LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 6 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:17 pm

31 — Explicando
No plano espiritual, Khufu buscava auxiliar os protegidos de seu coração, ao mesmo tempo em que procurava envolver em vibrações amorosas e subtis as almas dos ardilosos senhores do poder que se julgavam donos dos demais sem obrigações de prestar contas pelos actos praticados.
Desse modo, uma equipe de Espíritos se destacara para auxiliar Hatsek e Kaemy nos tormentosos momentos em que se viam testados, presos nas masmorras reais.
Outra equipe de amigos espirituais envolvia Kalmark que, entre entalhes e pinturas nas câmaras mortuárias de Akhenaton se sentia perdido entre o desespero e a realidade, por causa daquele homem perigoso que, ao mesmo tempo, se erguia como o seu protector.
No coração do jovem rapaz se fazia ouvir o estalar da chibata do sofrimento e da confusão mental, exigindo dele algo a ser feito para impedir que seus sonhos fossem frustrados pela sequência das coisas.
Outro grupo de Espíritos amigos se encontrava em Tebas preparando os familiares de Nekhefre para as dificuldades que iriam ter de enfrentar por sua vez. Até então, seguiam esperançosos pela volta do dono da casa e pela continuidade normal de suas vidas, sem terem ideia de que se estava organizando a sua mudança para Amarna e o casamento simultâneo das duas jovens com o mesmo despótico servidor do rei.
Entre estes diversos núcleos de trabalho, se desdobrava o Espírito de Khufu, procurando visitá-los constantemente, supervisionando o estado interior e determinando esta ou aquela medida vibratória a favor dos que se estavam encaminhando para os difíceis testemunhos para os quais se haviam preparado.
Ele, pessoalmente, com um outro grupo de auxiliares, se mantinha a postos, entre Nekhefre, Mudinar e Akhenaton, buscando envolvê-los nas mais suaves vibrações de paz e serenidade, graças às quais, contava ele diminuir o grau de maldade engendrada pelos pensamentos e actos que, mais tarde muito prejudicariam todo o processo evolutivo pessoal.
Por ser a tarefa mais árdua e exigir maior conhecimento e amplo domínio das leis do Universo, o Espírito de Khufu, em pessoa, se incumbira da sua realização, não sem antes solicitar a ajuda superior para que se dedicasse a tal mister, doando-se, mas sabendo que sem o auxílio de mais alto tudo seria impossível de se obter.
Além do mais, mantinha-se em ligação constante com Hatsek, uma vez que se tratava de seu mais lúcido tutelado, já que dispunha da percepção mediúnica mais aguçada e dela se utilizava com seriedade e desprendimento, isenção e desinteresse.
Tais qualificativos são indispensáveis para o exercício da faculdade mediúnica sem maculá-la com os pruridos espúrios das fraquezas humanas, eis se tratar de um serviço de intercâmbio entre o mundo e os planos invisíveis.
Todo processo mediúnico pede dos encarnados dedicação e total desprendimento, além de sacrifício de seus interesses humanos, já que tais sentimentos desnaturam os canais subtis de ligação entre os dois planos de vida.
E ao se dedicar com sinceridade ao intercâmbio entre os dois mundos, o sensitivo estará corrigindo em si próprio os defeitos que trouxe consigo, decorrentes de outras existências nas quais falhou clamorosamente e que impuseram a ele essa obrigação de trabalhar sem reclamar, de servir apesar dos próprios problemas e de, sobretudo, não retirar nenhuma vantagem pessoal do trabalho com o mundo espiritual.
Nas faixas de sintonia mediúnica em que se observarem condutas mentais desnaturadas pela preocupação com bens e recursos financeiros, começam a se abrir brechas pelas quais se imiscuem entidades de teor menos elevado do que aquelas originariamente vinculadas ao trabalho de doação absoluta e, de maneira subtil e perigosa passam a controlar o aparelho mediúnico, impondo-lhe a modificação suave, mas perigosa, do roteiro de actividade anteriormente previsto.
E através de inúmeros recursos mentais de convencimento, de formas hipnóticas leves, de sugestões interiores que se fundamentarão nos próprios defeitos dos médiuns, tais entidades, travestidas de trabalhadores da verdade, criam o ambiente necessário para que o médium abdique do bom senso necessário, da autocrítica fundamental, da protecção da humildade, encaminhando-o para aquilo que a Doutrina Espírita conhece como uma das formas da obsessão, na sua modalidade mais perigosa, conhecida como fascinação.
Nesse tipo de interferência externa, as entidades sagazes fazem com que o influenciado, pelas passagens que permitiu se abrissem em suas defesas magnéticas, possibilite uma tal ligação com as suas sugestões que o sensitivo passa a se afastar de tudo aquilo que poderia auxiliá-lo a voltar à razão clara e ao caminho do bem verdadeiro. Todos os argumentos que pretendam alertá-lo passam a ser vistos por ele como perseguição pessoal, como antipatia gratuita e uma demonstração de que aquela pessoa está com inveja, com interesse em prejudicar o andamento de seu trabalho por um motivo mesquinho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:17 pm

Diante de qualquer postura que contrarie o interesse das inteligências invisíveis, estas se empenham ainda mais em transmitir ao médium o sentimento de que tais pessoas são perigosas, estão mal acompanhadas, obsedadas, são invejosas, estão querendo prejudicar o trabalho do bem e, por isso, não só não merecem ouvidos como devem ser afastadas da convivência do médium.
Naturalmente vaidoso a ponto de se sentir satisfeito com a exaltação de sua própria personalidade, o médium dá espaço mental para que todas estas ideias ganhem ambiente e se proliferem dentro dele, como se fossem verdades indiscutíveis, apontando-lhe uma lógica que lhe parece incontestável.
Assim, passa ele a adoptar posturas evasivas, fugindo de tudo aquilo que lhe possa pôr em risco o conúbio com aqueles Espíritos que, manipulando sutilmente as cordas da vaidade, do orgulho e da presunção que ainda existem dentro dos seres humanos, não desejam perder o sócio humano que pretendem levar, cedo ou tarde, à derrocada.
Todos os processos mediúnicos que envolvem a prática ostensiva do intercâmbio com o mundo invisível precisam merecer, do médium em primeiro lugar e, depois, de pessoas que o cerquem e que possuam conhecimento seguro da Doutrina Espírita, uma avaliação constante, um salutar exercício crítico para que se mantenha o equilíbrio e a actuação mediúnica nas seguras bases da mensagem do Evangelho do Cristo, roteiro da verdade no exemplo de desprendimento e de coragem para enfrentar os testemunhos, quaisquer que sejam eles.
Envolvido pelo Espírito de Khufu, Hatsek era dócil instrumento e tudo sabia suportar sem revolta ou queixa. Isso, contudo, não fora assim sempre, já que, em vida anterior misturara as coisas celestes com os interesses mundanos, em prejuízo de sua paz e de seu futuro, futuro esse que agora se tornava presente e no qual deveria, então, aprender na base dos sofrimentos e renúncias acres a não guardar qualquer ligação com o que não fosse elevação e pureza de intenções no exercício da mediunidade.
Era isso o que estava acontecendo com ele e com Kaemy.
Em todas as dores que visitam o ser humano, mesmo naquelas que pareçam injustiças, podemos observar, entretanto, a realização dos ditames da Justiça Soberana, que permite a cada pessoa quitar e refazer os actos errados de ontem, suportando, agora, as lutas contra os defeitos íntimos que carrega. Daí porque todas elas devem ser recebidas com calma e resignação, ainda que nos obriguem a adoptar uma postura de lutarmos buscando superá-las.
Lutemos com as armas do bem, da honestidade, da confiança em Deus e, ao fazê-lo, estaremos aprendendo as lições que nossa alma necessita para vencer-se.
Se nos aconselharmos com a revolta, a irresignação, a blasfémia, a depressão, o desespero, o suicídio, em nada estaremos colaborando para que as dores se transformem em nossas auxiliares na própria melhoria íntima.
Lembremo-nos de como o inocente diamante bruto deve sofrer perante o buril que o corta e retalha injustamente. Afinal, a pedra preciosa estava tranquila, sem prejudicar a ninguém lá no leito de cascalho de onde foi retirada pela cobiça dos homens.
No entanto, por aceitar a injunção da dureza que o modela, transforma-se na gema de rara beleza, em nada se parecendo com a sua antiga forma, tosca e pobre, sem atractivos.
Todos os personagens desta história se acham passando portais circunstâncias e, com certeza, caro leitor amigo, será capaz de encontrar em você também as situações de dificuldade que poderão estar incomodando-o hoje mesmo e lhe causando o mal-estar do medo, da incerteza, da discórdia, da irritação, do ciúme, do desejo de revidar, da indignação, do desejo de morrer antes do tempo.
Pense bem, querido irmão, que esta oportunidade é das mais elevadas em sua vida a fim de lhe permitir dar outro rumo ao seu espírito, suportando as dores e todas as contrariedades para delas fazer o buril que lhe entalhará a alma e o transformará no Diamante de Deus, espalhando os brilhos multicores e demonstrando aos outros o quanto a sua natureza interior é valiosa.
Paciência, Perdão, Piedade, Pureza, Perseverança, Paz são os ingredientes que transformarão a Pedra dos nossos corações em Pão.
Lembre-se disto: cada um de nós está sendo testado para revelar onde está o ponto fraco de nossos espíritos. Se você está sofrendo no afecto, aí está a fragilidade que cumpre fortificar. Se está sofrendo no orgulho, eis aí o inimigo oculto que cumpre combater. Se está enfrentando dificuldades materiais, aí se encontra para sua alma o desafio de viver com menos exigências e de restringir o exercício das ambições e caprichos.
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Se está padecendo dores físicas, compete modificar as rotinas diárias, suportar as disciplinas impostas pelos medicamentos, tratamentos e exames, valorizar o corpo sadio que um dia recebemos e não cuidamos adequadamente.
Nada está ocorrendo connosco que não estejamos precisando enfrentar e, o que é mais belo na Obra do Universo, não estamos sozinhos nessa luta.
Cada qual possui os amigos invisíveis que avalizaram a estadia neste corpo carnal que hoje nos foi emprestado para que, nos momentos mais difíceis dos testemunhos, saibamos sentir o apoio dos que nos emprestam as suas próprias energias a fim de que não fracassemos.
Por isso que a oração nos momentos de dificuldade é o recurso mais aconselhável para que encontremos essa sintonia com os que nos desejam amparar os passos, intuindo nossas escolhas, recurso este tão desprezado nas horas mais cruciais da vida humana.
A ligação com o mundo invisível através da oração representa, sempre, a lâmpada em busca da usina que lhe fornecerá o cabedal de energias para manter-se acesa.
E nas contingências que envolvem o ser humano nos diversos desafios de todas as horas, a escuridão interna parece ser a dominante por esquecer-se o sofredor de que ele é lâmpada e Deus é a Usina.
Acenda-se, ligando-se a Ele e, com certeza, iluminado, você iluminará o caminho e encontrará a trilha que lhe encaminhará os passos para a solução daquela situação difícil.
Caminhar na escuridão, ao contrário, levá-lo-á sempre à queda e ao aumento das próprias dores pelos ferimentos que a caminhada cega poderá propiciar.
Os amigos invisíveis que você possui estão lhe esperando o gesto simples da oração desvinculada de quaisquer gestos ou condutas formais. Recolha-se, faça silêncio interno, cerre os olhos e, pelo pensamento humilde e sincero, procure a Usina e converse com ela.
Nesse período, todos esses companheiros espirituais que o amam, estarão montando a Linha de Transmissão que fará chegar até você a luz de que necessita, no tempo adequado ao seu amadurecimento.
E não se espante se, ao estabelecer esse contacto com os que o amam, uma suave sensação de alívio, um doce arrepio percorrer seu corpo físico, algum calafrio ou uma onda de calor estabelecer o seu curso pelo seu organismo.
Estas e muitas outras podem ser as formas de percebermos que nossa ligação, em forma de Oração, chegou até a Usina.
Tenhamos então a coragem de seguir em frente, sem esperar soluções miraculosas que não dependam de nossa própria melhora, uma vez que devemos nos lembrar de que a Usina nos escuta, aceita nossos pedidos, manda Suas forças, mas quem tem que produzir a luz é a própria lâmpada. É a Lâmpada que precisa se acender. É você quem precisa iluminar-se primeiro.
Aproveite a oração e ligue-se ao Criador que, certamente, ficará muito feliz de vê-lo iluminado por si próprio com a energia que, certamente, Ele já lhe envia através dos amigos invisíveis que o rodeiam e o auxiliam.
Por isso, Jesus já ordenava:
“Brilhe Vossa Luz”
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32 — O bem de hoje preparando os caminhos do amanhã
Já há muitos dias na prisão, solitário, Hatsek mantinha-se na disciplina mental que desenvolvera ao longo de todos os anos de aprendizado e treinamento, que o colocavam em um estado de paz interior, mesmo diante dos maiores desafios e das piores adversidades.
Mantinha-se dócil e sereno, o que era de espantar aos próprios guardas que faziam a vigilância no local.
Sua condição de sacerdote da antiga crença de Amon-Rá não era desconhecida deles já que esse era o motivo de sua prisão, o que, em geral, foi muito benéfico para o modo como foi acolhido.
Isso porque a maioria dos guardas também era oriunda das antigas crenças e trazia, no seu íntimo, o sentimento de nostalgia, acerca das suas práticas ancestrais, ainda que as mantivessem em segredo, somente para seus próprios pensamentos.
Ali, diante deles, então, estava um homem que havia homenageado os deuses que os decretos artificiais de um quase louco ou visionário — como era considerado Akhenaton — tentava apagar da crença popular.
E, diante de sua conduta pessoal equilibrada e sábia, Hatsek inspirava nos soldados uma admiração muda, mas verdadeira.
Havia alguns, entretanto, que eram homens endurecidos que se mantinham à distância e que não possuíam o menor grau de compaixão. Por isso, haviam sido deslocados para que zelassem de locais que exigissem esse grau de firmeza ou de frieza, mantendo a ordem a qualquer custo.
Somente estes eram os que tratavam os prisioneiros como Hatsek com a rudeza que lhes ornava o carácter, pois essa era a qualidade interior que possuíam para entregar aos demais. Não se passaram muitos dias para que o sacerdote, com seus modos educados e compreensivos, começasse a ser visto pelos guardas como uma pessoa digna de confiança e que poderia auxiliá-los naquele antro de misérias, que passara a receber, como prisioneiros, os que se insurgissem contra a nova ordem religiosa.
Todos os dias, sua educação e o respeito para com aqueles que lhe mantinham o cárcere, ia abrindo caminhos nos sentimentos rudes daqueles homens.
Por outro lado, o Espírito de Khufu, que se fizera mais próximo de seu tutelado, constantemente lhe inspirava, através de doces palavras, nos momentos de reflexão e de preces.
— Veja, meu filho — dizia Khufu ao prisioneiro — como estes homens são sofredores. Estão aqui para fiscalizar os presos e, por isso, acabam presos também. São pessoas que tinham sonhos, desejavam estar em outros lugares, mas por força de suas inclinações passaram a suportar igualmente a prisão, com a desculpa de terem de zelar por outros presos.
Seus corações estão frustrados pelo pouco que recebem, pela frieza da disciplina, pela necessidade de se misturarem com pessoas que julgam ser inferiores, pelo distanciamento da família, pelas obrigações rotineiras e massacrantes. Por isso, desenvolvem dentro de si mesmos, os piores sentimentos, já que, se você observar, a própria natureza se comporta desse modo para que aprendamos. Quando Rá, o venerado deus solar, exerce seu poder sobre o solo sem que a humidade venha balsamizar-lhe o calor, a terra se endurece, racha e fica tão dura como qualquer rocha que conhecemos.
Assim são as pessoas, constantemente crestadas pelas adversidades e pelas frustrações.
Todas elas possuem a suavidade do Criador a envolvê-las por completo. Todavia, quando se afastam, ficam expostas à crueldade do calor produzido por suas próprias escolhas, o que impede que sintam outra coisa além do massacre que, num primeiro momento, as vai endurecendo até transformá-las naquilo que não são: pessoas rudes e más.
Todos os homens sofrem esse tipo de transformação. E é por isso que você está aqui, neste ambiente estranho e inóspito. Além de servir-lhe de aprendizado para as suas experiências pessoais e para o resgate de débitos antigos, você está aqui para ser, também, chuva suave e benfazeja que possa atenuar o calor insano, a dureza desses solos em forma de gente que, de há muito, não percebem o que seja o alívio e o alento de um gesto de carinho, de compreensão e de harmonia.
Você tem que esperar o tempo libertá-lo daqui. No entanto, enquanto está aqui, você possui todo este terreno fértil à sementeira do bem e à construção da esperança. Não os ignore, nem os trate como adversários. Na cegueira que os envolve, você poderá ser a Luz da Soberana Verdade, trazendo a água que vai humedecer-lhes a alma e atenuar-lhes o calor da frustração e do mal.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:17 pm

Ouvindo-lhe as palavras silenciosas que lhe caíam na acústica do pensamento, Hatsek balançava a cabeça como que a demonstrar que estava entendendo o conteúdo do ensinamento, ao mesmo tempo em que agradecia pelo carinho de que era objecto, por parte daquele amigo que agora, mais do que nunca, o estava encaminhando para uma conduta digna e nobre, fazendo com que ele mesmo aproveitasse aquilo que lhe parecia uma desdita, para transformá-la em trabalho santificante.
Outrora ficava no templo esperando pelos que iriam buscar ajuda, consolo, compreensão e conselhos.
Agora, pela Soberana Bondade, fora transferido para o local mesmo onde se encontravam armazenados todos os que necessitavam de sua palavra, mas que, pelas injunções de suas vidas, raramente disporiam de tempo para buscar consolo nos templos, sobretudo porque, agora, eles estavam lacrados por ordem do próprio rei.
Não era grande e sábio mesmo aquele Deus no qual Hatsek acreditava? — pensava ele consigo mesmo. Antes, o sacerdote ficava no templo à espera de cada grãozinho de trigo que viesse lhe pedir conselhos e ser convencido de que era importante, que poderia se tornar planta viçosa, produzindo centenas de novas sementes.
Agora, a Soberana Sabedoria lhe enviara a ensinar todas estas coisas directamente ao celeiro onde os grãos de trigo se reuniam para serem orientados de que eram muito mais do que simples casca dura e seca. Todos traziam dentro de si mesmo o gérmen das grandes realizações superiores.
Todos estes pensamentos inspiravam o sacerdote a se dirigir aos seus irmãos de prisão com muito respeito e consideração, coisa que só ele fazia ali dentro, já que os outros presos os tratavam como adversários, inimigos a quem competia odiar e ferir.
O simples fato de tratá-los diferentemente, sem prevenção ou artificialismo, produziu uma reacção favorável que espantara a qualquer outro incauto, levando-o a pensar que se tratava de uma protecção conseguida à custa de dinheiro ou que o sacerdote estava exercendo um processo bajulatório para ganhar a atenção dos que zelavam pelo seu cárcere.
Nada disso, entretanto, era verdade.
Os soldados jamais receberam qualquer propina e Hatsek nunca assumiu uma postura servil e indigna para que se comportassem daquela maneira.
Estava, apenas, exercitando a lei de Amor que rege o Universo e todas as pessoas, enquanto que, do seu simples e silencioso império, retirava os frutos doces; da atenuação dos próprios males. Daí, não era raro que, ao final do dia, quando os turnos de guardas eram trocados, os que deixavam o seu horário se viam tentados a escutar o sacerdote que os ajudava em algum problema pessoal que pudesse necessitar de aconselhamento.
Primeiramente vinha um que se achegava e, timidamente, ia tentando se fazer entender pelo homem pacífico e experiente. Percebendo-lhe as intenções, Hatsek se franqueava à conversação, colocando-se interessadamente a ouvir as indagações e demonstrando sabedoria
no conselho que oferecia.
Este, mais confortado pela receptividade que obtivera, passava a falar das virtudes do prisioneiro aos seus amigos de ofício que, ainda que não se deixassem tocar de imediato, passavam a perceber que o soldado atendido pelo sacerdote estava mais calmo, mais alegre, parecendo mais feliz do que eles próprios que o ouviam. Isso lhes espicaçava a curiosidade e, a partir daí, quando aquele primeiro se aproximava da cela para conversar com o preso, algum tempo depois era comum que um segundo, um terceiro, se achegassem também para escutar.
E tão sereno era o aconselhamento de Hatsek e tanta paz de espírito ele transmitia aos demais, que os novos ouvintes começavam a se animar a confidenciar-lhe seus próprios problemas.
Ao mesmo tempo, no mundo espiritual, organizara-se ao redor da cela onde se prendia o sacerdote, uma atmosfera de elevação e de alívio psíquico, para que os que dela se acercassem pudessem receber a transmissão fluídica salutar, com o afastamento de perturbações, a insuflação de novos recursos terapêuticos, a colocação de maiores energias dentro de cada um deles. Uma grande colectividade de Espíritos amigos se desdobrava para fazer daquele local um santuário no qual os que para lá se dirigissem pudessem sentir um alento que não sentiam há muito tempo em nenhum outro lugar.
E isso produzia seus resultados. Fosse pelo magnetismo pessoal do sacerdote, pela sabedoria de seus conselhos, pela exactidão de suas intuições, pela natural simplicidade de suas palavras, sua reputação passou a crescer ainda mais quando os soldados passaram a se sentir melhores depois desses colóquios. Alguns dormiam com facilidade ao chegarem em suas casas, coisa que de há muito não conseguiam fazer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:18 pm

Outros solucionaram problemas de saúde pela acção magnética que atribuíam ao poder do sacerdote. Outros ainda, resolveram conflitos e se aliviaram interiormente, recobrando a ventura de se sentirem livres de amarras nocivas que lhes oprimiam os sentimentos.
Assim, com o passar das semanas, grande parte dos soldados já se havia deixado conquistar pela suavidade daquele homem de Deus, a serviço da bondade, onde fosse que o destino o conduzisse.
Essa postura e os efeitos dela decorrentes levavam os soldados, antigos cultores dos deuses banidos, a se fortalecerem nas antigas crenças, já que a divindade oficial, imposta pelo rei a todos os egípcios, jamais lhes conseguira infundir uma tal sensação de alegria interior. Tinham de engoli-la por dever de ofício, mas a ela não aderiam internamente, sobretudo agora que, com a presença do sacerdote entre eles, os antigos deuses do Egipto demonstravam o seu poder de atenuar-lhes os sofrimentos.
Ao final de um mês de hospedagem carcerária, a sua cela era uma verdadeira sala de visitas.
Já não ficava mais fechada. Os guardas já não se ocupavam com a sua vigilância. Ele tinha autorização, por ser inofensivo, de transitar pelo ambiente, de sair de seu compartimento, de ir conversar com os demais reclusos, a pedido deles mesmos, a maioria dos quais via em Hatsek a esperança da antiga fé que lhes voltava ao coração.
Todo o ambiente da cadeia real se transformara serenamente.
Os soldados passaram a se sentir mais bem tratados pelos próprios prisioneiros, em resposta à melhoria do tratamento que eles mesmos, soldados, passaram a lhes dispensar.
Contudo, um pequeno grupo de homens rebeldes e duros porque expostos, há mais tempo, às intempéries da vida continuava observando aquele movimento com subido desagrado.
Por mais que os companheiros lhes relatassem as próprias experiências com a franqueza dos que participaram pessoalmente delas, os três soldados mais frios não se dispunham a ceder.
Deles era que partiam os últimos focos de ignorância que manchavam o ambiente com as vibrações nocivas e tristes da agressividade.
De um lado, Hatsek seguia conversando, aconselhando, tratando, impondo as mãos sobre os que necessitassem, receitando beberagens e remédios que conhecia, já que era possuidor de conhecimentos médicos enquanto que, de outro lado, os três homens toscos seguiam distribuindo chibatadas, mandando cortar comida de alguns, atirando imprecações e xingamentos aos quatro ventos, vociferando toda a angústia que carregavam dentro do peito.
Amenef, o pior deles, tinha um motivo especial para estar assim, além dos motivos que eram comuns a todos eles.
Seu lar estava uma balbúrdia. Sua esposa o havia abandonado em troca de vida menos dura, já que não suportara conviver mais com a sua aspereza. Entretanto, isso não o feria tanto quanto a situação de seus dois filhinhos, distanciados dele por causa de seu trabalho e entregues, depois do abandono da mãe, aos cuidados de amas que, por mais que fizessem, não conseguiam alterar-lhes o estado de ânimo.
Os pequeninos ressentiam-se da falta da voz doce daquela que lhes embalava o sono todos os dias. A voz do pai, estentórica e ressequida pelos gritos com os soldados e os presos não aprendera a ser suave e sensível. Por isso, achavam-se abatidos e chorosos, recusando-se a se alimentar, entregues aos riscos que a fraqueza física fazia aumentar, naquelas terras tão quentes e tão ásperas do Egipto daqueles tempos. Amenef não suportava ter de deixá-los todos dias para seguir em direcção ao trabalho de cuidar de bandidos e adultos malfeitores.
Isso o irritava ainda mais, além do que a preocupação com o estado cada vez mais abatido dos filhos lhe impedia qualquer equilíbrio.
Era fera enjaulada, pronta a morder qualquer um que se lhe apresentasse.
Sabendo-lhe do estado íntimo, os próprios colegas se afastavam dele, temendo-o, já que lhe conheciam o descontrole e a força física.
O sacerdote, no entanto, sentia-se atraído por aquele que mais sofria no meio de tantos que se erguiam à custa da própria transformação. Necessitava arrumar uma maneira de aproximar-se dos três indivíduos endurecidos, mas todos os seus esforços se frustravam nas barreiras naturais da indiferença deles. E para não se ver tolhido até mesmo daquilo que já conseguira realizar com os outros, Hatsek esperava com paciência o momento chegar.
Foi assim que, em determinada manhã, Amenef chegou ao trabalho sem conseguir esconder o pranto que lhe molhava a face marmórea. Seu filho mais novo estava apresentando um estado febril que beirava a alucinação. Durante as crises, chamava pela mãe e reclamava da saudade de seus modos gentis e amorosos, coisa que Amenef não tinha nem sabia como fazer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:18 pm

Mais do que ódio, o soldado tinha, naquela manhã, verdadeiro desespero de perder o filho amado.
Trancou-se na sala da guarnição e, mergulhando a cabeça entre as mãos, chorava sem saber o que fazer para resolver o problema. O pouco dinheiro que possuía gastara em vão pagando por médicos que, na verdade, eram curandeiros místicos sem qualquer reputação mais elevada.
Naquela manhã, não tinha desejo de altercar-se com ninguém, pois não tinha mais forças sequer para erguer os braços e punir os culpados. Não queria pensar em prisão, presos, faraó, soldados. Queria, apenas, salvar o filho.
Ninguém entre os homens parecia possuir a capacidade de ajuda-lo. Por isso, apesar de não ser homem voltado para as coisas do invisível, quase que entre a vergonha e o demérito, dirigiu-se aos deuses antigos, numa prece muda, rogando que viessem a tratar-lhe o rebento que, sem culpa por ter sido gerado, agora sofria pelos espinhos que os que o geraram lhe espetavam no coração.
Na sua prece pensou em culpar a mulher, mas na honradez e orgulho de homem ligado aos princípios da caserna, lembrou-se de que a mulher não lhe suportara mais o temperamento intempestivo, apesar de franco e fiel.
Apesar das inúmeras reclamações e brigas que haviam tido, ele jamais arredara um passo de seu modo de ser indiferente para com as necessidades dos que lhe cercavam e o serviam. Afinal, era o homem que tudo podia e a esposa, a mulher que tudo devia.
Agora, no entanto, começara a perceber que, por falta daquela que não valorizava nem atendia suas modestas rogativas, se via entregue ao dever de fazer o que nunca estivera preparado a fazer. Naturalmente, tendo de ir-se do lar sem recursos e sem condições sequer de manter a si mesma, a mãe não poderia levar consigo os filhos para o incerto destino que teria de enfrentar sozinha. Além disso, fazê-lo de maneira clandestina, furtando as crianças da morada da família e retirando da tutela paterna a vigilância directa sobre os seus sucessores, significava infringir as leis de seu tempo, podendo ser submetida a penas cruéis, caso fosse encontrada e presa.
E como seria fácil de ser encontrada naquelas paragens carregando a esmo duas crianças assustadas, sem bagagem nem dinheiro para nada? — pensava ele durante a própria oração.
Todavia, tais pensamentos encontravam a sua origem nas intuições que os amigos espirituais produziam dentro de seu ser, como se fossem pensamentos plasmados por ele próprio, a apontar-lhe a responsabilidade pessoal pela ruinosa estrada que, agora, tinha de enfrentar.
Ao mesmo tempo, culpava-se pela enfermidade do filho a quem amava com sincero sentimento.
Não achava justo que, por sua causa, outrem adoecesse, ainda mais o próprio filho. Ele é quem deveria adoecer, já que fora o causador directo de todos os dissabores no lar...
Todavia, sua argumentação não mudava a ordem das coisas.
Ali estava, entregue aos pedidos de apoio e ajuda como criança desesperada, reconhecendo-se culpado por tudo aquilo.
— Ajudem-me, ó deuses amigos, na desdita de um pai sem esperanças e sem recursos — pedia desesperada e emocionadamente o duro soldado Amenef.
E enquanto suas orações eram recolhidas pelos amigos invisíveis que observavam uma fresta luminosa dentro de sua alma, orquestrava-se no mundo dos espíritos uma melodiosa resposta que lhe seria entregue, como elixir da esperança, como copo d’água ao sedento, como lenço ao que chora. Afinal, Deus não era surdo aos sofrimentos de seus filhos, do mesmo modo que aquele pai não o era à febre de seu pequenino. Envolvido pela atmosfera de fé, apesar de seu passado de desditas, irreflexões, erros, quedas, Amenef foi abraçado pelo espírito de Khufu, num amplexo de amor que ele, Amenef jamais houvera recebido ou sentido. Nesse abraço que lhe causara arrepios por todo o corpo, fazendo-o imaginar que contraíra a mesma febre de seu filho, Khufu lhe penetrava as fibras mais íntimas do ser, dos sentimentos endurecidos, dos pensamentos indiferentes, aproveitando-se do instante de oração para responder-lhe com esperança à súplica sincera.
Ah! Leitor amigo, se soubéssemos quão valioso é um momento de elevação através da oração sincera e simples... quanto recebemos de auxílio nessa hora, passaríamos todas as horas do dia em preces simples e sinceras, em pensamentos positivos a favor de todas as criaturas da Terra...
Sentindo-se penetrado por uma atmosfera de paz e confiança, Amenef se viu transportado, suave e rapidamente, para uma região extrafísica, na qual poderia melhor escutar as informações do mundo invisível, ainda que lhe parecesse estar acordado e vigilante.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 6 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:18 pm

Um estado de hipnotismo suave lhe infundia uma sensação de conforto e lhe permitia afastar-se alguns passos do corpo físico, induzido a isso pela vigorosa acção magnética do Espírito amigo que viera em resposta às suas preces.
Fora do corpo, em um estado de sonolência rápida, Amenef vislumbrou a figura de Khufu que, para que ele soubesse tratar-se de uma resposta às suas orações, plasmou-se diante do soldado com todo o aparato que lhe pudesse marcar a retina quando regressasse ao corpo plenamente. Vestira-se o Espírito, novamente, com as insígnias reais que um dia ostentara, usando todo o vestuário adequado para impressionar os que o vissem, além de manter-se envolvido pelo halo luminoso que lhe era peculiar, mas que, usualmente, apagava à força da própria vontade no desejo de ocultar-se para não ferir a menor luminosidade dos demais Espíritos com quem convivia.
Vendo-o, assim, rutilante e real, o Espírito de Amenef, temporariamente afastado do corpo, prostrou-se reverente e, em prantos, manifestava a gratidão aos deuses pela resposta imediata:
— Ó, grande soberano, que me escutastes a súplica do desespero, ajudai-me por quem sois...
Afagando-lhe a cabeça que, agora, se erguera à altura de seu próprio busto, Khufu o ergueu com as próprias mãos, colocando-o de pé para que seus olhares se pudessem encontrar e tornar a experiência ainda mais marcante para Amenef.
— Filho amado, não sou mais do que serviçal da Soberana Verdade que, de há muito, está pacientemente esperando-te igualmente.
Reconheço o teu estado de dor íntima e a tua sincera disposição em não culpar ninguém a não ser a ti mesmo por tudo o que ocorreu até agora. Teus filhos estão correndo sério perigo e necessitam de imediato atendimento médico...
— Sim, eu sei, mas já procurei médicos que me sangraram as economias e não resolveram o problema que, a cada minuto, se agrava... Agora, não tenho dinheiro com que pagar. Mesmo assim, me entrego como escravo ao primeiro que tratar de meu filho, como forma de pagamento.
— Ora, meu irmão querido, a Soberana Bondade conhece todas as nossas dificuldades e não é surda aos nossos rogos. Tanto é que já te havia mandado a solução de todos os problemas sem que te desses ao trabalho de considerá-la. Se tivesses ouvido a sugestão do Amor, já estarias com esses problemas equacionados há muito tempo e não terias gastado um centavo sequer.
— Como assim, nobre alma? — perguntou o soldado.
— Sabendo do teu estado de necessidade interior, a Soberana Justiça colocou à tua disposição aquele que te ajudaria e te ajudará como única solução para o problema de teu filho. Colocou aqui dentro, ao teu lado, o remédio para tua alma e para o teu filho.
— Dizei-me, enviado dos deuses, onde está essa solução que eu, imediatamente a mandarei buscar para beijar-lhe os pés — falou o homem aos soluços.
— Manda chamar o sacerdote preso pelas tuas mãos, humilhado pelas tuas palavras, censurado pelas tuas bastonadas. Manda chamar Hatsekenká. Ele será o veículo para salvar o teu filho e para que tu não percas a própria alma.
Dito isto, a imagem de Khufu desvaneceu-se diante dos olhos assustados do soldado que, imediatamente foi reconduzido ao corpo físico, como se levasse um choque inesperado.
— O que ocorreu comigo? Será que estou ficando alucinado por causa de alguma doença? — falava para si mesmo, em voz alta, sem conseguir se esquecer das palavras finais daquele ser luminoso que lhe chegara com a resposta para as suas preces.
Amedrontado diante da clareza de suas experiências naquele momento, Amenef não se fez esperar nas medidas que eram emergenciais.
Abriu a porta e solicitou ao soldado que lhe devia obediência, lhe trouxesse o sacerdote até ali. Precisava falar com ele.
Surpreendendo a todos, desde os colegas até o próprio convocado que já se acostumara a receber de Amenef apenas xingamentos e bastonadas, o homem, transtornado, não conseguiu esperar que a sua determinação fosse cumprida. Saiu da sala onde se achava recolhido e desceu rápido em direcção à cela do sacerdote, ali chegando quase que simultaneamente com o soldado que lhe havia ido cumprir a determinação.
Diante da cena inusitada, destroçado pelo desespero e observado por todos os que se achavam ali, Amenef não havia pensado no que falar naquelas circunstâncias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:18 pm

Não sabia como se dirigir àquele homem que fora sempre objecto de seu escárnio e de sua descrença, mas que, agora, se erigia como a única solução para seu problema.
Quando ia dirigir-lhe a palavra, dura como sempre, foi invadido por uma onda de vergonha que lhe trouxe à consciência todos os opróbrios, humilhações, punições imerecidas que havia praticado contra aquele homem inocente.
Assim, um nó na garganta interrompeu as primeiras palavras que lhe morreram na boca.
Abaixara a cabeça, envergonhado de olhar nos olhos daquele homem bom que suportara a sua maldade sem uma só queixa.
Vendo-lhe o conflito de consciência e o sofrimento íntimo que lhe corroía as fibras duras do ser, o sacerdote levantou-se do chão onde estava sentado e aproximou-se do soldado, humildemente.
— Nobre guarda real, sinto o amargor de seu coração de pai aflito e, ainda indigno como sou, aqui estou para servi-lo naquilo que a Soberana Bondade permitir e que o seu carinho de pai aceitar.
Surpreso com aquela revelação inusitada para todos os que o cercavam e até para ele mesmo, duas lágrimas grossas lhe escorreram pela face, vindo a alojar-se na altura de seu próprio peito de pai desditoso.
Os amigos de Amenef, vendo o seu estado emotivo, deixaram-se emocionar por sua transformação, imaginando que estava enfrentando um sofrimento muito duro para que se comportasse daquele modo na frente de todas as pessoas.
— Sim, sacerdote, com a alma iluminada que possuis e que eu não soube reconhecer, soubeste ler em meu peito aquilo que eu mesmo não conseguia identificar até há pouco. Sou um ser amargo que só espalha amargura por onde passa.
É verdade — tenho um filho às portas da morte e um outro que espera o mesmo trajecto se algo não for feito. Fui abandonado pela esposa que não compreendi e que só fiz ferir como uma escrava dentro de minha casa. Meus filhos sofrem a sua ausência que eu não consigo suprir, pois só tenho grosserias e não sei como ser diferente. Adoentado e febril, meu caçula necessitou de atendimento médico que eu busquei e onde gastei tudo o que tinha, sem nenhum sucesso. Em desespero, cheguei aqui e me tranquei para recorrer aos deuses a quem já havia esquecido ao longo de uma vida de indiferença para com as coisas elevadas. Sem entender como isso se deu, creio que dormi e sonhei comum ser luminoso que me parecia ser um dos antigos reis de nossa terra, que me tratou com um carinho como se eu fosse o melhor dos homens e me fez ver que o caso de meu filho é grave e que só encontrarei meios de salvá-lo se recorrer à tua ajuda.
Por isso, envergonhado e vencido, estou aqui para dizer-te que não valho uma gota de teu suor, mas, por amor ao meu filho, suplico-te que me perdoes e que o atendas, ainda que me tenhas de aceitar como o teu escravo daqui por diante como forma de pagamento aos teus préstimos generosos...
Calara-se Amenef, entre o pranto do pai em desespero e o arrependimento envergonhado do homem arrogante que se descobre necessitado da ajuda daquele a quem humilhara por julgá-lo inferior.
O sacerdote tinha os olhos lacrimosos pela emoção do momento e pela gratidão a Deus pela porta que se abria no coração endurecido daquele homem sofrido e seco.
Chegara a hora de ser a chuva bendita na seara desértica que a transformaria para sempre.
— Diga-me Amenef, o que devo fazer para que possamos atender o pequenino em tempo de auxiliá-lo — respondeu o sacerdote, segurando as mãos do soldado.
— Não posso trazer o doentinho até aqui, pois seu estado é delicado. Receio que não suporte. Precisaria levar-te até ele, mas não posso solicitar isso aos superiores, pois não obteria tal concessão para um homem feito prisioneiro por ordem do próprio Mudinar.
Os amigos que estavam por perto, rapidamente conversaram entre si e se dispuseram a dar toda a cobertura para que o sacerdote fosse levado à casa de Amenef.
Este, contudo, recusou a ajuda, pois se seus amigos fossem descobertos, seriam punidos com muito rigor, e ele não desejava ser culpado por isso.
Surgia o problema intransponível de fazer o sacerdote chegar até a criança.
Inspirado por Khufu, o sacerdote levantou uma hipótese para o estudo de todos.
— Se fosse possível, ao final do dia, depois de todos termos sido recolhidos, se eu tiver uma roupa mais escura e discreta e me permitirem sair despercebido por alguma passagem, poderia encontrar-me com Amenef nas proximidades da prisão e, seguindo-o pelas ruas escuras, chegar até sua moradia, onde atenderia o menino e, depois, voltaria para a prisão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:19 pm

Reconheço que se trata de um expediente perigoso e que vocês nunca fizeram isso antes. Todavia, essa conduta eximiria a todos da responsabilidade pela minha libertação para o caso de ser descoberto ao meio do caminho. Como se eu estivesse fugindo, seria eu o único culpado por isso, sem que ninguém acabasse acusado pelos superiores.
Além disso, fora destes muros, Amenef me escoltaria para certificar-se de que eu não fugiria e, na volta, se ele puder, me traria de regresso até o interior da cadeia real ou, se não puder fazê-lo pelo estado de enfermidade do filho, algum soldado que queira ajudar poderá me retirar da casa de Amenef e me escoltar até aqui, reingressando na escuridão da noite.
A ideia soara como uma solução adequada, já que, naquele dia, as sentinelas todas eram compostas de soldados simpáticos ao sacerdote e que já se haviam beneficiado de seus conselhos e suas dádivas.
Todos estavam felizes por verem que Amenef estava virtualmente renovado.
Tudo ficou combinado e, quando a hora chegou, tudo foi feito conforme o próprio sacerdote havia sugerido, tomando todos os cuidados para que os soldados que ficassem não fossem responsabilizados por nada, como se aquele ato de fuga tivesse partido dele próprio, insatisfeito com o cativeiro.
Nenhum soldado ousou oferecer-se como escolta para evitar-lhe a fuga, já que confiavam muito no exemplo do sacerdote que lhes havia conquistado o coração e a confiança.
Mais de um, contudo-, dispôs-se a estar na casa de Amenef a fim de dividir com ele aquele momento tão difícil e, na escuridão da noite, com a chegada de Hatsek ao ambiente da família, um pequeno grupo de homens transformados estava ali, esperando pelo milagre do bem, a benefício de todos, crianças e homens.
Envolvidos pelo magnetismo daquela hora e pelo desejo de sentirem o bem que sempre experimentavam ao contacto com o sacerdote, todos os homens se mostravam unidos num mesmo objectivo, que era o de salvar a vida daquelas duas crianças e de reerguer o amigo abatido
pelas próprias desditas.
Unidos, assim, em torno de um mesmo propósito, não foi difícil que os Espíritos se valessem das energias colectivas, reunidas na mesma direcção e, utilizando-se do magnetismo poderoso de Hatsek, modelassem a medicação para o tratamento de todos naquela casa, restabelecendo o estado orgânico e emocional dos pequenos, acalmando o
coração do pai e, sem deixar ninguém desprotegido, buscando a alma materna, onde se encontrasse, a fim de que, mesmo em espírito, ela fosse ajudada a recobrar as noções do dever maternal.
Os Espíritos actuaram sobre toda aquela família e, depois de alguns longos momentos de orações e aplicações magnéticas, fluidificação da água, elaboração de chás e prescrição de uma alimentação específica, Hatsek viu o Espírito de Khufu sorridente e agradecido por tudo aquilo que haviam conseguido realizar.
O pequenino dormia em paz, entre as modestas peças de tecido que lhe serviam de leito, traduzindo em suor abundante a recuperação da saúde e a queda da temperatura, uma vez corrigidos os centros emocionais.
Isso se conseguiu aproveitando-se o estado de parcial liberação do corpo físico em que se achavam os Espíritos dos dois pequenos para fazê-los se encontrarem com o Espírito de sua mãezinha que, aproveitando das portas do sono nocturno também fora trazida até aquele ambiente, de coração opresso e arrependido pelo abandono.
Ao revê-la, os Espíritos de seus dois filhos projectaram-se sobre ela, escalando-a como se ela representasse uma treliça por onde as ramagens floridas, ainda que emurchecidas, se entrelaçassem na esperança de subir em direcção à luz do Sol.
Emocionada pelo carinho espontâneo de seus filhos, o coração materno se desfez em lágrimas de saudade e de dor, não sabendo por que estava ali. Acreditava que estava encontrando os entes amados por sentir muito a falta deles.
Não tinha olhos amistosos, no entanto, para o esposo abandonado. Trazia o coração magoado e ferido pela sua conduta indiferente e rude.
No entanto, seu coração era o mesmo que um dia se entregara a ele na esperança de que fosse seu amigo e protector, nos sonhos da juventude.
Envolvida pela atmosfera generosa, a mãe se fizera mais acessível à conversação espiritual bem como ao esclarecimento de suas responsabilidades.
Ficou ciente de que os filhos sofriam por ela e corriam o risco de morrer caso perdurasse o abandono por mais tempo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:29 am

Do mesmo modo, ouviu que o próprio esposo estava se modificando, ao influxo da dor que tivera de suportar, vendo os filhos sofrerem pela ausência da mãe. Refundira seus próprios conceitos e estava sinceramente arrependido por tudo o que fizera.
Voltar ao lar dependia apenas de sua própria escolha e os Espíritos respeitariam qualquer opção, continuando a amá-la de igual maneira, na condição de vítima de um homem agressivo. No entanto, a partir dali, todo o sofrimento que viesse a recair sobre os filhos seria debitado pela Justiça do Universo à responsabilidade dos dois cônjuges, inclusive dela própria também.
E tal consciência de culpa os acompanharia por muitas vidas, até que reparassem os erros cometidos para com os que haviam ferido pelo egoísmo de suas condutas.
Ao mesmo tempo, os Espíritos garantiam a ela que estariam ao seu lado e do marido a fim de que tivessem forças novas caso voltassem aos deveres abandonados e para que ele, o esposo rude, não acabasse regredindo à mesma condição anterior. Todas estas palavras geraram em seu espírito uma salutar reacção, uma vez que, como mãe amorosa que sempre fora, doía-lhe profundamente o afastamento dos filhos queridos e do próprio companheiro que fora, um dia, o sonho de seu coração apaixonado.
Tinha ânsia de retornar ao próprio lar, mas temia as reacções do companheiro ferido pelo abandono, crendo que ele ainda a culparia por tal postura.
Agora, tranquilizado seu espírito durante o repouso carnal, ao acordar no dia seguinte, repensaria melhor as suas atitudes e teria mais coragem para tentar consertar o erro.
As crianças, temporariamente no mundo espiritual, ao contacto com a mãezinha, se sentiram abastecidos de seus fluidos amorosos, o que lhes causaria uma grande melhora geral. E com a melhoria deles, o progenitor, agradecido, ver-se-ia mais dócil para repensar as coisas da vida e mudar sua conduta.
Desta forma, ao final das preces colectivas e do atendimento naquele lar humilde de Amenef, a bondade tinha esculpido novos caminhos nos corações de todos eles e deixado para trás, não só duas crianças curadas, mas um lar às portas do refazimento, com a melhoria de todos.
Era necessário voltar, agora que as crianças dormiam e que o “prisioneiro” deveria regressar ao seu ambiente.
Levantou-se Hatsek, agradecido a Amenef por tê-lo recebido em seu lar e permitido que orassem juntos. Deixou-lhe as instruções de como proceder nos dias seguintes e, quando ia deixando a sala, foi seguro pelo soldado que lhe disse, emocionado:
— Meu senhor, eu não tenho como pagá-lo, ainda que fosse o rei do Egito...
Olhando-o no fundo dos olhos, Hatsek segurou-lhe as mãos junto ao coração e respondeu:
— Lembre-se, meu filho: você é um homem bom. Deixe que estas mãos atestem aquilo que existe em seu coração para sempre. Pague a Deus com a bondade a ser entregue aos seus irmãos, reis ou prisioneiros. Perdoe sua mulher. Vocês três precisarão muito dela.
Abraçando-o, deixou a sala, esperando por encontrar os que o acompanhariam de volta até a prisão.
Na rua, no entanto, não havia mais ninguém.
Todos os soldados que haviam estado em oração na casa de Amenef, haviam ido embora para suas casas, deixando-o sozinho para fazer o caminho de regresso.
No céu, as estrelas e os Espíritos eram as suas únicas companhias...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:29 am

33 — Voltando para Tebas
Ao chegar à porta da prisão, um dos soldados que estava destacado para o trabalho do período nocturno aguardava pelo regresso dos que haviam ido até a casa de Amenef naquela noite, trazendo o sacerdote. Foi, por isso, com surpresa e maior admiração que pôde presenciar a chegada do prisioneiro sozinho à porta do cárcere que o haveria de aprisionar novamente, quando, em realidade, a maioria dos que se viam detidos, desejava fugir a qualquer custo.
Hatsek, com tais condutas passou a ser considerado uma verdadeira lenda naquele local, sobretudo quando, ao amanhecer daquele mesmo dia, Amenef regressava à prisão com a notícia de que os seus dois filhos haviam recuperado a saúde e que ele, atendendo ao pedido do sacerdote iria procurar a esposa pelas ruas de Amarna a fim de desculpar-se com ela e propor que regressasse ao lar, senão por sua causa, ao menos pela necessidade dos filhos pequenos.
Tal notícia foi uma verdadeira aclamação silenciosa da personalidade simples daquele prisioneiro que, apesar disso, se comportava como um homem absolutamente livre.
Em realidade, não se podia divulgar abertamente que fora por sua intervenção pessoal que se obtivera a cura dos pequeninos, uma vez que não se poderia revelar que o sacerdote havia deixado a prisão, sem autorização dos seus dirigentes responsáveis.
No entanto, à boca pequena, todos sabiam dos feitos daquele homem bom e generoso, notadamente para com aquele soldado que, por sua rusticidade, se apresentava sempre como um dentre os que o maltratavam e ridicularizavam perante os outros.
Agora, Amenef era um outro homem, pela simples força do Amor que Hatsek lhe entregara sem nada pedir em troca, sem quaisquer compromissos ou pedido de favores.
A gratidão e o respeito passaram a ser os norteadores de sua conduta e, para espanto dos demais, ele se transformaria em um dos mais humanos e amistosos soldados, no tratamento dos muitos presos que ali se isolavam do mundo pelos mais diferentes motivos possíveis.
Kaemy, a mãe de Kalmark, se beneficiava desse ambiente fraterno na medida em que, próxima a Hatsek, passara a colaborar com ele na transformação das coisas, demonstrando ser sua auxiliar em todas as acções que lá dentro realizavam, em favor dos outros prisioneiros.
Não se negava a levar pesados recipientes de água pura para abastecer as canecas com as quais os seus irmãos de desdita se mantinham, ao menos, aliviados do calor insano.
Limpava os detritos das celas infectas, do pátio onde todos passavam boa parte do dia na promiscuidade e na inércia, entre jogos rústicos que os mantinham entretidos e as conversas com que buscavam matar o tempo.
Em todos os casos, suas acções eram subtis e mantinham todos em um estado de ânimo mais elevado e menos depressivo, já que, por ter vivido boa parte de sua vida na condição de serviçal de Nekhefre, estava habituada a empregar suas forças na organização e na limpeza.
A saudade do filho crescia dia a dia, suportando-a apenas por força da vontade firme, da esperança que Mudinar o encontrasse e por causa da proximidade com o sacerdote, em cujo exemplo encontrava forças maiores para seguir sem entregar-se ao desespero, agora que o tempo ia passando sem quaisquer notícias.
No palácio de Akhenaton, Nekhefre era quase um prisioneiro dos funcionários que, na verdade, mantinham sobre ele uma constante vigilância, a mando de Mudinar.
Dono de um título pomposo, não exercia nenhuma função importante, a não ser ter que ficar descrevendo os infindáveis objectos que compunham o tesouro do rei, num trabalho enfadonho e burocrático que o amargurava.
Jamais ficava sozinho e nunca pôde dirigir-se ao faraó ou participar de quaisquer cerimónias públicas ao seu lado.
Como ninguém lhe viesse renovar mais perguntas sobre o sacerdote ou sobre suas condutas na cidade de Tebas, que o ligavam mais intimamente ao culto de Amon-Rá, seu interior voltou a uma relativa calma, livrando-se dos sobressaltos decorrentes daquela surpresa no final de sua audiência na sala do faraó, quando vira que Kalmark iria falar ao rei.
No entanto, tudo isto fazia parte da estratégia de Mudinar que, na verdade, estava preparando para Nekhefre algo mais surpreendente. Observando que os dias transcorriam sem novidades, Mudinar deixou que Nekhefre se mantivesse no trabalho, isolado do mundo, para que sua insatisfação fosse crescendo e lhe inspirasse maior desespero, perante sua nova vida de funcionário destacado do faraó.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:29 am

Ao mesmo tempo, era informado constantemente da situação de Hatsek na prisão, já que o sacerdote era a ligação de Nekhefre com o culto religioso banido. E pelas notícias recebidas dos que dirigiam a prisão real, o sacerdote estava sendo considerado um verdadeiro enviado dos deuses, já que por sua atitude e exemplo, todos os demais presos se estavam disciplinando, acalmados, menos agressivos. Mudinar fora informado que até mesmo os próprios soldados haviam a ele se ligado de uma maneira muito íntima e que, corria a notícia de que era dotado de faculdades tão poderosas que era capaz de curar quaisquer doenças pela simples imposição das mãos sobre o enfermo.
As novidades feriam fundo o espírito frio de Mudinar que, a todo o custo, buscava ocultar a admiração e a impressão profunda e agradável que Hatsek lhe causara, já que desejava ver nele tão somente, o sacerdote inimigo das novas tradições.
E quanto mais admiração se voltasse para Hatsek, mais todos à sua volta iriam se lembrar das grandezas da antiga crença que ele representava. Mais e mais pessoas se iriam ligar para a lembrança de Amon, atribuindo-lhe todos os benefícios recebidos e afastando-se da figura de Aton, o deus oficial dos egípcios.
Por esse motivo, a figura de Hatsek começava a incomodar-lhe os planos imediatos. Não podia livrar-se dele, já que era uma importante prova dos envolvimentos de Nekhefre com Amon, mesmo depois da proibição do faraó.
Todavia, não poderia permitir que ele seguisse sendo admirado até mesmo pelos soldados que, ao invés de se envolverem com o culto novo, mais se atiravam às raízes de suas antigas crenças, na figura cultuada do sacerdote de Amon-Rá.
Deliberou, com isso, afastar Hatsek daquele lugar usando de uma motivação oficial e que, ao mesmo tempo, lhe permitiria dar seguimento aos seus planos.
Por isso, sem que ninguém soubesse, Mudinar ordenou que o sacerdote fosse trazido até seu gabinete de trabalho para lhe comunicar as novas determinações oficiais.
Ele seria mandado até a antiga capital, Tebas, para comunicar à família de Nekhefre que deveriam todos se transferir para Amarna, atendendo aos altos imperativos da nova função que a este fora atribuída, sendo responsável pela notificação de que o mesmo príncipe houvera oferecido em matrimónio as duas filhas para selar a aliança com o rei e a nova crença.
Em realidade, a missão era muito espinhosa e difícil de se fazerem face do sofrimento que iria produzir nas pessoas que não esperavam por elas nem haviam colaborado em nada para que os fatos sucedessem daquela maneira.
Todavia, Mudinar não havia pedido. Havia ordenado sem lhe deixar qualquer espaço para outra conduta. Seria escoltado por um soldado que se encarregaria de sua segurança e, ao mesmo tempo, de garantir o seu regresso tão logo sua tarefa estivesse encerrada.
Deveria voltar a Amarna imediatamente depois de ter cumprido a missão.
Ouvindo-lhe as determinações em silêncio, Hatsek retirou-se depois que foi autorizado a fazê-lo, levado pelo soldado que o havia trazido e que, em verdade, era um de seus seguidores fiéis.
Mudinar, todavia, iria determinar a um outro subordinado de sua confiança e que não se havia contaminado pelo exemplo de Hatsek, que o seguisse como escolta, mas que também servisse como espião, permitindo ao sacerdote certa liberdade de acção, a fim de obter as provas definitivas e flagrantes com as quais iria destruir o príncipe para sempre.
Marcada a data da viagem, para tristeza dos soldados que se achavam na prisão acostumados com a palavra amiga e conselheira do sacerdote, Mudinar dirigiu-se, então, até Nekhefre a fim de comunicar-lhe a determinação de que, em breve, ele partiria para Tebas a fim de providenciar o traslado das filhas para a realização do casamento com ele próprio e, igualmente, a transferência de sua própria moradia para o palácio, trazendo também a esposa para Amarna e os bens que lhe guarneciam a residência, já que, pelo tempo afastado do seu ambiente, deveria estar ele muito preocupado com tudo.
— Nobre Senhor, — respondeu Nekhefre, desconfiado e reticente, — tal preocupação que habita minha alma é verdadeira e amarga, já que, além da saudade, tenho o dever de pai impedido de ser exercido em face da distância. Tal procedimento, no entanto, vai demandar algum tempo para ser realizado, já que não poderei desfazer-me de todas as coisas que possuo em Tebas, rapidamente.
— Sim, Príncipe, eu sei disso e já lhe adianto que o faraó sabe ser tolerante e paciente para com tais dificuldades. Por isso, não tenha pressa. Volte, no entanto, no menor espaço de tempo possível, pois estou ansioso por me tornar membro de sua família... — respondeu Mudinar usando de ironia e sarcasmo, irritando ainda mais o espírito do príncipe que o escutava em silêncio e revolta.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:30 am

No entanto, nem Hatsek nem Nekhefre foram informados um sobre a viagem do outro, pois Mudinar desejava que eles acabassem se encontrando em Tebas, sem saber do que estavam indo fazer.
Para que tudo ficasse bem realizado, no plano sórdido da mente de Mudinar, Hatsek foi enviado a Tebas com uma semana de antecedência sobre a viagem de Nekhefre que, a toda evidência, também foi acompanhado por dois homens da confiança do Chefe da Guarda com a desculpa de serem os seus serviçais durante a viagem.
No barco que levara Hatsek, além dele e do soldado desconhecido que o acompanhava, seguia um espião disfarçado de viajante, enquanto que na outra embarcação, que deixara o porto uma semana depois, seguia, além de Nekhefre e seus dois auxiliares, mais dois espiões secretamente colocados ali, sem que nenhum deles tivesse conhecimento.
Mudinar era muito astuto.
Tão logo os dois homens tomaram seu rumo em direcção a Tebas, Mudinar mandou que trouxessem à sua presença a mãe de Kalmark, Kaemy, para entender-se com ela.
Chegando, assustada e ansiosa ao gabinete do Chefe da Guarda Real, a mulher trazia o coração na garganta, esperando que algo lhe fosse revelado sobre o paradeiro do filho querido.
Prostrando-se perante a importante autoridade, Kaemy se viu convidada a levantar-se e a tomar assento em pequena cadeira colocada no recinto, a fim de escutar as palavras de Mudinar.
— Sua história muito me sensibilizou o coração e, se posso lhe dizer algo, é que não poupei esforços para encontrar seu filho. Diante de todas as informações, posso dizer-lhe que descobri onde ele encontra.
O olhar de Kaemy tornou-se uma exuberante cascata de emoção, a projectar lágrimas cristalinas de alegria e reconhecimento àquele homem que lhe surgia, agora, por benfeitor e devotado funcionário real.
Desejou beijar-lhe as mãos na exteriorização de sua alma agradecida pela notícia tão esperada, depois de várias semanas recolhida ao cárcere.
Agradavelmente homenageado, Mudinar permitiu que ela se externasse e lhe osculasse até mesmo os pés, demonstrando-lhe que lhe era superior e, ao mesmo tempo, generoso a ponto de encontrar o filho amado.
— Na verdade, senhora, a sua sensibilidade de mãe e sua história de sofrimento são capazes de arrancar lágrimas das pedras do Egito. Por isso, posso afiançar-lhe que tudo fiz para que seu filho fosse encontrado.
— Que os deuses o favoreçam, nobre Mudinar — respondeu Kaemy na antiga fórmula religiosa com a qual se abençoavam aqueles a quem se era profundamente agradecido. Percebendo que já não havia mais deuses no Egito e sim apenas Aton, único e absoluto, caiu em si mesma e procurou desculpar-se, meio sem jeito.
— Não se incomode com isso, Kaemy, pois eu sei que em nome da emoção de mãe, tudo se releva e se compreende. Parecia um homem absolutamente diferente de sua própria realidade. Isso fazia parte de seu plano de cativar a confiança de Kaemy a fim de usá-la segundo seus objectivos.
— Agora, escute o que vou dizer: Seu filho é funcionário do rei, a serviço da decoração do interior de sua tumba funerária, distante daqui para além das montanhas. Quando você me deu condições de identificá-lo, pude pedir informações sobre o jovem e lhe revelo que eu mesmo o conheci pessoalmente, antes de ser mandado para o novo serviço. Instalara-se aqui como artesão e, tão talentoso se demonstrou que, depois de alguns anos de trabalho foi apresentado ao próprio faraó, que fez dele um dos seus escultores e entalhadores no trabalho de embelezamento da câmara funerária.
Para Kaemy, parecia um sonho que se tornava realidade. Ter notícias do filho depois de tanto tempo de procura era um refrigério para seu espírito.
Bebia as palavras de Mudinar como se sorvesse néctar divino, encontrando verdadeira fonte de alento e consolação.
— Como gostaria de encontrá-lo e dar-lhe meu coração, o único que lhe resta nesta vida — falou Kaemy, emocionada.
Ouvindo-lhe a rogativa modesta e indirecta, Mudinar aproveitou a súplica e lhe respondeu:
— Sabendo disso, mandei que Kalmark fosse trazido até aqui para que pudessem se encontrar, devendo, no entanto, informá-la de que ele não poderá deixar o serviço real até que tenha terminado o que lhe compete acabar. Será um encontro rápido que lhe garantirá a alegria de ter o filho por alguns dias, até que a sua licença termine e ele tenha de reassumir as suas funções.
— Ah!, nobre e generoso Senhor, isso será a maior dádiva que um coração de mãe, abandonado e solitário sonharia em receber. Quão dadivoso é o grande Chefe da Guarda Real, para que as próprias pedras saibam de seus feitos...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:30 am

— Por agora, você será levada até a morada que Kalmark deixou em Amarna, antes de seguir para o túmulo real. É uma modesta casinha que você poderá arrumar e preparar para a sua chegada. Nela já mandei colocar as coisas necessárias ao bem-estar de ambos pelo tempo em que ali permanecerem. Com o término da licença, estudaremos o seu destino, já que precisarei muito de seu auxílio, na solução de um grave problema que possuo...
— A partir de hoje, nobre Mudinar, sou sua devedora e tudo farei para colaborar de bom grado para com aquele que me está devolvendo a alegria e esperança de viver — respondeu Kaemy, sem jamais imaginar qual o preço que lhe seria exigido por aquele breve reencontro com seu filho.
— Assim espero e confio, minha senhora. Siga agora com os que a levarão até o local onde se hospedará e, dentro de dois dias, terá seu filho em seus braços.
Despediram-se e, tomando o novo rumo de seu destino, Kaemy passou a arrumar a casinha que lhe seria o céu por alguns dias. Kalmark, notificado de que deveria comparecer perante Mudinar dentro de dois dias, não sabia do que se tratava e nem fora informado dos motivos que o levavam de volta a Amarna. Apenas trazia o coração apreensivo e a mente fervilhando, diante da possibilidade de perder Marnahan, oferecida em casamento como uma mercadoria sem valor pelo próprio pai.
Tinha de fazer alguma coisa para tentar mudar os fatos até então aparentemente inexoráveis.
Nem imaginava que, ao lado da surpresa tão inesperada quanto emocionante do reencontro com sua mãe, seria inteirado de todas as desgraças sucedidas na vida daqueles a quem amava e que foram os únicos benfeitores desinteressados que tivera na Terra.
O quadro planejado por Mudinar ia tomando forma para desembocar no tão alentado e aguardado momento de sua vingança contra aquele príncipe que não suportava.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:30 am

34 — Kalmark conhece a verdade e quer mudar o destino
Depois de ter sido levado à presença de Mudinar, Kalmark foi informado de que iria passar alguns dias na antiga moradia e que nela iria encontrar alguém que o procurava e com quem deveria se entender sobre assuntos importantes, antes de regressar ao trabalho no túmulo do rei.
Um mistério que encheu o coração do jovem artista de uma apreensão muito intensa, já que estava se acostumando a tristes surpresas sempre que uma aura de suspense envolvia as coisas.
Desse modo, seu coração estava aos pulos quando ingressou pela estreita passagem que dava acesso aos cómodos modestos que lhe serviram de moradia, tempos antes.
Para sua surpresa, no entanto, ao se aproximar da entrada, pôde ouvir uma voz que cantarolava antiga canção muito sua conhecida. Nesse instante, pôde relembrar das alegrias vividas em família, rememorando os dias do pretérito nos quais pudera passar os doces instantes na companhia dos seus pais.
Aquela era uma voz inconfundível — pensava Kalmark, com o coração acelerado.
Apressou o passo e, quase que de um salto, ganhou o interior da vivenda, agora transformada pela mão habilidosa de Kaemy num agradável ambiente arrumado, asseado, enfeitado pelos toques femininos, a se valerem dos recursos disponíveis para embelezar com simplicidade e bom gosto.
Ao encontrar o rosto sorridente de Kaemy, que também lhe ouvira os derradeiros passos da aproximação, ambos se envolveram num abraço emocionado e cheio de venturas, como se o momento pudesse congelar o tempo e as saudades exigissem de ambos uma troca de vibrações que só o abraço sincero e demorado poderia fornecer.— Mãezinha, que linda surpresa poder encontrá-lo aqui! — exclamou o jovem inebriado pela alegria de revê-la.
— Ah! Meu filho, como doía meu coração por não conseguir encontrá-lo... — reclamou, lacrimejante, a mãe, segurando o rosto de Kalmark entre as mãos.
— Espero que, agora, não mais nos separemos. Afinal de contas, estou trabalhando bastante e faço parte dos funcionários do rei, que se admirou das obras que produzo e me convocou a trabalhar na decoração de seu próprio túmulo, mãe — contava ele, orgulhoso de si próprio.
— Que bom, meu filho. Afinal, esse era o seu sonho, lembra-se?
Você deixou Tebas para procurar uma melhor situação e construir sua vida nova.
— É verdade. Esse era um dos meus sonhos. Nunca pensei que eu chegaria onde estou. Se não fosse a vontade dos deuses... — tomando o cuidado de falar esta última frase quase que aos sussurros, para que ouvidos indiscretos não escutassem a sua referência à antiga crença, tão viva em seu coração.
Todavia, olhando ao redor, deu pela falta de seu pai que, como sabe o leitor, desencarnara algumas semanas depois da partida do filho, vitimado por uma enfermidade dolorosa.
— Mas eu não estou vendo o pai. Onde ele está, mãezinha? Não veio com você? Como é que pôde deixá-la viajar sozinha sem a acompanhar? Ou, então, está pela rua me procurando?... — as perguntas se multiplicavam umas sobre as outras e, ao peso de todas elas, Kaemy voltou à realidade de sua desdita.
Procurando fazer com que o jovem se acalmasse, na ansiedade tão comum de sua idade, Kaemy buscou fazê-lo sentar-se para, tomando de outro assento, iniciar o longo diálogo, através do qual iria relatar a Kalmark todas as ocorrências daquele dia fatídico do passado recente.
Iniciou a narrativa voltando às lembranças da antiga casa de Nekhefre, falando dos tempos em que serviram ao príncipe com alegria
e satisfação, numa existência comum que jamais iriam imaginar pudesse transformar-se em uma estrada espinhosa e sem volta.
Relatou os efeitos que a conversa de Kalmark produzira no príncipe e que, a partir daquele mesmo dia, apesar de o jovem ter se afastado de seus familiares, ambos desgastados pelos anos de serviço, Nekhefre não tivera nenhuma compaixão em expulsá-los da moradia e do trabalho.
Cada informação que acrescentava ao drama, exercia sobre o jovem um efeito de aumentar-lhe a ferida que carregava no peito, na angústia de ver seus pais entregues à própria sorte, sem recursos materiais, principalmente por haverem fornecido a ele, Kalmark, quase todas as pequenas economias de que dispunham. Kaemy, com seu espírito de conciliação, buscava ser generosa, abrandando as descrições a fim de que as tintas emocionais usadas para pintar o passado não acabassem por torná-lo um estilete na alma do jovem que, a toda evidência, deveria também estar se julgando culpado pelo sofrimento deles.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:30 am

Falava como alguém que conta uma tragédia, dela tentando tirar boas coisas com as quais conseguisse atenuar o mal que, naturalmente, toda tragédia contém.
Todavia, no coração de Kalmark bastavam os contornos do drama para que ele próprio pudesse avaliar o seu conteúdo pleno, as amarguras de Meldek e Kaemy na caminhada solitária pelas ruas de Tebas, sem amparo, passando fome e necessidades, com medo, enfermo, solicitando refúgio a Hatsek e, por fim, a morte quase no abandono, evitado apenas pela generosidade do sacerdote no templo de Amon.
Sentia-se responsável por tudo isso, já que fora de sua conversa altiva com o príncipe que tais consequências derivaram.
Ao mesmo tempo, pensava, tudo isso ocorrera por falta de dignidade daquele homem cruel e aproveitador, que tinha toda a riqueza e que não se sensibilizava com a desdita de um casal de serviçais que lhe haviam empenhado a própria vida por longos anos de serviços estafantes e mal remunerados.
Lembrava-se de Nekhefre diante do rei, renegando o próprio amigo, o sacerdote, negando a própria crença antiga, oferecendo Marnahan, a filha que ele, Kalmark, tanto amava, para salvar a sua preferida, Hatsena, das garras do insano Chefe da Guarda.
Todos estes fatos, na mente do rapaz, iam criando um cenário cada vez mais devastador, no centro do qual se encontrava sempre a figura de Nekhefre, o príncipe sem carácter e sem vontade própria, sempre aproveitador e gozador do mundo, lutando para manter-se sobre o carro dos prazeres e vantagens da vida a qualquer preço.
As lágrimas do jovem rolavam sobre a face, sem que ele se preocupasse mesmo em secá-las. Sua mãe também orvalhava os próprios cabelos longos com as que escorriam pelo seu rosto, ao mesmo tempo em que tentava dar uma menor dimensão ao grau dos sofrimentos que enfrentara até que pudesse chegar à casinha.
Relatou-lhe a viagem até Amarna, a protecção de Hatsek, a enfermidade no meio do caminho, a tentativa de assassinato, a chegada e a busca pelo filho, o encontro de uma alma jovem e amiga que cuidara dela e que a aconselhara a procurar por Mudinar.
E, a despeito de ter sido recolhida à prisão sem um motivo que pudesse justificar tal comportamento, via na figura do Chefe da Guarda Real, o benfeitor que lhe permitira reencontrar o rebento de seus sonhos e esperanças.
Apesar de tudo, fora tratada com respeito na reclusão forçada a que fora confinada, além de ter tido a oportunidade de conviver novamente com Hatsek, aprendendo muita coisa com ele.
— Hatsek também está preso? — perguntou Kalmark espantado e surpreso.
— Sim, meu filho. Está ou estava preso até bem poucos dias quando, não sei por que motivo, foi retirado da prisão e não sei dizer qual o seu paradeiro.
— Mas ele não fez nada a não ser ajudar as pessoas. Eu mesmo presenciei a audiência do desprezível príncipe, na qual renegara a amizade de Hatsek em troca da sua posição material e pude ver com que serenidade e compreensão o sacerdote acompanhou toda a lastimável cena na qual era o personagem principal e a vítima primeira. Dali foi retirado e não mais o vi. Por que será que foi conduzido à prisão?
— Bem, meu filho, ao que tudo indica, pelo simples fato de ser sacerdote de Amon, num período em que se mudaram os ventos, cancelaram-se os deuses de muitas gerações para que passasse a valer, apenas, o deus da cabeça do rei que acabará por levar o Egito à ruína.
— Eu também acho a mesma coisa, mãe. Akhenaton não cuida mais dos negócios, das campanhas no estrangeiro, das lutas que manteriam nossos mercados abastecidos, do próprio exército que, agora, está sem funções específicas, já que o rei prometeu que nunca mais deixará os limites desta cidade.
Os comentários são de que as coisas estão indo de mal a pior e o que o rei e a rainha só sabem cuidar das coisas da religião, entregando colares e braceletes de ouro a seus súbditos mais importantes e influentes, a fim de mantê-los fiéis a essa loucura que não pode durar muito tempo.
Mas ao lado disso, Hatsek não merece sofrer o que está sofrendo. Será que os deuses o abandonaram? Onde está o poderoso Amon que não vem proteger o seu seguidor mais fiel que eu conheço?
Ouvindo-lhe as perguntas enunciadas com o tom da quase revolta, Kaemy procurou acalmar o filho.
— Sabe, Kalmark, o sacerdote tem forças que nós não sabemos onde ele as consegue e, mesmo diante da maior insensatez, da mais cruel agressividade alheia, sabe ter um olhar benigno, sabe compreender as necessidades alheias e, por isso, algum tempo depois, o próprio agressor, envergonhado pela sua conduta covarde, dele se aproxima e o encontra com um sorriso nos lábios, pronto para ouvir do antigo algoz as indagações que ele carrega no íntimo e que, por sua vez, são os dramas que transformam o agressor em agredido, através do sofrimento físico ou moral.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:30 am

Assim, muitas vezes Hatsek se fez amigo e confidente dos próprios soldados que, a princípio, por si próprios ou por obedecerem a ordens superiores, o maltratavam sem motivo. Eis aí, Kalmark, a força de Amon. — Hatsek saberá se cuidar, sempre.
Mas voltando às notícias graves recebidas pela genitora, Kalmark não sabia por onde começar e as lágrimas que derramava tanto eram pela morte do pai, quanto pelo sofrimento da mãe, quanto por sua própria culpa nos episódios trágicos.
Tinha a indignação por Nekhefre levada ao extremo e, se pudesse, tudo faria para que aquele homem horrível, de personalidade fraca, pagasse por toda a dor que, seus pais e, agora, ele próprio, suportavam e ainda teriam que aguentar.
Ao ouvir a referência de sua mãe à personalidade de Mudinar como sendo a do benfeitor a quem estava ligada por um laço de gratidão eterna, o jovem artesão balançou a cabeça e demonstrou todo o seu temor, a fim de que sua mãe não se contaminasse com falsas aparências.
— É verdade, mãezinha, que devemos ao poder de Mudinar nos encontrarmos hoje e, isso, realmente, é algo muito importante para nós.
No entanto, advirto-lhe de que Mudinar é uma cobra muito bem disfarçada de homem justo. Sabe manipular as pessoas e, se a procurou isolar é porque pretende que você lhe sirva aos interesses escusos na hora em que se fizer necessário.
Não acho que ele tenha apenas a intenção de aliviar as preocupações de um coração de mãe, procurando aproximá-la do filho perdido. Digo isto porque já pude avaliar como é o seu procedimento e, todas as vezes que está presente, alguém sofrerá as suas perseguições e artimanhas.
Tome cuidado com ele e não deixe que a sua boa fé lhe iluda a visão. Eu também lhe devo muito, até mesmo a minha audiência com o faraó. No entanto, isso não me tirou a lucidez quanto ao seu carácter e, tenho certeza de que ele me levou diante do faraó para que tal fato fosse beneficiá-lo, antes do que a mim mesmo. E olhando para o passado, posso afirmar que foi muita coincidência que, justamente no dia e na hora de minha audiência, lá estivessem o maldito príncipe e o nobre sacerdote. Mudinar pretende, inclusive, tomar a minha Marnahan como sua mulher e isso, esteja certa, eu não vou permitir.
A expressão de Kalmark se tornara sombria ao referir-se ao homem que lhe estava embaraçando a realização dos sonhos afectivos.
E vendo a preocupação da mãe, diante de seu estado de amargura e rebeldia, procurou dissimular seus sentimentos e propiciar-lhe uma melhor ideia de seus planos.
— Sabe, mãe, eu não tenho mais nada a perder, agora que reencontrei você aqui e que estão tentando tirar Marnahan de mim. Não posso mais permitir que, depois de terem matado meu pai, destruído a sua vida e os seus sonhos, de terem deliberado sobre o destino de minha amada sem a concordância de ninguém, todas as coisas aconteçam sem que eu faça algo. Nem Mudinar nem Nekhefre têm o direito de fazer o que estão fazendo e eu lhe garanto que não vou deixar que tudo aconteça sem lutar para impedir.
Ouvindo-lhe as palavras firmes, Kaemy procurou dar outro rumo à conversa, a fim de asserená-lo:
— Não pense em fazer nenhuma bobagem, meu filho, agora que nos reencontramos. Estou na sua companhia apenas por alguns dias.
Depois, o próprio Mudinar me levará para algum lugar que, segundo ele, não será mais a prisão, a fim de me preservar para que eu lhe sirva como prova de alguma coisa que, ainda, não sei dizer do que se trata.
Tão logo você retorne ao trabalho, ficarei em Amarna para lhe esperar e para servir a esse homem que, à primeira vista, não me pareceu nada do que você me relatou a seu respeito. Pareceu-me gentil e, até certo ponto, distinto funcionário, sensível e honrado no cumprimento de seu dever. Não tenho do que temer. Afinal, não falarei nenhuma mentira nem me deixarei levar por nenhuma conduta indigna de minha crença. Tomarei o cuidado que as suas palavras me pedem.
— Eu, no entanto, repito que não vou deixar que esses homens que você não conhece ainda e não sabe aonde podem chegar, estraguem a vida dos outros sem que se faça algo para impedir-lhes.
Assim que acabar a minha licença e que eu voltar ao trabalho no túmulo, arrumarei um pretexto qualquer e fugirei para Tebas, atrás de Marnahan, com quem pretendo me casar. Nem que nós tenhamos de fugir para terras distantes, eu garanto que ela não será entregue a outro homem que sequer a conhece e, ainda menos poderá amá-la e receber o seu amor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:31 am

Já tenho em mente como conseguir isso e a minha vinda até aqui me dará a oportunidade para realizar tal projecto sem prejudicá-la e sem levantar suspeitas.
Aquele dia havia sido longo e cheio de emoções e tristezas, reunidas em poucas horas.
Resolveram que se deitariam para que o descanso lhes permitisse pensar melhor nos dias do futuro, já que não desejavam afastar-se, agora que só tinham um ao outro.
Enquanto Kaemy se dirigia ao modesto leito onde tentaria conciliar o sono, Kalmark se perdia nos pensamentos agitados de como conseguir realizar o seu intento, sem que corresse riscos nem comprometesse a própria mãe.
A noite caminhou lentamente, enquanto seus pensamentos fervilhavam.
E, inspirado pela necessidade de ausentar-se das obras funerárias para demandar Tebas, acabou por conseguir idealizar um plano que poderia dar certo.
Valer-se-ia de seu talento para esculpir um selo que pudesse se parecer ao máximo com o do próprio Mudinar, selo esse com que se costumava lacrar as correspondências oficiais. Escreveria em um papiro as determinações falsas que o liberariam temporariamente do trabalho nas tumbas reais e selaria com o lacre esculpido em alguma pedra pelo seu talento de artesão. Em verdade, Kalmark guardava consigo o modelo do selo que lhe havia sido enviado junto com a mensagem na qual tinha sido convocado a comparecer perante Mudinar, dias antes, para o reencontro com sua mãe.
O selo guardava os traços principais e, assim, não lhe seria difícil reproduzi-lo em detalhes.
Com tal documento falsificado, ao regressar às obras na necrópole real, entregaria o papiro ao encarregado que, por óbvio, seria induzido a considerar válida a determinação do Chefe da Guarda Real e não oporia nenhum óbice ao seu afastamento. Ao mesmo tempo, os que se achavam em Amarna estariam seguros de que o jovem continuava trabalhando nas construções reais e não incomodariam sua mãe acerca de seu paradeiro.
Assim, naquela mesma noite, à luz de um pequenino candeeiro, Kalmark iniciou a construção do modelo, já que teria pouco tempo para conseguir a concretização do feito.
No dia seguinte, com a desculpa de acompanhar a mãe até o mercado, naturalmente seguidos à distância por um vigia de Mudinar, o jovem conseguiu arrumar um papiro que lhe permitisse produzir a mensagem, tomando como modelo de linguagem aquela que estava no documento e que lhe havia sido remetido dias antes.
Regressando à casa, enquanto a sua mãe se entregava ao preparo da comida, o jovem seguiu construindo, passo a passo, as asas de sua libertação, que lhe permitiriam viajar ao encontro de seu sonho ainda não realizado, nos braços de Marnahan.
Separara uma porção da resina que se utilizava como lacre nas correspondências oficiais, retirando-a da mesma que estava no documento que recebera, tão logo conseguira reproduzir o desenho do lacre que estava nela impresso.
Derretendo-a, conseguiria reimprimir o mesmo selo, intacto. Assim, poderia forjar a mensagem sem ser percebido.
Passara o dia todo entre os carinhos maternos e o trabalho de confeccionar o documento da maneira mais parecida com a oficial, para não levantar suspeitas e, graças aos seus hábitos estéticos refinados, o documento final, na aparência externa e no conteúdo, passava perfeitamente por um dos que havia saído do gabinete do próprio Mudinar.
Seus termos davam a conhecer ao administrador da necrópole que o artesão a que se referia o documento — ele próprio Kalmark - estava autorizado a afastar-se imediatamente dos trabalhos por tempo indeterminado, a fim de atender a uma outra determinação do próprio faraó, que lhe estaria exigindo o esforço em outra obra em homenagem ao grande Aton.
Com um tal conteúdo, sua saída seria autorizada sem levantar qualquer suspeita, já que não se questionaria uma ordem do rei, se o selo de Mudinar, no documento, fosse suficientemente convincente. A única dificuldade seria o fato de que todo documento oficial deveria ser entregue por um portador oficial, responsável por levar e trazer as correspondências governamentais, geralmente, no caso, funcionário do próprio Mudinar.
Kalmark precisaria resolver esse problema também. Mas sua mente criativa já tinha imaginado uma maneira de fazê-lo.
Com o correr dos dias, tudo estava pronto para ser colocado em acção.
Terminada a licença breve que lhe fora concedida, Kaemy e Kalmark foram levados à presença de Mudinar que, como se poderia esperar, estava ansioso por obter notícias sobre o encontro dos dois principais aliados na sua saga de destruir Nekhefre.
Recebendo-os em seu gabinete, por eles foi homenageado em termos veementes, agradecidos e emocionados que estavam por terem, mãe e filho, se reencontrado graças à sua generosidade pessoal.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:31 am

Kalmark, cuidadoso e sabedor da vaidade que exalava do Chefe da Guarda, procurou demonstrar que aquele encontro era mais um grande favor que lhe ficara devendo, na gratidão que lhe era muito grande pelos demais feitos que Mudinar lhe propiciara. Apenas se preocupava com o bem-estar de sua mãe, agora que iria afastar-se em regresso ao túmulo real.
— Ora, meu jovem, não se preocupe que não faltará a ela nenhum conforto na sua ausência. Se lhe aprouver, nós a manteremos na própria moradia que os abrigou nestes dias, como forma de amparar-lhe os momentos em que você não estiver junto dela, ao mesmo tempo em que lhe forneceremos alimentos e recursos para cuidar de suas necessidades imediatas.
— Não tenho como agradecer, nobre benfeitor — respondeu Kalmark, desdobrando-se em mesuras tão ao tipo dos comensais do tesouro real, sempre buscando lisonjear os poderosos para usufruir sua simpatia.
Kaemy parecia também mais serena com a notícia de que não voltaria para a prisão e que, ao contrário, seria hospedada na antiga moradia do próprio filho, a qual manteria arrumada para o seu regresso em nova licença temporária, segundo os costumes daqueles tempos.
Naturalmente, Mudinar os recebera no seu escritório privado, à distância de seus subordinados, somente contando com a presença do escriba oficial que assistia a todas as suas audiências e reproduzia os documentos no acto para serem selados pela autoridade. Tal privacidade era necessária, a fim de que as notícias que ali se fizessem conhecidas não se espalhassem por outros sítios, nas fofocas tão saborosas que corriam nas bocas dos soldados, desde os mais longínquos tempos da humanidade.
Por isso, cuidou de ficar a sós com os dois beneficiários de sua generosidade, dos quais pretendia retirar alguma impressão sobre aquele reencontro.
— Pois então, meu jovem, quando sua mãe me relatou a própria desdita, no sofrimento e na procura infrutífera, depois de ter ficado viúva, um sentimento de muita compaixão tomou conta de meu interior - falou ele fingidamente. — Sabendo que a descrição dela nos apontava para você, procurei mantê-la protegida, apesar de ter usado a prisão para tanto. Todavia, dei ordens expressas para que ninguém a molestasse e que nada lhe faltasse...
— Oh! sim, nobre senhor, nada me faltou, nem o que comer nem o respeito com que me trataram todos, sem excepções.
— Isso me alegra muito, pois o que desejava era protegê-la dos riscos de estar numa cidade como esta, à mercê dos desocupados. Lá dentro, no entanto, estaria protegida de tudo, sob minha custódia pessoal.
Agora, dando novo rumo à conversa, voltou-se para Kalmark e continuou:
— Quanto a você, meu jovem, muito me doeu o coração saber das notícias sobre seu pai e o abandono a que foram relegados — comentou Mudinar, para ferir o assunto e ver a sua reacção.
— Sim, meu senhor, não há sofrimento que se possa entender com exactidão senão aquele por que passamos. E descobrir o quanto meus pais sofreram, por causa da conduta egoísta de um homem mesquinho, abre uma brecha muito grande em meu coração. Estou ferido e conto somente com o trabalho para me afastar do pensamento de vingança que, na realidade, se impõe a qualquer homem honrado para vingar, no agressor, a ofensa dele recebida.
A resposta havia sido dada na exacta medida do interesse de Mudinar que, a toda evidência, pretendia criar na alma de Kalmark e de Kaemy uma verdadeira aversão a Nekhefre, como ódio e rancor misturados ao desejo de prejudicá-lo.
E até certo ponto, o que Kalmark estava dizendo era aquilo que, em seu íntimo o próprio jovem sentia de verdade. Desejaria poder fazer Nekhefre sofrer.
Possuía um sentimento de repulsa tão grande contra ele que, sem dúvida alguma, tudo faria para que ele fosse punido ou prejudicado para pagar o sofrimento que fizera seus pais padecerem.
Vendo que seu plano estava indo bem, Mudinar encaminhou a audiência para o fim, determinando que Kaemy seria escoltada até a moradia onde se haviam abrigado naqueles dias com o filho, enquanto o jovem artista seria levado de regresso ao trabalho nas câmaras funerárias, de onde deveria voltar somente quando lhe fosse endereçada nova convocatória.
Desse modo, Kalmark seria também escoltado pelo guarda para tanto designado até que chegasse ao local dos trabalhos.
Despediram-se com um abraço emocionado e cada um tomou a direcção que lhes era apontada pelo próprio destino.
Tão logo se viu afastando-se do burburinho da cidade, no veículo que os transportava, Kalmark pôs seu plano em acção.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:31 am

Retirou das dobras de sua roupa, cuidadosamente, o pergaminho selado que ele próprio havia produzido e, como que se tratando de uma ordem expedida pelo próprio Mudinar durante a sua audiência, entregou ao soldado, dizendo:
— Ah! meu caro Pitah, me esqueci de entregar-te antes, mas faço-o ainda em tempo. O Chefe da Guarda Real, o nobre Mudinar, depois de ditar uma ordem ao escriba e selá-la pessoalmente, entregou-me para que fizesse chegar às tuas mãos, a fim de que ela fosse apresentada por ti ao administrador da construção real. Espero que meu esquecimento não seja levado à conta de falta de apreço por tua pessoa. Foi apenas distracção minha, diante das emoções da despedida de minha mãe.
Vendo o documento que, nas aparências, apresentava todas as características da oficialidade costumeira, Pitah colocou-o no recipiente de couro, próprio para o transporte de mensagens oficiais e, sem dar maior importância ao fato, sorriu e desculpou a distracção do jovem como coisa sem importância.
Pelas reacções do soldado, tudo ia muito bem no plano de Kalmark que, agora, somente deveria esperar a reacção do responsável pela construção dos túmulos de Akhenaton.
Não demorou muito tempo para que chegassem ao local, já que não distava mais do que alguns quilómetros da cidade, sede do reino do Egito.
A oficialidade da comunicação, o selo de Mudinar, a entrega feita pelo soldado do gabinete do Chefe da Guarda, os termos formais com que fora lavrada, na linguagem específica das comunicações dessa natureza, impediram que o destinatário levantasse quaisquer suspeitas sobre a sua autenticidade, tomando-a por válida e correta.
Pitah, tão logo cumprira a determinação de reconduzir Kalmark, partira de regresso, levando consigo outros comunicados entre as autoridades envolvidas na construção.
Ao tomar conhecimento de que Kalmark deveria ser dispensado dos trabalhos na tumba real, o empreiteiro responsável lastimou sua partida e autorizou-o a recolher seus objectos pessoais e aguardar até o dia seguinte, a fim de cumprir as determinações, esperando um meio de transporte rápido que lhe permitisse chegar a Amarna sem muito esforço ou, se preferisse, seguindo a pé pelas trilhas existentes ou no lombo de alguma mula disponível.
Dentro de seus planos, esta foi a opção que o jovem escolheu por óbvios motivos.
Desejava partir para Tebas sem levantar quaisquer suspeitas e, para isso, deveria regressar a pé ou sobre algum animal que o transportasse sozinho até conseguir embarcação na qual se acomodasse e se dirigisse para sua antiga cidade.
E, dois dias depois, encontraremos Kalmark misturado ao amontoado de mercadorias e animais que subiam lentamente o rio, na direcção de sua antiga moradia, a velha capital de Amon, agora a sede de seus sonhos amorosos ainda a serem concretizados.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 6 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:31 am

35 — O Reencontro
Dentro dos planos de Mudinar e, ao mesmo tempo, das determinações do destino destes espíritos em uma encarnação difícil, diante das situações e escolhas, o leitor pôde observar que quase num mesmo momento os personagens foram reconduzidos ao mesmo local de onde haviam partido.
É assim que, no curto espaço de alguns dias, todos revêem a atmosfera familiar da antiga capital.
Tão logo Hatsek aportou naquela que seria o seu destino, acompanhado pelo soldado que o escoltava, tomou o rumo da casa de Nekhefre, na qual residia a sua família e os seus agregados.
Dando a conhecer a sua chegada, um clima de alegria tomou conta dos moradores que, mais do que depressa se aprontaram para recebê-lo, pois imaginavam ser ele portador de notícias do chefe da família, distante já há um bom tempo, sem enviar quaisquer notícias.
Na sala principal da confortável vivenda se posicionaram, além da esposa saudosa, Kimnut, as duas filhas, Marnahan e Hatsena, bem como o administrador dos bens do príncipe em sua ausência e que, fielmente, mantinha a família protegida enquanto este não regressava.
Conduzido ao interior da moradia, naturalmente acompanhado pelo soldado, Hatsek saudou a todos no que foi correspondido com carinho e afecto, já que todos ali tinham por ele inexcedível consideração.
A presença do soldado estranho, contudo, intimidava a expansão dos sentimentos de forma mais natural, eis que, desconhecido, a sua permanência indicava que alguma coisa não corria adequadamente.
— Agora que já estamos aqui para que possamos desempenhar as tarefas que o nobre Mudinar nos apontou, desejo conversar com todos sem a presença de pessoas estranhas e que não estejam directamente ligadas aos factos — disse o sacerdote, dirigindo-se ao soldado, como a lhe solicitar a retirada do ambiente.
Entendendo o que se lhe estava pedindo, o soldado procurou como olhar alguma orientação a fim de que pudesse se afastar, sem, contudo, deixar o sacerdote livre para fugir de seus olhos vigilantes.
— Minhas tarefas são claras — respondeu o soldado — posso permanecer em qualquer local que me permita exercê-las sem constranger a ninguém. Por isso, gostaria de que me apontassem onde posso me colocar a fim de guardar a saída da residência, vigiando-a a fim de evitar qualquer fuga.
— Esteja certo, meu jovem, que não é necessário preocupar-se com fuga, eis que não deixarei de cumprir o meu dever diante da autoridade que me enviou — respondeu o sacerdote. No entanto, compreendendo os seus deveres, posso informar-lhe que um serviçal desta casa o irá levar até o local de onde seus olhos possam comprovar a afirmação que acabo de fazer.
A uma ordem de Kimnut, um serviçal destacado pela senhora acompanhou o soldado até o ponto de saída da casa, onde se postou, não sem antes avaliar todo o trajecto e procurar aguçar os ouvidos para captar o teor da conversação.
Reunidos, agora, a sós, puderam todos se sentir mais confortáveis nas exteriorizações de seus sentimentos.
— Ah! Querido Hatsek, como é bom poder revê-lo — afirmou Kimnut, entre feliz e ansiosa. — Espero que tudo esteja bem com Nekhefre e que você tenha notícias dele para nossos corações apertados.
— Sim, minhas queridas filhas do coração. Para mim também é uma alegria reencontrá-las mesmo nas condições em que este reencontro acontece. É verdade que trago notícias do nobre príncipe que, por motivos alheios aos seus desejos, não pôde estar aqui. Foi ele nomeado para um alto cargo no reino de Akhenaton e se vê envolvido nas questões do reino, ainda que nosso faraó esteja relegando todos os negócios de Estado a plano secundário, arraigado que se encontra aos problemas da religião. No entanto, tal nomeação foi uma maneira de impedir que o príncipe se afastasse de Amarna.
Suas palavras, a princípio orvalhadas de notícias alvissareiras - entre as quais, a da nomeação para o alto cargo na corte do rei, logo foram toldadas pelo véu da preocupação.
— Ah, mas que coisa boa a promoção de Nekhefre a auxiliar do faraó — exclamou Kimnut, sempre preocupada com as coisas fúteis e com as situações exteriores, o que lhe iria custar muito sofrimento também.
— Sim, querida Kimnut, pode parecer que tal nomeação lhe seja vantajosa, do ponto de vista imediato. Todavia, como já relatei, creio que não passa de uma estratégia de Mudinar para mantê-lo afastado de Tebas. E o que tenho a dizer-lhes, é algo muito importante para o qual peço a compreensão e a força de suas almas valorosas.
O tom de suas palavras apontava para algo muito difícil de ser ouvido e pedia de todas as pessoas ali reunidas o silêncio para melhor aquilatarem as consequências que tais notícias teriam em suas vidas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:31 am

— Sabendo da ligação do príncipe com o culto de Amon-Rá, o faraó exigiu dele que adoptasse a postura clara diante de todos os presentes à audiência a fim de que renegasse a antiga fé, o que foi levado a fazer e, mais do que isso, foi levado a firmar documento oficial através do qual declarava solenemente a repulsa aos antigos deuses. Não contente com tal declaração, Mudinar, o Chefe da Guarda Real, astuto e perigoso, conseguiu que o faraó o nomeasse, como já disse, seu funcionário real, o que o prenderia em Amarna por mais de uma cheia do Nilo.
Naturalmente que essa nomeação fora concedida pelo rei como uma grande honra e uma subida homenagem ao próprio príncipe que, obviamente, não tinha como recusá-la. Mas o que é mais sério é que o Chefe da Guarda, para comemorar tão importante e pública adesão do príncipe Nekhefre, solicitou do faraó e o obteve a autorização para desposar as suas duas filhas, Marnahan e Hatsena, as quais, igualmente, passam a ser consideradas extremamente afortunadas por poderem se tornar esposa de um homem tão importante do reino.
Aquela notícia foi uma verdadeira bomba na alma de todos os que ali se achavam. Em frases curtas e rápidas, o sacerdote lhes comunicara a mudança de todo o destino e o cancelamento de todos os sonhos.
Marnahan fez-se lívida e precisou sentar-se para não cair. Hatsena começou a chorar desesperadamente, na sua incapacidade de conter as emoções de maneira controlada. Kimnut se viu confundida na sua superficialidade que não sabia aquilatar se o comprometimento das duas filhas com um homem poderoso era coisa boa ou ruim, não sabendo avaliar, a princípio, se tudo isso estaria sendo uma grande desdita ou um grande golpe de sorte na vida de todos.
— A minha função, aqui, é a de comunicar-lhes a necessidade de se prepararem para a transferência para a capital Amarna, levando todas as coisas que possuem, vendendo todos os bens a fim de que, em breve, possam as duas filhas ser levadas a conhecer o noivo que as está aguardando.
— Eu não vou me casar com nenhum camelo gordo, mesmo vestido de ouro — gritou Hatsena, sempre mais explosiva do que a irmã. - Eu não quero, não quero, não quero e não vou. Ainda não nasceu o homem que vai me obrigar a fazer isso...
— Calma, minha menina — respondeu o sacerdote. — Eu ainda não terminei.
— Pois então, querido sacerdote, fale-nos tudo — pediu Marnahan.
— Tudo isto que contei, são as aparências da verdade. Não representam toda a verdade real.
— Como assim? — perguntou Kimnut.— O que existe por trás de tudo isto é o que é mais grave. Pelo que pude perceber, Mudinar é o terror encarnado em forma de gente.
Por algum motivo que ainda não consegui descobrir, ele nutre especial e silencioso ódio contra o príncipe Nekhefre e está tentando fazer de tudo para levá-lo à desgraça pessoal.
Humilhá-lo publicamente, prendê-lo em Amarna quase sem funções verdadeiras, eis que, pelo que acabei sabendo, ele não exerce na prática nenhuma tarefa específica, tomar-lhe as duas filhas como esposas, tudo isto representa um plano medido e construído para ferir o príncipe no que ele possui de mais precioso.
Não sei, como já disse, de onde provém tal sentimento. Mas pressinto que, a partir de agora, para todos vocês, os dias do futuro haverão de ser dias amargos.
Eu mesmo, depois que presenciei todos estes fatos, fui recolhido à prisão sem qualquer outro motivo que a acusação de ser sacerdote de Amon-Rá, já que todos estamos banidos e acusados de conspirar contra a nova ordem religiosa. Se é verdade que meus companheiros de templo são irresignados diante da perda dos antigos privilégios, jamais permiti que me envolvessem em quaisquer práticas conspiratórias ou reuniões secretas, já que discordo de todas as práticas anteriores, no culto remunerado, na troca de favores com os homens.
Ainda assim, permaneci longo período na prisão, de onde fui retirado somente para estar aqui, por ordem do próprio Mudinar e, com certeza, para onde retornarei depois de cumprir as suas determinações.
A notícia de sua prisão foi uma outra agravante nas emoções de todos ali naquela sala. Por conhecerem-no como homem correto e honesto, sabiam que não haveria equilíbrio em qualquer julgamento que o prendesse. Perceberam que a justiça estava nas mãos de uma pessoa inescrupulosa, que a torcia segundo seus interesses.
Todos estavam calados diante de tais avaliações do sacerdote.
— E a própria Kaemy está presa nas mesmas dependências em que eu me encontrava. Quando saí de lá, deixei-a reclusa, sem ter qualquer explicação para a sua prisão.
A menção de Kaemy foi uma dura surpresa nos corações de todas elas, já que nutriam pela antiga serva um sentimento de carinho e sabiam, no fundo de seus corações, que ela e seu marido não haviam merecido a dureza de tratamento que lhes havia sido imposto por Nekhefre naquele triste dia do passado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:32 am

Ao pensar em Kaemy, Marnahan sentiu o peso do amor que trazia no coração. Kalmark deveria estar em Amarna. — Por que não mandava notícias, por que não fizera algo para atestar a manutenção de seus objectivos, tão sonhados por ambos? — pensava em aflição. — E agora, o que fazer, diante da sua entrega em matrimónio a um homem tão perigoso e calculista? Onde albergar o sentimento sincero que trazia por Kalmark? Como solucionar essa difícil situação? Depois de todos terem sido informados dos detalhes e de terem dado vazão às indagações mais angustiosas, todas elas respondidas com equilíbrio e carinho pelo sacerdote, a exaustão assumiu o controlo de todas as emoções, impondo que todos se recolhessem para que, no silêncio da meditação pudessem encontrar consolações e ideias que lhes permitissem solucionar tão angustioso problema.
Kimnut se assemelhava a um insecto entorpecido que não sabia o que pensar, para onde correr. Hatsena se apresentava como a adolescente rebelde e insensata e Marnahan, na flor da idade adulta, se mantinha entre a tristeza, a melancolia e o amor em vias de frustrar-se.
O que fazer? — pensavam todas elas.
Hatsek foi encaminhado também aos seus antigos aposentos na moradia de Nekhefre, onde pôde entrar em orações e se entender com o Espírito amigo de Khufu, que o conduzia seguramente pelas estradas tortuosas que os homens constroem, acreditando-se deuses na vida dos outros.
Não sabiam que, dois dias depois, outra surpresa estaria reservada para a família. Nekhefre estava a caminho, sem saber o que o esperava.
Enquanto viajava rio acima, ao sabor do balanço do Nilo e da força do vento, o príncipe imaginava uma forma de dar a notícia que mudaria o destino de todos para sempre, sem que tal gesto causasse o impacto negativo nos espíritos de suas filhas. Era, sobretudo, nelas que ele pensava muito.
Queria dizer a verdade, mas sua personalidade tíbia estava sempre tendendo a tergiversar, a fraquejar, a maquiar a verdade com o véu da fantasia. Não sabia ele que, a qualquer tentativa de dar uma ênfase diferente sobre os fatos passados, encontraria nas filhas e na esposa o espírito já notificado de outra realidade.
Ele próprio não sabia que Hatsek havia sido enviado antes para contar-lhes tudo.
E, apesar de o sacerdote ter ocultado, propositadamente, ter sido ele também publicamente renegado pelo príncipe e de que Nekhefre oferecera uma das filhas para salvar a pele da outra — informações estas que em nada ajudariam na diminuição de seus sofrimentos, — o sentimento de aversão ao casamento com Mudinar já se havia instalado no coração de todas elas.
Ao chegar em sua antiga casa, Nekhefre seria surpreendido pelas informações que se lhe haviam antecipado, exactamente como Mudinar desejava. Estaria, assim, diante dos seus entes queridos como um réu perante o tribunal. E isso, efectivamente, foi o que ocorreu.
Surpreendidos novamente pela notícia da chegada do príncipe, o alvoroço familiar se fez ainda maior do que o que se verificou com a chegada de Hatsek. O sacerdote não se encontrava em casa, uma vez que, seguido pelo soldado e pelo espião que, à distância, acompanhava os passos de ambos, houvera se dirigido para o antigo templo, a fim de avaliar como se encontravam os seus companheiros e como é que estavam as coisas que lhe haviam pertencido.
Não fizera qualquer mistério ao soldado acerca de seu destino.
E como Mudinar lhe havia aconselhado garantir ao sacerdote uma certa liberdade de acção, o militar não se opôs a qualquer desejo de Hatsek que estava fazendo o que lhe impunha a consciência, sem temer qualquer represália.
Daí, quando da chegada de Nekhefre, Hatsek encontrar-se afastado do ambiente para onde só regressaria algumas horas mais tarde.
Novamente, na mesma sala de reuniões, a família se congregara para o extravasamento de suas emoções contidas há tanto tempo e feridas, agora, pelas notícias de Hatsek.
As lágrimas rolavam pelo rosto de Marnahan, de Hatsena e de Kimnut, abraçadas ao príncipe que lhes trazia, novamente, o sentimento de família ao seio da casa.
Colocados em seus lugares, Nekhefre tomou a palavra e lhes dirigiu vibrações de amor e saudade, como alguém que bebe a linfa pura da serenidade.
Passara tanto tempo entre a mentira e a perseguição, entre os intriguentos e perigosos disfarçados de boas pessoas que estar ali, podendo extravasar seus sentimentos sem dissimulação, era-lhe um refrigério para o espírito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 11:32 am

Quando tomou a palavra, as três mulheres de sua vida estavam em silêncio, contendo o vulcão que lhes oprimia o peito, a fim de escutarem, com o respeito e a consideração que os costumes da época exigiam das mulheres, tudo aquilo que Nekhefre tinha a dizer.
A relação antiga impedia que o homem fosse interrompido ou interpelado pelos que se lhe colocavam em patamar inferior. E todas as mulheres assim eram consideradas, notadamente aquelas que, além de serem mulheres, eram-lhe directamente dependentes, fosse na condição de esposa, fosse na de filhas.
— Tenho boas notícias — falou o príncipe, tentando ocultar o sentimento de amargura no peito. — Sou funcionário do Egito, nomeado com distinção e que está ligado ao mais importante homem da Terra, o nobre faraó Akhenaton.
Diante da reacção fria de suas ouvintes, que não esboçaram mais do que um leve aceno de cabeça, com excepção de Kimnut que sorrira timidamente, Nekhefre se sentiu decepcionado, pois esperava uma aclamação esfuziante.
— Mas vocês não ouviram o que eu falei? Sou funcionário do rei enão recebo nenhuma aclamação? — perguntou ele como que a permitir que as suas ouvintes se manifestassem.
E, como sempre, Hatsena foi quem falou, ao perceber que o pai nada mencionava sobre as desgraças que caíam sobre elas:
— E você conseguiu esse emprego antes ou depois de suas filhas terem sido pedidas em casamento, com o seu consentimento ou sem o seu protesto, por uma cobra venenosa sem serem consultadas?
— Hatsena, não fale assim com seu pai — advertiu Kimnut à jovem arrojada que lhe projectava na face a indignação que ele estava tentando ludibriar.
— Mas o que é isso, minha filha, não estou compreendendo - respondeu Nekhefre desejando se fazer de desentendido. Não falei nada de casamento...
— É, mas nós já sabemos que temos noivo e que o próprio rei autorizou o casamento de nós duas na sua presença...
— Como é que vocês estão sabendo disso tudo se eu não terminei de contar o que aconteceu por lá nesse tempo todo? — perguntou Nekhefre surpreso diante da acusação directa.
Marnahan, tomando a palavra com esforço para conter a serenidade que deveria apresentar diante do pai, esclareceu-lhe:
— O sacerdote Hatsekenká, há dois dias, chegou de Amarna com todas estas notícias e com a tarefa de nos informar que Mudinar está nos esperando para consorciar-se connosco.
O príncipe ficou atordoado. Hatsek ali, em sua casa...
Não sabia o que dizer. Precisava de tempo para coordenar as ideias e não podia continuar sem comprometer-se ainda mais.
A postura antes altiva e optimista, ainda que encenada, deu lugar a um príncipe alquebrado e acusado pela própria consciência. Perguntava a si mesmo, por que é que Hatsek havia sido mandado para ali antes dele mesmo? Qual a motivação de estar no mesmo ambiente daquele velho amigo injustiçado pela sua conduta ingrata e interesseira?
Tomando coragem, o príncipe perguntou sério:
— Ah! Se Hatsek já falou alguma coisa, quero saber o que foi que disse para ver até que ponto vocês estão sabendo das coisas.
Na verdade, desejava aquilatar quais as situações que o sacerdote lhes havia revelado, como modo de proteger-se de qualquer revelação incómoda ou desnecessária que demonstrasse o seu comportamento equivocado e covarde diante do faraó.
E como Hatsek houvesse omitido das três tanto o repúdio que ele, Nekhefre, votara ao sacerdote quanto ao fato de ter acabado entregando as duas filhas num gesto de desespero e insensatez, tentando impedir que Hatsena se casasse com Mudinar, a versão apresentada pelas filhas não fazia menção a tais fatos, o que aliviava a sua consciência, já que estariam desconhecidos delas o seu comportamento vil diante dos interesses e pressões mundanas que sofrerá em Amarna.
Quando se entrevistasse com Hatsek, lhe pediria desculpas e tudo estaria resolvido.
Quanto às filhas, mais cedo ou mais tarde compreenderiam que ele não tinha tido qualquer culpa e que, diante da ordem superior ditada pelo próprio faraó não tivera oportunidade de opor-se às suas determinações.
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