LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 5 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 7:25 pm

O primeiro homem, vendo ao longe que se aproximava o local combinado para o crime, levantou-se com pequeno frasco nas mãos e, dirigindo-se até o barqueiro, tentou ser cordial:
— Miradj, tome aqui um presente para tirar a monotonia de seus olhos. Trata-se de um vinho especial que tive o cuidado de guardar comigo para lhe dar pela gentileza de nos estar proporcionando tão agradável viagem.
— Obrigado, Hatif, mas você sabe que não costumo beber quando tenho que manter o barco no rumo certo — respondeu Miradj, responsável como sempre.
— Ora, homem, não estou querendo que se embriague. Apenas prove este néctar digno de Akhenaton, para que, ao final desta jornada possa se afogar nele o suficiente para se livrar do cansaço da viagem.
— Bem, isso é verdade. Que mal um gole só pode fazer, não é mesmo? — pensou alto o barqueiro, estendendo a mão para apanhar o pequeno frasco de barro onde se acondicionava o líquido. Não sabia Miradj, entretanto, que Khufu o estava induzindo a aceitar a oferenda, pois ela iria ser usada no mecanismo de auxílio a Kaemy, adormecida e fraca em seu lugar, sem desconfiar de nada.
As correntezas ainda esteavam distantes e provar a bebida não produziria nenhum efeito em seu corpo acostumado a bebidas muito mais fortes e a doses muito maiores.
No entanto, ao oferecer o vinho ao barqueiro, Khufu impregnou o recipiente com uma força tal que o mais simples gole representaria o necessário para que os efeitos de leve embriaguez se fizessem surgir, rapidamente.
Enquanto esse diálogo ocorria, Sektene, o outro, incumbia-se de providenciar a mordaça para Kaemy que, desacordada, não se opusera a nada, nem percebera os intentos de seu assassino.
Impondo as mãos sobre o corpo de Miradj, Khufu actuava em seu estômago e no sistema nervoso, propiciando que a dose minúscula de álcool que fora ingerida, se transformasse na alavanca que utilizaria para melhor dirigir os destinos da embarcação, segundo suas necessidades.
Com o efeito potencializado da bebida, graças à acção do Espírito de Khufu, Miradj, sem perceber, ficara vulnerável às ilusões que, do mundo espiritual, o mesmo guia de Hatsek e protector de Kaemy iria produzir.
As corredeiras se aproximavam e Miradj não percebia nenhuma alteração de suas percepções, já que se encontrava sóbrio como antes.
Todavia, seu corpo estava sendo invadido por uma sensação de leve sonolência, como se uma hipnose suave viesse a tomar conta de sua estrutura mental.
Percebendo que o outro homem, Sektene, estava dando sequência ao plano, Khufu começou a induzir Miradj, através da criação de quadros mentais, a desviar o barco para fora da rota costumeira, como se o barqueiro estivesse vendo a rota verdadeira em sua mente, mas, ao persegui-la, se colocasse um pouco fora da trajectória normal e segura.
Com isso, o barco começou a se afastar na direcção de algumas rochas que emolduravam o leito principal.
Isso, no entanto, não era notado pelos dois homens, comparsas do crime. Nem Hatif nem Sektene estavam percebendo que o barco estava se dirigindo para além das águas seguras. No leme, Miradj seguia firme, observando as coisas sem perceber que estava sendo conduzido por Khufu.
Voltando ao seu lugar e percebendo que a atenção do barqueiro, agora, estava voltada para o perigo das corredeiras, Hatif buscou por Sektene para ver como as coisas estavam, aproveitando-se da razoável escuridão.— Venha me ajudar aqui, seu traste preguiçoso — falou Sektene ao seu comparsa.
— Ora, seu verme, você não dá conta de uma mulher fraca e doente sozinho? — afirmou-lhe em resposta Hatif. Bem que se fosse eu já tinha mandado essa “coisa” pro fundo do Nilo.
— Eu não sei o que é, mas parece que esta mulher pesa mais do que o barco inteiro... — exclamou o primeiro.
— Vamos nós dois juntos, então. Quando o barco começar a sacudir mais forte, nós pegamos ela por baixo e jogamos na água — afirmou Hatif.
Não sabiam eles, no entanto, que sobre Kaemy os Espíritos impunham um halo protector que tornaria difícil qualquer acção no sentido de prejudicá-la.
Do mesmo modo, não tinham ideia do que estava prestes a acontecer.
As correntezas estavam começando a engolir o barco, fazendo-o chacoalhar mais do que o normal, tendo Miradj o cuidado de tentar manter o curso a fim de não se ver envolvido em qualquer desastre.
Khufu, da mesma maneira, impunha suas mãos sobre a mente de Miradj para que ele fizesse as coisas certas na hora correta.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 7:25 pm

O barco, no entanto, dirigia-se para a proximidade das pedras, sem que Miradj se desse conta, pois estava sofrendo a interferência magnética do Espírito amigo, que se valera da ingestão da pequena dose de álcool para usá-lo no processo de produzir a necessária alucinação temporária.
Os dois malfeitores estavam acocorados junto de Kaemy que, deitada no fundo do barco, não percebia que seria alijada do mesmo para sempre.
Todavia, a certa altura do trajecto, o Espírito de Khufu, deliberadamente, fez cessar a hipnose que mantinha Miradj, erroneamente, na direcção das pedras.
Tão logo se deu conta do risco a que estava exposto, Miradj providenciou uma brusca mudança na direcção do barco, num gesto de desespero supremo para livrar a embarcação do acidente fatal, virando-a para a esquerda, tentando retornar ao leito seguro de onde tinha se afastado alguns metros.
O movimento fora rápido, mas sem causar qualquer abalo ou surpresa no interior da embarcação aos que ali se encontravam, acreditando todos que era uma das ocorrências normais daquele trecho mais perigoso.
No entanto, ainda que tivesse conseguido desviar o barco, a força da inércia levara o seu casco a um choque brusco contra a parede de pedras que ali estavam à espreita dos incautos e, desse choque, ainda que de raspão, um baque forte tirou todas as coisas do lugar, abalou todos os objectos no interior da embarcação e, os dois homens, acocorados e sem apoio suficiente para se agarrarem diante do impacto, foram projectados para fora, atirados no leito do rio.
Kaemy, aturdida pelo ruído do choque e pelo barulho das coisas que caíam à sua volta, acordou de sua inconsciência, percebendo-se toda amarrada e amordaçada, sem saber qual o motivo de tal situação.
Os gritos dos homens foram ouvidos por todos, mas Miradj não tinha como deter o barco que, salvo do choque pela sua perícia, seguiu descendo o rio, acelerado pela força da corrente, deixando para trás os dois desumanos seres que, sem qualquer escrúpulo, pretendiam tirar a vida inocente de Kaemy, como se fossem representantes da Justiça Divina, decidindo quem vive e quem morre.
Naquelas condições, os Espíritos amigos puderam valer-se da maldade deles para proteger a inocente mulher e os dois receberam tão somente as consequências do que haviam semeado.
Estivessem em paz nos seus lugares e poderiam ter completado a viagem sem problemas.
Agora, eram dois homens molhados, levados pela força das águas e que, com toda a certeza, passavam a dar mais crédito à maldição, acreditando que fora por causa dela que tudo aquilo havia acontecido com eles quando, em verdade, somente eles mesmos poderiam ser considerados os responsáveis pela própria desdita.
Como o leitor amigo pode perceber, há coisas que os Espíritos Superiores autorizam e que são realizadas a benefício dos demais, utilizando-se da própria maldade dos mais ignorantes.
Khufu, na missão de proteger a mulher enferma, não agiria desse modo se, em resposta às suas orações, não obtivesse a autorização necessária para adoptar a medida mais drástica.
Além disso, só recorreu a ela, depois que os dois homens mostraram-se insensíveis a todas as intuições espirituais para que não fizessem o que pretendiam realizar. Destemidos e sem quaisquer sentimentos de humanidade, passaram a ser os únicos responsáveis pelos acidentes que vieram a lhes suceder e que os alijou da protecção e segurança que antes possuíam.
Desse modo, aprendamos juntos a entender as mensagens do amor em nossas vidas, pois elas estarão sempre nos livrando de um acidente mais grave, mais sério e mais fatal.
Lembremo-nos, também, dos efeitos nefastos e perigosos causados por todo o tipo de substância entorpecente que venha a tisnar o raciocínio, produzindo malefícios tão mais graves e profundos do que qualquer benefício que o usuário possa experimentar.
No caso em tela, pudemos ver como um Espírito elevado se serviu dos efeitos alucinatórios que o álcool favorece para atingir um objectivo nobre e positivo, qual seja, o de salvar a vida pelo único meio que lhe restou tentar.
No entanto, reflictamos para a hipótese de estar o indivíduo sob a influência de um Espírito menos elevado, que poderia induzi-lo à prática de um crime, a um acidente que vitimasse todos os passageiros do veículo, a um comportamento que comprometesse toda a sua vida e o seu conceito como pessoa respeitável...
Por isso, devemos nos lembrar dos ensinamentos do Divino Amigo que pede não apenas que oremos, mas, sobretudo, que VIGIEMOS sempre, para que não caiamos em tentações.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 7:25 pm

Os nossos dias estão cheios de ocorrências que começam dessa maneira e que, ao invés de serem guiadas por Espíritos luminosos, são dirigidas pelos companheiros imperfeitos que os próprios encarnados escolheram como seus amigos ou sócios de experiências.
Daí, todos os dias, inúmeras tragédias abalarem as manchetes e surpreender as pessoas, como se a “coincidência” fosse a conspiradora para a ocorrência das dores que fustigam a vida dos incautos.
Estejamos mais ligados ao bem, pelas acções, pelas palavras, pelos pensamentos, pelos sentimentos, o que nos ligará mais fortemente aos Espíritos nobres e luminosos que se valem de todas as suas forças para nos proteger contra o mal, mesmo quando algum mal nos atinja.
Estejam certos de que, nessas condições, todo o mal que nos atingir, será uma porta aberta ao bem que nos chegará a partir dele, do mesmo modo que a saúde, muitas vezes, precisa ser reconduzida ao corpo através do bisturi salvador.
Lembremo-nos de que o agora é domínio de Deus, que sabe o que faz....
Pela nossa cegueira e imaturidade, nós só entenderemos o que Ele deseja nos ensinar,... ...um pouco ou muito tempo depois...
Seguiu o barco até Amarna, mantendo-se Kaemy em seu interior, tratada pela acção magnética dos amigos espirituais que propiciaram o seu reequilíbrio relativo até a chegada ao seu destino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 7:25 pm

26 — A influência negativa de Espíritos em desequilíbrio
A chegada de Kaemy a Amarna não lhe trouxe qualquer modificação no estado geral de debilidade e nenhum alívio tomou conta de sua alma quando, olhando à sua volta, percebeu que estava numa cidade estranha e sem qualquer referência que pudesse ajudá-la a encontrar o próprio filho.
Sem saber para onde ir, começou a andar por suas ruas cheias de pedestres, alguns negociantes, outros oportunistas, outros curiosos, todos orbitando ao redor das riquezas do rei.
Pensou em procurar a ajuda no templo de Amon-Rá que, por certo, deveria existir ali como em Tebas.
Ao fazê-lo, contudo, percebeu que todos os templos religiosos que não representassem a religião do faraó haviam sido fechados, por força do decreto real imposto a todo o reino, não fazia muitos dias.
Influenciado por Mudinar que, pelas informações obtidas com Roab, se viu ainda mais convencido de que se fazia necessária uma medida mais drástica contra todos os sacerdotes de todos os outros cultos, Akhenaton acedeu em banir todas as outras divindades da realidade religiosa do Egipto, fechando todos os templos e permitindo apenas o culto a Aton, com o qual somente ele — o Rei — poderia relacionar-se directamente.
Por isso, Kaemy não encontrou qualquer porta aberta onde pudesse encontrar acolhida ou condições de se encaminhar para achar seu filho.
Além do mais, estava fraca e não poderia dedicar-se a ir em sua busca imediatamente. Precisaria repousar em algum lugar que pudesse pagar e alimentar-se melhor para que as forças lhe fossem restituídas.
Encontrou uma modesta estalagem que lhe parecera conveniente, mas que, por força de sua condição feminina e desacompanhada, somente a muito custo aceitou-a como hóspede, já que a mulher desacompanhada era vista como fonte de problemas e causadora de confusões. Somente por ter-se apresentado como viúva à procura do filho e por se dispor a pagar pela estadia antecipadamente é que o proprietário garantiu-lhe um modesto lugar para poder repousar.
Naquele período, a mulher sofria ainda mais pela sua condição de criatura fisicamente mais frágil e dependente do amparo masculino, notadamente em um ambiente tão hostil e desértico como aquele.
Todavia, a presença marcante de Nefertite como esposa do Rei e mulher actuante auxiliara muito na mudança de alguns conceitos naquele período, sendo certo que os homens passaram a abrir algumas excepções na compreensão dos direitos da mulher.
Mesmo assim, a tradição antiga de repúdio a tais direitos femininos era muito forte e se impunha de uma maneira ou de outra.
Amparada pela esposa do dono da estalagem, Kaemy se viu acomodada em rudimentar estrado de madeira coberto com uma porção de vegetação à guisa de colchão, revestido de tecido grosso para manter-lhe a forma e impedir que se rasgasse com facilidade.
Ali colocada pela mulher que servia como funcionária de limpeza, cozinheira e arrumadeira, enquanto o marido cuidava da segurança, da vigilância, da cobrança dos valores, do negócio material em si mesmo, Kaemy identificara-se imediatamente com o sofrimento dessa jovem que perdia a sua vida nos serviços estafantes que ela mesma já havia experimentado.
Por esse motivo, ambas se sentiram aproximadas e iniciaram uma amizade espontânea que as colocaria como verdadeiras irmãs, apesar de se conhecerem há tão pouco tempo.
Eram dois espíritos amigos, provenientes das mesmas paragens espirituais, que se reencontravam e se associavam para o auxílio necessário nas horas da dificuldade. Kaemy e Elyha logo se puseram a comentar os seus problemas pessoais e uma quanto a outra se deixavam emocionar pelas desditas de que se viam vítimas, uma tentando ser escora da outra nos momentos difíceis.
Todavia, tão logo se viu abrigada e recolhida ao seu modesto quarto, as condições orgânicas de Kaemy voltaram a dar sinais de debilidade, logo observadas pela visão experimentada de Elyha.
— Você não está bem, Kaemy. Precisa descansar mais porque sem a saúde você não será capaz de encontrar seu filho e seria muito triste a sua chegada até aqui sem que conseguisse reencontrá-lo — disse a amiga, mais jovem do que ela, mas igualmente cheia de boas palavras e sentimentos no coração.
— Eu sei que não estou muito bem. Já na viagem me senti mal e fiquei desacordada por algum tempo, sem saber como não morri durante todo o trajecto. Não conseguia comer, na tinha ânimo para nada. Se não fosse a protecção de nossos deuses, estaria certamente entre os que viajam ao reino dos mortos para o encontro com os guardiães do reino das sombras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Dez 25, 2022 7:25 pm

— Mas agora que está aqui, fique sossegada que eu vou cuidar de você com o melhor que tiver. Vou preparar o seu alimento e virei aqui para que possa comê-lo quentinho e longe dos olhares curiosos desse amontoado de homens rudes que estão sempre desejando saber quem são os recém-chegados.
Não se preocupe com nada além de sarar desse estado de fraqueza. Enquanto isso, vou tentar obter informações sobre o seu filho, com algumas pessoas que se hospedam aqui e que, de boca em boca, acabam sabendo das notícias.
Já se havia passado vários meses desde a chegada de Kalmark e, pelo fato de ter sido aceito nos serviços ligados ao palácio que lhe consumiam todas as horas, poucas pessoas da cidade puderam ter contacto com ele. Mesmo a sua moradia pequena encontrava-se localizada nas periferias do próprio templo de Aton, em quase nada se afastando das dependências do mesmo para quaisquer serviços, a não ser quando procurava o mercado onde adquiria algum alimento que lhe estivesse em falta.
— Obrigada, querida Elyha, e desculpe esse transtorno que não gostaria de estar lhe causando. É verdade que Amon não se esquece de nós. Afinal, tem me concedido a bênção de, mesmo tendo perdido meu esposo, encontrar pessoas amorosas e amigas que têm sido o esteio para minha esperança e para a minha vontade de sobreviver. Não sei o que teria sido de mim se não tivesse encontrado Hatsek, Miradj e, agora, você mesma.
A voz de Kaemy tinha a entonação da verdadeira sinceridade e da gratidão mais emotiva, fazendo com que Elyha sentisse dentro de seu peito a emoção indescritível de tal manifestação agradecida.
Afagando os cabelos de sua nova amiga, Elyha prometeu que cuidaria dela, mas que ela deveria estar com o pensamento elevado para que a ajuda do Alto viesse mais depressa.
Todavia, o estado de saúde de Kaemy não se modificava, apesar dos esforços de Elyha que, em todos os momentos dos dias que se seguiram, tentava tudo fazer para ampará-la e cercá-la de todas as coisas que pudessem alterar-lhe o estado de abatimento.
Sem explicar ou entender o porquê dessa condição de fraqueza, Kaemy se envergonhava pela trabalheira que estava dando à nova amiga, já que algumas semanas se tinham passado e ela não conseguira modificar o seu estado físico.
Mantinha-se prostrada no leito sem qualquer mudança de ânimo.
Levantava-se a muito custo com a ajuda de sua amiga, preocupada em levar-lhe até o sol para aquecer-se pelas manhãs.
Acreditavam, com muita razão, que a luz solar tinha alto teor de refazimento de energias e era capaz, por si só, de promover muitas curas.
Kaemy se deixava levar, mas voltava para a cama do mesmo modo.
Em realidade, estava sendo magneticamente influenciada pelo Espírito de Meldek que, afastado do corpo físico, procurava por ela como a última fonte de energias e de afecto que possuía e que não desejaria perder.
Com a sua presença espiritual, todas as dores e os sintomas que Meldek apresentara durante o período final de sua vida física e que carregara consigo no pensamento para o Mundo dos Espíritos, eram projectadas sobre a mulher pelo simples fato de aproximar-se dela, espiritualmente.
A presença de Meldek induzia o espírito de Kaemy a suportar toda a influência negativa que o estado espiritual dele ainda possuía, já que haviam sido muito ligados durante a estadia na encarnação última. Sem conhecer tais mecanismos, entretanto, Kaemy sentia-se vítima de estranha fragilidade orgânica que não conseguia combater e que lhe minava as forças, apesar de todo o alimento que ingeria.
O Espírito Meldek, igualmente, afligia-se pelo estado de sua antiga companheira, sem sequer imaginar que ele mesmo era a causa de tal estado, já que o que pretendia era seguir apegado ao seu antigo afecto, sem produzir-lhe nenhum dano, ao contrário.
O desejo de Meldek era o de amar a esposa e velar pela sua paz na Terra.
Todavia, não sabia que a sua presença vibratória, repleta de ideias de dores, doenças, medos, angústias, projectava-se sobre o espírito de sua esposa e para ela eram transferidos naturalmente, fazendo-a abatida ao mesmo tempo em que dela sugava todos os princípios vitalizantes que o corpo físico produzia, como uma esponja que atrai para si todo o líquido com o qual se relacione directamente.
Qual esponja, Meldek absorvia as forças de Kaemy sem compreender que estava enfraquecendo aquela a quem dizia amar e que desejava proteger.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:53 am

Por esse motivo, a esposa se via daquele modo, impossibilitada de encontrar o auxílio e a melhora, apesar do tratamento alimentar a que se submetera.
Por outro lado, Meldek não desejava fazer o mal à sua companheira. Queria apenas estar ao seu lado, como se isso fosse lhe garantir segurança e bem-estar. Não entendia como é que tal comportamento dele causava uma situação de dor mais aguda no espírito e no corpo de Kaemy.
No fundo, recusava-se a admitir que era o gerador de tal processo de desajuste, uma vez que só trazia amor no coração. Tinha dificuldades, igualmente, em entender que o verdadeiro afecto não enjaula o ser amado, que não o prende, nem o obriga a submeter-se ao tipo de ajuda que o outro deseja para ele como a melhor. Via-se aturdido entre o desejo de ajudar e a situação cada vez pior de Kaemy.
Mesmo durante o sono desta, ao procurar aproximar-se do espírito da antiga esposa, sentia que ela se assustava com o seu estado geral e, da maneira mais rápida e fulminante, procurava voltar ao corpo físico como se fugisse de um fantasma.
Meldek não se dava conta de que Kaemy o via com a pigmentação esverdeada que a enfermidade lhe havia conferido, com todos os característicos da doença que lhe consumira o corpo físico com tal rapidez. Isso porque o desencarnado guardava para si as mesmas impressões mentais que lhe impregnaram o pensamento nos últimos momentos da existência carnal, desconhecendo que, agora, se encontrava no mundo das subtilezas, o mundo no qual o pensamento cria as formas e que somos o reflexo do que nossas ideias e sentimentos plasmam em nossas vidas.
Como era portador da ideia de que havia adoecido, que havia sofrido esta ou aquela alteração orgânica que ficara impregnada em seu interior, ao se apresentar do lado de lá aos que o amavam, fazia-o do mesmo modo como se imaginava. Desacostumado ao domínio da forma através de pensamentos de nobreza, de equilíbrio, Meldek continuava a parecer não um morto vivo, mas sim um morto-morto aos olhos de Kaemy.
Tais sonhos eram vistos por ela como reflexos de pesadelos com a alma do marido que seguia amando, mas que, como pedia todas as noites em suas orações, não voltasse do mundo dos mortos para perturbar-lhe a já tão difícil existência.
Vendo-o abatido e com o olhar confuso, Kaemy se sentia em dívida com o seu espírito como se ela não tivesse feito tudo o que poderia para ajudá-lo durante a enfermidade ou depois, durante os funerais.
Essas ideias tornavam-na mais angustiada por já ter ouvido de diversas pessoas ignorantes sobre as coisas do Espírito a informação de que a alma descontente regressava para reclamar aquilo de que fora privada ou o tratamento que não lhe fora dispensado, antes ou depois da morte.
Tudo isso era um verdadeiro martírio para Meldek que, se algo pretendia fazer por sua esposa, era ajudá-la a encontrar a paz, coisa que, realmente, não estava acontecendo.
Confuso com tudo isso, Meldek, certo dia, resolveu orar ao pé da companheira, rogando a Amon que o ouvisse e ajudasse.
Da oração sincera à percepção de luzes que se acercavam, como se as estrelas do céu egípcio tivessem descido do firmamento e o envolvido, foi uma fracção breve de segundos.
Assustado agora pela inusitada beleza do fenómeno que ocorria à sua volta, escutou a voz serena do Espírito Khufu, a lhe dizer de sua nova realidade espiritual e de que não mais precisava estar ali, fazendo o mal mesmo quando pretendia fazer o bem.
Atordoado pela capacidade de escutar sem conseguir ver de onde vinha a voz, orou em voz alta dizendo:
— Nobre Espírito que me escuta, se és o barqueiro que procurei sem encontrar, sabes que estou pronto para seguir minha viagem. Trago comigo as moedas para pagar a travessia... — falou tremendo por dentro.
Ouvindo-lhe a oração cheia dos conceitos culturais de seu tempo, Khufu se fez visível para responder-lhe:
— Acalme-se, meu irmão, pois você acabou de deixar o barco da vida física, recentemente. Há alguns meses, apenas, você estava entregue ao dissabor da enfermidade que, pela invigilância de seus pensamentos se instaurou igualmente para além da sepultura. Tal estado interior vem causando toda a desgraça física naquele ser que você diz amar.
— Sim, eu sigo amando Kaemy e não sei o que será de mim sem ela, agora que tu, emissário de Amon me permites vê-lo.
— Lembre-se, no entanto, meu irmão, de que o amor não prende nem exige devotamento. O Amor verdadeiro ama e passa, dando liberdade ao ser amado para que siga seu caminho sem quaisquer constrangimentos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:53 am

A sua conduta é mais daquele que deseja prender como a aranha ao construir a sua teia do que daquele que, efectivamente, ama libertando.
Aproveite essa oportunidade porquanto, se seguir fazendo o que está fazendo, em breve Kaemy terá sido arrebatada do mundo dos vivos e você, que muito diz amá-la, poderá será considerado o assassino que a matou no exercício do egoísmo e do apego que não cabem mais. Tais informações causavam um forte impacto no coração de Meldek, desajustado pelo medo da solidão e pela perda da companheira. Confrontado por Khufu consigo próprio, passou a entender que ele era a causa do mal de Kaemy, o que o fez se ver tomado de vergonha perante a sua própria inferioridade moral.
— Modifique seu pensamento, meu amigo. O pensamento, agora, representa a pedra que nós entalhamos e que durará o tempo que desejarmos. Do mesmo modo que os novos reis que sucedem aos antigos procuram os monumentos que marcavam a grandeza anterior para deles apagar os nomes gravados pelos seus construtores e patrocinadores, os Espíritos de nosso plano precisam entender que lhes cabe apagar dos pensamentos todas as inscrições nocivas e degeneradas, modificando as ideias para modificarem o seu estado exterior.
O que acontece com seu Espírito, meu irmão, é que você trouxe para cá a última enfermidade que consumiu as suas forças. Revestido desses fluidos pesados que o pensamento produz, seu corpo espiritual mais leve e maleável, imediatamente se viu impregnado pelas mesmas estruturas doentias que o corpo físico possuía, o que motiva o seu estado repulsivo e de aparência fantasmagórica. Não quero dizer, contudo, que por aqui você permaneça portador da mesma enfermidade, já que a sua conduta na Terra permitiu que se livrasse de tais causas íntimas para as doenças do corpo externo.
Ocorre que, por trazer em seu pensamento os reflexos da última enfermidade, você os reproduz por aqui em si mesmo. Daí, as vibrações que você emite serem como que corrosivas para os organismos físicos do mundo dos vivos que absorvem todas estas emanações deletérias e as reproduzem no próprio corpo de carne.
Muitos chegam mesmo a adoecer fisicamente, pela simples presença de nossos Espíritos desequilibrados e com muitas necessidades de aprendizado.
Ouvindo-lhe as exortações bondosas e firmes, Meldek passou a entender que a vida depois do túmulo pouco possuía daquelas construções imaginárias que havia desenvolvido quando se encontrava entre os detentores de um corpo carnal. Agora, do lado de lá da vida, passara a entender que não se trata, as antigas tradições religiosas, senão de meros referenciais simbólicos a traduzir as verdades do Espírito ao nível de compreensão das criaturas inconsequentes é imaturas para tais realidades.
Surpreso diante de tais fatos, Meldek baixou a cabeça, envergonhado, e começou a chorar diante de seus actos, agora entendidos como actos egoístas e indiferentes para com o bem-estar de sua companheira.
— Não chore, meu irmão. Todos nós devemos agradecer pelas informações que nos transformem a conduta e nos façam abandonar a ilusão infantil. Erga-se sobre seus próprios pés e abandone o desejo de apego ou de domínio sobre o coração amado que, a rigor, não pertence a ninguém a não ser ao próprio Ser Maior, o Criador de todas as coisas.
Se aceitar nossa ajuda, prometemos o tratamento para seu Espírito, ao mesmo tempo em que providenciaremos o reequilíbrio das forças de Kaemy — falou resoluto e sereno o amigo espiritual.
— Mas eu nunca mais vou poder voltar para encontrar minha mulher? — perguntou Meldek ainda confuso diante de tanta novidade que se lhe impunha a constranger-lhe uma mudança difícil de ser compreendida pelo seu Espírito imaturo.
— Primeiramente, meu irmão, modifique o vocabulário. Kaerny não é mais a sua mulher. Quando muito ela seguirá sendo a SUA IRMÃ, por ter-se entregue a você com carinho e por ser filha do mesmo Criador de nós todos. No entanto, ela é também MINHA IRMÃ, como de todos os demais, do mesmo modo que eu sou SEU IRMÃO.
Em segundo lugar, ninguém está dizendo que a sua ausência será para sempre. Ela estará subordinada à sua condição de equilíbrio na compreensão das leis do Universo e de domínio sobre si próprio.
Quanto mais cedo isto tudo ocorrer, mais rápido será o seu reencontro com SUA IRMÃ, Kaemy. Compreende? — perguntou Khufu, como que dando por encerrada a sua parte de esclarecimento.
O gesto silencioso e reverente da cabeça de Meldek apontou para a aceitação de todas as palavras de Khufu que, sorridente, ofereceu-lhe o braço amigo para enlaçá-lo e levá-lo consigo para o conhecimento de muitas outras verdades espirituais sempre existentes desde o mais antigo dos tempos, mas somente explicitadas ao conhecimento de todos com o advento da terceira revelação, do Consolador Prometido por Jesus, na figura da Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:54 am

Afastara-se o Espírito de Meldek.
Com isso, os amigos espirituais auxiliares de Khufu passaram a providenciar a reactivação das defesas orgânicas de Kaemy a fim de que pudesse seguir a jornada que a aguardava pela frente, na busca do filho e na ajuda que deveria oferecer a todos os que estivessem ao seu redor.
O BEM jamais se impõe ao mal. Seu poder é tão soberano e tão compassivo que procura sempre ensinar a ignorância para que ela se ilumine, desde que esteja o ignorante desejoso de iluminar-se.
Muitas vezes, o homem imagina que está fazendo o correto quando, em verdade, está apenas reproduzindo apegos ou impondo sua vontade sobre os outros, de maneira tirânica, com a desculpa de que está amando.
Quando o ser não se dispõe a rever as suas condutas desvinculadas da harmonia do Universo, no entanto, fica entregue aos efeitos de seus próprios actos, responsabilizando-se pelas suas próprias desgraças.
Se o desempregado, por exemplo, não entende a necessidade de sair a buscar o trabalho honesto com que haverá de encontrar os recursos de que necessita, ao se atirar ao crime, ao furto, ao delito, se responsabilizará directamente pela corrigenda que merece ao ser detido e levado para a prisão.
Se o homem sadio não aceita limitar seus desejos e se entrega a todos os excessos alimentares, acabará como único responsável pela enfermidade que criará para si próprio.
Esta foi a diferença entre Meldek, que aceitou as exortações do Espírito de Khufu,. e os dois malfeitores que acabaram atirados para fora do barco ao tentarem livrar-se de Kaemy.
Como dizia Jesus aos nossos corações, “ouça o que tem ouvidos de ouvir”.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:54 am

27 — Um longo dia para todos
O progresso de Kalmark era muito grande para a sua idade.
Espantava os próprios artífices mais consagrados e, como já se falou, poucos possuíam ainda alguma coisa a ensinar-lhe, ao passo que a maioria deles começava a adaptar algumas das técnicas do jovem às suas próprias, copiando-lhe o estilo.
Ao longo desses quase dois anos em que o jovem se embrenhava nas tarefas de criação junto à corte do faraó, sua estrutura física ganhara em vigor e a sua aparência sofrerá as alterações que a maturidade e o tempo produzem naturalmente nas criaturas, tornando-o mais robusto, modelado pelos trabalhos pesados do talhe de blocos de pedras, ao mesmo tempo em que já se familiarizava com a utilização das pinturas e maquiagens faciais características que atestavam a sua inclusão na casta dos que serviam directamente ao rei.
Todas as modificações o tornaram mais belo e distanciaram-no da imagem daquele jovenzínho que houvera, anos antes, abandonado a residência de Nekhefre de maneira ousada em direcção a um futuro incerto.
O que é certo é que pelos méritos do jovem artesão, Mudinar havia prometido que, se demonstrasse a capacidade que parecia possuir ao longo do tempo de experiência em que ficaria sob a sua observação pessoal, seria apresentado pessoalmente ao faraó Akhenaton, o que representava a mais elevada honra que qualquer artista que trabalhasse na casa real poderia sonhar.
Com essa promessa, o chefe da guarda desejava manter-se no controle dos impulsos do jovem que sabia ser muito importante para os seus planos pessoais.
Deixaria que trabalhasse e, com a promessa em suspense, poderia estimulá-lo a ficar, cada vez mais, silenciosamente entregue às tarefas artísticas, esperando o momento adequado para colocá-lo perante o faraó.
E como a hora havia chegado, depois dos já mencionados quase dois anos de trabalho esmerado, Mudinar mandou Roab, o mesmo espião que servia ao chefe da guarda e que conhecera Kalmark a bordo do barco que o transportara até Amarna, dar-lhe a alvissareira notícia.
— Meu jovem artista — disse o senhor ao encontrá-lo nas oficinas reais — prepare-se para o grande dia de sua vida.
— Ora, meu nobre protector, para mim, servir ao faraó já representa o grande prémio de minha vida. Por isso, procuro fazer o melhor que posso, apesar das caras feias que tenho de enfrentar por aqui, quando meu trabalho empalidece o dos demais — respondeu o jovem, cordial e feliz com a visita daquele que julgava ser o seu benfeitor.
— Isso nós já sabemos, Kalmark, mas o que me traz aqui hoje é uma determinação de Mudinar — o poderoso chefe da guarda pessoal do rei — para que se prepare, pois daqui a dois dias, se tudo correr como ele está esperando, você será apresentado pessoalmente a Akhenaton.
Essa notícia pareceu um raio gelado que percorreu todo o corpo do jovem. Já se havia esquecido da promessa de Mudinar e se entretivera tanto na construção das obras de arte nos diversos materiais disponíveis, que não mais pensava na possibilidade de ser recebido pelo faraó, segundo o acenado pelo conselheiro real.
— Não acreditaria nessa notícia se não fosse o nobre Roab o seu portador — respondeu o jovem, procurando ocultar a euforia que lhe invadia a alma.
— Pois pode acreditar e esteja preparado a carácter, pois Akhenaton deseja conhecer o autor das mais belas obras que, ultimamente, se tem realizado por aqui... — terminou Roab, dando-lhe as últimas instruções sobre a roupa que deveria usar, as maquiagens necessárias para se colocar diante do rei no dia da audiência e que, se nenhuma outra notícia lhe chegasse alterando as coisas, dali a dois dias deveria apresentar-se a Roab no palácio, junto à sala da guarda real, de onde seria encaminhado ao cerimonial de apresentação.
Tudo acertado, o coração de Kalmark dava pulos de alegria dentro do peito, sem poder imaginar o que fazer diante do maior de todos os egípcios : o próprio faraó.
Dentro de seu coração, aninhava-se a ideia de apresentar-lhe uma de suas jóias mais bem produzidas e entalhadas, de modo a presentear o rei com o melhor de sua técnica. Por isso, lembrou-se de algumas das mais perfeitas produções suas que realizara nos momentos de descanso e que guardara para alguma ocasião especial, na qual comercializaria a obra de arte e juntaria o recurso para a realização de seu sonho pessoal.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:54 am

Mantinha-se fiel ao amor de Marnahan e desejava voltar o mais cedo possível a Tebas para obter de Nekhefre a autorização para desposá-la. Por isso, mantinha algumas das mais belas jóias que produzira sob cuidadoso segredo para que representassem um património pessoal e lhe garantissem alguma riqueza, com vistas ao seu pretendido consórcio com a jovem amada.
Escolheu, então, um desses mais belos objectos e o colocou em um precioso recipiente de pedra lavrada, esculpida por ele próprio com requinte e bom gosto, de forma a tornar-se, o conjunto, digno do governante que pretendia agraciar.
— Quem sabe — pensava ele consigo mesmo — não obtenho do rei a autorização para me casar com minha amada Marnahan e, assim, não precisarei sequer da autorização do arrogante Nekhefre. Os deuses devem estar me ajudando muito para que tudo isso esteja acontecendo desse modo.
As horas seguintes foram de angustioso preparativo, durante as quais, sua alma, aos sobressaltos, antecipava os diversos diálogos que poderiam surgir, as reverências que deveria fazer perante o faraó, como se dirigir a ele, como lhe responder caso fizesse alguma indagação, que roupa vestir, que acessórios utilizar.
Enfim, chegou o momento de dirigir-se ao local onde Roab havia apontado que deveria estar, na hora marcada, para ser encaminhado à entrevista.
Notara, contudo, que ficara isolado do poviléu que, entre as ovações e os cânticos a Aton preenchiam o recinto dedicado ao culto do meio-dia.
Ficara afastado de todo o burburinho, sem saber em que momento seria encaminhado ao interior do palácio sagrado. Apenas aguardava com ansiedade o tempo passar e, a cada pessoa que penetrava o recinto, levantava-se reverente para, logo depois, sentar-se novamente por perceber que ainda não se tratava de seu caso pessoal.
Identificado como Kalmark, o artista que Mudinar havia convocado para estar ali, foi, depois de uma hora de espera, levado até a sala do chefe da guarda que, amistosamente, recebeu-o desejando parecer simpático e confiável.
— Pois então, meu jovem, estou cumprindo minha promessa.
Seu talento, ao longo desses dois anos de actividade me autoriza a permitir que se apresente ao rei, principalmente porque o próprio faraó se viu surpreendido pela beleza de suas obras e demonstrou o desejo de conhecê-lo.
Kalmark ouvia tudo em silêncio respeitoso e quase amedrontado.
— Você será levado, em breve, para o salão do trono, onde aguardará a minha ordem para aproximar-se do nosso faraó. Eu mesmo o apresentarei para que nosso amado rei esteja ciente de que se trata do mais jovem e promissor artista de seu reino. Cuidado para não falar o que não deve e para não agir em desacordo com os rituais que devem ser observados perante o mais alto dignitário do Egipto. Abaixe a cabeça e só a levante se o faraó dirigir-lhe a palavra directamente.
— Sim, nobre Mudinar, seguirei todas as orientações. Apenas gostaria de aproveitar a oportunidade para presentear nosso adorado rei com uma modesta produção pessoal que trago comigo, em forma de reverência e gratidão.
— Pois bem, meu jovem, isso será permitido e ajudará a demonstrar ao faraó todo o seu talento. No entanto, deve ser algo rápido, pois haverá mais pessoas esperando pela apresentação depois de você.
— Assim o será, meu senhor — respondeu Kalmark.
— Aguarde mais alguns minutos e nós nos dirigiremos para o salão. Você estará com um dos meus. Eu irei antes, pois preciso estar ao lado do rei para a direcção do ritual. Um dos meus assistentes directos já está informado das nossas tratativas. Ele o conduzirá quando for o momento.
E assim foi feito.
Afastou-se Mudinar em direcção ao local onde o faraó se colocaria para receber os que o vinham homenagear e o jovem artista permaneceu em pequeno compartimento próximo do salão oficial à espera do momento adequado para apresentar-se.
A cerimónia transcorria lenta e as diversas delegações estavam se sucedendo, prestando homenagens, apresentando suas credenciais, oferecendo presentes ao rei, quando o assistente de Mudinar apontou a Kalmark a chegada do momento de entrar no salão, pela passagem que dava acesso ao seu interior e que era usada pelos funcionários do rei.
Maravilhou-se o jovem com a sumptuosidade do ambiente. Brilhos e cores variados se misturavam às imensas colunas decoradas, à chama crepitante que ecoava pelo vasto aposento. As inúmeras delegações ali estavam em fila, esperando o cerimonial abrir-lhes o espaço necessário para a apresentação. Todavia, não era o volume de pessoas que o impressionava. Era a pompa do lugar, a riqueza e a importância de tudo aquilo que ele jamais vira até então.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:54 am

Sem deixar o ambiente, afastou-se um pouco para poder ver melhor o que estava acontecendo e os detalhes de tudo ao seu redor.
Percebeu que Mudinar se encontrava ali, logo à frente, ao lado do rei, dirigindo as apresentações, a menos de oito metros de distância dele, Kalmark.
À sua entrada, o chefe da guarda virou rapidamente o rosto em sua direcção e, com um pequeno gesto de cabeça sinalizou-lhe que já o havia visto ali e que aguardasse o momento adequado.
De onde estava, podia escutar o teor da conversação que se realizava perante o faraó que, sentado em um trono de madeira entalhado e pintado com esmero, acompanhava as apresentações e aceitava as reverências.
Duas pessoas estavam diante do rei naquele momento, enquanto que os demais visitantes permaneciam enfileirados à espera.
Aguçando os ouvidos para não perder nenhum detalhe da ocorrência que tinha sob suas vistas, Kalmark passou a fixar-se nos gestos das personagens diante do rei, para ver como se portavam, como se dirigiam ao faraó, que trejeitos executavam, pois, em breves momentos, para lá seria conduzido e deveria saber comportar-se.
Por esse motivo, passou a preocupar-se em observar o comportamento dos que se apresentavam perante Akhenaton, ladeados por Mudinar.
Foi aí, então, que foi envolvido por uma sensação de surpresa e quase pânico que, por pouco, aliado ao natural nervosismo daquele momento, não lhe tiram a consciência.
— Seria engano ou aquelas duas pessoas eram-lhe conhecidas?
pensava em silêncio, entre a descrença e o medo.
Passou a prestar mais atenção e escutou um nome familiar.
— Não é possível... — pensou ele confirmando suas suspeitas — É o príncipe Nekhefre que está ali diante do faraó...Mas o que o sacerdote Hatsek está fazendo junto dele? O rei fechou todos os templos de Amon-Rá há alguns meses...
O diálogo seguia entre Mudinar, Nekhefre e o rei e, para surpresa do jovem, estava justamente na altura em que o faraó esperava de Nekhefre a mais absoluta confissão de fidelidade a Aton, em uma renegação clara às antigas crenças que esposava em Tebas sem nenhuma cerimónia.
Escutara as últimas palavras de Nekhefre, visivelmente nervoso, à beira do descontrole:
— Nobre faraó, quando falo em obediência, não me refiro a uma conduta mecânica de uma criatura sem vontade. Sigo os passos do meu rei e aceito, sem reservas, desde a implantação da nova fé a todo o reino, as ordens e os desejos que brotam de vossa divina orientação. Aqui estou para dar testemunho público de que Aton segue sendo a única verdade e que dele não me afastarei nem deixarei de defender com as forças da própria vida.
Estas palavras, seguidas do já conhecido cerimonial da assinatura pública do documento de aceitação que havia sido imposto a Nekhefre, surpreendiam o espírito independente do jovem Kalmark.
— Que príncipe mais mentiroso e falso esse Nekhefre. Quantas vezes eu não testemunhei suas idas ao templo de Amon-Rá fazer oferendas, participar de orações. Além do mais, está aqui com Hatsekao seu lado e não tem nem a vergonha de ficar vermelho dizendo estas coisas.
Todavia, mantinha-se calado, prestando atenção à cena, como mais um dos inúmeros observadores que ali testemunhavam a humilhação de um homem altivo.
Aparentemente, Nekhefre estava defendendo o seu interesse pessoal, procurando manter os seus títulos e aceitando trocar a velha crença pela manutenção de suas vantagens. Todavia, a cerimónia teve seu curso, agora se colocando as opções de Nekhefre em uma dolorosa bifurcação. Como o leitor poderá se lembrar, diante do faraó o príncipe de Tebas fora convocado a manifestar-se sobre seu relacionamento com Hatsek, nos termos directos e que não deixavam nenhuma dúvida:
— Se pertences mesmo a Aton, este sacerdote não mais é digno de permanecer em contacto contigo...
Foram as palavras directas do Faraó que esperava, naquele momento, o imediato e público repúdio de Nekhefre ao seu amigo e benfeitor Hatsek, sacerdote de Amon-Rá, o antigo deus banido pela nova crença de Akhenaton.
O faraó levantara-se do trono e se posicionara entre os dois esperando que o príncipe se manifestasse. Esse gesto produzira no salão uma atmosfera de tensão até ali não experimentada, já que, ao levantar-se do trono, o rei indicava tratar-se, aquela, de uma questão extremamente séria e de realce indiscutível para todos os que assistiam à cena.
Nekhefre tremia e, visivelmente, custava a manter-se de pé.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:55 am

Hatsekenká seguia sereno e equilibrado, uma vez que as forças superiores o ajudavam a se manter em sintonia com a ajuda espiritual que vinha do Alto em seu auxílio.
Kalmark também não sabia o que pensar, depois de ter presenciado a negação de Nekhefre e as mentiras que havia dito perante todos.
Agora, via a situação do príncipe, convocado a negar o amigo para sobreviver e a repudiá-lo igualmente para garantir seu próprio futuro.
A mente de Nekhefre era um vulcão em erupção e ele nada tinha que o ajudasse a adoptar uma posição com critério e equilíbrio. Por um lado, pensava em Hatsek, aquele benfeitor que tudo fizera por ele, desde os idos tempos da gravidez de Hatsena, até o salvamento de Marnahan depois da cena do banimento de Meldek e Kaemy de sua casa.
Por outro lado, avultavam no pensamento de Nekhefre o brilho e o prestígio que estava recebendo do próprio rei, pelo simples fato de ter aceitado a crença em Aton, ainda que não a mantivesse com sinceridade dentro de si.
Pensava nas vantagens materiais que poderia continuar a exercer e explorar, no conforto de sua família, no futuro de suas filhas e dele mesmo e, sobretudo, pensava que naquele ambiente ninguém deveria conhecê-lo e não imaginariam a ligação que possuía com o sacerdote de Amon-Rá.
Esse pensamento pareceu dar-lhe certa tranquilidade, uma vez que somente Hatsek tinha conhecimento de tudo o que haviam passado juntos. Deveria sacrificar apenas o sacerdote, caso pretendesse seguir pelas estradas largas da vida.
Ninguém mais iria testemunhar o gesto de repúdio, além do próprio Hatsek — pensava Nekhefre.
Ao mesmo tempo, a sua consciência lhe gritava aos ouvidos que aquele era o único e o melhor amigo que havia tido em toda a sua vida e que as dívidas morais que tinha para com ele eram imensas e impagáveis. Como é que poderia escolher repudiá-lo...
Todavia, o faraó estava de pé, esperando uma decisão de sua própria responsabilidade.
Mais uma vez tinha que escolher e, no peso de todos os valores que cultivava, novamente falaram mais forte os valores transitórios da matéria sobre os valores imorredouros da alma.
Olhando profundamente nos olhos de seu amigo como que a lhe pedir um perdão silencioso pelo que iria fazer, ao mesmo tempo em que pensava nas glórias que tal comportamento lhe garantiriam perante o próprio rei, além do fato de pensar-se distante de qualquer testemunha que lhe conhecesse o envolvimento directo e pessoal com o sacerdote, o príncipe realizou a sua escolha, em resposta à imposição do faraó: — Sim, meu amo e senhor, repudio toda e qualquer ligação que já pude ter tido com esse sacerdote que pertence à crença errada que vossa sabedoria tão bem soube corrigir... — foi a frase fria e sem brilho que os lábios e a fraqueza de Nekhefre pronunciaram.
Baixou os olhos, envergonhado de si mesmo, não conseguindo olhar no rosto plácido e sereno de Hatsek.
Sorridente e vitorioso, o faraó voltou-se ao sacerdote e ordenou que o mesmo se manifestasse sobre aquele ato de repúdio:
— Nobre rei de todos os egípcios, todo homem é digno de suas escolhas e haverá colheita de frutos para todo o tipo de sementes que forem semeadas — foi a resposta do sacerdote que, com isso, referia-se genericamente a todos os tipos de sementes e colheitas, inclusive aquelas que o próprio faraó estava propiciando, com a violência que produzia na crença dos humanos, ainda que na tentativa de realizar algo positivo.
O silêncio se apresentou perante todos e, satisfeito com a postura de Nekhefre, o rei voltou ao seu lugar, enquanto o príncipe, esgotado pelas emoções daqueles momentos, se via em ponto de morrer. Compensavam-lhe, entretanto, as vantagens que, com o gesto de repúdio, garantiria para si mesmo e para a sua família. Mudinar, que a tudo assistia entre a felicidade interior e a satisfação de ver Nekhefre em frangalhos, tinha mais coisas preparadas para aquele momento.
Procurando dar um ar de festividade ao ato covarde de repúdio que Nekhefre havia praticado, como que a melhorar-lhe o ânimo, Mudinar aproximou-se do faraó e disse-lhe com certa intimidade:
— Nobre Rei de todos nós, o gesto do grande príncipe de Tebas é o maior prémio que vossa divindade poderia ter recebido num dia como este. A escolha segura e convicta que o estimado príncipe demonstrou neste salão o credencia para estar entre os mais fiéis e confiáveis servidores deste palácio. Por isso, em face de sua indiscutível posição de nobreza a honrar as mais elevadas noções de submissão e lealdade ao trono do Egipto, me sinto animado a apresentar, diante de Vossa Grandeza, um pedido pessoal.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:55 am

Aquela era uma postura inédita, já que Mudinar nunca se aventurara em realizar qualquer pedido directo ao faraó. O próprio rei, diante do seu mais íntimo e confiável servidor, se viu surpreendido com a evocação. Todavia, por saber que Mudinar não iria agir de maneira leviana,
em face de conhecer-lhe a conduta perante a sua presença, respondeu-lhe:
— Tens demonstrado fidelidade e eficiência nos serviços prestados ao Egipto. Por isso, permito-te expressar o pedido que mencionaste perante mim.
— Eternamente agradecido, nobre rei. Para selarmos este momento de elevação na demonstração da fidelidade do nobre príncipe ao trono do Egipto, uma vez que sua conduta foi das mais dignas no tocante aos deveres de um príncipe, me sinto inspirado a solicitar, na presença dele mesmo, autorização do próprio faraó para que tome sua filha Hatsena como minha esposa, estabelecendo os laços familiares tão importantes para a consolidação do apoio à causa imortal de Akhenaton.
Que soberana tortura se estava abatendo sobre o espírito de Nekhefre.
Repudiara a sua antiga crença. Repudiara seu melhor amigo e agora, se via às voltas com um pedido esdrúxulo daqueles, fantasiado de verdadeira honraria — o de concordar com o casamento do homem maldoso com a sua filha tão querida...
Diante do pedido pessoal, Akhenaton se viu agradavelmente inclinado a conceder, eis que sabia que Mudinar não se consorciara e não tinha família conhecida.
Reconhecia o empenho de seu chefe da guarda e desejava agraciá-lo com a permissão solicitada.
Todavia, em face da presença do pai da jovem pretendida e, por se tratar de uma aliança que precisaria contar com a aquiescência das partes para que fosse o mais forte e verdadeira possível, Akhenaton manifestou-se, dizendo:
— Muito me agrada a ideia, meu Mudinar dedicado. Entretanto, antes de decidir, gostaria de escutar a posição do príncipe que, por motivos de respeito paterno deve ser ouvido antes que eu decida... - foi a resposta, dirigindo-se para Nekhefre.
Não podia passar pela mente do príncipe permitir que aquela víbora desposasse a sua filha mais nova. Todavia, não poderia, do mesmo modo, deixar transparecer que não o aceitaria como um aliado na aliança que propusera.
Novamente, estava na condição de ter de escolher o que lhe parecia mais adequado, sem ferir os interesses de ambos os lados.
Não desejava sacrificar a amada Hatsena e não pretendia ofender um homem tão poderoso como Mudinar, negando-lhe sumariamente o consórcio matrimonial, notadamente depois de o próprio faraó ter dado claros sinais de que lhe agradava a ideia.
Compelido a apresentar sua resposta ao projecto de casamento, o príncipe valeu-se das poucas energias mentais que lhe restavam e respondeu, politicamente:
— A proposta é extremamente honrosa para minha família e, melhor pretendente não pode haver em todo o Egipto, abaixo do próprio rei.
Todavia, Hatsena é muito jovem, apesar de nossos costumes lhe atribuírem condições para contrair o matrimónio. Já está formada para tanto e poderia, com o tempo, ser uma boa esposa.
Entretanto, minha casa teve a felicidade de receber outra filha,
esta sim, já mais bem formada e afeita às rotinas do lar, robusta na saúde e na beleza e que, com muito gosto, poderia estar à altura de um casamento tão importante como este que o mais alto servidor do reino deseja realizar. Trata-se de minha filha mais velha, Marnahan...
Esta foi a maneira encontrada por Nekhefre de tentar salvar a filha mais nova das garras daquele homem perigoso. Sacrificaria a filha mais velha, por quem tinha afecto, mas que não representava a eleita de seus sentimentos mais secretos.
Aquele nome — Marnahan — ecoou pelo salão e atingiu os ouvidos de Kalmark como uma punhalada fria e covarde, desferida pelo coração indiferente de um homem fragilizado.
Um ódio sem limites passou a crescer no coração do rapaz que se via preso de um pesadelo para o qual não havia saída.
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28 — Uma glória que perdera o encanto
Diante da proposta de Nekhefre, oferecendo a outra filha a Mudinar, numa tentativa de salvar Hatsena do destino trágico de se unir àquele homem, o chefe da guarda real percebeu que o príncipe desejava afastá-lo desse intento, naturalmente por pretender preservar a filha mais nova. E, na experiência que possuía, desenvolvida na astúcia de homem acostumado a simular e dissimular, Mudinar aquilatou que Nekhefre não hesitava em sacrificar sua própria filha mais velha para preservar a mais jovem.
Isso lhe demonstrava que o seu apego à menor era muito grande e, assim, imporia maior sofrimento a Nekhefre se mantivesse o pedido.
Como não poderia estabelecer um conflito naquele momento e, uma vez que o próprio príncipe havia concordado, mesmo reticenciosamente, com o casamento, Mudinar dirigiu-se ao rei, em resposta:
— Amado Filho de Aton, a postura do generoso príncipe bem demonstra ser ele homem digno de compor os mais próximos auxiliares do reino. Creio que a sua oferta pode ser considerada também na questão do matrimónio. Afinal, a filha mais velha, realmente, pela idade que possui, poderá ser a esposa principal deste servo do grande rei. Assim, para conciliarmos os propósitos e, sobretudo, para não afastar as duas do convívio comum, já que meu sentimento se inclina pela filha mais nova, renovo o meu pedido para tê-la, igualmente, na condição de segunda esposa, mantendo sob minha protecção e oferecendo a ambas todos os recursos e riquezas que me emolduram a vida, compensando-me, de maneira agradável das responsabilidades administrativas, sempre honrosas, mas, ao mesmo tempo, áridas. É meu pedido final ao Grande Rei.
Com estas palavras, Mudinar deixava claro que não pretendia abrir espaço para maiores negociações. Ao mesmo tempo, Nekhefre se segurava, mordendo os lábios para evitar que a ira o traísse e o impelisse a estrangular Mudinar ali mesmo. A perspectiva de perder Hatsena para aquele tipo arrogante e perigoso lhe era pior do que todos os sofrimentos até ali suportados.
Havia tentado preservar a filha mais nova e, ao fazê-lo, acabara expondo tanto ela quanto a mais velha à sanha sem limites de Mudinar.
Bem que Hatsek o havia aconselhado a não se entregar com palavras impensadas ou a demonstrar suas intenções, que isso seria usado contra ele próprio.
Ao mesmo tempo, Kalmark se sentia cada vez mais vítima desse horrível complô que lhe cassava todos os sonhos e fazia ir por água abaixo todos os objectivos de sua luta até ali.
E isso tudo produzia em sua alma um estado íntimo de ódio amargo contra Nekhefre. E ele nem havia sido informado dos acontecimentos que tinham se desdobrado depois de sua saída da casa do príncipe.
Não sabia que seu pai estava morto e, sua mãe, perdida à sua procura.
Quando soubesse de todos estes fatos, então, todo o sofrimento que até ali experimentava e a aversão por Nekhefre aumentariam mais e mais em sua alma.
— Creio que, com essa solução, resolvemos a questão e, ao invés de uma aliança simples, estaremos ligando nossas casas pela aliança dupla, preservando-se a mais jovem para seguir ao lado da irmã mais velha, na condição de segunda esposa de Mudinar, atendendo à preocupação justa do pai, o nobre príncipe Nekhefre — foram as palavras do faraó, dando por solucionada a questão e, assim, autorizando a união de Mudinar com as duas filhas de Nekhefre.
Em realidade, Mudinar desejava mesmo a filha mais jovem. No entanto, aceitou ambas para não se ver afastado daquela que era o alvo de seu interesse. Na época em que a presente narrativa ocorre, os homens mais importantes ou poderosos podiam possuir várias esposas e o próprio Akhenaton as possuía, de forma que a pretensão de Mudinar não era algo inusitado ou absolutamente estranho aos costumes daquele tempo.
Como também não era estranho se produzir a união de jovens adolescentes com homens mais velhos. A expectativa de vida era extremamente reduzida e, por isso, as jovens eram encaminhadas para o matrimónio em tenra idade, o mesmo ocorrendo, algumas vezes, com os próprios rapazes. Ao mesmo tempo, era muito comum o falecimento da mulher no parto, o que era compensado pela possibilidade de se possuírem outras esposas.
Aproximadamente metade das crianças morria no parto e, das que sobreviviam ao nascimento, metade não chegava a completar o primeiro ano de vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:55 am

Com todos estes problemas, havia a natural necessidade de se manter a garantia de que um homem poderia dar continuidade à tradição de sua família e de seu nome, o que era tentado com os recursos acima explicados.
Solucionado o pedido de Mudinar com a autorização indiscutível do faraó, estabelecia-se o contorno cruel do destino das personagens envolvidas nesse drama. Nekhefre odiando Mudinar, Mudinar e Kalmark odiando o príncipe, ao mesmo tempo em que este último passara a ter um sentimento confuso com relação ao chefe da guarda que, naquele momento, obtivera a autorização para casar-se com a sua amada Marnahan.
Afinal, Kalmark estava perdido em sua mente jovem e inexperiente para avaliar com clareza. Não poderia ter ódio de Mudinar por imaginar, ingenuamente, que ele não tinha ideia de seu amor por Marnahan nem havia desejado casar-se com ela. Havia aceitado a sugestão do seu pai que a oferecera como um vendedor que vende mercadorias de porta em porta.
No entanto, isso não impedia o seu sofrimento, já que o chefe da guarda desposaria a mulher eleita de seu coração. Queria, na verdade, matar todos os envolvidos naquele acordo e, assim, ficar livre para poder reconstruir sua vida com a mulher de seus sonhos.
Ou então, desejava fugir imediatamente para ir ao encontro de Marnahan e afastá-la daquela trama sórdida que a envolvia. Havia percebido, no entanto, que naquele salão as maldades se congregavam e a amargura era construída na vida alheia como um processo de sadismo, pelo simples prazer de causar sofrimento nos outros. A sua experiência no meio de intrigas que os seus competidores artesãos não cessavam de criar, envolvendo-lhe a pessoa, por inveja ou maldade, já o havia feito despertar para a maldade humana e, assim, observou que ali não poderia se expor nem manifestar seus verdadeiros sentimentos e, mais do que isso, deveria estar ali por algum motivo que ele mesmo, Kalmark, não sabia identificar.
Com a decisão do faraó, estava encerrada a entrevista na qual Nekhefre havia traído todos os seus ideais, suas crenças, sua amizade, perdido suas duas filhas, se afastado do lar, ficando aprisionado nas garras de seus algozes, tão somente para preservar seus interesses materiais e de poder.
Com a decisão de repudiar Hatsek, ambos foram separados um do outro e, por ordem de Mudinar, o sacerdote foi conduzido à prisão do palácio, onde esperaria o seu destino, já que o decreto último do rei havia sido extremamente rigoroso com os sacerdotes do culto de Amon, os mesmos que estavam conspirando secretamente contra o equilíbrio do reinado de Akhenaton.
Nekhefre estava sendo retirado do salão real quando, dando passagem ao próximo súbdito de Akhenaton, ouviu Mudinar em pessoa, dirigir-se ao faraó na apresentação daquele que lhe sucederia na entrevista.
— Grande Rei, tenho a alegria de trazer à presença do Filho Dilecto de Aton aquele que impressionou a vossa sensibilidade artística com as criações e o talento que demonstrou ao longo do tempo em que vem servindo à esta casa. Vindo directamente de Tebas para as oficinas reais, eis aqui o jovem, mas grande artesão do reino, Kalmark... — esticando os braços na direcção do anunciado, fez sinal para que se aproximasse, já que não distava muito do trono real.
Ao ouvir a menção daquele nome, Nekhefre, que ainda estava no ambiente, voltou seu rosto para a direcção apontada por Mudinar a fim de observar melhor se não se estava tratando de alguma confusão.
E seus olhos cruzaram com o olhar frio de Kalmark. Aquele jovem que crescera em sua casa, na companhia de suas filhas e que, anos antes lhe havia feito o desaforo de insinuar que desejava casar-se com uma delas... justamente a mais velha... aquela que ele havia oferecido ao chefe da guarda real...
Ali estava o mesmo rapaz que ele humilhara na última conversa, tratando-o como criatura menor, menos capacitada e, por isso, impossibilitado de estar na condição de esposo de qualquer descendente da nobreza tebana, principalmente sua filha.
No lapso de segundo que decorreu entre o anúncio de Mudinar e a aproximação de Kalmark, o cérebro de Nekhefre examinou todos os fatos ocorridos entre eles, ao longo de toda a convivência. Ali estava Kalmark, que sabia de todas as suas idas ao templo de Amon, mesmo depois das ordens de Akhenaton instituindo o novo credo único. Sabia de suas relações pessoais com os sacerdotes de Amon, sabia da intimidade de sua casa, da ligação com Hatsekenká e, o que era pior, havia presenciado todo o diálogo no qual estivera envolvido.
Uma forte angústia tomou conta da alma de Nekhefre, agora que era conduzido para fora do recinto real por um guarda de Mudinar, até os aposentos onde seria acolhido para as novas funções junto ao faraó.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 5 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:55 am

Deixaria Kalmark na presença daquele que era o Senhor do Egipto, sabendo de tudo o que ele fizera e sem poder ter como defender-se, caso o rapaz falasse ao rei tudo o que sabia sobre sua conduta em Tebas.
Além disso, outra ideia avassaladora lhe ocorreu:
— Será que Kalmark está sabendo que expulsei seus pais de minha casa logo depois que ele partiu? — pensava ele, sem saber também tudo o que havia ocorrido com Meldek e Kaemy. Também Nekhefre não sabia que o primeiro havia morrido e a segunda estava em Amarna já há quase um ano, à procura do filho.
Agora, diante do faraó, estava aquele rapaz que poderia desdizer tudo o que ele havia falado, testemunhar as mentiras que havia contado tão somente para continuar nas graças do rei.
O testemunho de Kalmark poderia levá-lo até mesmo a ser considerado traidor, se tal fosse do conhecimento de Mudinar.
No entanto, pela astúcia do chefe da guarda que o mantivera no ambiente para saber que Kalmark estava ali e pertencia aos mais respeitados artistas do palácio, afastando-o dali logo a seguir, ele, Nekhefre, deveria amargar as horas que o esperavam, na incerteza de seu destino, já que não saberia dizer o que o jovem Kalmark iria falar na presença do rei.
Todo este plano fora concebido pela mente perturbada de Mudinar para ferir e torturar Nekhefre, por quem tinha surdo ódio. Afigura de Kalmark seria usada pelo chefe da guarda para causar medo na sua consciência e mantê-lo servil sob o risco de ser delatado e preso como mentiroso e traidor.
Esse era o desejo de Mudinar ao levar Kalmark até o ambiente e fazer com que o príncipe soubesse de sua presença. Além do mais, desejava igualmente que o artista presenciasse a conduta do príncipe diante do rei, para que se inteirasse de sua postura mentirosa e visse, inclusive, o repúdio a Hatsek, o que, obviamente, feriria a sua sensibilidade idealista de jovem.
Mas os factos foram mais generosos ao astucioso Mudinar do que ele próprio havia pretendido ser, eis que, sabendo do amor de Kalmark por Marnahan, criou as condições necessárias para que Nekhefre a oferecesse a ele, Mudinar, quando pedira a mão de Hatsena em casamento. Com certeza, isso havia ferido profundamente o coração do jovem e tal fato não havia sido planificado por Mudinar com tal perfeição.
Diante do faraó, Kalmark prostrou-se com reverência máxima.
Todavia, já não era mais o mesmo artista eufórico diante do maior sonho de um artesão. Era um jovem ferido que tinha vontade de chorar diante da própria impotência e da perda de tudo o que era mais sagrado em sua vida.
Enaltecido por Mudinar, ouviu Akhenaton determinar que se levantasse para que conversassem rapidamente, o que foi feito mecanicamente por parte de Kalmark, com o olhar vago e apagado.
— Pois és tão jovem e assim tão talentoso, meu rapaz — falou-lhe o faraó.
— Sou apenas servo de vossa inspiração, Grande Aton. De vossas luzes decorrem a inspiração e o talento que embeleza o mundo - respondeu, certeiro, o jovem respeitoso.
— Muito me agrada a tua arte e pretendo utilizá-la a meu serviço na decoração do túmulo real. Estás disposto a isso? — indagou o rei sem rodeios.
— Não há desejo do Grande Deus dos egípcios que não seja atendido e não honre aquele que se coloque no caminho de torná-lo realidade.
Mudinar estava surpreso com a desenvoltura do rapaz, nas palavras rápidas e certeiras com que se dirigia ao soberano.
Em realidade, Kalmark estava sendo inspirado pela acção subtil de Khufu, amigo de todos os protagonistas dessa história e que pretendia ajudá-lo a superar as dificuldades do momento, notadamente em função do sofrimento interior que vinha suportando. Assim, através dos canais da intuição, fazia com que as palavras certas acabassem chegando ao pensamento de Kalmark, que só tinha o trabalho de as articular, convertendo-as em som para o agrado do rei.
— Pois Mudinar irá te encaminhar ao trabalho e te remunerará regiamente. E regularmente tu serás trazido à minha presença para explicar e mostrar como estão indo as obras de embelezamento da câmara real — falou o rei como que dando por encerrada a entrevista.
— Grande Soberano — falou Mudinar — antes de dispensar o jovem artista, permita que ele ofereça à Vossa Divindade uma prenda de sua gratidão por esta oportunidade, conforme ele mesmo me solicitou autorização prévia para fazê-lo.
Com um gesto de cabeça Akhenaton autorizou que Kalmark se aproximasse para oferecer-lhe o presente que havia entalhado que, pelas características e contornos, encantou a sensibilidade real, ao mesmo tempo em que permitiu ao jovem que pudesse ter contacto mais directo com a personagem que deveria retratar nas câmaras mortuárias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:56 am

Pela primeira vez Kalmark pôde ver de perto a estranha pessoa que era venerada por todos os egípcios.
A magreza, os braços e dedos longos e finos, o olhar oblíquo, a cabeça alongada, os olhos finos, tudo conspirava para fazer daquele homem qualquer coisa, menos o faraó do Egipto.
No entanto, apesar de impressionante, Kalmark conseguiu manter-se em equilíbrio para não traduzir qualquer gesto que denunciasse o seu assombro, o que seria fatidicamente prejudicial ao seu futuro.
Encerrada a audiência, foi encaminhado à sala da guarda real onde estivera antes, em conversação com Mudinar, em cujo interior deveria aguardar antes de voltar para sua moradia.
Mudinar pretendia falar com ele...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:56 am

29 — Os caminhos retos da Lei do Universo
Depois de uma longa espera, o jovem Kalmark pôde, finalmente, encontrar-se com Mudinar, que trazia no rosto, estampada, a máscara da satisfação, própria dos que conseguiram atingir os seus intentos.
À chegada do chefe da guarda real, o jovem levantou-se e esperou que se lhe dirigisse a palavra:
— Muito bem, meu caro artista. A sua postura diante do rei muito agradou a todos, inclusive ao próprio soberano que admirou a oferenda que você fez. Espero que as novas atribuições que lhe foram confiadas possam ser honradas com o melhor de seu talento, já que se incorporará ao grupo de escultores, entalhadores e decoradores que trabalham nos túmulos reais.
— Procurarei, nobre senhor, oferecer o melhor de mim mesmo, já que se trata da morada final do grande rei. Espero que tal tarefa possa ser cumprida pelas minhas pequenas forças... — respondeu reticente o jovem que, por tudo o que ouvira naquele recinto, agora, se mantinha mais retraído e pensativo.
Observando-lhe o comportamento mais fechado, Mudinar voltou à cena.
— Sei que tudo o que você presenciou anteriormente é novidade para sua alma e que muitas coisas não ocorrem como desejamos que seja. No entanto, esteja certo de que, com o passar dos dias, as circunstâncias se alteram e tanto o que era agradável se desnatura quanto o que era ruim se modifica para melhor. Veja você... eu pretendia contrair núpcias com uma jovem e acabei compromissado com duas... - falou o chefe da guarda para tocar no assunto delicado que feria o sentimento de Kalmark.
Ao ouvir a referência indirecta ao pedido de casamento que acabou comprometendo os seus próprios sonhos, Kalmark estremeceu por dentro, mas deixou passar em branco a referência a fim de não se expor, pois não pretendia denunciar seus intentos nem demonstrar até que ponto fora atingido com aquele golpe.
Diante do mutismo do rapaz, Mudinar seguiu em frente:
— Hoje, você esteve diante de Nekhefre, de quem se afastou há muito tempo, não é?
— Sim, meu senhor, creio que as suas informações estão corretas — respondeu o jovem meio espantado, sem pretender transparecer temor.
— E o que você presenciou no comportamento do príncipe foi um espectáculo digno do pior artista. Ao mesmo tempo, renegou a sua antiga fé, a sua ligação com o sacerdote que, ao que sei, sempre lhe foi fiel amigo e homem de bom coração e, além disso, acabou oferecendo em matrimónio as duas filhas que possui, com certeza para tentar livrar a mais amada de uma união indesejada...
Eu sei que tudo o que Nekhefre falou aqui não corresponde à verdade de seus sentimentos. Todavia, precisava deixá-lo comprometer-se diante do faraó para que se apresentasse perante todos a favor ou contra a nova ordem que defendemos. E meus informantes sabem que, por ter morado em sua casa, você presenciou todo o envolvimento do príncipe com a antiga crença, mesmo depois de ter o nosso rei alterado toda a estrutura de nossa religião.
Do mesmo modo, eu sei que o seu sentimento por Marnahan é sincero e seus sonhos de desposá-la continuam vivos em seu coração.
A referência à sua amada fê-lo emocionar-se, demonstrando a tristeza que vinha sentindo dentro de sua alma, sobretudo por não ter condições de concorrer com o poder e o prestígio daquele tão poderoso chefe real.
Continuava, todavia, sem articular qualquer palavra, apenas surpreendido diante das sucessivas revelações que lhe eram feitas por aquele homem que, agora, surgia como um conhecedor de muitas coisas, como se estivesse presente em todos os lugares ao mesmo tempo.
— Pois eu posso lhe garantir, meu jovem sonhador, que se suas palavras forem corretas no testemunho do que sabe, diante do nosso rei, seu sonho poderá ser realizado e Marnahan poderá ser sua esposa.
— Mas, meu senhor, ela foi prometida diante do faraó à vossa pessoa. É algo que não tem retorno...
— Tudo, neste mundo, vai e volta, meu rapaz. Apenas precisarei que, no momento oportuno, você tenha a postura correta de atestar tudo o que sabe, diante do faraó.
Esperava, Mudinar, selar ali uma aliança com Kalmark, oferecendo a ele, por sua vez, a possibilidade de unir-se com a mulher amada, filha do homem que, pelo que tudo indicava, Mudinar desejava destruir.
Confundido com a postura firme do Chefe da Guarda, Kalmark se sentia pressionado entre o amor de Marnahan e o ódio por Nekhefre, diante de tudo o que havia presenciado naquele dia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:56 am

Com um gesto mudo de assentimento, como a confirmar a sua aceitação, o jovem indicara ao seu interlocutor que estaria pronto para atender-lhe a convocação. Foi a única maneira de Kalmark furtar-se a uma promessa verbal, obtendo, com isso, mais tempo para pensar no que fazer.
Dando por encerrada a entrevista, o jovem foi dispensado por Mudinar, que voltou aos afazeres de seu cargo, tomando o rumo de sua moradia, pensando em como agir.
Precisaria ser rápido, já que não tinha elementos para confiar em mais ninguém. Mesmo a promessa de Mudinar de que poderia casar-se com Marnahan soava como algo próximo a uma recompensa que ninguém poderia garantir que fosse paga, efectivamente.
Todavia, o destino o mandava, agora, trabalhar no túmulo real, distante da cidade cerca de quinze quilómetros. Lá poderia pensar melhor, afastado de todas as coisas que tinham feito daquele o pior dia que já vivera em seus dezanove anos.
Ao deixar a audiência real, Nekhefre foi encaminhado aos seus aposentos no próprio palácio, não sem antes ter solicitado que seus pertences fossem recolhidos junto à estalagem que os abrigara antes de ter-se transferido para as novas acomodações, juntamente com Hatsek.
Seu espírito estava em frangalhos e a consciência acusava a conduta desleal e vergonhosa que tivera para com o seu melhor amigo, seu benfeitor que, a esta altura, deveria encontrar-se em situação muito difícil por culpa dele.
Afinal, fora a seu pedido que Hatsek se ausentara de Tebas para acompanhá-lo até Amarna.
Em seu coração existia apenas o vazio do dever não cumprido e o peso da vergonha pela inexplicável postura que tivera, para a qual, a única justificativa era a sua própria fraqueza de carácter.
Não conseguira dormir, nem conciliar os pensamentos, agora que estava derrotado em todas as frentes de sua própria personalidade.
Como encarar Hatsena e Marnahan e explicar todas estas coisas? Como elevar suas orações aos antigos deuses que, agora, deveriam tê-lo abandonado pelo ato de repúdio público que aceitara encenar para garantir os favores e as benesses que conseguira obter até ali com a ajuda dos próprios deuses de sua antiga fé?
E como não se preocupar ainda mais quando, acreditando-se distante de todos os seus conhecidos de Tebas, constatou a presença daquele que, dentre os seus conhecidos era dos que mais presenciara as suas condutas de ligação e dependência da antiga religião? Justamente aquele rapaz que morara em sua casa por tantos anos, que ele mesmo desprezara e, o que era pior, havia punido na pessoa dos pais que demitira sumariamente do emprego que tinham em sua casa, colocando-os na rua sem quaisquer protecções?
Bem que pôde perceber o olhar frio e duro do jovem quando ouvira a menção para que se aproximasse do grande rei, logo depois que encerrara a sua audiência.
O que iria dizer diante do faraó? Toda a verdade que ele mesmo não fora capaz de assumir?
Todos estes pensamentos, leitor amigo, são próprios dos que, deixando-se levar por interesse menores, caprichos pessoais, desejos mesquinhos, sentimentos vis, descumprem deveres elevados e se evadem da arena do enfrentamento de si mesmo. Ao fazê-lo, as brechas mentais se abrem na consciência do indivíduo e as culpas íntimas passam a se tornar o maior algoz que o ser humano pode possuir.
Diante do mundo espiritual, todos os processos dolorosos suportados com coragem e cabeça erguida na fé e na confiança em Deus, representam atestados de confiança que o ser humano dá diante de seus desafios, autorizando os seus tutores espirituais a mobilizarem mais forças, mais energias, consolações e a intercederem por ele perante os Espíritos Superiores que dirigem os destinos de todas as criaturas.
Todavia, todas as vezes em que, por fraqueza de carácter, por apego às coisas materiais, por desejo de se manter atracado às contingências favoráveis do conforto, da facilidade, o ser humano rompe compromissos mais nobres, renega suas convicções sinceras, fere os afectos santificados pela dedicação e pela sinceridade, elege o reino da mentira ou da dissimulação como o ambiente de seus pensamentos constantes, seu comportamento trará, em si mesmo, a amargura e o peso do dever não observado, apontando que aquele não é o melhor caminho. Neste caso, o ser humano infractor fica entregue às suas próprias escolhas, precisando aprender a colher o fruto desagradável das próprias sementeiras.
Ainda que persistam os amigos espirituais a lhe amparar, o preço do seu amadurecimento é o de enfrentar consigo mesmo os fantasmas que despertam no seu interior a vergonha, a culpa e, via de consequência, a busca por caminhos que possam reparar o dano produzido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 10:56 am

O arrependimento, portanto, só pode ser encarado pelo prisma do despertamento do indivíduo para a necessidade de se reparar o mal cometido.
Em alguns casos, entretanto, a reparação exige do infractor uma conduta mais firme e de maior renúncia do que aquela mesma que não conseguira ter anteriormente e que lhe causara o estado de frustração.
Daí, muitas vezes, o indivíduo que caiu, preferir as estruturas de fuga através de condutas alienantes, de caminhos que se afastem do comportamento que pode resolver o problema.
Por esse motivo, muitas pessoas, depois que se vêem nessa contingência, trazendo o peso do arrependimento no seu interior, mas vendo o tamanho do esforço que precisariam fazer para reparar os equívocos, preferirem optar pela fuga, pelo afastamento, ocultando-se dos que lhe conheceram a falta ou a queda, mudando de cidade, de bairro, ou mesmo produzindo para si próprio o estado interior de alheamento, através de estados depressivos com os quais pretendem passar da condição de responsáveis à condição de vítimas.
Defrontado por suas próprias falhas, o indivíduo imaturo busca um modo menos difícil de tentar saná-las, esquecendo-se de que nenhuma será correctamente suprimida se não for pela via da reparação.
Mudar de lugar não muda o erro, que segue com o indivíduo que caiu. Mais do que isso, o escraviza a cada novo passo, com o receio de encontrar o credor em alguma esquina ou em algum momento de sua caminhada. Poderá aliviá-lo do dever de reparação, por algum tempo. Todavia, continua sabendo que está em dívida para com alguém.
Procurar a fuga através da alienação depressiva representará, igualmente, uma escolha inútil para libertá-lo do mal praticado, que tem, na reparação efectiva, o seu único antídoto.
E em alguns casos, ao invés de agir dentro da linha recta dos deveres de reparação, o ser humano que teve coragem para concretizar o erro mais clamoroso pensa que a única solução será a de fugir da vida, através do ato alienante da própria destruição.
Ledo engano, eis que o erro acompanha o errado a todos os lugares por onde passar. E como ninguém é capaz de matar a vida, mesmo achando que isso o afastará das consequências de suas atitudes, é amargamente surpreendente para esses que pensam que a morte resolverá seu problema descobrir que não morreram, que o problema continua existindo em sua responsabilidade e que ele, agora, está em uma condição muito pior do que a anterior, já que rompeu os laços deligação com o corpo físico, o único elemento que poderia ser utilizado como remédio para a retomada do caminho, através do exercício de actos que corrijam os anteriormente praticados.
Nekhefre estava entregue à sua fraqueza, ao medo de perder tudo e, por causa disso, ao fato de ter jogado tudo fora.
Por receio de perder o que pensava ser de sua propriedade, ele próprio acabou jogando fora todas as tais coisas que lhe eram valiosas, mais valiosas do que os títulos e os objectos dourados que lhe cercavam os ambientes de sua casa.
Se tivesse sido despojado de tudo por um ato de força injusto poderia ser considerado como um ser humano em testemunho difícil e contaria com o apoio decisivo dos amigos invisíveis a fortalecê-lo na hora dolorosa em que, por amor à verdade, por sentimento sincero de veneração à sua crença, por gratidão à amizade que o servira sem interesse, precisasse recusar as alianças mundanas com as coisas terrenas em face de já ter as suas próprias com as coisas elevadas do céu.
Se, mesmo diante do faraó, se desculpasse e se reconhecesse como o amigo do sacerdote de Amon-Rá, se se recusasse a adoptar a crença na qual não acreditava, se negasse qualquer união de suas filhas com quem não concordava ser boa companhia, estaria assumindo as consequências de sua sinceridade e, ainda que corresse o risco de perder todos os favores e vantagens do mundo, estaria livre do peso da vergonha de si mesmo.
Esse era o teste de Nekhefre, naquele momento, diante do faraó.
Certamente causaria um forte impacto se se recusasse a aceitar a nova ordem religiosa diante do seu próprio representante. Entretanto, ainda que fosse preso, seria um homem livre.
Agora, que renegara tudo o que acreditava, era um homem livre e homenageado pelo próprio rei que lhe outorgara um cargo em seu palácio. No entanto, era um homem preso e envergonhado.
Não muito longe dali, estava um outro homem, preso pelas paredes e grades às vezes usadas pelos poderosos covardes que pensam intimidar os homens de princípios e os obrigar a renegar suas crenças.
Nas prisões reais estava recolhido em uma cela solitária o sacerdote Hatsekenká.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:15 pm

E lá estava um homem livre, de consciência tranquila, entendendo que aquele seria mais um testemunho de seu espírito para superar compromissos antigos, vencendo as barreiras de suas próprias falhas cometidas em alguma época de suas existências. Ali colocado injustamente, traído pelos mais queridos seres, renegado publicamente e amaldiçoado pela nova religião como sendo pertencente a uma casta condenada a desaparecer, Hatsek não trazia o pensamento conturbado pelo medo, pela vergonha ou pela rebeldia.
Nada de mal fizera a ninguém. Nem mesmo na condição de sacerdote de Amon-Rá havia se posicionado como um guerrilheiro a combater a nova ordem religiosa. Agia como deveria agir, diante dos princípios de elevação e bondade que aprendera ao longo da vida e, se o seu destino lhe apontava até mesmo para a possibilidade de morrer nas mãos dos seus sequazes, não se oporia nem os trataria como inimigos.
Ao seu lado, o Espírito amigo de seu tutor, Khufu, se postava, enviando-lhe pensamentos de confiança, forças físicas e paz interior para que não esmorecesse diante do testemunho pelo qual ele próprio precisava passar.
Nada que estivesse injustamente em seu caminho. Ainda que pudesse parecer injusta a prisão sem acusação de delito, a detenção do sacerdote obedecia às determinações da Soberana Justiça do Universo que aponta a cada réu a sua respectiva pena e o faz cumpri-la no momento adequado pelas mais diversas maneiras possíveis.
Lembremo-nos, leitor amigo, que o Hatsek de agora, fora o Tenief de outrora, serviçal dos interesses materiais, amigo dos poderosos, bajulador dos que detinham o poder material aos quais servia com a sua sensibilidade mediúnica em desenvolvimento, em troca de favores e de dinheiro.
Por ter usado a sua percepção mediúnica indevidamente e, por ela, espalhado a mentira que iludia os incautos, ao mesmo tempo em que não soubera dosar as verdades que não podiam ser reveladas a quaisquer pessoas, mesmo que pagassem para isso, Tenief se comprometera com o sofrimento que espalhara e, por isso, aceitara a necessidade de reparação perante si próprio, suportando, agora como Hatsek, as aparentes injustiças da vida actual, aprendendo que os que se apegam ao poder terreno são sempre, em geral, criaturas imaturas que fazem qualquer coisa para não perdê-lo. Se naquela época remota, como Tenief, gozara dos benefícios que recebia dos poderosos de então, agora como Hatsek passara a suportar a condição inversa, ou seja, a de não se acumpliciar com os que mandavam, mesmo que disso dependesse a sua paz, a sua liberdade e, até mesmo, a própria vida.
Agora, preparara-se para depender apenas de si próprio, sem mais qualquer apego a pagamentos ou vantagens que lhe comprometessem a conduta.
Daí, querido leitor, ser um compromisso muito perigoso o exercício das faculdades que a sensibilidade mediúnica propicia, já que poderá permitir ao sensitivo a queda moral muito grave para a qual a compensação financeira que tenha recebido terá sido pálida gota d’água no deserto das vicissitudes que construirá para si mesmo.
De igual sorte, os que se valem de todos esses recursos do invisível a fim de atingir objectivo vil, de interesse transitório ou egoístico, que vise prejudicar alguém ou obter vantagem imediata para a satisfação dos sentidos, ainda que paguem pelo serviço que contratam, igualmente se comprometem com a exploração indigna de um sector da vida no qual se necessita estar trajado com a “veste nupcial” para ingressar.
Tanto fere a lei do Universo aquele que invade a dimensão do invisível para sondar-lhe o conteúdo visando um objectivo baixo ou sem elevação e seriedade, quanto aquele que pensa que pode pagar para obter tais informações sem qualquer culpa.
Pois que estejam ambos preparados para enfrentar as consequências da infracção cometida, mais cedo ou mais tarde, como chegara a hora de Hatsek suportá-la igualmente, na detenção aparentemente injusta.
Pelos caminhos tortuosos de nossos destinos, nossos compromissos contraídos no passado vão sendo corrigidos por nós próprios.

() Detalhe de um dos sarcófagos internos que envolviam a múmia do filho de Akhenaton, o Faraó Tutankhamon.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:15 pm

30 — Kaemy em busca de Kalmark
Estimulada por sua nova amiga, Kaemy, que se encontrava em Amarna já há algum tempo, buscou por todos os lados encontrar o filho, tendo sido infrutíferas todas as suas tentativas.
Enquanto isso, permanecia junto dos proprietários da vivenda onde seguia servindo e trabalhando como forma de cooperar na sua manutenção, pois não tinha mais recursos para dispor. Pensava, muitas vezes, se não era preferível voltar para Tebas e procurar pelo Sacerdote Hatsek que poderia ajudá-la a encontrar trabalho. Pensara, inclusive, no príncipe Nekhefre, por quem tinha carinho sincero, apesar de todo o sofrimento que ele, injustamente, provocara em suas vidas.
Sem saber mais o que fazer, depois de alguns meses de frustrada procura, sua amiga sugeriu que ela fosse procurar o chefe da guarda real, pois todos sabiam que Mudinar possuía um intrincado mecanismo de informações que o colocava ao conhecimento de todas as coisas sobre quaisquer pessoas que desejasse.
— Quem sabe, falando com ele sobre o filho desaparecido, o funcionário real não possibilitaria qualquer informação ao coração oprimido de uma mãe abandonada no mundo? — pensava ela em seu íntimo.
Todavia, o acesso a Mudinar não era fácil.
Precisaria desenvolver uma estratégia para poder aproximar-se do importante funcionário para que sua rogativa pudesse ser, ao menos, recebida.
Por essa época, Kalmark já se havia encaminhado para a construção funerária do faraó e, ainda que Kaemy pudesse se encontrar com o serviçal do rei, não conseguiria, de imediato, avistar-se com o filho querido.
Aproveitando-se de uma oportunidade inusitada, Kaemy pôde levar seus planos adiante. Certo dia, quando se dirigia ao mercado da cidade sagrada para comprar alimentos necessários para a estalagem, percebeu que havia um grande tumulto em determinado trecho da poeirenta rua que levava ao entreposto de vendas.
Muitos guardas e uma aglomeração atraíam a atenção dos transeuntes, inclusive de Kaemy, que se havia achegado para constatar o que estava ocorrendo.
No solo se encontrava uma biga da qual se havia soltado uma das rodas e, com isso, o seu condutor fora lançado a certa distância.
Jazia atordoado ainda pelo impacto, socorrido por outros soldados que lhe faziam companhia no trajecto pela cidade e, no tumulto formado pelos que levantavam o veículo de transporte rápido, de um lado, e os que se esforçavam por atender ao que fora atirado ao solo, ninguém percebeu que, com o impacto contra o chão, um dos braceletes dourados que ornamentavam a importante figura pulara-lhe do braço e se aninhara no solo arenoso, pisoteado pelos que corriam para tentar ajudar.
Com isso, apenas uma pequena aresta amarelo dourada ficara à mostra no solo, quase imperceptível para todos. Entretanto, os olhos de Kaemy haviam presenciado o corre-corre, e ao se aproximar do local, sentiu que algo sob seus pés indicavam um objecto duro sobre o qual estava pisando.
Discretamente, enquanto se recolhia o funcionário real e o mesmo era levado a uma outra biga para regressar ao palácio, Kaemy começou a afastar com sua sandália a areia que cobria o objecto, sendo surpreendida pela beleza da jóia que brilhava como um objecto de muito valor.
Ela conhecia as jóias de sua época e sabia que estava diante de um bracelete de ouro, cujo proprietário deveria ser alguém muito importante para se dar ao luxo de percorrer as ruas portando um bem tão valioso.
Percebendo que mais ninguém havia notado a presença daquela jóia sepultada na areia, Kaemy procurou um modo de recolhê-la sem ser percebida.
Para tanto, deixou cair ao solo o manto pesado que trazia sobre a cabeça e que a protegia do Sol forte daquelas paragens, bem sobre o local onde o objecto se aninhara e, com o gesto de recolher o manto caído, suas mãos mergulharam na areia macia e, juntamente com o tecido, recolheram a jóia que, agora, no mínimo, lhe permitiria obter algum recurso para sua própria manutenção.
Guardando-a discretamente, Kaemy procurou afastar-se sem ser percebida, a fim de, distante de todos, observar melhor o objecto encontrado. Ainda não sabia a quem pertencia e nem qual o verdadeiro valor.
No entanto, sabia tratar-se de peça muito cara e que deveria pertencer a alguém de relevo na corte do faraó.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 5 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:15 pm

Preocupada em chegar logo à estalagem, realizou as compras o mais rápido que pôde e, tão logo regressou, dizendo-se cansada e fustigada pelo calor, recolheu-se por alguns minutos ao seu quarto modesto, ali ficando em isolamento que lhe permitia observar melhor a jóia.
Sim, tratava-se de bracelete com as insígnias reais e com o nome de seu proprietário ao lado do título de nobreza que possuía e que o colocava na condição de importante serviçal do faraó.
Era incrustado com algumas gemas preciosas, mas o que impressionava era a beleza dos desenhos e dos relevos, feitos por hábeis mãos.
Não sabia Kaemy que estava com uma das jóias que seu próprio filho havia modelado a pedido do chefe da guarda real, a quem, de facto, ela pertencia.
Lá estava o nome Mudinar, com todos os qualificativos que lhe haviam sido conferidos pelo rei, em homenagem à sua fidelidade.
E, diante de tal objecto, o coração de Kaemy passou a bater descompassado. Estava com uma jóia rara, preciosa, esculpida em significativa quantidade de ouro puro e que lhe granjearia tranquilidade por um bom tempo, caso fosse derretida e vendida a pessoas que se interessavam por esse tipo de metal.
Ninguém saberia que o bracelete fora, um dia, de Mudinar e que este o perdera na queda fenomenal de que fora vítima, quando o eixo de sua biga se rompera.
No entanto, Kaemy tinha o desejo de reconquistar outro tesouro mais precioso do que qualquer bracelete: seu filho perdido.
Com essa possibilidade e não desejando possuir aquilo que não lhe pertencia por justiça ou em virtude de pagamento pelo próprio trabalho, Kaemy guardou o objecto para que, logo mais, pensasse melhor em como proceder.
Não poderia contar a ninguém, já que seria muito fácil que algum ladrão de ouvidos aguçados viesse a saber de seu achado e o tomasse dela, quando estariam perdidas todas as suas esperanças.
Resolveu que, daí a dois dias, procuraria o chefe da guarda e lhe entregaria a jóia solicitando-lhe, então, os préstimos para encontrar seu filho.
Esperou o tempo passar entre a ansiedade e a angústia, até que, no momento adequado em que sabia estar presente nos seus gabinetes de trabalho, Kaemy procurou entrevistar-se com o grande chefe de polícia do faraó.
Ao chegar no local, disse que precisava falar pessoalmente com o importante funcionário real, no que foi ridicularizada pelos soldados que ali permaneciam em guarda e protecção.
Persistindo na sua rogativa, Kaemy fez saber ao soldado que lhe procurava expulsar, que era portadora de uma encomenda muito importante e que deveria ser entregue ao chefe da guarda. — Pode deixar comigo que eu mesmo faço a entrega ao seu destinatário — respondeu-lhe o guarda, irónico.
— Eu lhe agradeço muito a gentileza, mas preciso entregar isso pessoalmente ao seu chefe, pois estou certa de que, se não lhe chegar às mãos por meu intermédio, todos os que me impediram de entregar o que lhe pertence sofrerão sérias e graves punições-falou Kaemy, procurando cercar de mistério a tarefa que lhe competia, com exclusividade, realizar.
Intrigado com a postura firme daquela mulher e sabendo que se algo de errado ocorresse ele também poderia ser responsabilizado, o soldado acedeu aos seus rogos e, de maneira ríspida e sem paciência, mandou que ela entrasse e escoltou-a até a ante-sala de Mudinar que, irritado, estava suportando as dores da queda de dias antes, agora mais fortes.
— Grande senhor — falou o soldado — eis que interrompo suas tarefas tão importantes para informá-lo de que uma mulher desconhecida se encontra na ante-sala e insiste em entregar-lhe uma encomenda que, diz, pertencer-lhe sob pena de, em não o fazendo, severas consequências daí decorrerem para todos...
Olhando intrigado para o subordinado, entre o descaso e a indiferença, perguntou Mudinar por mais detalhes, ao que o soldado negou conhecê-los.
Com um gesto de enfado, o chefe da guarda deu ordem para que ela entrasse rapidamente e que ele permanecesse na ante-sala à espera de suas ordens para qualquer problema que ela viesse a lhe produzir.
Uma vez autorizada a apresentar-se perante o funcionário directo do faraó, Kaemy prostrou-se diante dele em reverência geralmente destinada ao próprio rei, o que muito o envaideceu e atenuou o mal-estar com que a recebia.
— Sim, mulher, fale logo o que a traz até aqui, pois tenho mais o que fazer — disse rápido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:15 pm

— Grande Senhor, venho até aqui atendendo aos deveres de consciência que me impõem entregar ao proprietário o que lhe pertence por direito e creio que estou diante do próprio.
Sem entender-lhe de imediato, Mudinar fez cara de surpreendido e esperou por mais revelações.
— Há alguns dias, me dirigia para o mercado, quando me deparei com um acidente que envolvia um importante funcionário real. Vi que se tratava de uma biga quebrada e uma pessoa atirada para longe, que se levantava com a ajuda dos demais.
— Ah, sim, sei do que está falando — disse Mudinar levando as mãos à altura das costelas que lhe doíam ainda.
— Pois no meio daquele tumulto, pisei sobre um objecto que me parecia uma pedra pontuda, mas que, logo depois, revelou-se uma jóia de grande beleza que não sabia a quem pertencia. Recolhi com cuidado e, para não me ver envolvida pela multidão sedenta de riquezas, levei-a comigo para minha moradia e lá pude ver que pertencia à pessoa do chefe da guarda real. Nesse sentido, descobrindo o seu proprietário, me incumbia procurá-lo para devolver-lhe a valiosa peça, o que faço neste momento, acreditando estar diante da pessoa que lhe é o detentor verdadeiro — completou Kaemy, como a lhe pedir a confirmação de que se tratava, efectivamente, do dono do bracelete, apresentando-o à sua vista.
Surpreso pela atitude de Kaemy, Mudinar levantou-se de suas acomodações e se dirigiu até ela, para observar mais de perto o bracelete, no qual constava seu nome e seus títulos reais.
Uma vez confirmado tratar-se da jóia que havia perdido no acidente, Mudinar se viu compelido a lhe agradecer a conduta nobre e, ao mesmo tempo, num impulso próprio dos poderosos de todos os tempos, remunerar sua conduta honesta com algum dinheiro que lhe compensasse, como um prémio pelo seu bom procedimento.
No mesmo momento em que percebeu o intento de Mudinar, Kaemy dirigiu-se a ele em rogativa, dizendo:
— Nobre Filho de Aton, nada do que fiz o realizei por obter dinheiro de seus cofres pessoais. Por isso, agradeço o gesto de vossa generosidade, mas não posso aceitá-lo, já que não o busco e nem seria justo diante de meus princípios.
Mudinar quedou-se ainda mais surpreendido por aquela mulher que era humilde e altiva ao mesmo tempo, numa época em que a maioria dos indivíduos buscava qualquer forma de obter vantagens dos que possuíam recursos ou poderes.
— Pois se me recusa premiá-la, diga então, nobre mulher, se posso fazer algo que a beneficie, não mais como remuneração, mas como um serviço que você me dá a oportunidade de prestar-lhe, na forma de gratidão.
Ouvindo-lhe as palavras amáveis, Kaemy acreditou ter chegado o momento de pedir a ajuda do importante funcionário do rei.
— Sim, meu Senhor. A vossa generosidade é sempre muito maior do que quaisquer jóias ou valores terrenos e, mesmo que nada tivesse devolvido à vossa pessoa, sei que atenderíeis aos rogos de um desventurado coração de mãe à procura de seu filho.
Com um gesto de cabeça, em forma de assentimento, Mudinar seguiu escutando-lhe as palavras entrecortadas de angústias e sofrimentos.— Procuro meu filho que veio para esta cidade em busca de trabalho já há dois anos e nunca mais deu notícias. Vim de Tebas, onde deixei meu esposo entregue aos deuses do mundo dos mortos, depois de termos sido injustiçados pelo nosso antigo patrão. Todavia, meu filho nada sabe a respeito de todas estas ocorrências, eis que nos deixou um dia antes que toda a desgraça nos ferisse. Como eu sei que é grande o vosso poder de conhecer as coisas por todo o Egipto, pensei em solicitar-vos a ajuda para que eu tivesse alguma notícia de meu jovem e amado filho, único ser que me resta nesta vida.
Querendo parecer interessado, apenas para que pudesse encaminhar a entrevista para o final, Mudinar pediu-lhe que contasse algo mais sobre o filho para que tivessem informações mais detalhadas e pudessem providenciar a sua localização.
— Bem, meu senhor, ele é jovem, deve ter, hoje, por volta de 19 anos, é hábil artesão e se chama Kalmark... — falou reticente a mãe oprimida pela saudade, sem saber que revolução interna estava produzindo em seu interlocutor, ao declarar o nome.
Tomado pelo choque da surpresa, Mudinar procurou sentar-se para meditar melhor e mais rápido, apesar da dor que o atormentava.
Aquele nome era o mesmo do jovem que abrigara nas oficinas do rei e que, agora, por méritos próprios estava trabalhando nos aposentos funerários.
Precisava saber mais de tudo o que havia ocorrido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 26, 2022 8:16 pm

— Esse nome não me é estranho por aqui, todavia, gostaria que me informasse de mais detalhes dos fatos ocorridos em Tebas, antes de ele ter desaparecido para que possa movimentar meus informantes e procurá-lo.
A atitude amistosa de Mudinar encheu de esperança a mãe desditosa que passou a contar, com riqueza de detalhes, todos os factos que envolveram o filho, ocorridos na casa de Nekhefre, como se Mudinar não o conhecesse, acreditando que estava falando de alguém distante e indiferente para o chefe real. Contou-lhe do amor de Kalmark por Marnahan, seu desejo de desposá-la, os obstáculos que Nekhefre poria, em face de sua condição inferior, a conversa que tiveram quando o menino foi pedir autorização para afastar-se em direcção a Amarna, o escândalo que Nekhefre produziu quando descobriu o amor dos dois jovens, a expulsão dela e de Meldek, a doença deste, a sua morte nos braços de Hatsek, a sua desgraça, etc.
Contou com todos os detalhes como se pretendesse deixar o chefe da guarda municiado de todas as informações afim de poder encontrar o próprio filho.
Surpreendido com tais notícias ainda mais seguras do que as do próprio Kalmark, que só sabia das coisas enquanto estivera em Tebas, Mudinar viu-se na condição de não perder Kaemy de suas vistas e de mantê-la sob sua protecção forçada, para que nenhum evento desagradável viesse a tirar dele todos os elementos que usaria contra o príncipe Nekhefre.
Sua mente dava voltas na astúcia de seus planos e, num cesto de frieza típica de sua pessoa interesseira e perigosa, depois de alguns minutos em silêncio, Mudinar sorriu-lhe sarcástico e lhe disse:
— Sua história é muito triste e acredito que, com todos estes elementos, poderemos buscar maiores informações sobre seu filho. Todavia, o que me conta neste instante, me impede de deixar que parta para sua moradia. Precisarei retê-la junto de minha custódia para que, no tempo certo, outras coisas que a senhora desconhece sejam esclarecidas e os responsáveis devidamente punidos.
Agora era Kaemy quem se surpreendia, com o tom de voz metálico e a conduta fria daquele que estava acostumado a dirigir as vidas alheias ao seu bel-prazer.
Sem permitir que ela indagasse mais alguma coisa, chamou o soldado que estava na sala anterior que, imediatamente, se fez presente:
— Hosen, leve esta mulher para a prisão. Certifique-se de que ela esteja sozinha na cela mais arejada e que não lhe falte nada, nem alimento, nem roupa, nem água. Certifique-se de que ninguém a moleste sob pena de ser morto no ato por ordem minha. E que seja colocada ao lado da cela onde se encontra o sacerdote... — foram suas palavras indiscutíveis.
— Senhor, por ordem sua precisamos saber qual o crime de que é acusada, caso nos chegue algum visitante interessado em informações — falou temeroso o soldado.
— Sim, Hosen, você tem razão. Aos interessados por ela, diga que se trata de uma ladra que encontrou o bracelete que me pertence e que, vendo o seu valor e que pertencia a alguém importante, veio até aqui para obter favores como condição para devolvê-lo ao seu proprietário -falou Mudinar, para espanto da própria Kaemy.
Vendo-se constrangida, agora, pelos braços fortes de Hosen, Kaemy baixou os olhos lacrimosos e se deixou conduzir até o local que lhe serviria de moradia por algum tempo, justamente ao lado da cela que era ocupada por Hatsek.
Enquanto isso, Mudinar aumentava a trama em sua mente doentia, no sentido de fazer com que Nekhefre sofresse ao máximo.
Iria proteger Kaemy e, de forma directa, pretendia mantê-la sob suas vistas até o momento em que pudesse revelar a Kalmark todos os meandros da história e, assim, ganhar a confiança deles.
Na prisão, os Espíritos amigos que pertenciam ao grupo de Khufu se desdobravam para infundir forças e esperanças aos dois prisioneiros, vítimas das injustiças humanas, mas, com certeza, vitimados pelas injustiças já praticadas por eles mesmos no passado.
Sereno, lá estava Hatsek observando surpreso a nova companheira de desditas, a mesma que acolhera no santuário em Tebas. Ao menos, estariam juntos na escuridão da masmorra de Mudinar, alheios ao mundo, mas esperando a solução divina para os seus casos pessoais.
Lá estava a lei de causa e efeito trazendo suas lições aos que, elevando-se na direcção da luz, tinham que vencer os últimos resquícios escuros que lhes pediam iluminação através do sacrifício.
Já dizia a escritura sagrada: “Há um tempo de plantar... e um tempo de colher...!”

(Detalhe das feições do Faraó Akhenaton esculpidas em arenito.)
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