mesma que não importava a riqueza das pessoas para que o abandono emocional ocorresse.
Tanto ela, pobre desde o nascimento fora vítima dele quanto Lúcia, nascida no palácio, buscava o conforto dos braços dos servos por não encontrar o carinho da mãe ou do pai.
Desdobrava-se a serva nos cuidados da pequena, agora ainda mais candentes pelo sentido da maternidade real que estava envolvendo seu corpo e seu espírito.
Sua sensibilidade estava se transformando e, sem que entendesse o motivo, a serva se via mais e mais dedicada aos cuidados de Lúcia, imaginando como seria se a criança lhe pertencesse como filha mesmo.
Druzila, arrogante e caprichosa, como havia planejado desde a chegada a Roma, procurou o marido, para criar no espírito de Licínio o temor de que iria revelar a cena na qual foram flagrados na propriedade rural da família.
No entanto, não sabia ela que o administrador já havia revelado todos os detalhes ao marido, incluindo aí as suspeitas de que se tratara de uma armadilha na qual fora capturado e que, segundo a sua consciência, não havia cometido nenhum ato que infringisse o respeito que devia manter para com todos.
Druzila, no entanto, pretendia aproximar-se do marido para, mais uma vez, procurar fustigá-lo com indirectas e mentiras, com a finalidade de provocá-lo.
Assim, o encontro de ambos foi algo grotesco.
- Marcus, - disse a esposa - tivemos que voltar mais cedo por causa da indisposição de Lúcia, que não estava acomodada aos ares do campo.
- Ah! Sim, está bem - respondeu o marido, indiferente e abobado pelas lembranças das aventuras com Serápis, imaginando onde estava com a cabeça quando se casou com Druzila.
- Espero que você não tenha sentido muitas saudades de mim
- arriscou a esposa, provocadora e irónica.
- Dentre as muitas coisas que sinto por você, esteja certa que a saudade não se encontra... sobretudo por um período tão curto de tempo.
Se ainda tivessem sido uns dez ou vinte......anos, quem sabe?
A resposta reticenciosa e crua era um dardo em seu ego feminino.
Sentindo-se ironizada pelo marido indiferente, ela arriscou:
- Mas se você é indiferente, não é o que acontece com outros homens, sempre interessados em alguém como eu - exclamou Druzila, querendo fazer mistério e produzir ciúme no marido.
- Pois eu lhe digo, Druzila, sinceramente:
traga até mim algum homem que a cobice de verdade e eu, além de permitir que a leve com ele, ainda sou capaz de dar-lhe uma boa recompensa.
- Como você é cruel e mau - rugiu a mulher, ferida no seu íntimo.
- Estou sendo, apenas, sincero, já que você sabe que nosso amor nunca existiu verdadeiramente.
Do mesmo modo que desejo ser feliz, não pretendo impedir que você o seja com quem quiser ou com quem a desejar.
- Mas você nem se importa se alguém tiver me desonrado, obrigando-me a ceder apesar de já pertencer a outro homem? - falou Druzila, desejando aparentar indignação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:26 pm

- Você, Druzila, obrigada a fazer alguma coisa? - e explodiu em gargalhadas.
Uma mulher caprichosa, ardilosa e mesquinha como você, que nunca cedeu aos desejos de ninguém, que jamais pensou em fazer alguém feliz sacrificando suas futilidades em favor disso, em tempo algum faria algo obrigada.
Ficando ainda mais exasperada com a segurança e a indiferença de Marcus, Druzila explodiu em xingamentos e numa crise de nervos:
- Pois há muito homem que me deseja e, ainda mais, que não me resistiu aos atributos femininos e me obrigou a entregar-me.
- Rá! Rá! Rá! - foi a resposta do marido, em nova crise de riso.
- Pois então traga-me esse herói para que eu o premie ou o cumprimente ou, ainda, o mande encarcerar, porque desejar você, Druzila, é sinal de muita necessidade, de muita coragem ou, em último caso, de uma loucura furiosa.
Beirando a agressão física, Druzila espumava de ódio, nas humilhações que estava recebendo de Marcus.
Vendo a capitulação nervosa da esposa, o marido ainda mais se sentia estimulado em feri-la sem piedade.
- Vamos, sua mentirosa, traga aqui aquele que está apaixonado pelos seus tentáculos e pelo seu veneno!
Traga-me aquele que, por muito cobiçá-la, merecerá de mim as maiores honras e eu o ajudarei a que vocês sejam felizes, levando-a para bem longe de mim.
E, dando por encerrado o assunto, Marcus levantou-se e saiu do ambiente, deixando Druzila entregue a uma das suas muitas crises de nervos, violentas, nas quais arremessava contra as paredes todas as coisas que encontrava pela frente.
Antes de sair, Marcus a advertiu, irónico:
- Cuidado para não jogar Lúcia na parede, por engano, nas suas crises de loucura.
Ela quebra, mas não faz barulho...
Druzila, descontrolada, proferia toda a sorte de agressões verbais que conhecia, sobretudo ferida no desafio do marido ao qual não podia revidar porque, obviamente, não existia nenhum homem que se interessasse por ela.
Sentindo-se tão desprestigiada, tão diminuída nas carências que, agigantadas, já possuía em seu sentimento, voltou para seu quarto e, na presença de Lélia desabafou todo o ódio que sentia por Marcus, sem se importar com o testemunho de Serápis, que estava cuidando da criança, junto ao berço não muito distante, no mesmo ambiente.
No íntimo da serva, uma alegria macabra tinha lugar, feliz por ver a insatisfação daquela que ocupava um lugar que, em breve seria dela.
A beleza física de Serápis, no entanto, incomodava a mulher infeliz que, por causa disso, mais a perseguia, mantendo o antagonismo aceso.
Serápis, agora com mais segurança, sabia que tudo seria uma questão de tempo.
E o tempo passou célere para nossas personagens.
A jovem serva começou a ter estranhas reacções físicas.
Sonhos diferentes povoavam-lhe as noites e súbitos enjoos eram interpretados como resultado de alimentação inadequada.
No entanto, pela sua repetição constante, o sentimento feminino começara a preocupar-se em relação à possibilidade da gravidez.
As mudanças do corpo, as alterações hormonais, tudo atestava a existência de algo muito diferente para o espírito daquela jovem que se candidatava, agora, ao posto de mulher e mãe.
Depois de esperar mais um pouco para certificar-se de suas suspeitas, sem falar a ninguém sobre seu estado, buscou um momento favorável e, com a desculpa de atender ao pedido de Marcus, carregando a jarra de vinho, penetrou na câmara íntima que o abrigava para falar-lhe, confidencialmente:
- Meu senhor, preciso informá-lo de que, pelo que me parece, o senhor será pai novamente! - buscou revelar-se, por parábolas, para que fosse menor o impacto.
Sem entender, de pronto, Marcus respondeu:
- Você está louca, Serápis?
Eu nunca mais passarei nem perto de Druzila, que dizer ter um novo filho com ela! - exclamou, sem se dar conta do que Serápis queria dizer.
Esses sonhos que vocês, mulheres, têm durante as noites, nem sempre querem dizer aquilo que parecem.
Para fazer um filho é preciso mais do que sonhar, Serápis.
É necessário que eu ou algum mais doido que eu participe e se acoste com Druzila e estou certo de que isso eu não farei, tanto quanto não o fará um homem sensato quando perceber qual é a mulher que terá em seu leito.
Vendo que Marcus nem suspeitava de nada, Serápis, interpretando o drama da mulher frágil, respondeu, reticente:
- Sim, Marcus, apesar disso, você será pai.
Isso não é um sonho e não é com Druzila que está sucedendo...
Pego de surpresa pelo aspecto da serva e, lembrando-se de que haviam levado às últimas consequências a aproximação física por inúmeras vezes, Marcus empalideceu, levantando-se, abrupto.
- Como assim, Serápis. Você está querendo me dizer que a gravidez é sua? - falou o rapaz entre surpreso e aflito.
- Sim, meu senhor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:26 pm

- Não é possível, Serápis!
- Creio que é, Marcus.
Nunca estive com outra pessoa e, nesses tempos em que trabalhei aqui, jamais deixei este ambiente a não ser para ir encontrá-lo.
Sem saber o que fazer, se demonstrava alegria ou preocupação, já que a sua era uma situação delicada, Marcus procurou acalmar a serva que observava o seu estado de aparvalhamento, ante a notícia da paternidade.
- Eu estou calma, Marcus.
Apenas achei que seria importante que soubesse disso, já que não poderei ocultar por muito tempo esse estado dos olhares de todos.
- Sim, eu sei disso.
Vá, agora, enquanto eu penso em alguma coisa.
Depois nos falaremos.
Fazendo meia volta depois de depositar um beijo no rosto do amante, Serápis retirou-se obediente, não sem sentir uma certa alegria na alma.
Afinal, aquela situação iria antecipar todas as coisas.
Marcus se veria forçado a fazer alguma coisa pois, de outra forma, seria difícil explicar como é que uma serva se via naquele estado sem ter tido qualquer tipo de relacionamento conhecido com homens estranhos.
Lembremos que, à excepção daqueles dias em que Marcus havia lhe dado autorização para deixar o ambiente da casa, Serápis não tinha deixado o palácio antes, a não ser na noite em que foi ao templo agradecer a Júpiter Capitolino, ocasião do primeiro encontro entre ambos.
Para que tudo se esclarecesse, todos buscariam conhecer o futuro pai e, o mais lógico, é que ele estivesse dentro do próprio palácio.
Naturalmente não se poderia imaginar, pelos comportamentos de Serápis sempre distantes dos demais empregados e servos, que o progenitor fosse um desses.
Pela beleza da serva, não se entregaria ela a qualquer um desses desvalidos.
Somente havia dois possíveis candidatos para a suspeita de todos.
Um era Licínio que, para muitos dos empregados da casa, tinha uma clara predilecção pela jovem.
O outro era Marcus que, sendo o dono do palácio, poderia, perfeitamente, ser o possível progenitor.
No entanto, ele pertencia a uma outra classe social, era dado a aventuras fora das vistas dos empregados, tinha à sua disposição toda a sorte de mulheres sem precisar correr os riscos de um envolvimento afectivo com uma serva dentro do próprio lar, na presença de sua esposa e da filha.
Pelos padrões romanos, Marcus teria muito a perder, nos conceitos sociais sempre importantes para os tolos e fúteis, envolvendo-se com uma empregada de sua mansão.
Assim, tão logo a gravidez fosse percebida, a suspeita da paternidade pairaria sobre os dois únicos e mais importantes homens da casa em condições de invocar a ascendência para se aproveitar dela num relacionamento sexual com uma empregada.
Se todos achassem que havia sido Licínio, os problemas seriam menores, sendo certo que Druzila acabaria fuzilando-os com o seu espírito vingativo e caprichoso, repudiada até mesmo pelo administrador, que preferira relacionar-se com a empregada e não com a patroa.
Se todos achassem que havia sido Marcus, a tempestade poderia ser muito pior.
Diante de todo este cenário, Serápis sabia que Marcus precisava pensar no que fazer e, o melhor que lhe competia como mulher, era não pressioná-lo, aguardando que se resolvesse como.
Na mente fervilhante de Marcus, tal situação também era avaliada, em todos os prós e contras que poderiam produzir.
Antes de tudo, sentia muita atracção por Serápis e, assim, a possibilidade de ela conceder-lhe o sonhado filho homem, lhe inspirava o bom pensamento de não usar qualquer meio artificial a fim de interromper a gravidez.
No entanto, não seria prudente deixá-la no local, como serva, já que a sua condição logo seria visível a todos e o constrangimento, da mesma maneira, seria muito grande.
Precisava tirá-la do serviço.
Sim, essa seria a melhor solução. Iria abrigá-la na casinha onde se encontraram várias vezes, meses antes, e ali construiria o lar substituto.
Envolveria a jovem com todas as coisas de que necessitasse, propiciando-lhe tudo de melhor, ficando reclusa naquele ninho até que a gravidez terminasse.
Com o nascimento, veria o que fazer com o filho.
Enquanto o amante começava a traçar seus planos, Serápis dava curso aos seus projectos, imaginando que, diante dos votos de amor eterno que recebera de Marcus, não seria difícil que ele afastasse Druzila daquele ambiente para colocá-la em seu lugar.
Já se via deitada no mesmo leito em que Druzila deu à luz a pequena Lúcia, imaginando-se envolvida pelos cuidados de servas e dando ordens caprichosas através das quais exerceria o seu poder sobre os outros.
Naturalmente, contaria com o apoio do dono da casa, seu amante devotado e apaixonado.
Agora que estava mais segura de seus sentimentos e do domínio da situação, Serápis passou a ser mais atirada, permitindo-se certas condutas que demonstravam a Druzila que a estava desafiando.
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Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:27 pm

Escudava-se na protecção que receberia de Marcus para enfrentar as diatribes da mulher.
Druzila ordenava e ela fingia que não escutava.
Ao mesmo tempo em que a ideia da maternidade a fazia ligar-se a Lúcia com maior e mais acendrado amor, como se treinasse com a pequenina os primeiros passos na arte de ser mãe, a sua indisposição física, de alteração do ciclo biológico, de emotividade, fazia com que seu comportamento se afastasse daquela subserviência quase escrava que caracterizava a condição de qualquer empregado em um palácio tão importante quanto aquele.
Isso irritava mais a patroa que, ainda mais ferida, pretendia descontar nos empregados as suas frustrações e sofrimentos.
Vendo que Serápis não lhe dava a devida atenção, incumbiu Lélia de buscar informações.
E na condição de serva fiel, com acesso aos aposentos comuns onde se recolhiam, a jovem espiã se pôs ao serviço da patroa, sempre interessada nas informações para se fazer prestativa e cobrar alguma consideração maior da dona da casa.
Acercando-se de Serápis, que se encontrava recolhida em seu leito modesto, algo indisposta, Lélia se fez amistosa e perguntou:
- Serápis, estou estranhando você, minha amiga.
Nos últimos dias está tão diferente, mais nervosa, mais distante.
Por acaso está com algum problema?
- Não, Lélia, estou só um pouco mais cansada.
Afinal, você não ignora o quanto Druzila me persegue, o que me obriga a estar sempre atenta. Isso é muito desgastante.
. - Bem, lá isso é verdade -, respondeu Lélia, pretendendo se fazer compreensiva para com os problemas da outra serva.
- Além do mais, não tenho dormido bem e isso me deixa naturalmente nervosa.
Ouvindo os motivos convincentes da serva acamada, Lélia pretendeu fazer-se mais chegada e, para atenuar as dificuldades da jovem, confessou-lhe:
- Olha, Serápis, sobre esse negócio de falta de sono, eu tenho um remédio que é muito bom.
Quando estivemos lá na fazenda, nos meses passados, um rapaz pretendia me cortejar de maneira insistente e eu não tinha como fugir dele.
Assim, reclamando para Druzila ao confessar-lhe que tinha que comparecer a um encontro com o jovem, pois lhe prometera isso, dela recebi um pequeno frasco de poderoso sonífero para que colocasse em sua bebida e, submetido à sua influência, adormecesse antes que se animasse a ser mais atirado nos arroubos juvenis.
Segundo ela, bastariam três gotas para fazê-lo dormir profundamente.
E assim aconteceu.
Coloquei cinco gotas - para não correr qualquer risco - e não tardou nem cinco minutos para que o rapaz estivesse desmaiado, permitindo que eu voltasse para a sede e, no dia seguinte, retornasse para cá sem problemas.
- Ah!, Que interessante - respondeu Serápis, pensando em tudo aquilo, intrigada.
- Pois então, Serápis. Acontece que, por causa da viagem, Druzila se esqueceu de pedir o frasco e eu o tenho comigo até hoje, guardado para alguma outra ocasião mais complicada.
Se desejar, posso lhe emprestar para que, na sua falta de sono, você mesmo tome uma gotinha para dormir melhor.
Isso não faria mal a ninguém e, além do mais, aliviaria a sua insónia.
O que você acha?
Vendo a boa disposição de Lélia e desejando estar sozinha o mais rápido possível, Serápis resolveu aceitar-lhe a oferta, o que fez com que Lélia saísse para ir buscar o frasco oculto em seus pertences.
Ingénua como era na sua tola intenção de ser agradável à patroa, Lélia não imaginava que aquilo se tratasse de um veneno cruel.
Acreditava, piamente, tratar-se de sonífero, cujo efeito parcial tinha presenciado na pessoa de Lívio, sem saber que, algum tempo depois ele estava morto.
Para Serápis, no entanto, aquela história era muito estranha.
Conhecendo Druzila como conhecia, sabendo de suas artimanhas, de seus modos ocultos, desconfiaria de qualquer coisa que viesse dela.
Mesmo assim, recebeu o frasco de Lélia e o pedido de que aquele fosse um segredo de ambas, já que, se Druzila ficasse sabendo, pediria o frasco de volta, coisa que Lélia não gostaria de devolver-lhe.
Prometido o segredo, Lélia se afastou feliz, imaginando ter conquistado a confiança de Serápis com a sua gentileza inocente.
No entanto, no plano espiritual, Lívia, a postos, envolvia Serápis a fim de que não ingerisse aquela substância, intuição esta que veio casar-se com as desconfianças de Serápis que, sabendo que Druzila estava por detrás daquele remédio, não se arriscaria a usá-lo ainda que, efectivamente, fosse apenas um sonífero atestado pela serva que o usara com eficácia supostamente comprovada.
Serápis guardou o recipiente em suas coisas e, se Lélia lhe perguntasse sobre a sua eficácia, diria, no dia seguinte, que o havia usado e que ele era, comprovadamente, muito bom.
Assim o fez e, ante a curiosidade espontânea da outra serva, Serápis noticiou-lhe que teve uma noite agradável, tendo-lhe bastado uma única gota para dormir suavemente, estando muito agradecida pelo interesse de Lélia.
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Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:27 pm

Desejando não ficar sem tão precioso líquido, Lélia pediu que Serápis lhe devolvesse o frasco assim que não mais precisasse dele, pois gostaria de tê-lo sempre à mão para qualquer emergência.
Não pretendendo criar embaraço aos interesses de Lélia, Serápis efectivou a devolução do frasco à sua companheira de serviços dizendo-lhe, que se precisasse dele, novamente, tomaria a liberdade de pedir-lhe, pois se era poderoso sonífero, seria sempre bom tê-lo disponível, para a eventualidade da ocorrência de novas crises de insónia.
No entanto, sem que Lélia notasse, Serápis resolveu guardar uma porção do tal sonífero para qualquer emergência, colocando algumas gotas de água no interior do frasco original para que Lélia não desse pela falta do produto.
As semanas se passaram até que, obedecendo às ordens de Marcus, aproveitando-se dos momentos em que Licínio não estava no ambiente em virtude de suas idas até a casa de Décio, Serápis deixou o palácio e se dirigiu para a pequena vivenda onde o amante a esperava.
Não teriam muito tempo, mas Marcus estava agitado e eufórico.
Iria comunicar-lhe seu plano, enquanto Serápis imaginava que, naquele momento, Marcus lhe revelaria seu desejo de afastar Druzila para colocá-la em seu lugar.
Desse modo, foi com muita decepção para seu espírito que escutou Marcus revelar-lhe o plano de demiti-la do palácio, para mantê-la isolada do mundo naquela casinha modesta se comparada aos sumptuosos aposentos palacianos.
Ali ficaria como a mulher oculta das vistas de todos, quando seu sonho era aparentar-se poderosa e dona de tudo.
Na sua vaidade e orgulho de mulher estava esperando ser entronizada na vida de todos, sem levar em conta, na sua ingenuidade, que estaria tendo que enfrentar as poderosas forças de uma sociedade preconceituosa que discriminava os servos e os pobres, impedindo-lhes o acesso fácil às facilidades cobiçadas pela maioria.
Imaginava, em sua tolice, que as coisas aconteciam na singeleza de seus pensamentos, igualmente egoísticos e egocêntricos.
Aliás, no fundo, Serápis não era muito diferente de Druzila, já que ambas seguiam caminhos muito semelhantes na maneira de desejar conformar o mundo segundo seus próprios interesses.
Fingidamente humilde para atingir seus objectivos, Serápis se tornaria igualmente arrogante tão logo se sentisse conduzida ao centro dos acontecimentos, na condição de mulher dominante da cena na vida de Marcus.
Pensava ela que a vida se resumiria à concretização de seus prazeres e projectos de domínio.
Druzila era a mesma Serápis, enriquecida.
Sua alma ansiosa compareceu, assim, ao tugúrio secreto, na certeza de receber de Marcus a homenagem definitiva do amante que a quisesse conduzir à condição de esposa.
No entanto, a vida não era como seus caprichos pensavam ser.
Ali, para seu amargor, ouviu de Marcus o plano de mantê-la reclusa, cercada do luxo e dos cuidados principescos, sem, contudo, elevá-la na condição social que ela tanto almejava.
Assumiria a figura da amante, da segunda, daquela que é buscada pelo homem para a satisfação de seus desejos sem, contudo, ser considerada como a primeira no seu afecto.
A proposta de seu amante era algo desonrosa para seu orgulho feminino, que a tudo se arriscara para chegar àquele ponto e ter que se contentar com tal prémio de consolação.
Se esse era o grau de afecto que Marcus lhe devotava, depois das inúmeras promessas que fizera nos momentos de idílico prazer, melhor seria ficar sem ele, puni-lo com seu afastamento, notadamente agora que carregava em seu ventre o fruto desse amor proibido.
Sem demonstrar o seu descontentamento, Serápis fingiu concordar com as propostas do rapaz, fazendo-o crer que ela havia, efectivamente, aceitado a condição subalterna, escondida, de amante para sempre, enquanto que a outra, rica, feia, doida, arrogante, continuava como a dona do palácio, mandando em tudo e em todos.
Ah! Isso é que não seria assim, - pensava Serápis, ferida em todo o seu sentimento, igualmente mesquinho e ególatra, como Druzila.
Voltando ao palácio para que sua ausência não levantasse suspeitas, Serápis traçava novas variantes para seus próximos passos.
Não aceitaria a condição de mulher secundária.
Ali estava para ter tudo ou para não ter nada.
Agora que estava grávida de Marcus, tinha com que lutar. Barganharia, pressionaria, tudo faria para ocupar-lhe o centro das preocupações.
Fugiria dali, deixaria o rapaz desesperado, chantagearia, impediria que ele tivesse acesso ao fruto de seu envolvimento, até que aceitasse trazê-la como sua rainha, para o centro do mundo.
Por isso, enquanto Marcus providenciava as arrumações necessárias no ambiente, melhorando-lhe as condições, contratando algumas mulheres para atenderem às necessidades de sua amante grávida, Serápis dava asas ao seu plano que, mais algumas semanas adiante, precisaria implementar, a fim de não acabar descoberta na gravidez que já ia adiantada e, por fim, seria impossível de ocultar.
E, à medida que seus sentimentos inferiores a desconectaram de Lívia, sua sintonia com o mal abriu espaço à elaboração de um plano nefasto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:27 pm

Sim, a vida de todos seria modificada, depois que Serápis, contrariada e mesquinha, se pusesse em acção, imaginando-se uma deusa que era capaz de dirigir os destinos dos outros.
Esperaria o momento adequado.
Já precisava ocultar o volume do ventre com roupas mais largas, enquanto que, com astúcia e sagacidade, levaria Marcus com seu fingido afecto, até que o momento estivesse propício para agir.
Nesse sentido, esforçou-se para controlar-se ante os ataques de Druzila.
Não poderia ser afastada de seu serviço, já que necessitava ter acesso aos seus aposentos na concretização de seus objectivos.
Assim, passo a passo amadurecido e planejado com estratégia e frieza, Serápis conseguiu arrumar pequeno abrigo em ruela escura da cidade, onde se abrigaria de todas as buscas.
Necessitava fazer tudo para permanecer isolada, sem criar suspeitas, usando como importante factor de convencimento a atrair a simpatia dos outros, o fato de dizer-se mãe de uma pequena filha e, ao mesmo tempo, encontrar-se grávida, necessitando de apoio e abrigo.
Sim, nos planos de Serápis, ela fugiria do palácio depois de sequestrar Lúcia daqueles que não se importavam com ela, já que, além de sentir-se muito ligada à menina, a quem pretenderia proteger para que não tivesse sua vida estragada pelo descaso de pessoas indiferentes e egoístas, serviria de instrumento valioso para obter ajuda dos cidadãos romanos simples com quem cruzasse.
Em sua mente, tudo estava traçado.
Marcus haveria de rastejar até ela para implorar que voltasse aos seus braços, aí sim, na condição de esposa verdadeira.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:27 pm

38 - SURPRESAS TRÁGICAS

Imbuída desses propósitos, Serápis passou o tempo medindo os passos e os riscos para que, no momento adequado, viesse a agir.
Para não levantar suspeitas, acedia aos encontros esporádicos que Marcus conseguia arrumar, burlando a vigilância de olhos indiscretos, sem que revelasse qualquer modificação exterior na maneira de encarar os seus projectos.
No fundo, não amava Marcus.
Tinha apenas o interesse de conquistar posições de relevo e, para isso, aquele homem lhe servia na medida exacta.
Sentia um afecto que se desenvolveu nos contactos físicos que tiveram, mas nada que a fizesse mudar a ideia de infligir-lhe a dor da fuga e do sequestro da filhinha.
Se ele desejava mantê-la na posição de subalternidade, como uma prisioneira na gaiola, iria se decepcionar muito.
Além do mais, com outro filho no ventre, seu poder de persuasão seria ainda maior.
O tempo passava lentamente e, na medida de suas planificações, Marcus providenciava tudo para que não houvesse problemas, acreditando que Serápis concordava com o que ele havia proposto.
Haviam combinado a data para a saída da jovem do serviço da casa, acertando que tal aconteceria por solicitação dela mesma, encaminhada directamente a Licínio.
Alegaria que desejava mudar-se para o interior, deixando a cidade grande para trás e, por isso, demitia-se do palácio.
Na mente da jovem serva, essa seria, também, uma óptima justificativa para desaparecer do mapa, já que, com a notícia de que se ausentaria de Roma, estaria mais protegida de ser encontrada pelas forças que Marcus poderia mobilizar para buscar a filha.
Aproximando-se a data final do prazo para dar início ao projecto, Serápis comunicou a Licínio seu desejo de afastar-se, alegando os motivos que havia combinado com Marcus.
O administrador que, agora, se voltava para as verdades espirituais e passara a ver Serápis pelos olhos paternais, imaginara que tal afastamento se estava dando em face da intimidade que ela mantinha com o patrão, fosse por causa de um rompimento ou por não poder mais manter-se ao mesmo tempo como serva da esposa e amante do marido.
Na verdade, apesar do antagonismo de Druzila em relação a ela, a pequena Lúcia só se aquietava, geralmente, quando se via na presença de Serápis, o que obrigava, muitas vezes, que a serva permanecesse nos aposentos da dona da casa cuidando do sono da criança.
Era com base nessa afinidade e na facilidade de manter-se ali, nos aposentos íntimos, que Serápis planejara retirar a criança pequena que, por isso, facilmente poderia ocultar entre seus pertences, já tendo arrumado um tipo de cesto que lhe serviria de mala na qual, ao ausentar-se do palácio, poderia ocultar a criança entre suas poucas roupas.
Seu plano já estava traçado.
Junto com ela, ficava no quarto de Druzila a outra serva, Lélia, que mantinha estreita relação com a patroa, como já se relatou antes.
Assim, na véspera do dia designado para a sua despedida, tudo estava preparado.
Ao anoitecer, Serápis pôs seus planos em acção.
Durante o repouso de Druzila e, aproveitando-se do sono de Lélia, Serápis retiraria a criança adormecida e trataria de deixar o palácio.
Assim, para evitar problemas maiores, providenciaria para que Druzila dormisse mais profundamente, ministrando-lhe algumas gotas do sonífero que Lélia lhe houvera oferecido tempos antes e de cujo frasco, antes de devolver-lhe, havia retirado porção significativa, como já explicou.
Depositaria as gotas entorpecedoras no recipiente de água que Lélia sempre levava para o quarto, antes de Druzila dormir, acostumada que estava a mulher de Marcus a ingeri-la antes do repouso.
Para tanto, naquela noite, como sabia da rotina e dos hábitos de Druzila, assim que Lélia se dirigiu à cozinha do palácio a fim de providenciar o jarro de água, estando a esposa de Marcus ocupada com a preparação para o repouso, não foi difícil para Serápis afastar-se do quarto e, comparecendo à cozinha com a desculpa de ir providenciar algo para as necessidades da criança, num momento de distracção de Lélia, virar o conteúdo de frasco no interior do recipiente, a fim de que Druzila viesse a dormir mais profundamente, sem servir de obstáculo aos seus intentos.
Feito isso, regressou ao quarto, sem levantar qualquer suspeita já que, efectivamente, lhe caberia estar atenta às necessidades da pequena Lúcia e isso lhe exigia a adopção de todas as medidas necessárias, inclusive, no que dizia respeito à preparação das refeições da criança.
A Lélia incumbia cuidar de Druzila, fornecendo-lhe tudo o que ela solicitasse, auxiliando-a na toalete nocturna, preparando-a para dormir, despindo-a e vestindo-a com os trajes adequados ao repouso, além de providenciar, diariamente, o abastecimento de água para as necessidades usuais da senhora.
Em geral, a ingestão do líquido era a última coisa que Druzila fazia, já deitada no leito, sob os tecidos que lhe serviam de colcha acolhedora.
Assim, estaria embalada para adormecer serenamente, sem qualquer suspeita que o sonífero pudesse provocar, indicando o entorpecimento químico irresistível.
Estando deitada, dormiria como era de se esperar de qualquer pessoa que se prepara para o repouso.
Dentro de seus projectos medidos e calculados, Serápis se posicionava ao lado do berço da criança, deitada para dormir o sono leve dos que têm crianças sob seus cuidados, dispensando a mãe de qualquer preocupação com o atendimento das necessidades da filha.
Lélia auxiliava Druzila com os cabelos, penteando-os calmamente, antes de prendê-los para o repouso nocturno.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:28 pm

Druzila se comunicava com a serva de confiança por monossílabos, como alguém indiferente, que não é capaz de sair da concha de si própria.
Terminado o longo processo da vaidade feminina, Druzila vestiu-se para o sono e colocou-se sob as cobertas do leito e, nesse momento, como de costume, Lélia retirou do jarro boa porção do líquido, que foi depositado em uma taça, o qual a esposa de Marcus sorveu até a última gota.
O mesmo veneno que ela entregara a Lélia para vitimar Lívio, voltava, agora, à sua efectiva fonte.
Advertira Jesus, no passado, que todos os que lançarem mão da espada à espada morrerão.
Assim, Druzila, descontrolada e má, indiferente ante a dor alheia, agora seria vitimada pelo próprio veneno.
Ninguém ali imaginava o que iria se passar.
Serápis esperava o sono profundo para sequestrar-lhe a filha.
Lélia imaginava mais uma noite tranquila como outras, ao pé do leito de sua ama.
Druzila, nas suas futilidades, mantinha-se monotonamente na condição daquela que sempre manda e dirige os outros em virtude de seu dinheiro e poder.
Aliviada com a cena na qual percebeu Druzila ingerindo o líquido envenenado sem que ninguém soubesse que aquilo era veneno, Serápis passou a fingir que dormia, esperando que o correr das horas lhe autorizasse a saída.
Todavia, depois de estarem todas já recolhidas, tendo Druzila mergulhado em profundo torpor, como se incontrolável sono lhe toldasse a lucidez de maneira muito mais rápida do que o normal, não decorreu mais do que meia hora nessa inconsciência profunda para que surgissem os primeiros sinais de que algo não ia bem.
Inicialmente, indisposição estomacal fustigava o seu corpo e, agitando-se na cama, Druzila não tinha posição para ficar.
Logo depois, gemidos e sons estranhos começaram a ser emitidos pela mulher que, a esta altura, tal era o estado de intoxicação, recobrou a lucidez e começou a reclamar alto.
Sua coloração tinha sido alterada, tendo perdido todo o viço facial, assumindo a epiderme, uma cor esbranquiçada, algo arroxeada.
- Lélia, Lélia, socorro!
Tentava gritar a jovem envenenada.
Chame um médico, rápido.
Chame Marcus, Licínio, chame alguém, rápido - falava, áspera, a mulher.
Socorro, acuda-me, estou morrendo...
A angústia em sua voz e o desespero em suas palavras demonstravam que se tratava de algo muito sério.
Lélia foi despertada pela agitação de Druzila e, sem entender o que se passava, saiu correndo para ir chamar Licínio em seus aposentos, ao mesmo tempo que a gritaria que produziu, despertou os outros empregados, chegando até o quarto de Marcus que, desde que iniciara o romance com Serápis, passava todas as noites no palácio.
Gritos por todos os lados, pessoas correndo. Saiu alguém a procurar o médico que, naquela cidade imensa, naturalmente, não pôde chegar em tempo para fazer alguma coisa.
Minutos depois, Druzila lançava espumas pela boca, enquanto que as fibras do estômago, dilaceradas pelo veneno, permitiam a hemorragia que se comunicava ao exterior através de vómitos sanguinolentos.
O olhar desesperado de Druzila dizia de seu medo, diante da realidade da morte que se acercava dela e, para a qual, nunca se preparara.
Estivera sempre preparada para envenenar os outros, como já o havia providenciado para muitos daqueles que atravessavam seu caminho.
Todavia, jamais imaginara que ela própria também teria que passar por tal situação de desespero e angústia, sentindo faltar-lhe o ar, queimarem-se-lhe as vísceras, arder como se estivesse envolta por brasas acesas.
Não demorou muito para que seus olhos começassem a divisar os escuros vultos sarcásticos que, aboletados por todos os lados ao redor de seu leito, aplaudiam cada vez que o vómito ensanguentado era depositado sobre a colcha luxuosa, como se estivessem torcendo na arena ou no circo, nas competições tão populares.
Vibravam quando ela demonstrava dor, quando não conseguia manter o raciocínio.
Suas faces eram horripilantes, apresentando-se com formas assustadoras a fim de receberem aquela que lhes partilhava os mesmos desejos e defeitos.
Além deles, congregava-se ali, também, o grupo dos que tinham sido por ela prejudicados, desde longa data e que, na estrutura defeituosa das leis humanas, jamais tinham sido reparados ou justiçados.
Todos os delitos que ela praticara contra eles, eram desenterrados ante seus olhos que, agora, não sabia dizer se sofria mais por aquilo que lhe corroía as entranhas ou por aquilo que enfrentava na realidade do mundo dos mortos.
Alucinações sucediam-se a gritos de medo e pedidos de socorro.
Licínio não tinha nada que fazer a não ser orar, silencioso, ao lado do leito, estranhando aquele estado súbito de alteração grave da saúde, sem que qualquer enfermidade houvesse se instalado primeiro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:28 pm

Marcus atendia aos imperativos do dever marital, ali permanecendo buscando minorar a dor, determinando a busca do facultativo, custasse quanto custasse, igualmente suspeitando de que alguma coisa muito grave tinha ocorrido com Druzila.
Os empregados e servos foram mantidos afastados, alguns dos quais, como Marcus, sentiam um quê de felicidade oculta, pela morte daquela que, em vida, somente se dedicara a ser uma roedora do mundo, fustigando, ferindo, maltratando, humilhando a todos sem qualquer consideração.
As emissões de alegria por sua desgraça, igualmente, chegavam à sensibilidade de Druzila, agora cada vez mais receptiva ao mundo espiritual em decorrência da debilidade de seu corpo, às portas do desenlace.
O cenário que a esperava era inimaginável para a sua mente tola e fútil.
A semeadura de seus actos havia sido rica em espinhos e lágrimas. Chegara, finalmente, o dia da colheita.
No quarto, assustadas e muito surpreendidas, Lélia se afastara para um dos cantos, a fim de manter-se no ambiente sem atrapalhar as coisas, fugindo do cenário grotesco e repulsivo.
Serápis, por sua vez, procurara carregar Lúcia consigo, retirando-a do ambiente confuso e tumultuado a fim de preservar o sono da criança.
No entanto, os gritos que escutava e a agitação indicavam, sem dúvida, que o quadro era grave.
Com a chegada do médico, não houve como negar a suspeita de envenenamento.
Diante da impossibilidade de salvar a vida de Druzila, era imperioso descobrir quem havia produzido aquilo, já que a intimidade da família havia sido violada.
Somente duas servas tinham acesso directo a Druzila.
Imediatamente, Serápis e Lélia foram convocadas ao gabinete privado de Marcus que, na presença de Licínio, estava confuso com tudo aquilo acontecendo justamente na véspera da saída de Serápis.
Será que ela tinha alguma coisa a ver com tal evento?
O pensamento de Marcus não podia deixar de levar isso em consideração.
Apesar de, no fundo, estar feliz com a viuvez de todo conveniente aos seus interesses, agora não sabia dizer por que estranha coincidência Druzila morria envenenada, na companhia de duas servas que a atendiam.
Se a mulher houvesse falecido naturalmente, nada de anormal estaria impedindo a continuidade de seus projectos.
No entanto, agora, com o diagnóstico médico do envenenamento, dentro de seu ser tudo apontava para Serápis.
Na presença de Licínio que, na sua experiência afectiva igualmente se punha a pensar coisas muito parecidas, Marcus apresentou a ambas a situação e o diagnóstico médico, dizendo que gostaria de obter explicações para aquele incidente trágico.
Pressionadas, ambas as servas se disseram inocentes, sem entenderem o que havia se passado nem o que motivou o envenenamento e a morte de Druzila.
Sentindo-se acusadas, como costuma acontecer sempre aos serviçais, ante os incidentes no interior da moradia onde servem, tanto Lélia quanto Serápis procuraram mostrar-se livres de culpa.
Enquanto estavam ali, o médico convocou os homens para que pudessem escutar-lhe as descobertas.
- Senhor Marcus, não me resta dúvida de que tenha sido veneno, já que estamos vivendo em uma sociedade onde esses casos se multiplicam todos os dias em todas as classes sociais.
Os sintomas são típicos e, de acordo com a rotina da vítima, o tóxico deve ter sido colocado na água que ela ingeriu antes de dormir.
Estou com o jarro que ainda possui boa parte do conteúdo e, por isso, poderemos fazer um teste.
Mande trazer algum animal a fim de que ministremos a ele uma parcela do líquido para vermos o resultado.
Concordando com os cuidados e sugestões do médico, não tardou para que algum servo trouxesse, das ruas desertas, um cão abandonado, atraído por um pedaço de carne e, tão logo ingeriu a água envenenada, idênticos sintomas surgiram-lhe no corpo.
Estava confirmada a origem do envenenamento.
Feito isto, as suspeitas se voltaram para Lélia.
Fora ela quem levara o frasco e se incumbia, todos os dias, de atender às necessidades da patroa.
A serva, trémula, alegava inocência.
Serápis, nessas alturas, não podia dar prosseguimento ao plano de fuga e sequestro, sob pena de incriminar-se a si própria.
No entanto, vendo o rumo que as coisas estavam assumindo, solicitou a Licínio a oportunidade de se entenderem a sós por breves instantes.
Sem que ela soubesse que Licínio conhecia o segredo do seu envolvimento com Marcus, procurou falar-lhe rapidamente, buscando tirar partido da situação e livrar-se de qualquer suspeita:
- Senhor Licínio, não é desconhecido o antagonismo gratuito que Druzila nutria contra minha pessoa e, por isso, considero natural que suspeitem de mim, nesse momento doloroso.
- Todos são passíveis de culpa, nesta casa, Serápis, - falou o administrador, sério e directo.
- No entanto, há pouco tempo, ocorreu um facto que pode ser significativo no deslinde desse mistério.
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Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:28 pm

- Vamos, fale logo que não tenho muito tempo.
- Eu estava mal, indisposta, em minha cama, quando fui procurada por Lélia, interessada em meu estado.
Achei estranho tal interesse daquela serva que, sempre que pode me prejudica diante dos patrões com comentários maldosos.
No entanto, ela se apresentava preocupada com meu abatimento e eu lhe disse que era um pouco de nervoso pelas perseguições de Druzila, somado à dificuldade de dormir, o que me causava abatimento.
- E então? - falou Licínio, apressado.
- Então que ela me ofereceu um remédio que disse ser um sonífero que lhe havia sido dado pela própria Druzila para usar contra um rapaz que a assediara quando estiveram na fazenda por aqueles dias.
Eu achei meio suspeito e, por isso, disse que aceitava. Ela trouxe o frasco que mantém guardado consigo e entregou-me, aconselhando-me a tomar uma ou duas gotas, que seria o suficiente para dormir profundamente.
Sem entender bem o porquê, mas sentindo um calafrio por dentro, disse que tomaria, mas não me encorajei a usá-lo, com justificados receios, já que Druzila não gostava de mim e isso poderia ser uma armação para me produzir danos irreparáveis.
- E o que você fez com o frasco?
- Bem, no dia seguinte, o devolvi a Lélia, dizendo que tinha usado e que tinha dormido bem melhor, crendo eu que ela o mantém guardado em seus pertences pessoais.
- Isso é muito importante, pois pode ser sonífero ou pode ser veneno mesmo.
Você está segura disso?
Pode assumir esta história na frente dela?
- Na hora que o senhor desejar. Foi isso que aconteceu, respondeu Serápis, evitando revelar no relato a parte em que ela retirara um pouco da substância, acreditando-se tratar de sonífero mesmo, para usá-lo segundo seus planos.
No quarto, o corpo imóvel e empapado de Druzila já não tinha mais vitalidade.
Seu espírito, no lado invisível da vida, estava em piores condições do que o próprio corpo carnal condenado este agora, ao sepulcro e ao apodrecimento.
Iniciava-se para Druzila uma terrível etapa de resgate ante a verdade que criara para si mesma, tão cruel que ela sentiria inveja dos próprios despojos e pleitearia o seu lugar se tivesse a opção de trocar.
Suportaria o abafado da terra, a voracidade dos microrganismos, o fétido odor da putrefacção se isso evitasse o enfrentamento da realidade que a defrontava agora.
O cortejo de criaturas horrendas que a buscavam, irónicas, sarcásticas, numa procissão macabra que a arrebatava sem que conseguisse dali fugir.
Era levada pela turba festejante como se fosse um troféu indefeso, sem ter a quem recorrer, gritando e esbracejando em vão.
Seu corpo espiritual, deformado pelas suas condutas negativas durante a vida, assemelhava-se a bruxa miserável que vertia sangue pela boca, nariz, ouvidos e que sentia todas as dores próprias do tipo de morte que tivera.
No palácio, tudo parecia estar suspenso, ante a investigação sumária que passou a ter curso entre todos os empregados.
Alertado por Licínio, Marcus determinou que se fizesse uma busca em todos os quartos, em todos os pertences dos servos que tinham acesso aos aposentos da esposa, valendo-se de seus escravos particulares que, por estarem sempre vinculados aos seus serviços pessoais, nunca se misturavam com os demais empregados que serviam à mulher.
Enquanto isso se passava, Serápis reavaliava a situação que tinha saído de seu controle.
Como proceder agora? Se deixasse a casa, tomar-se-ia suspeita.
Se ficasse, acabariam descobrindo-lhe a gravidez.
No entanto, sem Druzila pela frente, talvez Marcus mudasse de opinião a respeito de mantê-la como uma amante, distante.
No entanto, não tinha certeza de nada.
Não tardou para que um dos servos de confiança de Marcus encontrasse o frasco de veneno nas coisas de Lélia que, pobrezinha, nem se lembrava da sua existência, já que não imaginava que aquilo fosse veneno.
Novamente, foi ela chamada à presença do chefe da casa e do administrador que havia sido alertado por Serápis.
Diante do frasco que lhe foi apresentado, a serva tremia ainda mais ao assumir que ele estava em seu poder por lhe ter sido dado por Druzila.
Naquele momento, evitou dizer que ela o havia emprestado, a fim de que não fosse considerada uma ladra que não devolvia as coisas dos patrões.
- Sim, meu senhor.
A senhora me deu este frasco alegando que se tratava de um sonífero para que eu o ministrasse ao empregado da fazenda, Lívio, que estava me incomodando muito com suas propostas indecorosas.
Falou-me que bastavam umas duas gotas para fazer um boi dormir.
- Isto é o que veremos - disse Marcus, mandando trazer outro animal, para que fizessem o teste definitivo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 07, 2014 10:28 pm

Sem se preocupar tanto por imaginar que o efeito do remédio era apenas o sono, como havia testemunhado nas primeiras reacções de Lívio e na afirmativa de Serápis, manteve-se o mais calma possível, enquanto o remédio era ministrado a outro cão sem dono que, sem muita demora, passou a espumar pela boca, a tontear sem conseguir manter-se de pé e a sangrar em vómitos sucessivos.
Os mesmos sintomas de Druzila.
Diante de tal prova, Lélia não tinha argumento.
Começou a chorar dizendo que não podia ser verdade.
A própria Serápis havia tomado o remédio e dito que tinha dormido bem naquela noite.
Chamada ao recinto para pronunciar-se, a serva mencionada relatou os fatos, não sem antes, pintar as cenas da perseguição de Druzila e da cumplicidade de Lélia com tintas fortes, como a levantar ainda mais suspeitas sobre a serva ingénua e tola, que se deixara levar pela ambição de acumpliciar-se com a perigosa dona da casa, esperando daí tirar algum proveito, prejudicando os outros.
Nesse momento, Serápis tinha a sua vingança das muitas inverdades que Lélia levantara contra ela.
- Sim, meu senhor, - disse Serápis - Lélia me procurou para saber do meu estado pessoal com um interesse nunca antes visto.
Tanto que até me causou admiração.
Desejou saber de minhas condições e quando lhe disse, para livrar-me de seu interrogatório, que estava mal por não ter conseguido conciliar o sono, falou-me de um remédio que tinha, que era muito bom e que, se aceitasse, ela me emprestaria, já que não pretendia livrar-se dele por lhe ter sido dado por Druzila.
No entanto, desconfiada ante tanta amabilidade e acreditando que não deveria me expor a riscos desnecessários, evitei ingeri-lo e, no dia seguinte, quando fui abordada por Lélia, menti dizendo que tinha tomado e que era muito bom, ocasião em que me solicitou a devolução do frasco, o que fiz imediatamente.
- O frasco que você teve consigo é este que aqui está? -perguntou Marcus, imperativo.
- Sim, meu senhor, é esse mesmo.
Lélia estava atónita.
Naquele momento seu destino estava selado, sem compreender o que estava acontecendo.
Suas palavras se encaixavam em uma perfeita mentira, bem engendrada e combinada de tal maneira pela casualidade que tudo levava a apontar para a sua efectiva responsabilidade.
No entanto, em seu pensamento, surgia o desespero, a inspirar qualquer medida que afastasse dela a suspeita mentirosa de ter envenenado a patroa.
- Meu senhor, não fui eu.
Eu não sei como é que o veneno foi parar na jarra de água.
Eu sempre pensei que isso fosse remédio para dormir e, agora vejo, o quanto estive próxima de me matar eu própria, ingerindo o veneno pensando que fosse sonífero.
Eu me prostro e juro minha inocência.
- Você não tem justificativa, Lélia - disse Marcus, peremptório.
Você tinha o veneno, tinha a intimidade, já tinha tentado fazer uso dele em Serápis que, como todos sabemos, sempre foi malquista por Druzila e por você própria.
- Mas eu não sou a única que poderia ter matado a patroa.
Eu não tenho nenhum motivo para fazer isso.
No entanto, há pessoas por aqui que, além de terem acesso a tudo, também tinham motivo suficientemente grave para envenená-la.
- Ora, Lélia, você está louca? - perguntou Marcus.
- Não, meu senhor.
Eu sou testemunha de fatos graves que, por si sós, têm o condão de incriminar outra pessoa deste palácio perante este crime.
- Vamos, fale! - disse Marcus, firme e decidido.
- O senhor Licínio tem todos os motivos do mundo para matar Druzila.
Ele foi flagrado por mim e por Lívio semi-despido na companhia da senhora que, provavelmente entorpecida por um sonífero, dormia profundamente, lá na fazenda.
Quando chegamos para ajudá-los, depois que a carroça em que se encontravam acidentou-se em local muito distante, encontramos ambos deitados um ao lado do outro, tendo a senhora o busto todo à mostra, com as roupas rasgadas, e o senhor Licínio estava em condição de comprometimento inequívoco.
A audácia de Lélia só poderia justificar-se pelo desespero de livrar-se da punição que, no seu caso, ante as leis daquela comunidade, corruptas e injustas, fatalmente seria a morte no circo.
Licínio, que estava no ambiente, escutou-lhe a acusação com serenidade e calma, empalidecendo ligeiramente por ver seu nome mencionado em circunstância tão delicada e na presença da própria Serápis que, no fundo, se divertia com o desespero de Lélia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 08, 2014 10:32 pm

Ainda mais irritado com a serva perigosa e nociva, Marcus respondeu-lhe:
- Pois você fique sabendo, sua pervertida criminosa, que estou a par de tudo o que aconteceu, inclusive de que você esteve lá, como cúmplice de minha finada esposa.
O próprio Licínio relatou-me todos os factos enquanto nem mesmo Druzila se animou a queixar-se a mim de qualquer violência que tivesse sofrido.
Como é que você deseja que eu venha a acreditar em sua palavra quando a própria vítima, a única que podia nos dar a decisiva prova de que fora violentada e de quem a violara, nunca abriu a boca para acusar a ninguém?
Crê, porventura, que dou mais crédito às suas mentiras do que à palavra leal deste homem que veio até mim para revelar estes mesmos factos que a sua maldade usa agora para acusá-lo?
Acredita que terei motivos para levar seus argumentos em consideração acima do silêncio da própria Druzila, que nunca falou no assunto comigo, pedindo reparação de algum ultraje sofrido?
Vendo-se acuada pelas circunstâncias, Lélia, desesperada, bradou:
- Não, meu senhor, mas há outra testemunha.
Mande trazer Lívio até esta casa e ele revelará tudo isto, já que ele presenciou todos os mesmos fatos e não teria por que mentir.
Ele vai confirmar todas as minhas palavras.
E para sua surpresa final, Marcus lhe respondeu, secamente:
- Isso é impossível!
- Como pode ser impossível, meu senhor.
Basta um emissário mandar vir o empregado e, em poucas horas ele haverá de estar perante seus olhos.
- Não existem emissários que o possam trazer do além, Lélia.
- Como assim? - respondeu espantada a ré, já condenada.
- Há algumas semanas fui informado por um correio que chegou da fazenda, que Lívio foi encontrado morto poucos dias depois que vocês chegaram de regresso.
Em seu desespero, Lélia tinha se esquecido de raciocinar acerca do destino que impusera a Lívio, quando lhe ministrou o falso sonífero.
Como sua mente se recusava a acreditar que aquilo fosse veneno, não ligou os factos pensando que o empregado ainda pudesse servir como testemunha de sua versão.
Agora, não tinha mais como defender-se.
- Lívio foi encontrado morto, enrolado em uma toalha, coberto de formigas e já em processo de apodrecimento, Lélia.
Provavelmente, por efeito de seu... "sonífero"... também.
Podem levar presa esta assassina.
O caso está encerrado.
A condenação com base em todas as provas que pareciam muito claras, fora lançada sobre Lélia que sabia que, dali em diante, o restante seria apenas formalidade até que ela fosse sacrificada em alguma festa importante.
A noite acabou num amanhecer soturno e trágico, com a notícia da morte de Druzila se espalhando e todos sendo informados de que o luto se havia abatido sobre o palácio sumptuoso.
Serápis, quase feliz com o fim de Druzila e com o destino de Lélia, agora aguardava os próximos passos de Marcus para ver como é que daria curso aos seus projectos.
Na falta da progenitora, assumiria definitivamente o dever de criar Lúcia, como serva cuidadosa e amorosa que sempre se demonstrara para com a criança.
No entanto, Marcus não poderia demorar-se muito em decidir, já que seu estado gravídico, em breve, seria insustentável e inescondível, ainda que, agora, já não fosse mais tão grave a sua situação, eis que o principal obstáculo havia sido removido com a morte da esposa do amante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 08, 2014 10:32 pm

39 - A FALTA DE DEUS NOS CORAÇÕES

Havia sido um período trágico na vida de todos os integrantes do grupo de reencarnados para enfrentar desafios e testes, depois de tão árduas lutas de resgate efectivadas pelo mundo espiritual.
Com a morte de Druzila, o palácio ficou sem aquela que, com seus caprichos e ordens, mobilizava todos os empregados.
Agora, somente Marcus se mantinha em seu vasto interior.
Em realidade, a figura do marido viúvo não lhe caía como a melhor veste, ante o espírito que rejuvenescera depois que a esposa fora tragada pela morte, no hálito do veneno que ingerira.
As perspectivas para seu futuro, no entanto, eram de todo incertas.
Licínio seguia desenvolvendo seus trabalhos, no serviço fiel e devotado de manter em ordem e executar as vontades do proprietário.
Lélia havia sido remetida para a prisão, enquanto que Marcus, dentro de suas funções importantes na sociedade romana, tratava de encaminhar o processo ante os juízes corruptos e influenciáveis, em sua maioria, tendendo sempre para proteger os mais bem aquinhoados, em detrimento da apuração efectiva da verdade.
Naturalmente, naquele tempo de parcos recursos técnicos, as provas obtidas, os testemunhos dos servos, a confirmação de Lélia, a sua maneira bisonha e ingénua de se defender, a tornavam quase que ré confessa da acusação da morte de Druzila, ainda que não existisse, claramente, motivo para que isso se desse.
Aventava-se a hipótese de pretender furtar suas riquezas, de vingar-se de seus modos arrogantes, de estar a serviço de alguém que lhe premiaria depois do assassinato.
No entanto, nada de seguro e concreto havia sido levantado para apurar os motivos da jovem. Isso não era importante naquele momento.
Restava a questão de Serápis.
Diante de todos os fatos, a serva resolvera adiar a sua vingança contra Marcus que a iria desprezar.
Agora, mais do que nunca, ela não podia demonstrar nenhum desejo de fuga ou de sequestro da filha Lúcia que, a cada dia, mais se afeiçoava à sua pessoa.
Na falta da progenitora que nunca lhe dedicara o amor mínimo que se espera de uma mãe em relação à filha, a pequena Lúcia que, por essa época já tinha ultrapassado o primeiro ano de vida, se havia aproximado ainda mais de Serápis, que tentava tudo fazer para fornecer o devotamento próprio de uma mãe amorosa e preocupada.
No entanto, as condições de Serápis logo iriam ser impossíveis de ocultar, o que lhe imporia a necessidade de declarar quem seria o pai, já que se tratava de uma serva para a qual não eram permitidas as regalias do anonimato nem concedidos o respeito aos seus direitos femininos de discrição.
Por isso, para ela, a questão se tornava mais urgente, à medida que deveria agir em consonância com as determinações do futuro pai.
Este, por sua vez, sem a presença de Druzila, se tornara ainda mais interessado no refazimento de sua vida ao lado da jovem serva amada, sem que o pudesse fazer, assim, de inopino, sem preparo.
Desejava assumir sua relação com Serápis imediatamente.
No entanto, ainda que ele fosse o poderoso dono da casa, a sua atitude poderia reverter o andamento pacífico das coisas.
Se isso acontecesse, naturalmente imputariam a ele a traição consumada, eis que a gravidez da serva só poderia ser atribuída a um relacionamento espúrio.
Se isso aparecesse, tanto ele quanto Serápis poderiam ser suspeitos de envenenamento de Druzila, o que lhe provocaria sérios problemas legais, à luz do direito romano, sobretudo em função dele ser aquele que recebera boa parte da fortuna da mulher, quando da união.
Não seria difícil algum parente a solicitar a destituição dos direitos do viúvo com base na suspeita de ter sido, ele próprio, o responsável pelo envenenamento.
Afinal, tinha os meios de fazê-lo e depois acusar uma serva inocente e vulnerável, tinha a oportunidade de concretizar o crime, insinuando o tóxico letal através de qualquer de seus servos de confiança e tinha o mais candente de todos os motivos, ou seja, o caso amoroso e a gravidez de Serápis, para lhe servir de peça incriminadora perfeita.
Não! Diante de todos estes factos, Marcus não poderia relacionar-se com Serápis assim, à luz do dia.
Desse modo, deliberou levar adiante seu plano de afastar a serva, determinando que Serápis fosse trazida aos seus aposentos, alegando que precisaria tratar de assunto referente à filha órfã.
Trazida ao interior de seu quarto, no qual se fez encerrar a sós, Marcus deu vazão aos seus sentimentos represados desde algum tempo, quando já não podia acercar-se de Serápis como queria.
- Ah! Que saudades sinto de você, minha amada - exclamou o jovem no arroubo de seus sentimentos sinceros.
Buscando corresponder-lhe aos gestos, Serápis retribuiu seus carinhos, procurando ser íntima, deixando as formalidades que a obrigavam a permanecer distante e fria na condição de simples serva de poderoso senhor.
- Sim, Marcus, para mim também há sido um período de amarga distância.
Sonho em me aproximar de seus braços e sentir o perfume de sua pele.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 08, 2014 10:32 pm

Todavia, não posso romper as barreiras que nos separam.
- É verdade, meu amor.
Estas barreiras são altas e poderosas e eu agradeço a sua compreensão.
Em seu íntimo a alma de Serápis imaginava, novamente, que o rapaz, agora livre para dedicar-se a ela, iria assumir as coisas entre eles e colocá-la no lugar da esposa, ainda que com algum cuidado para não produzir choques desnecessários.
Ali, no quarto do patrão, ela entrevia o momento em que a convidaria a casar-se com ele, dando continuidade à sua venturosa ascensão, tendo por base a tragédia de Druzila.
Permanecendo em silêncio, Marcus continuou, dizendo:
- Estive pensando sobre tudo o que aconteceu e, pelo que meus julgamentos me aconselham, deveremos prosseguir com nosso projecto.
- Como assim, meu senhor? - perguntou algo surpreendida.
- Sim, Serápis.
Você se ausentará desta casa até que os fatos estejam esquecidos e possa ser mais fácil que nosso sentimento seja apresentado ante todos, sem os dissabores de uma açodada união, perante uma sociedade romana astuciosa e má, o que poderia, para sempre, prejudicar nossos projectos.
Assim, comunicarei a Licínio o seu afastamento e, em face da ausência da mãe, empreenderei viagem com a justificativa de levar Lúcia para a companhia dos parentes de Druzila que vivem longe daqui, e direi a todos os servos que você a seguiu como a serva predilecta da criança, a fim de que, em sua companhia, ela encontre a paz e a serenidade segura que uma criança precisa para crescer.
No entanto, você vai para o nosso refúgio e me espera por lá.
Ao mesmo tempo, manteremos em sigilo o seu estado e, assim que nosso filho nascer, aí então poderemos dar curso normal à nossa existência, já com o tempo conspirando a nosso favor para que você regresse para cá na condição da mulher escolhida.
Na verdade, viajarei com Lúcia até a fazenda e, depois de alguns dias, retornarei com ela em sigilo e a deixarei sob seus cuidados em nosso pequeno palácio, no qual você já estará abrigada.
Escutando-lhe com uma insatisfação mal disfarçada, percebera que Marcus não pretendia elevá-la de imediato à condição desejada.
No entanto, as suas ponderações lhe pareciam prudentes e seus motivos, longe de parecerem desculpas fúteis, revelavam o desejo futuro de torná-la sua esposa.
Ante tal constatação, a mente astuta de Serápis se deixou envolver pelas perspectivas vantajosas, além do facto inegavelmente favorável de que teria Lúcia sob seu controle imediato, ficando o pai dela afastado, como, aliás, se mantivera praticamente desde o nascimento.
Marcus esperava o nascimento do filho varão, tão valorizado naquela sociedade conflituante e hipócrita.
Ter uma filha e não tê-la, era praticamente a mesma coisa.
Vendo que era chamada a opinar naquele processo que o amante lhe apresentava, Serápis aquiesceu, dizendo:
- Como sempre, meu senhor, suas deliberações guardam justiça e sabedoria que não me permitiriam discordar de seu bom senso.
Assim, se me permite pedir algo, peço apenas que, depois de meu regresso ao local de nossos encontros, possa contar com a sua visita, uma que outra vez, pois a solidão seria capaz de me fazer enlouquecer, como creio que fez com Druzila.
- Ora, Serápis, que pedido mais desnecessário... - falou Marcus puxando a jovem ao seu encontro e fazendo-a sentar-se em seu colo, paternalmente.
- Sinto muito a sua falta e, apesar de ter Lúcia como companhia a quem me devotarei com todas as forças do meu ser, não poder mais estar aqui neste palácio que me permite escutar seus passos pelos corredores, sentira sua presença por detrás destas portas, representará afastar-me do calor que me mantém aquecida e feliz.
Enaltecido por aquelas palavras adocicadas, partidas de uma boca que sabia medir o tamanho dos elogios a fim de conseguir o que desejava, Marcus ficou ainda mais enternecido com as maneiras da jovem amada e, de forma mais carinhosa lhe disse:
- Serápis, eu mesmo, por mim, me mudaria para lá e passaria a viver ao seu lado.
Aliás, nesta hora, invejo os escravos que se unem com quem o próprio sentimento aconselha, sem precisarem se preocupar com as mentirosas convenções dos homens.
Como estamos metidos nesse meio perigoso e astuto, tomaremos cuidados para que tudo siga normalmente, sem impedir que eu realize o maior prazer de minha vida que é o de estar junto de você, o maior número de vezes.
Esteja segura de que não lhe faltará nada, nem para Lúcia.
Tomarei todas as providências para que uma serva de confiança esteja a serviço de suas necessidades, inclusive para ir realizar as compras emergenciais, já que as aquisições mais comuns, Licínio se encarregará de fazer.
- E quando devemos nos transferir para lá?
- Assim que comunicar o fato a Licínio, ele providenciará a transferência.
Repassemos nosso plano, então: como já disse, você e Lúcia irão em momentos diversos.
Primeiro você irá, como alguém que deixa o nosso serviço e parte para longe, fingindo que foi enviada, antes de nós e junto com a bagagem de Lúcia ao destino que nos espera, a fim de que não viajemos juntos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 08, 2014 10:32 pm

Depois de alguns dias, dando a todos a explicação de que levarei Lúcia para a companhia dos parentes distantes que já a aguardariam, já que de mim mesmo não tenho pais que possam assumir, na condição de avós, a criação da menina, partirei com ela, mas para a fazenda, onde ficarei algum tempo, até que regresse e entregue a filha aos seus cuidados.
Apenas Licínio vai saber de tudo.
E depositando um ardoroso beijo em seus lábios, Serápis selou seu compromisso, sem que, no fundo, isso significasse a absoluta e total correspondência aos seus desejos.
A serva estava, apenas, adiando os seus planos, tendo em vista as ocorrências últimas e o avanço do estado gravídico, período em que estaria muito mais vulnerável do que em qualquer outro.
Com o nascimento, pensava ela, suas forças estariam redobradas, já que, dando a Marcus o tão desejado filho, poderia sentir-se ainda mais poderosa perante a sua pessoa.
Tão logo deixara o quarto do viúvo, não sem antes prometerem recíprocas juras de amor, Marcus ordenara a vinda de Licínio, com quem deveria ter uma conversa muito aberta e sincera.
- Pode entrar, meu amigo - falou o dono da casa ao servidor fiel e amável.
- Obrigado, meu senhor - respondeu Licínio, colocando-se à distância de Marcus.
Vendo-lhe a postura de subserviência, o senhor do palácio lhe autorizou, amistoso:
- Vamos lá, Licínio, pare com essa coisa e sente-se aqui ao meu lado, pois preciso ter uma daquelas conversas que sempre tivemos nos nossos tempos de juventude despreocupada, quando me abria com você e de você recebia conselhos sábios que muito me ajudaram.
- Pois não, Marcus.
Para mim também é muito prazeroso lembrar-me desse tempo. Vamos lá, pode falar - disse Licínio, sentado, já bem próximo de Marcus, não sem antes imaginar o teor do assunto que, pelo inusitado daquela hora mais íntima, rara desde que Marcus assumira a condição de chefe da família, deveria envolver a confissão de seu relacionamento com Serápis.
Confirmando seus pensamentos, pelo muito que conhecia daquele jovem, escutou-lhe o desabafo há muito guardado no peito:
- Licínio, meu amigo, nunca deixei de contar-lhe tudo o que se passa comigo e, graças à sua fidelidade, tenho me conduzido por caminhos menos dolorosos.
Você me conhece em todos os meus defeitos e, assim, sabe que não está aqui o dono do palácio nem o empregado que o administra.
Ante o silêncio amistoso do interlocutor, Marcus continuou:
- Sempre procurei encontrar o amor em alguém e, desde a juventude, quando os negócios do mundo e os interesses do cofre manipulavam os sentimentos e as uniões, minha trajectória tem sido uma constante frustração, entre os braços de Druzila, odiosa e mesquinha, e os encantos de prostitutas profissionais que em nada são capazes de sentir as carências de afecto de alguém que elas pensam ser o mais ditoso dos homens, apenas porque possui o dinheiro que lhes falta.
De muitas delas obtive a proposta de casamento sem, contudo, poder fazer mais do que rir-me de sua ingenuidade.
Você é testemunha de meus sonhos rompidos, de meus projectos destruídos, sobretudo com o nascimento de Lúcia que, apesar de bela e forte, não representa o varão que haverá de perpetuar-me o nome.
Desse modo, imaginava que estaria condenado pela ironia de nossos deuses a vagar solitário, como o cego faminto, pelo ambiente dos manjares, sentindo-lhes o perfume, mas impedido de prová-los.
Isso aconteceu comigo até o dia em que conheci uma jovem que rompeu dentro de mim todas as amarras que impediam ao cego pudesse provar os pratos e saciar a fome de afecto. Foi aqui no palácio que encontrei essa jovem e, pelo que você já deve estar imaginando, estou seguro, acha-se ela na condição difícil de serva de nossas necessidades.
Licínio seguia sereno e firme, sem nada dizer sobre as revelações de Marcus.
- Desde o momento em que a vi, algo mágico aconteceu em meu ser, como se uma atracção irresistível me obrigasse a procurá-la, numa mistura de medo e ansiedade.
Algo me dizia que ela era minha perdição e minha felicidade, simultaneamente.
Depois de muito resistir, buscando prazer nas mulheres fáceis, caras ou não, sentia meu espírito inclinado a buscá-la.
Quanto mais me frustrava no prazer sem afecto, mais sua imagem mental me perseguia, requisitando-me a atenção.
Os sonhos eram com ela, os olhares furtivos a buscavam por entre os corredores do palácio.
Jamais me havia apaixonado dessa maneira e, sobretudo, por uma serva. No entanto, aconteceu e, tais coisas do coração não se podem controlar.
Meu único arrependimento nisso tudo, foi descobrir, posteriormente, que a mesma jovem também era requisitada pelo seu afecto.
Depois de ter-me revelado, sem imaginar que seu coração também se inclinava em sua direcção, Serápis me contou que você a havia procurado, apresentando-lhe seus sentimentos. Isso para mim, se o soubesse antes de me ter aberto com ela, teria sido capaz de evitar que fosse tão atirado, até que entre você e ela, as coisas se tivessem definido.
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Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - A Força da Bondade / André Luiz Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 08, 2014 10:33 pm

No entanto, era tarde demais e, pelas palavras da própria jovem, não possuía ela o desejo de ligar-se a você, tendo se comprometido comigo que lhe informaria de sua negativa.
Ao mesmo tempo, revelou-se igualmente desejosa de conhecer-me e, para encurtar a história, passamos a nos encontrar, lá no local que,... você sabe..., tenho reservado para a busca da felicidade física, como compensador da infelicidade do coração ao lado de Druzila.
Ouvindo-lhe a confissão honesta, Licínio admirava-se da tardia lealdade de Marcus, aquela que ele sempre esperara de sua parte, ainda que demorasse a chegar.
Rompendo o seu silêncio, comentou:
- A viagem para a fazenda....
Sem esperar que completasse a frase, Marcus agregou:
- Foi arranjada por mim para afastar Druzila de casa a fim de que tanto eu quanto Serápis pudéssemos nos encontrar por mais tempo e sem riscos maiores.
Desculpo-me consigo por ter usado de um estratagema pouco leal para que a minha mulher ficasse longe daqui.
No entanto, há muito tempo, desde que me recordo homem feito, não sentia um tal arrebatamento por uma criatura, o que me levou a agir como agi.
No entanto, os deuses são caprichosos e voluntariosos.
Fruto desse encontro, deliberaram que Serápis passasse a carregar no ventre a semente de nossa união ilícita aos olhos dos cânones de nossas tradições.
- Ela está grávida? - perguntou surpreendido o administrador.
- Sim, Licínio, Serápis será mãe e não demorará muito.
- Pelos deuses, Marcus, isso é perigoso demais para esta casa e para sua reputação, principalmente depois do falecimento de Druzila.
- Eu sei disso, Licínio.
Por isso é que o chamei aqui.
Preciso que me ajude a solucionar essa questão.
Naquele momento, Licínio não sabia se lamentava o afecto perdido de Serápis com os seus sonhos de união desfeitos ou a situação do amigo a quem se devotava sinceramente, apesar de todos os seus defeitos e fraquezas humanas.
Seguindo o entendimento, Licínio adiantou:
- Com essa situação, Serápis passa a ser suspeita de assassinato, mais ainda do que Lélia, a pobre serva, mais tola do que má.
E o que é pior, Marcus, essas suspeitas podem resvalar sobre você.
- Sim, Licínio, é verdade.
Já pensei em tudo isso.
- Pense bem: Serápis informou-me que recebera de Lélia um frasco de sonífero e que o teve em seu poder por um dia inteiro.
Devolveu-o sem usá-lo, temendo alguma coisa errada ou premeditada por parte dela e de Druzila.
Naturalmente, temeu que fosse veneno e não sonífero.
Depois, passado algum tempo, eis que a própria serva de confiança de sua esposa transporta o jarro envenenado até o quarto... e lá permanece para testemunhar os cruéis estertores da senhora, entrando em desespero por vê-la nas aflições do desenlace.
Não foge, não se ausenta, não parte para longe.
Logo mais, no procedimento investigativo que você realiza, acaba descoberto em seus pertences, o frasco que se confirmou tratar-se de veneno, mas que a pobre criatura insistia ser apenas sonífero, recebido como tal de Druzila, que acabou vítima da própria astúcia.
E Marcus ia acompanhando o raciocínio de Licínio, mais profundo e maduro do que o dele próprio.
- Tudo isso é muito estranho, sobretudo quando ela invocou, ao me acusar, o testemunho de Lívio, sem imaginar que ele estivesse morto, como já era de seu conhecimento pela informação recebida, tempos depois de nosso retorno da fazenda.
Lélia, pelo que pude avaliar, não imaginava que o rapaz estivesse morto, igualmente envenenado.
Ela se apoiava nele para defender-se.
No entanto, sempre me perguntei qual seria o motivo de Lélia para envenenar Druzila, deliberadamente.
Nunca o encontrei.
No entanto, agora, com sua revelação da gravidez de Serápis, posso entender melhor as coisas e perceber que pode haver uma outra verdade escondida por baixo das aparências de culpa de Lélia.
Além do mais, se Serápis pode ser suspeita, seria um problema levá-la a julgamento sem base segura e na condição em que se encontra, o que não facilitaria as coisas nem para ela nem para você, meu amigo, já que as pessoas procurarão criar, em suas imaginações, a versão do complô entre o marido e a serva para assassinar a esposa e tomar-lhe o lugar, como tem sido muito comum nas classes mais abastadas de nossa sociedade corrupta.
Acostumadas a se envenenarem todos os dias, com venenos reais ou com venenosas palavras e inverdades agressivas, as pessoas saberiam identificar neste drama, os traços do crime que poderia ter sido cometido pela empregada grávida do patrão e pelo patrão apaixonado pela serva, ambos precisando tirar do caminho a esposa inconveniente e intolerável.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 08, 2014 10:33 pm

Marcus estava surpreso com a profundidade de avaliação que
Licínio apresentava ante seus olhos.
Nunca havia pensado seriamente que Serápis poderia estar por detrás disso tudo.
No entanto, não desejava, igualmente, levar a questão para o lado de incriminar a mulher amada e futura mãe de seu filho.
- Bem, Licínio, suas palavras são sempre luminosas e cheias de maturidade.
No entanto, como você já falou, não será bom lançar suspeitas a esmo, depois que já tivemos a acusação irrefutável lançada sobre Lélia.
Assim, gostaria que você me ajudasse na realização do meu projecto, conforme vou expor-lhe.
Dito isso, Marcus passou a lhe apresentar todo o plano que tinha traçado com Serápis e, efectivamente bem concebido, recebeu do administrador todo o apoio que o mesmo poderia prometer, como a única e mais adequada solução para remendar a situação delicada em que as contingências da vida os havia colocado.
Assim ficou acertado que Licínio providenciaria a mudança sem qualquer comentário, instalando a jovem serva no ambiente outrora usado para os encontros licenciosos de Marcus, modificando-lhe o interior para que fosse transformado em uma moradia mais digna de uma mulher que lhe seria a mãe do filho tão esperado.
No entanto, depois de terem tudo acertado, Licínio se sentiu inclinado a solicitar de Marcus um favor:
- Marcus, um imperativo de consciência me ordena recorrer ao seu coração generoso para pedir uma coisa.
- Claro, Licínio, fale sem medo, pois a você não posso negar nenhum pedido.
- Pois então, meu generoso amigo, permita-me ajudar Lélia a fim de que não seja condenada à morte horrenda, como têm morrido centenas de pessoas nas festas cruéis que ao povo tanto agrada.
Prometo que buscarei ajudá-la sem comprometer nenhuma outra pessoa e aceite que a sua mão amiga esteja estendida para que uma inocente não seja morta até que seja provada sua culpa.
Eu procurarei autoridades em seu nome e explicarei que a acusação foi feita no clamor dos acontecimentos, mas que seria necessário fazer uma nova pesquisa, pois há suspeita de que a própria Druzila foi quem resolvera colocar fim na própria vida.
Creio que, uma vez morta e sendo verdade que fora ela a fornecedora do cáustico, do mesmo modo que me entregou sonífero na noite em que pretendia me acusar e me usar para satisfazer seus desejos frustrados, nada mais justo que carregue para o túmulo a culpa de ter envenenado a si própria.
Testemunharei que ela tinha o hábito de valer-se de tais substâncias para manipular as pessoas e, creio, que sem a sua oposição, conseguiremos tirar Lélia dessa situação dolorosa.
Nada farei, contudo, sem a sua aprovação pessoal.
Por isso, estou a suplicar que ma conceda.
Já há muita tragédia sob nossos olhos.
Observando a nobreza de Licínio que, com seu modo generoso e humano, se interessava pelo destino de uma serva inútil e tão mesquinha a ponto de tê-lo acusado de assassinato na noite das apurações sobre a morte de Druzila, Marcus não teve como negar-lhe a solicitação, apenas advertindo-o:
- Admiro o seu empenho por uma pessoa de nível tão inferior.
No entanto, apesar de não poder negar a minha autorização que, neste momento, lhe concedo, reforço o pedido para que não coloque Serápis nesse processo.
Se para salvar Lélia, tiver que perder Serápis e o filho que ela carrega, prefiro que ela morra.
- Estamos combinados, Marcus.
Tudo farei para que não ocorra nenhum prejuízo para Serápis e para a sua felicidade.
Empenho minha palavra e minha vida nessa garantia.
Assim se despediram os dois amigos que, agora, haviam dado os passos no sentido de se tentar restabelecer a verdade dos fatos.
No entanto, Marcus não iria ficar sem adoptar as medidas com as quais garantisse a condenação de Lélia.
Depois de terem se entendido, Marcus pensara um bom tempo e, como Lélia lhe parecia a mais conveniente das condenáveis, sobretudo porque a outra suspeita, em vista de tudo o que Licínio havia dito, seria a própria amante, havia chegado à conclusão de que deixaria Licínio tentar salvar Lélia, mas, por sua vez, visitaria juízes e pessoas de sua influência a fim de mantê-la presa e condená-la pelo delito, até mesmo para que não parecesse tolo, depois de ter realizado as investigações sumárias, apuradoras da culpa da serva.
Assim, no dia seguinte, enquanto Licínio preparava a transferência de Serápis, Marcus, sem que o amigo soubesse, iniciara uma série de visitas com a finalidade de manter Lélia reclusa e pleitear, com base nos favores que muitos lhe deviam, sua condenação, como se se tratasse da vingança do marido ultrajado pela arrogância de uma serva que lhe furtara não somente a esposa, mas também a mãe de sua filha.
Seu desejo de manter as coisas como estavam iria ser exercido a fim de tornar inócua a iniciativa de Licínio em proteger uma inocente.
Com isso, garantiria a própria felicidade e estabeleceria as bases para a futura união.
Assim, leitor e leitora queridos, as pessoas imaginam que são capazes de agir segundo suas vontades, sem considerar a lei de Amor e de Justiça que regula as relações no Universo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 08, 2014 10:33 pm

A falta de Deus nos corações empurra as criaturas para os abismos da dor e do sofrimento.
Quantas vezes queremos realizar as coisas segundo nossos interesses escusos, relegando a plano secundário os conceitos elevados e os imperativos da fraternidade humana?
Quantos de nós, estribados na ambição, não nos permitimos tomar dos outros o que não nos pertence, com a justificativa do lucro?
Quantos se permitem levar o sofrimento aos demais, com a desculpa de que tal se dá em face das lutas da vida?
Quantos se acumpliciam com o mal porque dele vão obter algum proveito financeiro, com a justificativa de que todos fazem isso e que se ele não fizer algum outro o fará?
Quantos se justificam em suas aventuras com o argumento da emoção da adrenalina?
Entender as leis espirituais que dirigem todas as criaturas, nos coloca na rota segura da construção de elevados objectivos, atenuando as arbitrariedades e diminuindo os erros que cometemos.
Nunca estamos de posse de todos os termos do processo a fim de lançarmos uma sentença isenta de erros e que represente o mais elevado conceito de Justiça.
Para nossa leviandade, o sofrimento tem sido a cela onde temos que quitar os arroubos de nosso voluntarismo capenga.
Se aprendermos, no entanto, a respeitar a vontade de Deus que pede que tudo façamos para que nossos semelhantes não sofram, que nos esforcemos para que as lágrimas sejam secadas, que ajudemos no limite de nossas forças físicas e morais, entenderemos que a vida é mais bela do que o lucro que se consegue, do que o sorriso de nossos lábios sobre o coro dos que soluçam, do que os prazeres fugidios da vida conquistados ao preço da miséria de muitos.
A vida é a esteira luminosa que podemos deixar atrás de nós, pelos passos de bondade que efectivemos.
Nenhuma vantagem do mundo nos concederá a alegria da consciência tranquila, se essa não for obtida pelo bem que se realize.
Seremos atingidos pelos nossos actos, inflexivelmente.
A rectidão no Bem pode nos causar algum sofrimento.
No entanto, é uma dor com fundamento na bondade, uma dor transitória e nobre.
Buscar a ventura pessoal por nos associarmos com o mal, poderá nos dar alguma satisfação.
Mas é um bem-estar com fundamento no egoísmo, na maldade, que haverá de se tornar uma dor perene e mesquinha, a persistir até o dia em que tenhamos coragem de devolver o que furtamos, de refazer o que destruímos, de reparar o mal que fizemos com o bem que venhamos a colocar em seu lugar.
Não sorria hoje à custa da lágrima de alguém.
Aprenda a chorar, agora, para que alguém possa sorrir.
Isso é mais duradouro em sua existência porque demonstra que você assimilou a bondade que Deus colocou em seu interior, autorizando-o a ganhar asas e elevar-se acima de um simples ser humano, colocando-se a caminho da angelitude.
Nenhum de nós conseguirá fugir do progresso moral que nos espera.
Pense nisso. Viva isso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 08, 2014 10:34 pm

40 - LIÇÃO PARA LICÍNIO

Conquanto no dia seguinte, logo pela manhã, Marcus se empenhara em visitar os magistrados e as autoridades a fim de demonstrar seu interesse pessoal na condenação de Lélia, sem mencionar a acção de seu administrador que buscaria pleitear-lhe a liberdade, já que Marcus tinha receio de que toda esta história acabasse resvalando na direcção de Serápis e de sua felicidade pessoal, Licínio, depois de passar todo o dia nas preparações da nova moradia, ao cair da noite dirigiu-se à pequena casa de Décio, local para os encontros dos novos adeptos do cristianismo nascente, em bairro mais afastado do centro principal da cidade sumptuosa.
Naquela noite, apesar da pobreza do interior, as criaturas que lá se reuniam se encontravam envolvidas por um ambiente sobremaneira magnético, já que uma grande variedade de espíritos luminosos se achava acompanhando aquele modesto agrupamento de crentes do Amor e da Verdade.
Muitos núcleos se erguiam nas casas modestas dos trabalhadores mais rudes e simples, que emprestavam seu suor e sangue para que o mármore pudesse estar na fachada dos prédios importantes.
A humanidade, através da maioria de seus governantes, desde sempre, preferiu desprezar a importância dos homens para enaltecer a importância das pedras e dos prédios.
Injustiçados, famintos, feridos ou mortos, isso não fazia muita diferença aos que desejavam deixar seu nome imortalizado pela construção de pirâmides, mausoléus, templos, fóruns, etc.
Assim, a indiferença dos que governavam era pródiga em produzir infelizes, descontentes, e entre eles, a mensagem do Amor e da Verdade se expandia, pois ela edificava pessoas, não prédios.
Até os dias actuais, o conteúdo da Boa Nova edifica templos no íntimo das almas, desprezando o valor das convenções exteriores e de seus mármores recamados de ouro e púrpura.
Décio era modesto trabalhador braçal, a serviço da reconstrução de um dos templos mais importantes da nova administração de Adriano, prédio este que havia sido edificado em homenagem a Marco Agripa, o braço direito de Augusto, que fora o grande César da instauração da nova ordem entre os romanos, há mais de um século.
O templo pequenino e algo avariado pela falta de zelo dos administradores posteriores, fora redesenhado na administração de Adriano e, sob o controle e fiscalização de Cláudio Rufus, estava sendo lentamente reerguido, ainda que mantida, na nova construção, a homenagem a Marco Agripa.
No fim de cada dia, o anónimo pedreiro que emprestava a sua força física nas tarefas gerais para as quais era designado, regressava ao lar e, continuando no anonimato de sua forma singela de viver, reunia-se com pessoas que desejavam conhecer a mensagem da Boa Nova, enfermos da alma que passavam o dia sendo explorados, feridos e considerados inferiores às pedras que carregavam.
Deste modo, um pequeno cortejo de criaturas irmanadas pelo sofrimento e desencanto com aquele estilo de viver, se mantinha fiel ao culto das Verdades que lhes falavam ao espírito, dando-lhes esperanças, ensinando a buscarem o caminho recto, a defender os princípios de Justiça e a fazerem todo o Bem que estivesse ao seu alcance, como sendo a única forma de viver de acordo com o ensinamento que prometia a felicidade ao espírito que assim se conduzisse.
No entanto, não oferecia a recompensa da felicidade na forma como sempre as pessoas esperavam.
Não era uma recompensa imediata, uma que se pudesse medir em bens, vantagens materiais, interesses mesquinhos, sucesso pessoal, não!
A recompensa que a Boa Nova prometia, sempre levava as pessoas a desmaterializar suas intenções, eis que o projecto da Bondade apontava para a felicidade do espírito, o reino de Deus, o tesouro que se juntava nos céus, verdadeiros desafios aos interesses e à sinceridade de propósitos dos que, naqueles tempos tanto quanto nos dias actuais, pensam em fazer do caminho divino a escada dourada para ganhos materiais.
Lá estavam os conselhos que ordenavam ao sincero devoto que, mais do que esperar pela porta estreita do sacrifício, aconselhava que fizéssemos esforços para entrar por ela, porque muitos a procurariam para entrar e não o poderiam.
Tais exortações directas naquele meio de criaturas que padeciam sob a desumana maneira de interpretar a vida por parte dos governantes e das castas mais abastadas dos romanos era o único refrigério que lhes balsamizava a esperança, motivo pelo qual, nas áreas mais pobres daquela cidade, inspirados pelos espectáculos sangrentos que se repetiam a cada período, mais e mais criaturas se candidatavam a se tornar os heróis da fé, ante os olhos atónitos dos gozadores do mundo, sempre fracos e tíbios para enfrentar tamanhos sacrifícios para passarem pela porta estreita.
Aos gozadores irónicos e falastrões, qualquer degrau do caminho é montanha intransponível, já que não exercitaram a vontade para as obras da coragem, do empenho da vontade.
Os que aproveitam a vida não se fortificam ante os desafios do quotidiano e, assim, quando chegam para eles o momento da dor, do testemunho pessoal para o amadurecimento, parece-lhes que a vida perdeu o sentido, que as lutas são mais acerbas do que suas forças podem suportar.
Daí o conselho da Boa Nova ser perfeitamente entendível pelos sofridos daquela Roma, ao passo que aos mais acomodados em seus prazeres luxuosos e luxuriosos, uma tal filosofia não fazia sentido, devendo, antes, se combatida porque, no fundo, representava o golpe fatal contra o mundo que eles tanto preservavam, o estilo de vida que tanto lhes agradava.
Licínio estava na casa de Décio naquela noite memorável quando, depois dos cumprimentos fraternos, todos se puseram a escutar-lhe as palavras amigas e despidas de eufemismos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 08, 2014 10:34 pm

Falava-lhe o coração como que tocado por luzes radiosas, envolvendo-o por completo.
Na penumbra do ambiente, doce claridade parecia envolvê-lo e, na modesta vivenda, a plêiade de entidades angelicais se congregava para fortificar os que ali se achavam.
- Irmãos queridos - falou Décio, ao iniciar a reunião - que o Divino Mestre nos ampare nos momentos difíceis que nos esperam.
De acordo com as determinações superiores, nos impõe enfrentar todos os testemunhos que visem a prova de nossa fé e, sem nenhuma dúvida, nos encontramos no local mesmo onde a antiga crença, fria e indiferente, partidarista e miserável, despreza as criaturas e enaltece as pedras.
Jesus fora um ser de carne e osso, vivo e dedicado aos vivos, curando os sofrentes, levantando os aflitos, amando os que choravam e, os que o buscassem com sinceridade, independentemente de sua condição, tinham acesso às verdades de seu coração luminoso.
Temos a honra de poder servi-lo no centro do mundo, no qual a flor perfumosa pretende plantar suas raízes, ainda que o solo seja de pedras pontudas e robustas, de lixo e de detritos morais.
É preciso quebrá-las com a força suave da gota d'água que, beijando a pedra, sem violência, suporta a sua superfície rígida e a escava, lentamente, até que a rompa.
Trabalhando com pedras todos os dias, observo que seu peso e sua natureza bruta as tornam incapazes de servir para muitas coisas.
Se é boa para o alicerce dos prédios, para as paredes robustas, para colunas que sustentam o tecto, ela é inadequada para cobrir, para se tornar o ponto mais alto de nossos edifícios.
Para estar mais próximo do céu, na função de proteger toda a construção, aprendemos a usar os materiais pobres e leves que vedam e garantem o isolamento, sem correr o risco de fazer ruir a obra.
Dessa maneira, seja de barro pobre, de madeira, de folhas secas, o certo é que tais materiais são preferidos, para o coroamento da obra, ao mármore que, no teto, jamais poderia estar.
Assim é o reino de Deus que se implanta na Terra.
Há os que compõe as cortes humanas com suas práticas faustosas e suas preocupações estéticas, os que escolhem as pedras da tirania, que elegem o mármore da imponência e da arrogância, os que edificam com ouro e materiais preciosos, os que erguem colunas brilhantes, aqueles que são ricos, pensadores luminosos reproduzindo os preconceitos que tanto lhes satisfazem ao íntimo indiferente.
Há os que são pedras do sentimento, os que servem de divisórias na função de organizar nossa sociedade, como pedras de paredes, há os que, ricos ou importantes, se ocupam em manter as suas concepções dominando o cenário do mundo horizontal onde se apoiam.
Todavia, nenhum deles conseguirá ser o escolhido para, no sentido vertical da vida, coroar a obra.
O coroamento da obra de Deus que Jesus veio inaugurar no Mundo, pertence à palha rejeitada, ao barro modesto, à madeira sem valor, materiais que, por suas características, poderão ser aqueles que se coloquem mais próximos do céu verdadeiro e emprestem seu valor à cobertura do edifício.
Daí, meus irmãos, como modestos seres na faustosa comunidade, não nos iludamos à espera de sucessos e ganhos que pouco nos ajudariam a entrar pela porta estreita.
Imaginemos alguém carregado de objectos, todos eles preciosos a exigirem a guarda sob pena de se perderem do proprietário, furtados pela ambição dos que deles desejam se apossar, precisando passar por uma estreita abertura que só lhe permite o ingresso do próprio corpo.
Tentará passar carregado e não conseguirá.
Logo de imediato verá que, para entrar, precisa abdicar das coisas que leva.
No entanto, ama tanto as coisas que carrega, que não deseja delas desfazer-se.
O dilema que cria para si mesmo, em virtude de seu apego é muito grande.
Não quer perder o que juntou, por receio de que outros se beneficiem com seus haveres e valores materiais e, ao mesmo tempo, não quer ficar fora da passagem, para cujo ingresso só pode levar o próprio ser, sem carregamentos estranhos à sua individualidade.
Estas são criaturas que são pedras marmóreas, requintadas e nobres, mas que não podem ser colocadas no tecto do edifício porque desabariam lá do alto e se espatifariam no solo, além de arruinar toda a obra.
Assim, meus filhos, não nos iludamos pretendendo o reino das coisas materiais, pois o que é mais importante para servirmos de coroamento da obra de Deus, nós já possuímos.
Somos nada, somos pobres, somos criaturas desvalidas que o Senhor usará ao seu tempo para cobrir o seu edifício, já que perante o Sol escaldante, a noite fria, a chuva persistente, somos os únicos que temos a capacidade de proteger todos os ricos materiais que não suportariam os desgastes que nós enfrentamos.
Os mármores se corroeriam, perdendo o brilho, as obras sumptuosas nos tecidos de luxo perderiam o viço e desbotariam, os adornos preciosos não aguentariam o calor abrasador do Sol e se romperiam, trincando.
Todos são luxuosos, mas são muito delicados ante os desafios.
Somente os humildes e simples, enrijecidos ao sabor dos desafios, possuem as virtudes que os tornam capazes de estar na cumeeira da obra, servindo de cobertura preciosa na humildade de seus exemplos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 08, 2014 10:35 pm

O Senhor nos convoca para esse trabalho.
A cobertura protegerá e ajudará os tolos materiais que se pensam importantes e essenciais, sem conseguirem perceber a própria fragilidade.
Não temamos nenhum desafio, procurando fazer sempre o melhor que nos couber, na singeleza da gota d'água que rola pela pedra dura até que a rocha se rompa.
A inspiração de Décio impressionava os ouvintes daquela convenção despretensiosa.
Ninguém ousara interromper o fluxo do raciocínio belo e envolvente, já que era o mundo espiritual que falava pelas suas palavras.
Ali, Zacarias envolvia o trabalhador amoroso e, usando-lhe as faculdades mediúnicas latentes, transmitia todo o poderoso influxo de optimismo e força aos que, massacrados todos os dias, à noite eram reconduzidos às paragens da fé pura e verdadeira, realçando-lhes a importância naquela sociedade que os considerava tão inúteis.
Sobre eles, isso sim, Jesus edificaria o seu reino de Amor e Concórdia, reservando-lhes a honrosa tribuna do sacrifício, no alto da edificação.
Licínio se achava emocionado ante aquelas referências tão sublimes e, seu coração, inclinado a buscar o bem de Lélia, mais decidido se viu, depois que as palavras do espírito Zacarias o estimulavam a seguir no caminho da Verdade e do Bem, em favor de todos os outros.
Sim, pensava ele, não importa o que me custe, eu me esforçarei para entrar pela porta estreita, lutando pela libertação daquela que não teve culpa no crime e que está sendo usada para livrar os verdadeiros responsáveis pelo delito.
Seus pensamentos foram cortados pelas últimas reflexões espirituais de Zacarias, através de Décio.
- Nossos passos estarão no caminho do Senhor que nos amparará sempre nas horas de dificuldade que se aproximam. Perseguições, injustiças, mentiras e morte são incapazes de mudar a natureza daquele que já está preparado para ser o material precioso nas mãos do sublime carpinteiro.
Estejamos todos com a fé no coração e a confiança em Deus pois, como sabemos, a ignorância pensa que matando os bondosos é capaz de matar a bondade.
Estaremos sempre ao lado de todos, fortalecendo seus testemunhos e seus exemplos que, na dimensão da Boa Nova, representarão a cobertura do edifício sobre esta grande comunidade sofrida e faminta, toda vestida de púrpura e ouro, diante de uma grande mesa de banquete absolutamente vazia.
Assim são nossos irmãos neste ambiente.
Ricos comensais de um banquete que não tem nenhum prato disponível para saciar-lhes a fome.
A fome do Amor, da Esperança, da Paz nos corações eles saciarão com os exemplos de todos vocês e, quando entenderem isso, deixarão os bens preciosos que carregam para poderem passar pela porta estreita que vocês já conhecem e já cruzaram.
Orem sempre e estejam sempre ligados ao mundo invisível pela confiança e pela sinceridade.
Aqueles que desejarem trocar as coisas do Céu pelas coisas do Mundo poderão fazê-lo, mas estejam certos, se arrependerão amargamente.
Que a Paz do Divino Mestre os abençoe!
Era o fim da exortação evangélica que, todas as noites de reunião, acontecia para o preenchimento do coração.
Os que não podiam permanecer logo depois dessa parte se despediam e partiam, ocultos pelo manto nocturno, já que residiam mais longe e precisavam recolher-se.
Alguns outros permaneciam por mais tempo, a fim de conversarem entre si e ouvir as opiniões inspiradas de Décio já que, isso era evidente, naqueles momentos ele era tocado por uma inspiração sublime que tornava patente não ser ele quem falava e sim a sabedoria de entidades enviadas por Jesus, como era o caso de Zacarias, Simão, Lívia, Abigail, Jeziel, Josué, Simeão, Paulo, Ananias, João de Cléofas, entre outros directamente ligados à edificação cristã no mundo.
Licínio acercou-se de Décio assim que o permitiram as condições e perguntou, discreto:
- Querido irmão, as exortações desta noite se referem a sofrimentos colectivos ou a sofrimentos individuais como o testemunho que devamos enfrentar?
- Bem, meu filho, a obra divina não despreza a ninguém.
Muitos esperam o martírio colectivo no circo imaginando que ali encontrarão a única maneira de servirem à obra e, no entanto, desprezam cada oportunidade de sacrifício diário, de demonstração da própria fé sincera no devotamento verdadeiro perante aqueles que os cercam.
A porta estreita não se localiza nos umbrais do circo repleto de espectadores.
Ela se estabelece ao nosso redor primeiro, testando nossa pequena capacidade de renúncia diária, propiciando-nos o treino indispensável de nossas virtudes para que, um dia, se estivermos preparados para tanto, sejamos conduzidos perante as feras ou os postes do martírio sob o apupo e a humilhação pública como o coroamento de nossa escolha sincera e repetida.
Nossos testemunhos são de todos os dias e nossos sofrimentos pessoais são as moedas humildes que, juntadas uma à outra, se convertem no tesouro cobiçado que pode inspirar grandes coisas.
Pense bem. Se tivermos apenas uma moeda, sobre ela não colocaremos o peso de ideais grandiosos.
Todavia, se guardarmos uma junto à outra, todas pobrezinhas e sem valor, vão ganhando importância colectiva, juntando-se cada modesta representação de valor até que, um dia, reunidas, formarão o avantajado manancial de recursos que nos poderão financiar a construção do ideal.
Elas, individualmente, continuam "Sendo pequenas e pobres na sua representação de riqueza.
Ave sem Ninho
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