LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 8 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 10:42 am

Desse modo, o mais culpado pelas práticas heréticas, o senhor Nekhefre, será submetido a quarenta golpes de açoite.
Todos os seus bens serão confiscados, mesmo aqueles que já foram vendidos nestes dias, vendas estas que serão anuladas, eis que o decreto real é anterior a elas. Uma parte de tais bens será entregue aos seus empregados que estiverem trabalhando nesta casa, sendo certo que, pelo sofrimento experimentado graças à injustiça perpetrada contra ela por sua determinação, Nekhefre, esta casa e seus objectos passam a pertencer com exclusividade, à senhora Kaemy, servidora de sua família, viúva de Meldek, a título de compensação justa pelas dores injustas que você lhes produziu.
Cada palavra daquele libelo era uma facada em sua alma e na de todos os que ali estavam. Nekhefre não conhecera a dor amarga que Kaemy suportou nem as circunstâncias da morte de Meldek até aquele dia recente em que Kalmark lhe havia atirado na face a culpa por tais eventos.
No entanto, estava recebendo as consequências de seus actos na resposta directa que a lei de causa e efeito atribui aos que semeiam a desdita.
Kalmark, surpreendido, mantinha-se estático, escondido no mesmo local, sem saber como pensar tão rápido quanto às informações que recebia.
Efectivamente, sua mãe merecia aquele palácio para compensar suas dores. Todavia de que valeria estar ali com ela, sem poder ter Marnahan consigo?
Mas as revelações não tinham acabado. Nesta altura, Nekhefrejá tinha-se sentado e ouvia lívido todas as palavras que representavam o aniquilamento absoluto de todo o seu mundo.
— Por ordem do rei, a outra metade de seus bens foi dividida em duas partes, sendo que uma delas me foi atribuída como gratidão do rei pela dedicação à sua causa e a outra, por expressa vontade do faraó, deverá ser devolvida aos antigos proprietários ou seus descendentes, que foram espoliados delas para que servissem de prémio aos afortunados favorecidos do trono.
Assim, Nekhefre, todas as terras que margeiam o Nilo regressam aos seus antigos proprietários que, por direito, jamais deveriam ter sido dali banidos. Ali deixaram seus sonhos e suas lágrimas. Muitos morreram sem esperanças, entre a fome e a miséria. Agora, para que os infiéis tebanos possam ver a grandeza e a generosidade de Aton, os bens serão devolvidos aos verdadeiros titulares, ainda que na condição de seus descendentes.
Por isso, Nekhefre, toda a sua glória ancestral se acha destituída de fundamento, já que não se poderá justificar perante a verdade. O seu heroísmo e a sua fartura não foram conquistas suas. Foram herança abominável, retirada de pessoas inocentes e trabalhadoras que morreram, por esse motivo. Mas a verdade há sempre de prevalecer e, por isso, agora você retorna à condição plebeia de onde jamais deveria ter saído, já que de nada lhe valeu a nobreza de seus ancestrais para lhe ensinar a tolerância, a coragem e a fidelidade ao faraó.
E para que lhe sirva de lição, posso afirmar-lhe que hoje se cumpre sob os olhos dos deuses antigos e da nova divindade, a Justiça que devolve a cada um o que lhe pertence.
E lhe digo isto, Nekhefre, porque homenageio a memória dos ancestrais que morreram para que você e os seus tivessem fartura irresponsável e abundância sem méritos. Hoje, aqui, meu coração está repleto de inscrições luminosas como estas que você tem nas suas paredes. Inscrições que precisaram ficar ocultas até que a verdade viesse à tona e se refizessem os erros em acertos.
Reverencio e invoco, neste momento, por testemunhas minhas, os meus ancestrais, Nekhefre. Os que morreram à mingua, destituídos de esperanças e que elegeram como tradição familiar, passada de geração a geração a certeza de que um dia retomariam tudo aquilo que lhes fora tirado.
E tal jura de sangue e de honra aqui se cumpre hoje, perante todos vocês.
Eu sou o sucessor vivo de todos os que morreram para que seus ancestrais e você pudessem sonhar sobre o confortável aconchego da mentira, comprados pelos favores do tesouro do Egito e pelas terras roubadas de meus antepassados.
E, gritando estentórico, na euforia da vitória sobre todos os obstáculos, como se toda a sua vida tivesse sido um monumento erguido, lentamente, para ser culminado com a conquista daquela hora, dirigia-se a todos os seus familiares já mortos que lhe haviam transmitido as tradições íntimas de dor e sofrimento, sonhando um dia retomarem aquilo que lhes pertencia. Mudinar havia sido criado neste ambiente e, agora, prestava contas de sua vitória como se ela fosse a vitória de todos eles, marcados pelo ódio e pelo apego às coisas da vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 10:43 am

Essas eram as sombras espessas que aconselhavam Mudinar em todos os actos de sua jornada, sempre ávidas pelo culto das antigas tradições às quais se apegavam e se valiam dele como instrumento de vingança contra os vivos.
Assustando a todos os presentes, quase descontrolado pela emoção daquela hora, vendo rolar sob seus pés os anseios de quase duzentos anos de expectativas, Mudinar vociferava aos quatro ventos, num procedimento próprio dos antigos magos e sacerdotes do ocultismo:
— Invoco-os, Espíritos que me seguem há tanto tempo. Rejubilem-se — gritava ele. — Esse é o dia da nossa vitória. O Nilo lhes pertence novamente. Voltem para lá e sintam-lhe a umidade da brisa, o frescor do liquido sagrado, o verdor das plantas viçosas, o valor do barro do solo fértil. Hoje é o seu dia. Eis aqui o vencido espoliador da nossa felicidade.
Amaldiçoados todos os que, antes dele, levaram ao seu desespero o sorriso de escárnio e superioridade.
De braços estendidos para o alto, Mudinar se vira envolvido pelas vibrações escuras de tantos quantos se viam vinculados ao desejo de vingança que ele, nesta vida, materializava como o sucessor de direitos perdidos séculos antes.
Controlando aquele momento, os Espíritos amigos liderados por Khufu permaneciam em elevado ato de oração, suplicando ao Senhor da Vida lhes permitisse neutralizar todos os estiletes de ódio que se reuniam em um único ser, destilando o fel de gerações como se fosse a torneira por onde vertessem todos os amargos licores destilados pela ignorância. Todos tinham um acendrado sentimento de compaixão por Mudinar e por todos os Espíritos que o assessoravam e atendiam, esfuziantes, ao chamamento. Por entre as paredes da casa começaram a penetrar inúmeras entidades esquálidas, vítimas de seu estado mental totalmente desequilibrado, afigurando-se surgidas de um pântano lodoso e fétido, algumas se arrastando, outras amparando-se mutuamente, todas elas com um brilho estranho e vítreo no olhar alienado de quem passara séculos visualizando apenas a ideia fixa da retomada de seus bens materiais, jurando vingança.
Todas entravam ali e o ambiente espiritual tornou-se absolutamente irrespirável, exigindo dos Espíritos presentes um superior sentido de confiança em Deus e controle pessoal para que se mantivessem firmes e serenos, sem permitirem que o medo lhes dominasse o sentimento. O quadro era apavorante.
Todavia, sobre todos eles e, à força da oração elevada que os amigos invisíveis endereçavam à Soberana Bondade, uma linda peça, qual uma rede, construção luminosa, composta de inúmeros fios dourados tecidos pela mais habilidosa ourivesaria que a Terra jamais conhecera, se posicionava sobre todo aquele ambiente, esperando, pacientemente, afim de envolver todos aqueles desditosos seres que se haviam perdido há tanto tempo das linhas da razão e da compreensão das realidades da existência de Espírito.
A esta altura, quando todos os Espíritos que haviam sido invocados pelo chamamento de Mudinar haviam respondido ao seu apelo, Khufu, no plano espiritual, se fez visível a todos eles, inclusive ao próprio Mudinar que, nesta altura dos factos, tinha dado vazão ao seu potencial mediúnico, que exercitava apenas no interior de seus aposentos mais reclusos, conforme já narrado no início da presente história.
Ao influxo de sua aparição, todos os presentes desencarnados deixaram-se quedar silenciosos, restando apenas Mudinar, arrogante e prepotente a defrontar a luminosa aparição.
No plano físico, a sala estava silenciosa e todos os presentes estáticos, desde a família ali vitimada pelo decreto injusto, quanto os próprios soldados que não ousavam sair do lugar, ainda que tremessem por dentro, diante da manifestação mística que Mudinar objectivava.
Magnetizado pelo próprio sentimento inferior, Mudinar passara a se conectar com o mundo invisível como fazia em seus aposentos privados, para compartilhar com eles a vitória de sua luta colectiva contra os usurpadores.
No entanto, sentia que a aparição de Khufu se apresentava como a lhe frustrar o desfrute pleno da almejada conquista.
Tentando evitar tal atrapalhação, Mudinar vociferou, sem ser compreendido pelos encarnados presentes que não conseguiam enxergar além do véu da matéria:
— Afasta-te daqui, luminosa intromissão, que não te fizeste presente até hoje para corrigir a injustiça. Deixa-nos entregues à alegria dos que sofreram amargamente e que, agora, podem cantar e dançar sobre os restos de seus verdugos, reconduzidos ao pó de onde vieram...
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Khufu aumentava ainda mais a sua luz aos olhos de todos os Espíritos ali presentes e, sem lhe responderão desafio, elevou sua voz serena e doce para ser ouvido por todos os espíritos desencarnados e por Mudinar, envolto pelo transe mediúnico daquele momento:
— Queridos filhos do infortúnio, benditas sejam vossas dores que encontraram consolação na Soberana Misericórdia. E não a encontrastes por terdes sido convidados ao banquete perecível dos bens que já não mais vos pertencem, uma vez deixado o corpo ao consumo dos vermes. A consolação efectiva que vos chega tem mais duração do que os séculos a que vos condenastes num desejo de vingança amargo e sem compensações.
Enquanto Khufu falava, muitos, assustados pela sua majestosa presença, tentavam voltar atrás, mas eram contidos pelo campo de força que havia sido gerado pela rede luminosa, sustentada pela prece de todas as entidades presentes naquele ambiente.
Tinham que ficar para escutarem as exortações daquela hora.
— Vede vossas expressões. Nada da beleza que vos é permitida, nada da paz que vos espera, nada da harmonia que achais merecer e que, efectivamente, vos está reservada. Sois espectro de vós próprios. E quanto isto vos custou na evolução espiritual? Séculos que foram relegados a aumentarem os vossos sofrimentos por vos afastarem das alegrias inebriantes da descoberta das maravilhas que vos esperam até hoje.
É verdade que fostes injustiçados pelos reis humanos. Mas, respondei-me, o que é feito desses mesmos reis? Onde o seu poder infalível, a sua força divina que os tenha preservado da morte e da responsabilidade?
Eu mesmo fui rei nesta Terra bendita, milénios antes e posso vos afirmar que tive de prestar contas à Justiça Soberana por cada escravo que esteve sob minhas vistas ou sob as dos meus comandados. E amarguei longos séculos de remorsos que me transformaram a alma e me obrigaram a retomar minha jornada de ascensão através do reerguimento dos que prejudiquei.
Se sofrestes injustiças é porque a Justiça Soberana cobrava as contas acumuladas pelos vossos Espíritos nos caminhos humanos. Ninguém está esquecido pela bondade, mas ninguém foge da lei que manda dar a cada um o que lhe pertença.
Perdestes a luminosa oportunidade de ser apenas vítimas dos outros. Preferistes, nestes séculos, vos transformar em agentes da vingança, como se fosseis entidades benévolas feridas. Mas, respondei, onde a benevolência naquele que pretende ferir?
A consolação que vos chega, perene e inderrogável, é a do arrependimento desta hora, para abreviar os amargos caminhos que estais construindo para vós mesmos caso persistais nestes comportamentos.
Basta de lágrimas. Permiti que o sorriso se emoldure em vossos rostos para que sob o generoso amparo da Sabedoria do Universo, todos possais seguir para adiante, sob a protecção, a compreensão e a paz para todos os séculos do porvir.
Diante de tais exortações oriundas da luminosa entidade, verdadeiro deus na concepção mística de muitos dos Espíritos presentes, uma infinidade sem conta prostrou-se ao solo, lacrimosas e arrependidas, como se não mais desejassem adiar a libertação de tantas desditas, até então alimentadas pelo hipnótico desejo de encontrar felicidade junto das coisas mundanas, perdidas no tempo.
Outros se confessavam culpados, externavam confissões de crimes ocultos de todos, mas conhecidos de seus corações, outros, envergonhados abaixavam as cabeças sem saber como procederem.
Mudinar ia-se vendo destituído de todos os companheiros que o estimulavam a seguir adiante.
Em vão esbravejava contra a atitude de todos os antigos comparsas, agora tidos como fracos e covardes.
Não percebia que todos tinham fome de afecto e compreensão, esperança e nova chance para ser feliz, o que a vingança não lhes permitia.
Lentamente, os auxiliares de Khufu, a um sinal de sua destra, começaram a retirar do recinto as entidades que se deixavam levar, prostradas pelo choque de seus próprios sentimentos negativos, longamente acumulados. Invertida a polaridade da emissão mental, trocando a raiva pela esperança, acabavam vitimadas pelo peso daquilo que já tinham produzido à sua volta, nas emanações mentais de densidade maior e mais desagradável. Daí a necessidade de amparo para que pudessem ser encaminhados, alguns quase que às portas do desmaio.
Aos poucos, o recinto se fez vazio de entidades, já que a grande maioria se deixou levar para longe e as renitentes que restaram, vendo-se em menor número, lhes foi permitido ausentarem-se do recinto, amedrontadas, para que seguissem suportando a própria desdita que um dia construíram.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 10:43 am

Restavam apenas Mudinar e Khufu que, ali diante dele, se acercara, para amá-lo como ninguém desde há muito não o fazia.
Renitente em aceitar-lhe a presença, mas sem ter como impedi-la, Mudinar recuou como que ferido pela intensidade das vibrações generosas daquele Espírito.
— Filho Amado, atende ao chamamento desta hora e cede para que teu futuro seja menos amargo do que aquele que já está edificado pelas tuas mãos para ti mesmo. Conserta a tua trajectória, Mudinar, pois não te restarão alegrias que compensem a euforia insana desta hora de vingança. Se é verdade que sofreste as afrontas de tardio passado, lembra-te de que ninguém te elevou à condição de vingador ou justiceiro.
Exerce teu cargo com grandeza e magnanimidade para que, na hora de prestar as contas, algo te seja levado em consideração pelo bem que fizeste ao sofrido povo do Egito.
Perdoa agora este homem indefeso que é vítima de sua própria fraqueza, Mudinar. Não é a Nekhefre que o teu perdão deve ser estendido. É a Kendjer que te compete perdoar para que tua nobreza se eleve acima da vergonha dos actos do passado. Se te negares a isso, meu filho, os açoites que ferirem a carne dele serão novos açoites que te alcançarão, em breve, na ordem da lei do Universo.
E não é a Mudinar que solicito o perdão desta hora. É a Medjar, o irmão banido e despojado de suas esperanças outrora, a quem me dirijo para pedir humildemente, filho amado: perdoa teu irmão, pois a ele bastará o sofrimento dos próprios equívocos.
E falando assim, confundindo Mudinar em seus pensamentos e sentimentos, Khufu desapareceu para deixar que o algoz pudesse escolher por si próprio.
Refeito do impacto da visão avassaladora, Mudinar reassumiu o controlo de seu corpo físico e percebeu que estava preso ao solo, ajoelhado como um menino amedrontado.
Levantou-se rapidamente e, para não deixar a impressão de capitulação na mente de suas vítimas daquele momento, ordenou em tom forte aos soldados:
— Levem-nos todos para o calabouço, inclusive as mulheres.
E quando os soldados amarravam os pulsos dos homens condenados, uma voz se apresentou no ambiente para surpresa de Mudinar, que se preparava para sair.
— Solicito ao nobre Mudinar que me leve preso junto aos condenados.
Para espanto de todos os que ali estavam, era Kalmark que deixara o esconderijo e que, para seguir o amor que seu coração sentia por Marnahan, apresentava-se perante aquele homem despótico para que seu sentimento testemunhasse a sua grandeza no sacrifício de acompanhar a inocente criatura objecto de seu afecto para o mesmo destino.
Voltando-se para o jovem, surpreso também, Mudinar admirou-se de tal coragem e redarguiu:
— Ah! Que colheita proveitosa. No covil dos infiéis encontramos todos reunidos de uma só vez. Amarrem esse rapaz que está preso como fugitivo e falsificador.
E com muita alegria, Kalmark estendeu as mãos que foram atadas juntamente com as dos outros para que pudesse seguir ao mesmo destino de sua querida Marnahan.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 10:43 am

41 — A prisão e o castigo
A prisão da família foi algo de profundo mal-estar nos corações dos Espíritos amigos que ali se postavam, vigilantes. Isso porque Mudinar, usando de toda a sua astúcia, aproveitara ao máximo a oportunidade de humilhá-los diante de todo o povo de Tebas que, em grande quantidade, concentrava-se na porta da residência de Nekhefre.
Todos amarrados uns aos outros como se fossem pessoas criminosas, foram colocados sobre as bigas que ali estavam para levá-los até o local de sua prisão, não sem antes desfilarem lentamente para que todo o povo, que não sabia o que estava acontecendo, delirasse com a derrocada daqueles que até então tinham tido um estilo de vida que fazia inveja a muitos, menos abastados e nobres.
As agressões verbais eram atiradas a esmo sobre todos eles. O simples despeito e a euforia que se instalava no íntimo dos que ali se colocavam vendo a desdita daquela família, dava o tom dos xingamentos.
— Isso mesmo, prisão para o ladrão — gritava alguém, no que era seguido em coro pela multidão.
— Vai sentir as alegrias de estar pisando a terra quente sem sandálias, como nós temos que fazer... — explodia outrem, aplaudido por todos.
A cena era constrangedora e dava calafrios nos que eram as vítimas da arrogância de Mudinar e de sua trama urdida pela própria maldade.
Os prisioneiros uniam-se uns aos outros apertados sobre as bigas que lhes haviam sido destinadas. Kimnut abraçava-se a seu marido, Nekhefre, fechando os olhos e escondendo o rosto em seu peito para que não fosse vista e não visse o que se estava passando. Hatsena agarrava-se aos dois, trémula e sem forças para dar vazão à sua rebeldia natural.
Marnahan e Kalmark aproximavam-se um do outro e entre eles o amor era o laço mais forte do que as amarras que impediam o rapaz de enlaçar a jovem. No entanto, esta, de braços livres, já que as mulheres não foram atadas por não representarem ameaça mais poderosa, usava de sua relativa mobilidade para apertar seu ombro frágil no peito de Kalmark, deixando escorrer lágrimas de vergonha e de medo.
Os guardas de Mudinar tudo faziam para afastar a multidão daqueles prisioneiros, com receio de que, num gesto de maior agressividade, viessem a ser esfacelados pela turba insana.
Levados com a escolta até o local da prisão, lá foram colocados num vasto aposento, totalmente fechado, onde esperariam as próximas deliberações.
A notícia da prisão de Nekhefre já havia corrido por toda a cidade, avisada pelos inúmeros estafetas oficiais que, nos diversos logradouros mais movimentados, puseram-se a ler os termos do decreto real.
Incluía, a comunicação, a divulgação do dia e hora em que o ex-príncipe seria açoitado para servir de exemplo a tantos quantos se levantassem contra as determinações oficiais da nova ordem religiosa do Egito.
Tal procedimento visava, principalmente, os antigos sacerdotes do culto de Amon-Rá, por quem Akhenaton sentia um ódio quase mortal, notadamente depois de ter sido informado que os mesmos seguiam conspirando contra as mudanças realizadas. Criaturas poderosas e acostumadas aos seus antigos luxos e regalias, eram eles os que mais combatiam na escuridão do anonimato as regras e determinações provenientes da nova capital e da nova filosofia religiosa.
Com essa punição, a manutenção desse estado de infidelidade mal escondida seria seriamente advertida e, pensavam os defensores de Aton, os cidadãos que ainda estavam indefinidos, seriam inclinados pelo temor, a se aliarem ao novo deus com maior seriedade e sinceridade de propósitos.
Convocada para assistir ao ato covarde de açoitamento, grande parte da população acorreu ao evento, pouco visto naqueles perímetros e de inusual ocorrência na tradição oficial. Além disso, o punido era pessoa de alta envergadura e esse detalhe emprestava à cerimónia um toque exótico, já que não se tratava da flagelação de um meliante, um salteador qualquer que tivesse praticado um delito.
Seria a primeira punição ideológica daquele processo de reforma religiosa.
Afinal, Nekhefre estava sendo castigado por não ter sido fiel à conversão pretendida pelas autoridades maiores do Egito. Por não ter-se conduzido conforme a nova religião impunha e não por ter praticado qualquer desvio de carácter, roubando, traficando, furtando, como já era tão comum naqueles tempos e em todos os tempos da nossa humanidade ainda carente de evolução. O local estava pronto e, no dia imediato à prisão, tão logo o Sol se apresentasse no céu como Aton poderoso que haveria de presidir a cerimónia macabra, a punição de Nekhefre seria cumprida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:45 pm

Chegando o momento da flagelação, toda a sua família, acrescida do jovem Kalmark, foi levada para testemunhar a execução e para ser escarnecida por todos os presentes.
Todas as humilhações do dia anterior se repetiram e em suas almas, o estilete amargo da vergonha, da angústia e do medo esculpia as tristes linhas em forma de feridas que seriam difíceis de cicatrizar.
As costas de Nekhefre, expostas ao Sol e à visão pública brilhavam, empapadas pelo suor produzido pelo calor e pelo medo. No entanto, o príncipe estava em silêncio. Tremiam-lhe os músculos, mas em seus pensamentos, as advertências ouvidas dias antes do espírito de Khufu passavam a fazer sentido em sua vida.
Agora havia perdido tudo o que tentara salvar. Nem todo o esforço e sacrifício que lhe pareciam capazes de proteger os interesses foram capazes de impedir que fosse relegado à condição de misérrimo escravo, destituído de seus bens e títulos, de sua honra pessoal e de toda a consideração há muito construída.
Por entre os que o apupavam e aplaudiam em cada golpe do açoite, entrevia rostos familiares e conhecidos. Aqui, o comerciante que lhe havia tomado dinheiro emprestado e que exultava em não mais precisar devolver-lhe a quantia, enaltecendo a punição com gritos e vivas.
Mais além, moradores vizinhos de sua casa, que se alegravam pela possibilidade de não mais se sentirem diminuídos por sua presença rica e luminosa quando ele, Nekhefre, ostentava toda sua exuberância em trajes ornamentados e caros.
Mais adiante, as vozes conhecidas de pessoas que ele próprio, no seu conceito pessoal, acreditava ter ajudado de alguma sorte e que, agora, ingratas, gritavam a plenos pulmões para que suas costas fossem lanhadas.
Nenhum dos sacerdotes de Amon-Rá fora visto para tentar consolá-lo em tão triste e difícil transe pessoal, aqueles mesmos que antes se regozijavam com as ricas quotas de dinheiro que ele oferecia ao templo e que o tinham em alta consideração.
Ele sabia que Hatsek havia partido dias antes de tais eventos, mas esperava que algum outro dos beneficiados pela sua fortuna se apresentasse ao menos para estender-lhe um olhar de compaixão e de apoio na hora difícil de seu destino.
Estava sozinho.
Mais do que as dores das chibatadas, doía-lhe observar a inconstância das criaturas. A falta de coragem em assumir as suas posições sem receio algum, mesmo que tivessem de enfrentar o poder e submeterem-se às consequências de seus actos por um gesto de fidelidade.
Seu pensamento ia por esta trilha sinuosa da auto-comiseração quando, tocando-lhe a fronte com suas mãos luminosas, o Espírito de Khufu que o auxiliava naquele difícil momento de sua existência, fez com que ele, Nekhefre, se lembrasse de sua própria conduta, diante de Akhenaton, tempos antes.
Quando fora convocado a repudiar os antigos deuses e crenças de seus antigos antepassados aceitara fazê-lo por interesses mesquinhos.
Quando fora defrontado com o melhor amigo que a vida lhe havia ofertado, aceitou renegar-lhe a consideração negando-se a reconhecer a sua condição de endividado moral para com o amigo renegado.
Ao influxo dessa lembrança, as primeiras impressões de revolta pela injustiça de que estava sendo vítima cederam à sensação da própria vergonha por tudo aquilo que havia feito com suas convicções.
Agora compreendia como deveria ter sido difícil ao espírito de Hatsek suportar a sua conduta egoísta e insincera. Agora, que se colocava na mesma situação que o sacerdote, podia avaliar melhor a gravidade de seu comportamento naquela audiência com o faraó. E uma grande sensação de vergonha de si mesmo fez com que as dores das chibatadas passassem a ser desconsideradas. Mais do que isso, Nekhefre reconheceu em cada uma delas a possibilidade de receber aquilo que semeara. Cada uma delas era o alerta para o despertar de seu espírito infantilizado ante as verdades do mundo.
Por que ficara tanto tempo preso às conjunções superficiais da vida? Por que não soubera valorizar as coisas que são duradouras e jamais cedem às mudanças impostas pelos poderosos? Por que deixara de crer e de ser fiel ao amigo de todas as horas para aliar-se aos que lhe poderiam manter as ilusões materiais por alguns momentos?
Todos estes pensamentos lhe permeavam o cérebro e faziam com que suas ideias mudassem de padrão.
Não via mais, nos aduladores do poder que o censuravam e acusavam agora, aqueles ingratos e oportunistas de antes. Via neles ele próprio. Fraco e imaturo, doente da alma e vítima das convenções sociais, dos interesses imediatos, da satisfação dos sentidos, do desejo de sucesso e progresso a qualquer custo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:45 pm

Desculpava-os porque ele mesmo necessitava de desculpas para o que fizera.
E, enquanto o seu sangue escorria e lhe empapava as vestes, sua alma se via elevada às novas condições de compreensão da vida que até então nunca houvera entendido ou aberto os olhos para visualizar com clareza. A última chicotada lhe tirou um suspiro do peito como se ele próprio tivesse conseguido enfrentar com correcção aquilo que, num primeiro momento, lhe parecia injusto, mas que, visto por outro lado, lhe chegara como uma forma de acertar as próprias contas com as condutas por ele próprio praticadas anteriormente com outras pessoas.
E em seu íntimo, sua alma nutria as lembranças das culpas assumidas em outra vida perante aquele mesmo Mudinar que, à distância, assistia frio e satisfeito, a consecução de seus projectos.
Retirado do poste improvisado onde fora atado para ficar visível, foi devolvido à prisão na companhia de todos os seus acompanhantes que, ainda mais abatidos, nada podiam fazer além de chorar e rezar pedindo a compaixão dos deuses para salvarem-lhes o marido e pai em tão difícil momento da vida de todos.
Assim, tão logo voltaram ao novo lar, a prisão de Tebas, Mudinar deu ordens para que Hatsena fosse apartada dos demais e deixada sozinha, intocável.
Depois, dirigiu-se à cela onde Nekhefre se encontrava recuperando-se da quase inconsciência que a dor lhe causara para comunicar-lhe que, por deliberação própria e como lhe havia autorizado o próprio faraó, levaria Hatsena consigo para Amarna e, ainda que não mais a tomasse como sua esposa, já que filha de um condenado e traidor do rei, ele a trataria como sua serva e a manteria sua por todo o tempo que julgasse necessário, empregando-a nos mais difíceis serviços para que aprendesse a ser diferente do pai, orgulhoso e prepotente.
Mais dolorosa do que todas as chicotadas, aquela comunicação era um verdadeiro punhal em seu peito. Separar-se de Hatsena, jovem e despreparada para ser esposa e, ainda mais, para ser escrava, era muito pior do que apanhar novamente.
Buscou forças no mais íntimo de seu sentimento para exclamar:
— Sua deliberação é um supremo gesto de covardia. Escravizar uma criança aos seus caprichos é ter perdido toda a razão. Se lhe apraz humilhar-nos mais ainda, leve-me como seu escravo. Divirta o povo com a sua conquista, exponha-me em seus desfiles de grandeza e sucesso, como uma vitória para ser ofertada ao rei, mas deixe Hatsena livre. Deixe livres todos os que não têm culpa de meus erros. Liberte as mulheres pelo menos...
O pranto embargava-lhe a voz que não mais conseguia sair, já que o seu tom humilde, pela primeira vez fizera com que sua alma se declarasse vencida e entregue aos mais difíceis testemunhos.
Homem acostumado a tudo conduzir, a mandar e ser obedecido, a manter seus pontos de vista mesmo quando equivocados, Nekhefre, agora, aprendia a ser humilde para que a sua desdita não recaísse sobre os outros que nada deviam. Pela primeira vez falara naquele tom, aceitando seus próprios erros e pedindo pela liberdade dos inocentes que amava.
Se muito errara pela covardia moral e pelas ilusões dos sentidos até ali, daquele momento em diante, passou a entender onde reside o valor de uma criatura. Passou a entender o que significa nobreza verdadeira. Não mais a nobreza de casta, de sangue e de tradição, sempre tão vulnerável às políticas e interesses mundanos. Entendia o que significava a força de ser correto e tentar ser justo, sacrificando-se pelos que amava. Agora entendia de onde vinha a força de Hatsek que a tudo enfrentava sem perder a serenidade. Não havia percebido que ele, Nekhefre, construíra um mundo sem alicerces que suportassem o próprio peso. Daquele dia em diante, uma vez que todas as suas construções haviam ruído, teria de edificar, primeiro, a base sólida para que as novas conquistas morais encontrassem sustentação firme e segura.
E tal base partia da perenidade dos princípios elevados sobre todas as transitórias fantasias humanas.
Mudinar era cego para estas coisas, embriagado pelo vinho venenoso dos interesses imediatos e do poder transitório. Por isso não era capaz de ver o perigoso buraco em que estava se metendo, por extrapolar a sua tarefa ao introduzir em seus actos o factor vingança.
Ouvindo a sua rogativa lacrimosa, Mudinar riu-se daquela demonstração de sensibilidade e trovejou:
— Eis aí o valoroso príncipe de Tebas, herdeiro dos mais valorosos lutadores de nossas lendas. Um reles menino chorão. Bem mereceste as chicotadas que poderão, com o tempo, fortalecer as tuas fibras de homem.
Não fiques preocupado, Nekhefre, com o destino de tua filhinha querida, pois eu tratarei muito bem dela. Quanto a ti, não percas a esperança de rever Amarna e o nosso rei justo e bom. Pretendo levar-te para lá, para fazer justamente o que estás me pedindo, quando chegar a hora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:46 pm

Por agora, ficarás aqui e, como esta prisão representa o teu túmulo em vida, terás ao teu lado a tua mulher que te servirá de servidora e companhia para a grande viagem, conforme as nossas antigas tradições que você tanto pretende preservar.
Levarei comigo a outra filha, aquela que ofereceste como mercadoria na audiência do rei, lembras-te? — falou, sarcástico, a fim de ferir ainda mais aquele homem vencido e envergonhado, na presença de sua mulher e suas filhas.
Sim, levarei esta outra aqui, mais velha e experiente, até porque pretendo que o jovem traidor, o falsificador e infiel operário do rei a acompanhe para que saiba que o seu amor não representa nada diante da vontade do faraó e de seu mais alto e fiel funcionário. Referia-se a Kalmark, que a tudo escutava, sem qualquer movimento ou demonstração emotiva. Não estava arrependido do que fizera e, agora, mais orgulho possuía por ter escolhido aquele destino. O mesmo de sua amada.
Mudinar não sabia que nenhuma prisão ou grade, nem mesmo a morte poderia fazer com que ambos deixassem de se amar. Nenhuma ameaça ou tortura poderia fazê-lo abdicar do afecto que tinha por Marnahan e fazer com que esta aceitasse outro no íntimo de seus sentimentos.
Para tornar ainda mais amarga a vingança que passara a incorporar em seus delírios de poder e de ajuste de contas, Mudinar permitira que Kalmark e Marnahan ficassem juntos em uma mesma cela e, pelo tempo em que permaneceram em Tebas, nutrissem o seu afecto um pelo outro, o que tornaria ainda mais difícil para ambos a separação no momento em que ela viesse a ser imposta por ele.
Dando-lhes tempo para sorverem o néctar do afecto, tornaria ainda mais amargo o fel que os faria beber depois.
Era o sadismo em pessoa, perturbado por seus rancores espirituais mais íntimos e ajudado pela plêiade de entidades ignorantes que a ele se consorciavam, para aumentar-lhe a frieza e para inspirá-lo nos caminhos do erro.
Khufu nada fazia, pois tudo isto era necessário para o amadurecimento daquelas almas.
Dirigia todos os actos daquele teatro humano sem interferir nas interpretações dos atores. Fortalecia-os e amparava-os nos momentos mais difíceis.
Na hora correta, no entanto, iria agir.
Vendo a tragédia de Nekhefre, prezado leitor, lembre-se das advertências de Jesus:
“Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia, tome a sua cruz e siga-me.
Pois quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; quem perder a vida por minha causa, esse a salvará.
Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder-se ou se causar dano a si mesmo?” (Lucas, 9, 23 a 25)
Eis aí, alguns milénios depois, a mesma advertência ao espírito de Nekhefre. De que nos valerão tantas turbulências e conflitos se perdermos a sagrada oportunidade de renascermos para melhorarmos uns ao lado dos outros? O mundo de hoje é rico em conquistas técnicas e brilho exterior, graças aos quais, alguns benefícios melhoraram as condições de vida, o que representa sempre um louvável cometimento, digno de homenagens e respeito.
De que nos valerão, entretanto, todos os grandes feitos da tecnologia que nos granjearão sepultamentos de luxo, congelamento de cadáveres, remédios de última geração, aparelhos médicos movidos a energia nuclear, se tudo isso nos leva a perdermo-nos a nós próprios?
De que nos valerão as mais úteis e eficazes unidades de terapia intensiva se, dentro delas, em chegando a hora marcada pela Providência, os corpos perecem na frieza do abandono e sem o consolo de uma prece?
O Espírito imortal se vê embaraçado na rede de inutilidades a que o corpo se atira pelos caprichos deste mundo de superficialidades.
Todos perderemos o véu das ilusões, pelo Amor ou pela Dor. Entendamos as advertências dos Espíritos amigos que, desde sempre nos exortam a aproveitarmos o tempo com coisas úteis e duradouras PARA A ALMA.
E se nos compete reverenciar as belezas e facilidades que a matéria e os avanços da ciência propiciam aos homens no bem que fazem a muitos, lembremo-nos que ainda aí, são absolutamente impotentes para levarem consolo ao Espírito diante do futuro que o aguarda.
De que vale ao homem ganhar a vida, na matéria do mundo, se isso lhe custar a própria alma?
Todos temos um pouco de Nekhefre dentro de nós. Aprendamos algo com o seu sofrimento para que não precisemos acabar por vivê-lo em nós mesmos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:46 pm

42 — A força do bem
Enquanto esses factos se desenrolavam em Tebas, o regresso de Hatsek a Amarna foi normal e sem maiores incidentes.
Ao chegar à cidade real, o sacerdote, acompanhado de sua escolta pessoal, foi encaminhado por ela até Mudinar que, para sua surpresa, tinha-se ausentado em direcção à antiga capital do país, a fim de cumprir o decreto do faraó.
E, uma vez que o seu lugar havia sido ocupado, temporariamente, por um outro funcionário de nome Aye, Hatsek foi levado à sua presença, a fim de que o mesmo determinasse o seu destino.
Aye era um homem devotado à causa do rei, buscando ser-lhe fiel segundo os mais rígidos códigos de submissão. No entanto, dentro de si mesmo, sabia que aquela revolução religiosa estava condenando o Egito a regressar à balbúrdia interna, pelo abandono que o faraó permitira se apossasse dos negócios de Estado. Os países conquistados e que pagavam tributo ao Egito estavam sendo atacados por estrangeiros e, ainda que solicitassem auxílio militar ao faraó para que fossem defendidos, nada recebiam nesse sentido, ficando à mercê de outros dominadores.
Além do mais, Aye era devotado ao rei, não à sua religião. Adoptava-a para ficar alinhado com os ditames vigentes, mas guardava no íntimo a certeza de que fosse a Aton, fosse a Amon ou a qualquer outro deus, o que importava era manter-se próximo do poder. Por isso, não hostilizava, como Mudinar o fazia, os que mantivessem a crença íntima na antiga religião, desde que tal não interferisse na defesa dos atuais governantes e de seu reinado, nem fosse nocivo aos interesses do Egito.
A sua esposa, fiel a tais princípios, era mulher influente junto ao faraó e à rainha, tendo recebido inúmeros títulos e honrarias, jamais entregues a outra mulher naquele período.
E, na ausência de Mudinar, Aye buscara eclipsar-lhe a importância, procurando demonstrar ao faraó todos os equívocos que o Chefe da Guarda Real cometia na condução das questões de segurança e os desmandos que a sua autoridade quase absoluta estavam produzindo.
Aye desejava afastar Mudinar da proximidade do faraó e, para tanto, buscaria valer-se da ausência dele para assumir as funções de maneira ainda mais eficiente e renovadora para que, subtilmente, o rei se visse surpreendido por tais transformações.
No entanto, tal conduta demandaria tempo e muito cuidado para que o soberano não viesse a perceber as suas manobras buscando solapar a influência de Mudinar.
Era o velho conflito pelo poder, no qual uns tentam destruir os outros para manterem-se próximos do centro do comando de onde retiram as sensações que lhes preenchem os anseios íntimos de dirigir e mandar. Dessa forma, Hatsek foi levado à presença de Aye que, nesse dia, estava às voltas com um problema muito grave.
Acumulando as funções que já exercia com as de Mudinar, a sua assoberbada actividade se encontrava paralisada por uma questão de crucial importância, notadamente para o seu futuro junto ao faraó.
Já há alguns dias, uma das filhas do rei estava enferma e nenhum médico oficial lhe conseguira debelar o mal que seguia galopante rumo ao trágico destino que a todos aguarda.
Tal situação consternava a todos, principalmente ao rei, que nutria pelas filhas uma devoção ímpar para reis daquele período. Fizera do culto familiar uma motivação para a representação artística e, ao invés de ser retratado junto aos guerreiros vitoriosos em campanhas de conquistas, Akhenaton era retratado, várias vezes, na companhia de sua amada esposa e de suas filhas as quais se dependuravam em seu pescoço ou brincavam com os aparatos de sua roupa sumptuosa de faraó.
O apego ao amor familiar era único no Egito de todos os tempos, o que demonstrava o acendrado sentimento que o rei nutria pela sua prole.
Estando diante de tal situação, todos os seus serviçais mais próximos viam-se igualmente atingidos pelo abatimento real e pelo desespero natural de perder aquele ser amado. Ao mesmo tempo, todos se desdobravam para que se encontrasse alguma solução para o caso da criança que, a olhos vistos, definhava sem cessar.
Haviam sido suspensas as cerimónias oficiais nesse período para que tanto o rei quanto a rainha estivessem integralmente dedicados ao tratamento que viesse a tentar salvar-lhes a filha.
Afinal, ele era o representante de Aton na Terra e esperava que, por força dessa representatividade sua prole pudesse receber a protecção perpétua e permanente que a livrasse de todos os dissabores.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:47 pm

Os sacerdotes de Aton foram convocados aos aposentos reais onde a pequena princesa se mantinha prostrada sem esperanças. A prostração consumia-lhe as forças débeis e, por mais realizassem os rituais oficiais, na presença do próprio Akhenaton, nenhuma melhora se verificava na saúde da pequena, para desespero do rei e da rainha.
Uma sensação de impotência tomava conta do coração do faraó, como se toda a sua dedicação a Aton não estivesse sendo considerada pelo deus todo poderoso do Egito que ele defendia com sua vida e sua coragem inovadora.
Assim, Aye se incluía entre os que, ao lado do rei, deixava-se preocupar pela situação, ao mesmo tempo em que pretendia ser-lhe agradável com a solução do problema tão crucial para o coração paterno.
Ao ser apresentado ao representante do faraó, Hatsek fez breve reverência respeitosa e permaneceu em silêncio.
Aye, perdido em seus pensamentos, não sabia de quem se tratava.
Vendo aquele homem abatido em sua frente, sereno e de olhar humilde, Aye foi tomado de uma simpatia espontânea por sua figura, que o levou a perguntar:
— Soldado, quem é este homem e qual o crime que cometeu?
Surpreendido pela indagação directa, o subalterno pigarreou e tentou responder, também confundido por não encontrar o seu antigo chefe.
— Bem, meu senhor, este homem é prisioneiro de Mudinar e, segundo consta, não cometeu qualquer delito comum. Foi preso por ordem do Chefe da Guarda por ser perigoso seguidor do deus Amon, sacerdote que é da cidade de Tebas. Assim, é acusado de conspirador.
Olhando-o de alto a baixo, percebendo-lhe a estrutura física destituída de características imponentes ou arrogantes, observando-lhe a simplicidade da vestimenta e a correcção dos gestos, Aye dirigiu-se ao sacerdote.
— Nobre Sacerdote, a grandeza de nosso rei não permite que pessoas sejam presas senão quando contra elas pese alguma acusação efectivamente fundada em provas seguras do delito cometido. Acusam-te de conspirador. O que tens a dizer?
Ouvindo-lhe a exortação à palavra, dirigida de forma respeitosa e directa, Hatsek deu um passo à frente e respondeu:
— Grande senhor do Egito, minha insignificância é muito grande para que possa representar ameaça à grande transformação implementada por nosso rei. Sou apenas apagado sacerdote que, por tradição dos ancestrais do faraó foi criado no culto a Amon-Rá, ainda que me distanciasse de seus antigos servidores, à medida em que eles passaram a fazer do culto um instrumento de ganho material e de exercício de poder. Quando os sacerdotes de Amon passaram a se tornar, na verdade, fazendeiros, financistas, poderosos homens de riquezas no meio das quais a elevação de sentimentos deixou de existir para dar lugar à elevação dos interesses, deixei-lhes a companhia directa e continuei a dedicar-me apenas aos sofredores que procuravam o santuário.
Ouvia-lhes a palavra agoniada, oferecia-lhes meus conselhos fraternos, apontava alguns caminhos para a solução de seus problemas, entregava-lhes o pouco de meus conhecimentos para o tratamento de suas doenças e, sem nada cobrar deles, me fazia um estranho no meio de meus próprios companheiros de sacerdócio, acostumados à sumptuosidade dos rituais, com os quais retiravam ainda mais dinheiro dos incautos e crédulos.
Quando o actual rei assumiu o trono, todos tremeram ao saber do desejo do faraó em transformar o Egito numa nação de um único deus.
Naturalmente, perderiam o emprego e as regalias. Preocuparam-se e, muitas vezes, buscaram meios para impedir que tal ocorresse. No entanto, Akhenaton foi persistente e intimorato no exercício de sua prerrogativa real.
Apesar de tudo isso, enquanto os cultos oficiais haviam sido proibidos e os sacerdotes de todos os templos, não apenas de Amon, buscavam tentar reverter as coisas, os pobres, desesperados, doentes, continuavam a bater à porta do templo, não em busca de novas ordens ritualísticas. Buscavam sim a mão amiga e modesta que os amparava sem qualquer desejo de recompensa.
Assim, enquanto os outros sacerdotes, acostumados a uma vida de facilidades se viam despidos de todos os antigos “direitos”, minha actividade não sofreu qualquer interrupção e minha rotina passou a ser consumida pelo atendimento de tantos sofredores, agora impossibilitados de continuarem suas vidas com culto aos deuses de seus antepassados.
Tudo estava nesse pé quando, por um decreto oficial, o rei mandou fechar todos os templos, num gesto de poder absoluto que buscava dispersar os sacerdotes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:47 pm

Sem ter para onde ir, já que não possuo bens materiais, aceitei a acolhida que me ofereceu um dos antigos pacientes de Tebas, um jovem que, por suas qualidades, ainda que em processo de aperfeiçoamento, me permitiu viver com as mínimas condições de que um ser humano precisa para dar continuidade ao seu caminho.
Sob o seu tecto, encontrei guarida e continuei, sempre que possível a levar aos sofredores a mão estendida, ainda que vazia de bens e de possibilidades materiais, já que, agora, com o templo fechado por ordens oficiais, não mais poderia recorrer aos seus vastos tesouros para dali retirar algumas moedinhas com as quais se buscava dar esperança aos deserdados.
Nesse meio tempo, poucos meses depois de ter-me hospedado, o príncipe foi convocado pelo rei a comparecer em audiência e me pediu a companhia, talvez como seu conselheiro, talvez como seu ponto de apoio, já que a viagem é precária, perigosa e Nekhefre estava acostumado a se apoiar em alguém a fim de ter segurança nas suas atitudes. Para cá me desloquei sem nenhuma pretensão de ser recebido ou de pleitear qualquer coisa. No entanto, por ter sido visto na companhia de Nekhefre, fui conduzido pelos guardas, acredito que por ordem do nobre Mudinar, à presença do faraó, para assistir a audiência na qual o súbdito foi compelido a negar sua antiga fé publicamente. Depois de tê-lo feito com extrema comoção, foi convidado a renegar minha pessoa, na frente de todos os presentes.
Ouvindo-lhe as informações, Aye balançava a cabeça demonstrando que estava acompanhando-lhe o raciocínio e acrescentou:
— Sim, eu me lembro desse dia, pois também estava no salão real quando a fila dos convidados parou para que toda esta cena se desenrolasse. Só não me lembrava de que eras tu quem estava ali, diante do faraó.
— Pois naquele dia, depois de ter sido obrigado a renunciar a tudo, fomos separados sem darmos qualquer palavra um ao outro e, por ordem de Mudinar, fui conduzido à prisão, sem saber por que motivo ou por que crime. Provavelmente, por ser sacerdote de Amon, apenas.
Com este breve relato, Hatsek resumiu toda a sua trajectória até aquele dia, sem mencionar maiores detalhes por julgar serem de importância pequena.
No entanto, entre todas as coisas que havia dito, uma delas surgia na mente de Aye como uma pequena luz a ser considerada.
Daquele diálogo quase informal, Aye soube que Hatsek exercera rudimentos de medicina.
No Egito daquele tempo, ser sacerdote significava, também, possuir conhecimentos técnicos mais avançados na área da saúde humana e, fosse por motivos religiosos ou por causa dos estudos e do aprendizado dentro do templo com os sacerdotes mais antigos, o que é certo é que o povo sabia que os sacerdotes, em geral, possuíam dons ou poderes que os habilitavam a serem procurados nos momentos de dificuldade.
Tanto é certo que Akhenaton, naquele momento difícil por que passava sua vida, recorrera aos sacerdotes de Aton para que, junto dele, pudessem realizar os ritos necessários à cura da filha.
Entretanto, Hatsek era sacerdote de Amon-Rá e, por esse motivo havia sido preso. Natural que não poderia, sem cuidados especiais, levá-lo ao faraó, pois tal conduta seria tomada como imprópria para uma pessoa de sua importância, no mínimo descuidada ou desconsideradora das crenças do próprio rei.
Dirigindo-se ao sacerdote, Aye perguntou, depois de afirmar não ver em seu comportamento qualquer delito grave:
— Pois então, sacerdote, estavas afeiçoado a tratar das pessoas?
— Sim, meu senhor — foi a resposta lacónica.— E para isso valias-te da ritualística de Amon, com seus actos místicos de reverência?
— Eu buscava sempre a aplicação dos conhecimentos que a experiência e o aprendizado da vida me iam fornecendo. Quando a pessoa se mostrava propensa a só acreditar se tudo isso fosse feito dentro dos padrões artificiais do ritual religioso ao qual estava ligada, agregava ao tratamento, para conquistar-lhe a adesão, os ditos, as rogativas, o gestual que o ritual permitia. Deves saber que, quando o doente não crê no tratamento, a cura se torna mais distante e difícil, pois encontra nele a própria e mais difícil barreira a ser vencida.
No entanto, para os que não fizessem questão, eu me comportava apenas como um modesto médico ligado ao Soberano Poder, sem recorrer necessariamente a todos os paramentos ilusórios que são úteis para auxiliar os crédulos ou os místicos a se manterem mais crédulos e mais místicos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:47 pm

Assim, sabendo que determinada planta medicinal tinha efeitos úteis no tratamento daquela enfermidade, para os místicos, depois de preparar a infusão com a erva, recitava orações ininteligíveis para eles, erguia o copo aos céus como a oferecer ao deus o seu conteúdo para que dentro dele colocasse o seu poder divino e, somente depois disso, entregava ao doente o seu conteúdo para ser sorvido. Todavia, para os menos apegados a tais procedimentos, oferecia o conteúdo do recipiente tão logo ele estivesse pronto, sem qualquer ritual retumbante, limitando-me a pronunciar, junto com o doente, uma singela oração pedindo ao Soberano Poder do Universo que auxiliasse a sua recuperação.
Era assim que me comportava.
Dando-se por satisfeito em suas indagações, Aye ordenou que o sacerdote fosse conduzido à antiga prisão que o havia albergado tempos antes e ordenou ao soldado que ele fosse colocado em uma sala isolada dos demais presos comuns e tratado como um convidado e não como um prisioneiro.
Ao mesmo tempo, determinou que o chefe da prisão viesse imediatamente à sua presença, dispensando ambos os interlocutores para que pudesse voltar aos seus trabalhos.
No entanto, a imagem daquele homem simples e forte ao mesmo tempo impressionara-lhe a retina.
Não sabia Aye que, por detrás de seus pensamentos, o espírito de Khufu estava agindo sobre seu íntimo, menos atrasado do que de Mudinar, a fim de que ele, Aye, sentisse as vibrações nobres que emanavam daquele ser, dedicado a atender ao sofrimento de seus semelhantes, sem exigir qualquer coisa em troca.
Algum tempo depois, atendendo às suas determinações, o chefe da prisão chegou, solicitando a permissão para ingressar no local em que Aye despachava incansavelmente os documentos do expediente.
— Entre, soldado. Qual é o seu nome?— Salve, grande representante de Aton — respondeu o homem, como era costume em todos os diálogos daquela época. — Sou Amenef, o chefe da prisão real ao seu dispor.
— Pois bem, Amenef, acabei de enviar-lhe um homem que aqui esteve e que, pelo que me disseram, já esteve na prisão. Trata-se de um sacerdote...
E não precisou acabar de falar para que o soldado desse mostras de saber do caso.
— Pois então — continuou Aye — gostaria de saber se durante a sua prisão anterior ele se mostrou perigoso ou violento, digno de ser encarcerado como um criminoso comum.
Procurando revestir suas palavras com uma seriedade inusual para um soldado, o chefe da prisão buscou esclarecer com honestidade e correcção, dizendo:
— A esse tempo, meu senhor, eu não era o responsável pela prisão. Ali trabalhava como um soldado subalterno, sem responsabilidade de comandá-la. E por causa de meus modos rudes e maus, era dos que mais punia os encarcerados, muitas vezes sem motivo, apenas para me deleitar com o seu sofrimento e por culpá-los por estar ali, sendo soldado igualmente recluso em um cárcere. Se não houvesse criminosos, certamente eu estaria prestando serviço ao faraó em outro local.
E, muitas vezes, pelo simples prazer de ferir, sem que tivesse feito qualquer coisa de errado, apliquei castigos físicos nesse sacerdote que, nunca, em momento algum, endereçou-me qualquer olhar de ódio ou reclamou de minha violência.
Notava-o sempre ao lado dos presos mais arredios ou feridos, conversando com eles, elevando-lhes o ânimo e, por isso, aquilo me irritava ainda mais.
Essa irritação tornou-se ainda maior quando passei a perceber que os próprios colegas se deixavam iludir por sua conversa suave.
Acreditava que ele era uma pessoa perigosa e que não seria bom uma intimidade entre os guardas e os prisioneiros. Isso me fazia piorar os castigos.
As coisas iam assim até que um de meus filhos caiu doente e nada podia fazer mais para salvá-lo...
E lembrando-se daquele dia em que o sacerdote fora levado até sua casa, contou a Aye tudo o que se passou em sua morada, inclusive o auxílio que ele próprio recebera na compreensão de seus erros como esposo violento e indiferente, o que o levara a refazer o lar, indo procurar a companheira ferida para recompor as bases de uma nova vida.
Deu ênfase na cura de seu filho que, quase que por um milagre, deixou a condição de moribundo para voltar à vibrante situação de garoto saudável.
Por fim, relatou que tudo isso fora presenciado por outros soldados que para lá haviam se dirigido e que, num gesto de gratidão e respeito à nobreza daquele homem, recusaram-se a levá-lo de volta à prisão, depois que a cura havia sido consolidada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:48 pm

Todos haviam saído antes para deixá-lo livre para fugir. E para espanto de todos, Hatsek voltou sozinho, na calada da noite, à prisão de onde havia sido retirado, retomando a sua posição humílima de prisioneiro, quando poderia ter fugido para sempre.
Calara-se o soldado, emocionado ao se lembrar de todas essas coisas.
Aye também estava impressionado. Seus olhos estavam umedecidos por tal relato evocatório de fatos tão ímpares e elevados.
Um preso que vai à casa de seu agressor e lhe cura o filho. Que lhe permite refazer a felicidade familiar, que é deixado livre para fugir, mas que, com suas próprias pernas, regressa ao cárcere...
Esse homem não poderia ser um conspirador.
Aye agradeceu o relato e informou que, a partir daquele dia Amenef teria o sacerdote aos seus cuidados pessoais e que deveria ser tratado como um convidado, permitindo-lhe fazer o que quisesse. Que não o molestassem em momento algum e que ficava, daquele momento em diante, responsável pessoalmente pelos destinos de Hatsek.
Se alguma coisa de mal lhe acontecesse, Amenef responderia pessoalmente por isso.
Vendo a disposição de Aye na protecção de seu benfeitor, o soldado lhe respondeu:
— As vossas determinações, meu senhor, muito me agradam, uma vez que, ainda que elas não existissem, seria assim mesmo que eu me dedicaria a esse homem, ainda que pagasse o preço de minha própria vida. Sou-lhe grato pela eternidade e, mesmo que me fosse ordenado puni-lo com o chicote, solicitaria receber, eu mesmo, a punição em seu lugar.
Impressionado com as declarações de um simples soldado, Aye deu por encerrada a entrevista e dispensou-o com um sorriso de gratidão.
Dali pensou no rei e em sua filha doente. Não teriam sido os deuses que lhe haviam enviado Hatsek naquela hora?
Deixou o ambiente e buscou notícias da enferma junto ao palácio real.
Nada havia melhorado. O próprio Akhenaton estava extenuado, pelas vigílias nocturnas que fazia junto da filha agonizante. Os médicos do rei e os sacerdotes da corte religiosa haviam entregado ao faraó todos os esforços que redundaram inúteis na cura da criança.
Aye buscou aproximar-se do rei, mas não conseguiu. Valendo-se, então, de sua esposa, sempre muito próxima da rainha, Aye relatou-lhe o que havia descoberto, sem dizer, contudo, que o homem poderoso que curava crianças era sacerdote de Amon.
A sua esposa levou a notícia rapidamente até Nefertite que, ouvindo-a como mulher e mãe desesperada, vislumbrou um raio de luz na noite de sua alma, como uma esperança de salvação.
Não se fez esperar e, ato contínuo, levou a alvissareira notícia aos ouvidos de Akhenaton que, quase em absoluta derrocada, mandou chamar Aye ao seu gabinete pessoal.
— A rainha falou-me de ti e de que sabes de algo importante para diminuir nossas dores — falou amargurado o rei.
— Grande Senhor de todos nós, o que vos vou dizer não significa solução, mas, talvez, possa significar esperança. Conheci, pessoalmente, pessoas que foram beneficiadas com a cura de seus filhos, pela acção generosa de um súbdito de vosso trono e que não pede nada em troca de seus préstimos. Parece ter conhecimentos médicos diferentes daqueles que os nossos médicos possuem e os emprega segundo as necessidades do enfermo. Conhece plantas medicinais e as aplica com grande sucesso. Daí, sensibilizado pela dor de vossos sofrimentos, imaginei
que, ao menos essa notícia, eu deveria fazer chegar aos vossos ouvidos para que deliberasse da maneira mais sábia, como só o representante de Aton sabe fazer em nosso meio.
Um brilho diferente tomou conta do olhar do rei que, interessado, levantou-se da cadeira onde seu corpo estranho e diferente se deixara ficar, sem esperanças.
— Mas será seguro entregar a princesa nas mãos desse desconhecido? — perguntou titubeante o faraó.
Respondendo-lhe à pergunta sagaz e perigosa para sua pessoa, Aye afirmou:
— Grande rei, trago-vos a informação e o testemunho pessoal por ter ouvido os que foram beneficiados por esse homem acerca das maravilhas que ele logrou realizar em favor de muitos que sofriam. Quanto ao mais, deixo em vossas mãos tudo o que eu próprio possuía para que seja vossa a deliberação.
Vendo-se responsável por tal decisão, o rei foi interrompido em seus pensamentos por uma outra afirmação que completava as notícias de Aye.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:48 pm

— No entanto, meu rei, há algo que precisais saber antes que delibereis sobre o que fazer. Por imperativo de devotamento e de submissão, preciso informar-vos de que esse homem pertence à escola do templo de Amon, tendo sido aprisionado por Mudinar na prisão real por parecer potencialmente nocivo aos cultos de Aton.
Essa informação pareceu esfriar as esperanças de Akhenaton.
Todavia, Nefertite, que a tudo escutava em silêncio, não se deixou abater por tal notícia. Tomando a palavra e sabendo da grande influência que exercia sobre o marido e, sobretudo da premência do momento por que passavam, a mãe, aflita, afirmou:
— Não me preocupa ser ele sacerdote de Amon. Todos nós sabemos que os sacerdotes guardam grandes conhecimentos médicos que são capazes de beneficiar aos que sofrem. O que importa é saber se é um homem perigoso para ser aqui introduzido. Afinal de contas, todos nós, antes de prestarmos culto ao deus único, fomos muitas vezes tratados por homens como ele, devotados aos deuses antigos e detentores de muitos conhecimentos úteis.
A palavra de Nefertite estabelecia um conflito íntimo muito grande no rei. Dentro dele estava a impotência de Aton para solucionar aquela situação, na ilusão de seu fanatismo de que Aton deveria atendê-lo com exclusividade e rapidez. Por outro lado, a criatura que morria era sua filha amada e nenhum outro recurso havia disponível para tentar trazê-la à vida.
Além disso, percebia pelas palavras da mulher que ela, quase em desespero, colocava a saúde da filha acima das convenções religiosas tão caras ao faraó, a ponto de permitir que a doente fosse tratada por um sacerdote adversário de sua reforma religiosa e que, certamente, muito sofrerá pelas perseguições que ele próprio instalara. Quem garantiria que, aproveitando-se de tal possibilidade, o referido sacerdote não mataria a criança?
Todas estas dúvidas perturbavam ainda mais a mente do faraó que, num gesto de desespero, colocara a cabeça entre as mãos, sentando-se novamente para tentar organizar as ideias.
— Mas e se esse homem, sacerdote de Amon, como me dizem ser, se valer desse momento para prejudicar a saúde de nossa filha, como vingança? — perguntou em voz alta Akhenaton.
Tomando a palavra, Aye realçou ao rei a conduta de Hatsek na prisão, a cura do pequeno, a possibilidade de fugir e a sua conduta correta de voltar para a prisão caminhando sozinho.
Tudo isso teve um peso extremo na tendência do faraó.
Não era comum existir um homem com tais comportamentos de grandeza e simplicidade e, se o existisse, deveria ser dotado de grandes poderes.
Pediu para ser deixado a sós com a mulher e que, tão logo decidissem, comunicaria o que desejavam fazer.
Aye e sua mulher deixaram o recinto e se postaram em salas próximas.
Akhenaton e Nefertite, premidos entre os deveres oficiais e os deveres paternais, entre a complexidade do problema e a simplicidade do tempo que corria e poderia levar-lhe a filha para sempre, entreolharam-se e seus olhos tudo diziam.— Aceito a presença desse homem estranho junto de nossa filha — disse o rei — desde que seja para cá trazido em sigilo e que estejamos presentes acompanhando tudo o que ele for fazer. E se algo de mal acontecer à nossa querida, sacrificaremos o impostor como culpado por sua morte. Se nossa filha, efectivamente, for curada por qualquer sortilégio ou poder especial deste homem, dar-lhe-ei a liberdade e qualquer coisa que ele desejar, desde que parta daqui a fim de que não saibam que Amon foi mais poderoso do que Aton.
Ali estava falando um homem capitulando diante das próprias escolhas. Parecia que o rei, agora, era o mesmo Nekhefre do dia da audiência, a renegar a tudo e a todos por suas próprias conveniências.
Naquele momento de dores onde a escolha se impunha à sua vontade, o próprio rei se conduzia da mesma maneira. Não pretendia ter a grandeza de reconhecer que Aton não curara a filha e que ela fora beneficiada por um homem desconhecido. Preferiria que ele fosse banido para longe, a fim de que toda a sua convicção não fosse ridicularizada pela população.
Ouvindo-lhe as afirmações dolorosas, Nefertite compreendeu que não poderia conseguir de seu marido concessão mais ampla do que aquela que, para seus conceitos pessoais já estava sendo extremamente dolorosa de ser obtida.
O próprio rei iria permitir que um sacerdote do odioso culto de Amon viesse ao leito de sua filha para tentar salvá-la.
Olhando-o emocionada por ver-lhe a dor que lhe causava a renúncia aos seus próprios e rígidos princípios, abeirou-se dele, tomou-lhe as mãos amigas e beijou-as entre lágrimas de gratidão e afirmou:
— Concordo e agradeço-te a renúncia a tudo por amor à nossa filha — disse a esposa emocionada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:48 pm

Aye foi chamado à porta por um serviçal e comunicado que o sacerdote deveria ser trazido imediatamente, em sigilo absoluto e com todos os cuidados indispensáveis para que nada ficasse divulgado ao público.
Mais do que depressa, dirigiu-se ao exterior para ir buscar aquele que o Espírito de Khufu estava apontando à intuição de todos como sendo o melhor caminho para a esperança de melhora da princesa do Egito.
E pelas mãos de Forças mais poderosas do que quaisquer deuses de pedra, um prisioneiro foi convocado a estar diante do próprio faraó vencido.
A Soberana Bondade estava ali, mais uma vez ensinando aos poderosos que o seu poder mundano valia bem pouco diante das determinações superiores e que, o mais simples e humilde dos homens poderia ser aquele que Deus usaria como seu mensageiro.
Hatsek seria conduzido ao palácio o mais rápido possível.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:48 pm

43 — O amparo do Mundo Invisível e o arrependimento
Mal havia sido reconduzido à prisão, um enviado de Aye leva a Amenef a determinação imediata para que Hatsek fosse reapresentado ao mesmo gabinete onde o encontrara horas antes, sem qualquer demora.
Sem entender o porquê dessa ordem, o chefe da prisão comunicou ao seu hóspede a necessidade de regressarem à presença de Aye imediatamente, o que foi feito na presteza solicitada.
Diante do funcionário real, Amenef foi dispensado para que pudesse retomar suas funções deixando Hatsek sob a responsabilidade pessoal de Aye.
Imediatamente, este fez saber ao sacerdote o motivo pelo qual o reconvocara, a delicada situação que estava sendo enfrentada pelo rei, seu sofrimento pessoal e o desespero tão grande de seu coração que, em comum acordo com a rainha, convenceram-no a recorrer aos poderes de Amon para tentar salvar a filha da morte.
Surpreendido pela notícia, o sacerdote pôde avaliar o grau de dor que o faraó deveria estar suportando para permitir que um sacerdote odiado por pertencer ao culto de um deus tradicional fosse convocado para tratar da princesa real.
Aye, contudo, precisava que Hatsek aceitasse as condições impostas pelo rei, de que presenciaria todo o atendimento e que, se a filha sucumbisse, ele seria considerado o responsável. Além do mais, em caso de sucesso, nada poderia ser divulgado, pois o faraó não desejava se comprometer com a divindade banida na boca do povo, mantendo para sempre, segundo o seu desejo, o culto a Aton, sem nenhum retrocesso ao passado.
Sereno e confiante, Hatsek viu-se novamente confrontado pelo destino de ter de atender aos seus algozes, notadamente agora que já fora informado da ordem real acerca de Nekhefre e sua família, hostilizados por terem sido acusados de terem lhe dado guarida e por se vincularem aos cultos de Amon, mesmo depois das reformas religiosas impostas pelo rei.
Imaginava o desespero de seus amigos queridos, das filhas do casal, de Kimnut, a esposa despreparada para realidades tão graves, as humilhações jamais experimentadas. Como deveria estar sendo dura a prova por que todos estavam passando, ainda mais na companhia pessoal do próprio Mudinar.
Sem fazer qualquer menção a tais cogitações, Hatsek acenou com a cabeça, reverente, e informou:
— Meu senhor, quando me dispus a seguir este caminho, fecharam-se-me os olhos para que meu coração se abrisse. Por isso, não vejo a quem atendo, apenas atendo fazendo o melhor que meus sentimentos determinam. Não temo as consequências de qualquer gesto de amparo que pratique, pois me submeto à Soberana Sabedoria que tem os recursos para fazer aquilo que minha insignificância não permite seja feito. Nem mesmo se me for imputada a morte da jovem princesa, isso me impedirá de acercar-me dela, se é o desejo de nosso rei, para tentar ajudá-la no que for possível.
Admirando a conduta daquele indivíduo ímpar, Aye indicou-lhe a urgência do estado da criança e dispôs-se a levá-lo ao palácio naquele mesmo instante, no que não encontrou nenhum obstáculo por parte do sacerdote.
Tomando do veículo de transporte rápido, em alguns minutos Aye penetrava os recintos privados do palácio, levando Hatsek, que caminhava pouco atrás, em atitude de reverência e respeito à dor alheia.
Seus pensamentos estavam voltados para aquele Deus Universal que ele sabia existir e dirigir as criaturas. Nem Amon, nem Aton, nem nenhuma outra ilusão particularista lhe toldava a compreensão. Nenhuma criação humana seria mais potente do que aquele Criador de tudo e de todos, ainda quando os humanos pigmeus desejassem impor aos céus as suas divindades ou concepções estreitas, como sendo deuses construídos no barro da Terra e atirados para as alturas do firmamento imaginário para sagrarem-se divindades poderosas.
Hatsek ligava-se, nesse momento, à corrente do Amor Universal que em todos os lugares vê e age independentemente das contingências e dos caprichos dos homens.
Junto dele, seu amigo e instrutor espiritual seguia seus passos para tão importante entrevista.
Anunciados e encaminhados ao interior do aposento da jovem enferma, lá se encontravam apenas o rei, a rainha, Aye, sua esposa e o sacerdote que, sem qualquer postura artificial, reverenciou a todos com respeito e consideração. Akhenaton estava desfigurado com a proximidade dos sofrimentos de sua amada filha. Deixara todos os paramentos reais que, agora, lhe eram sumamente pesados para serem ostentados com o orgulho próprio dos reis de todos os tempos. Vestia-se modestamente para a sua importante posição e se preocupava, exclusivamente, com a saúde da filha.
Sem tocar em outros assuntos absolutamente irrelevantes para aquele momento, o faraó dirigiu-se ao sacerdote diante do silêncio de todos os presentes:
— Sacerdote de Amon, pela tua presença neste ambiente, podes imaginar o desespero que se apossa dos corações dos que amam esta pequena criança. Fui informado dos poderes misteriosos que possuis e que já trouxeste à saúde de outras pessoas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:48 pm

Todas as nossas preces e oferendas a Aton não redundaram eficazes. Afim de não me condenar por não ter buscado tudo o que um pai amoroso deve tentar para salvar a filha amada, desci da posição de rei e de defensor dos princípios de Estado para, apenas na condição de homem, oferecer esperança àquela que é o motivo de nossas alegrias. Por isso estás aqui. Não diante do rei, mas diante de um pai vencido pela angústia.
Calou-se Akhenaton para que não fosse calado pelas próprias lágrimas. Havia assumido uma posição extremamente humilde e franca perante os presentes, o que os emocionava profundamente.
Hatsek aproximou-se do rei sem ferir-lhe os pudores e as convenções tradicionais e lhe disse:
— Grande Rei dos Egípcios, teus nobres sentimentos desta hora tornam-te ainda maior aos nossos olhos. Confiemos na grandeza do Deus Único e em seu Soberano Poder para que, em nossas vibrações de fé e aceitação, as Suas deliberações ecoem em favor da pequena.
E demonstrando a urgência de acercar-se da enferma, pediu permissão para iniciar o estudo do caso, no que foi imediatamente autorizado.
No entanto, não passou despercebido de Akhenaton, aquela referência ao Deus Único, ainda que não o houvesse denominado de Aton.
Isso o tranquilizou por alguns instantes.
Ao aproximar-se da enferma, Hatsek pôde constatar o seu estado de gravidade acentuada. As faces estavam descoloridas, a respiração era extremamente difícil e o coração lutava para que o organismo sobrevivesse mais algum tempo. O suor abundante impunha constantes trocas de roupa e a quase inconsciência impedia que se conseguisse escutar da própria doente qualquer informação que elucidasse a questão.
Ao se aproximar da pequena, Hatsek foi ainda mais envolvido por Khufu que, com sua visão dilatada pela condição de Espírito, iria auxiliar o sacerdote naquilo que lhe fosse permitido. Todavia, apesar de sua presença, Hatsek se postou em elevação mental, rogando àquele Deus Único e Soberano de todos os Soberanos da Terra que o ajudasse a fazer o melhor por aquela irmã adoentada, não porque fosse filha do faraó iludido pelos cânticos de poder do mundo, mas porque era tão jovem e com tantas coisas a aprender pela frente.
Sua vibração íntima foi sendo invadida por um poder de penetração ainda mais potente do que a intuição clara que já o acompanhava.
Amparado por Khufu que, junto dele, parecia constituir-se um segundo cérebro justaposto ao cérebro físico de Hatsek, suas condições pessoais de compreensão e de apreensão dos menores detalhes do problema que tinha pela frente se ampliaram como nunca.
Tão logo terminou a oração, imediatamente sua visão foi tomada por uma cena muito chocante. Seus olhos viam o interior da enferma.
Seus vasos sanguíneos, seus órgãos comprometidos pela luta interior para que a vida fosse preservada. Tudo estava apontando para o fim.
De forma a aclarar os motivos ou as causas de tais circunstâncias, Khufu apontou a Hatsek duas manchas na epiderme da jovem, quase imperceptíveis aos olhares menos experimentados.
Observando a região apontada, o que o obrigou a erguer um pedaço da roupa da jovem, Hatsek pôde entender que as manchas arroxeadas indicavam o avanço da doença e que algo deveria ser feito imediatamente, sob pena de não mais ser possível qualquer modificação da trajectória que levava à destruição daquela vida.
— O estado da pequena é muito grave e não sei dizer se, com todos os nossos recursos poderemos conseguir que não morra — falou o sacerdote a todos os que escutavam ao redor, em silêncio. — Posso agir com a liberdade necessária para buscar ajudá-la a tentar vencer este triste transe?
Esperava a autorização dos pais para iniciar o tratamento.
— Sim — foi a resposta do rei, seca e breve.
Sabendo da importância da transferência dos fluidos de um corpo para outro, Hatsek solicitou a Aye que se posicionasse à cabeceira da doentinha e ao faraó que se aproximasse de seus pés, ambos com as mãos impostas e dirigidas para o corpo da pequena inconsciente.
Pediu-lhes que orassem e que imaginassem que de seus corpos, o fluido da vida estava saindo para serem emprestados à pequena para a sua recuperação. Que não tivessem nenhum pensamento de tristeza, de apego ou de medo. Que confiassem cegamente nas forças superiores da vida. Que se imaginassem como dois sóis que ali estivessem aquecendo aquela pequena semente de vida, para que não morresse.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:49 pm

Isso foi imediatamente providenciado.
Enquanto isso, no Mundo Espiritual, uma grande equipa de trabalhadores liderados por Khufu se desdobrava para fazer com que a pequena viesse a se sentir melhor. Enquanto seu corpo estava prostrado, retiraram dele o seu Espírito confundido pela situação inesperada de seu destino e o levaram para a beira do rio sagrado. Em lugar de beleza e placidez, ali ficou a pequena criança, agora em Espírito, aspirando o oxigénio e a vitalidade da natureza generosa, vendo-se acompanhada
por amigos invisíveis que lhe inspiravam paz e confiança.
Enquanto isso, em seu pequeno leito, Hatsek podia perceber que seu corpo físico necessitava de um remédio que o ajudasse a combater a enfermidade que, galopante, já lhe intoxicava até os tecidos mais nobres do corpo.
Khufu lhe inspirava igualmente a buscar um remédio que viesse a ser introduzido no organismo para que fosse um agente bactericida. Hatsek possuía essa planta em Tebas, mas a viagem seria muito demorada para conseguir salvar a princesa.
Quebrando o silêncio, Hatsek perguntou a Aye:
— Preciso de uma planta medicinal para preparar um remédio para a menina. Essa planta existe em meus pertences em Tebas e, acredito que posso encontrá-la em qualquer templo de Amon.
— Impossível — foi a resposta directa. — Foram todos os templos fechados e não há nenhum por perto a que possamos recorrer — respondeu Aye.
— Quem sabe, algum sacerdote ou mago possa tê-la em seus depósitos, já que é planta rara e que, por aqui, não é encontrada. Provém da Núbia ao sul, e é usada em muitos rituais de magia tão ao gosto do povo ignorante.
— Aqui em Amarna não há um só mago, pelo temor de ser perseguido. Se os há, está também muito bem escondido longe daqui.
— Mas sem esse recurso, a morte é apenas questão de horas.
A angústia diante daquela informação era mais cortante e cruel no coração de todos.
— Tudo farei para encontrar tal planta em tempo de salvar minha filha — disse a rainha, tomando a palavra com o assentimento silencioso do marido.
Nesse instante, Khufu interferiu na sensibilidade de Hatsek como que a tomar-lhe o controle da fala e dirigiu as seguintes afirmações aos presentes:
— Sei que seu amor é verdadeiro e que um sentimento de nobreza invade seus corações na hora deste transe doloroso. Por deliberação do Deus Único e de sua Soberana Bondade, posso afirmar que essa planta existe e está dentro dos limites desta cidade, guardada em local muito próximo.
Vendo a quase inconsciência do sacerdote que, igualmente falava quase sem controlar os próprios pensamentos e sem entender o que Khufu pretendia, os ouvintes se viram tomados de maior reverência pela seriedade daquela hora. A própria voz do sacerdote ganhara um tom diverso daquela que lhe era normal.
Vendo raiar a esperança novamente, o rei indagou:
— Por quem és, afirma onde está e imediatamente a terás para o que for necessário.
E a resposta não se fez esperar:
— Está guardada nos aposentos de Mudinar, em um nicho bem oculto na parede onde se prendem as luminárias de azeite. Levem Hatsek para que possa identificar a planta e trazê-la até aqui. Enquanto isso, preparem um recipiente com água fervente.
Voltara ao normal o sacerdote, sem compreender com clareza as informações que haviam sido passadas por seu intermédio.
Olhando para os que o cercavam, perguntou o que havia acontecido.
Espantados pela sua inconsciência, Aye afirmou:
— Você acabou de dizer-nos onde está a planta de que necessitamos. Como é que não sabe o que aconteceu?
E para encurtar a conversa, o próprio Akhenaton interferiu, dizendo:
— Ora, Aye, Hatsek é sacerdote e conhece coisas que nós próprios não sabemos como acontecem. Felizmente, temos uma informação positiva. Partamos para encontrar o que é necessário.
Sem saber ainda, com exactidão, o que acontecera, Hatsek foi levado pelos dois na direcção apontada pela manifestação mediúnica ocorrida por intermédio dele próprio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:49 pm

Tomaram de uma biga rápida e deslocaram-se até os aposentos de Mudinar, que não distavam muito dos aposentos reais. Sua casa, na verdade, era uma das dependências de um dos palácios de Akhenaton, que lhe cedera para ali residir em face de suas importantes atribuições junto ao reino.
Todavia, apesar de estar ansioso para obter a planta necessária ao tratamento da filha, Akhenaton não deixou de estranhar a informação de que tal planta, usada por magos e adivinhos, encontrava-se no quarto de um de seus mais fiéis funcionários.
Isso, contudo, não chegou a causar qualquer suspeita no espírito do faraó que, a estas alturas tinha apenas o desejo de recolher a substância e de regressar ao quarto da filha.
Naturalmente, o palácio estava guarnecido com os soldados que protegiam as passagens de estranhos, mas que, à vista do próprio rei, prestavam reverência e nada indagavam sobre o seu destino. Junto dele, Aye e Hatsek caminhavam apressados até que chegaram ao interior dos aposentos de Mudinar. A ausência do seu ocupante tornava aquela presença desautorizada um gesto que incomodava a todos. Por isso, o próprio rei determinou que o guarda que estava postado na antecâmara os acompanhasse para testemunhar o motivo de tal invasão à privacidade do funcionário real.
Assim, entraram os quatro no ambiente onde só Mudinar costumava ter acesso. Ali estavam os seus segredos e as suas coisas pessoais.
Numa primeira visão, à luz baça da lâmpada de óleo, nenhuma irregularidade. Todavia, precisando de mais luz para que se pudesse encontrar o que se buscava, para a surpresa de todos, um panorama diferente estampou-se diante de seus olhos.
Iluminado o recinto com fortes tochas embebidas em betume incandescente, pôde-se perceber que Mudinar, apesar de aparentar ser um fiel seguidor do rei, mantinha seu culto particular e as imagens de inúmeros deuses aos quais prestava reverência constante, em face da quantidade de cinzas que se encontravam aos pés das mesmas.
Tal altar, parecido com o de inúmeros templos de outros deuses egípcios, localizava-se em um desvão do ambiente, oculto da visão imediata dos que entrassem ao acaso no recinto. No entanto, aos que vasculhassem seus detalhes arquitectónicos, não seria difícil perceber que ali se encontravam diante de um santuário dos mais tradicionais. Ali estava a imagem de Amon, reverenciada pelas cinzas que atestavam o culto de Mudinar ao deus antigo, as imagens de deuses menores, os objectos de cultos mágicos e os indicadores de que o próprio residente daquelas paredes era iniciado em práticas ocultas, visando a realização de actos condenáveis.
Estupefacção seria pouco qualificativo para a sensação íntima dos que ali estavam.
Olhando para os que o acompanhavam, sem desejar acreditar no que estava vendo, Akhenaton não sabia o que dizer de tudo aquilo. Seu homem de confiança, aparentemente defensor de todos os seus princípios, na verdade era um indivíduo inescrupuloso, que estava fazendo tudo aquilo por simples teatro e para manter os próprios privilégios.
Aye, por sua vez, exultava por dentro, já que aquela seria a maior oportunidade de afastar de seu caminho aquele indivíduo pegajoso e falso, ardiloso e mau que não perdia a oportunidade de levantar acusações, fazer intrigas, fomentar suspeitas. Ali estava a própria condenação perante os olhos do rei em pessoa. Não seriam necessárias testemunhas ou provas circunstanciais.
Hatsek, por sua vez, seguia tacteando as paredes, conforme lhe havia sido relatado por seus acompanhantes durante o trajecto, atrás da planta necessária ao tratamento. Não muito longe, no exacto local onde Khufu havia apontado, próximo à lâmpada de azeite, uma pedra mal colocada na parede dava a ideia de ser um local especial que poderia bem ocultar o que buscava.
Forçou a região que, sem muita demora, cedeu e franqueou a visão de seu interior.
Ali estavam pequenos pacotes de substâncias variadas, algumas das quais muito venenosas para ficarem expostas sobre o altar privado.
Além disso, se acomodavam inúmeras jóias de alto valor, inclusive uma cópia em tamanho pequeno dos próprios símbolos do poder real, feitos em ouro, como se apontassem directamente para o intento de seu possuidor, a saber, conquistar o poder e ocupar o trono do Egito.
Mas nada disso interessava a Hatsek que, sem se deter nos detalhes, ia retirando dali tudo o que se encontrava depositado, até que, pelo olfacto, conseguiu identificar a planta que procurava com avidez.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 7:49 pm

De posse do precioso conteúdo, voltou-se para os seus acompanhantes e lhes informou que estava pronto para voltar à cabeceira da jovem.
Tomados de susto com o que haviam encontrado, foi com dificuldade que Akhenaton concatenou as ideias e, meio atabalhoadamente, ordenou ao soldado que testemunhara todas aquelas descobertas que ficasse ali, sem permitir que ninguém tocasse em nada daquele ambiente até segunda ordem.
Ao sair dali, mandou que Aye providenciasse um levantamento rigoroso de todo o material que encontrara e que acompanhasse tal inventário pessoalmente.
Sua decepção só era vencida pela preocupação com o bem-estar da filha amada, o que o obrigou a voltar o mais rápido possível à sua cabeceira.
Tão logo chegaram ao local, Hatsek preparou a infusão e, depois de esfriá-la o suficiente, verteu-a no interior da garganta da pequena que, a muito custo, ingeriu o conteúdo amargo a fim de que em seu interior, o remédio pudesse ajudar a salvar-lhe a vida.
Feito isso, Hatsek solicitou autorização para que permanecesse no ambiente até que a pequena apresentasse as primeiras reacções ao remédio, alertando que tais reacções poderiam assustar inicialmente pelas contorções que indicariam a luta interior contra a enfermidade, mas que se a jovem se apresentasse com vontade de viver, regressaria à consciência depois de, pelo menos, quarenta e oito horas.
Nesse período, se lhe fosse permitido, permaneceria deitado ao lado de seu leito, a fim de servir-lhe de doador de forças numa verdadeira transfusão de fluidos que pudessem ser aproveitados no tratamento vibratório.
Nada lhe foi negado.
Providenciaram um leito modesto, mas confortável, para que ali permanecesse acompanhando a recuperação e orando para que o melhor ocorresse à princesa.
Por desejar presenciar todos os momentos de agonia da filha, outra cama foi providenciada para o faraó que, da mesma forma, permaneceria no local, aguardando o desenrolar dos acontecimentos.
Aye e sua esposa, acompanhados pela rainha, deixaram o recinto a fim de darem curso às obrigações imperiosas daquela hora. O funcionário real assumira a condição de condutor daquele levantamento determinado pelo rei, acompanhado por pessoas de sua confiança, entre as quais fizera comparecer o próprio Amenef, o chefe da prisão.
Nefertite, a rainha, e a esposa de Aye ocupavam-se das outras princesas reais, igualmente necessitadas de atenção enquanto que Hatsek e Akhenaton permaneciam no quarto, num silêncio mortal e na expectativa da melhora ou da morte.
Algumas horas depois, as convulsões tiveram início e a jovem precisou ser amarrada ao leito para que não se projectasse para fora ou para que não se machucasse com os golpes que desferia contra si própria.
Akhenaton se angustiava. Hatsek seguia sereno e confiante.
Pelo esforço constante de doação, ia se prostrando e permitindo que os Espíritos dele se utilizassem para que sua vitalidade fosse transferida em parte para aquele corpinho frágil.
Gemidos de dor surgiam da garganta da princesa, como que a reclamarem de sua condição de vítima.
Hatsek determinara que a menina deveria receber um pouco de água a cada período de tempo, o que obrigava o faraó a introduzir-lhe o líquido na boca da criança e esperar que a mesma fosse ingerindo lentamente o conteúdo. .
Enquanto isso, o próprio sacerdote permanecia em semi-consciência, entregue ao trabalho de auto-desgaste para que uma jovem e promissora criatura tivesse preservada a vida que lhe permitiria algum aprendizado no futuro.
E, fosse pela dedicação de Hatsek, pelo empenho dos Espíritos amigos, pela acção diligente do faraó, pelas orações de todos os que desejavam salvar aquela vida e, acima de tudo, pela permissão do Deus Único, muito superior a Amon e a Aton, impotentes para realizar a magia que ali se estava verificando, após as quarenta e oito horas previstas por Hatsek, a jovem abriu os olhos e pôde mencionar o nome do pai que, de joelhos caiu-lhe à cabeceira, em prantos de gratidão e júbilo.
A menina estava salva.
Ao seu lado, Hatsek estava desfigurado e abatido, sem se alimentar por todo esse período e extenuado.
A notícia da salvação da princesa correu pelos corredores do palácio e, logo, todos os mais íntimos se encontravam à sua volta, sorrindo e chorando ao mesmo tempo. Por ordem do rei, Hatsek havia sido levado para um quarto ao lado para que descansasse e fosse atendido em tudo o que desejasse.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:27 am

Agora que o principal problema se resolvera segundo os seus melhores desejos, restavam outros sérios problemas a serem equacionados pelo faraó.
A filha fora salva pela acção de um sacerdote de Amon, contrário a todas as suas convicções e compromissos.
Não obstante, o sacerdote fizera menção a um Deus Único tão logo se apresentara para atender à pequena. Seria esse deus o mesmo Aton que se mostrara indiferente para com a sorte de sua filha?
Como é que a um sacerdote tão insignificante as forças da cura haviam atendido tão submissas se ao próprio faraó haviam se negado a escutar-lhe as rogativas?
Ao mesmo tempo, o que significavam todas aquelas descobertas no aposento de Mudinar? Aquelas estátuas de deuses proibidos, os rituais claramente exercitados por ele no recôndito de sua intimidade. As substâncias perigosamente venenosas ali encontradas junto aos símbolos do poder do Egito, reproduzidos em detalhes e em ouro maciço?
Quem eram as pessoas que o circundavam? Em quem confiar?
Os que lhe votavam fidelidade canina, traíam-no por detrás. O que lhe parecia inimigo oficial, curava-lhe a filha.
Como equacionar todas estas questões sem enlouquecer?
Que força teria a crença daquele homem simples? Que fenómeno ocorrera diante de seus olhos quando o sacerdote revelara o paradeiro da tão importante planta medicinal? Deixara de ser ele próprio?
Que Deus assumira seu corpo para tão crucial revelação?
O que fazer com esse homem que agora se tornara tão bom e, ao mesmo tempo, tão perigoso aos seus projectos de guiar o Egito por terrenos novos em matéria de fé?
Deveria reverenciá-lo como um benfeitor e se submeter ao escárnio público que lhe cobraria coerência formal e o acusaria de traidor de si próprio e de suas convicções? Ou deveria fazê-lo desaparecer
como se nada houvesse acontecido, matando-o ou banindo-o de maneira ingrata e desrespeitosa?
O que fazer agora?
Essa era a pergunta que lhe consumia o espírito. Teria de escolher como se conduzir com aquele que se levantara como seu benfeitor e que nada pedira para fazê-lo.
Como se deixaria conduzir na hora de suas opções?
Se sua filha estava salva, Akhenaton tinha a ideia de estar se perdendo. E o Egito, sob sua condução fanatizada, igualmente ia-se perdendo num caos sem direcção.
Hatsek estava dormindo sem saber que seu gesto de amor poderia ter complicado muito mais o seu destino.
Enquanto isso, em Tebas, Mudinar se deixava levar pela euforia daquela vitória, desconsiderando todos os alertas ouvidos de Khufu, durante o seu estado de exaltação naquele dia da prisão de Nekhefre.
O príncipe, depois de ter sido açoitado cruelmente, estava entregue aos entes queridos que, na prisão, junto dele, tudo tentavam para que as feridas se fechassem, em vão.
O estado infecto das condições em que se achavam, a ausência de higiene adequada, o despreparo físico do príncipe pouco afeito aos rigores físicos, impunham ao seu organismo um estado de abatimento que o encaminharia para o desenlace alguns dias depois, apesar de todos os esforços de sua esposa e sua filha Marnahan.
Nekhefre não resistiria aos ferimentos que infeccionaram e conduziram-no à morte.
No entanto, antes que sua vida física fosse ceifada e, ao tempo das últimas despedidas, orvalhado pelas lágrimas emocionadas dos que o rodeavam, reverentes, Nekhefre buscou desculpar-se com os que o pranteavam, pelos equívocos de sua vida e da maneira como procedera.
Chamara Kalmark e, com os olhos lacrimosos, pedira desculpas pela sua conduta intransigente e violenta, dizendo-lhe que, apesar de isso não ter mais nenhuma valia naquele momento, abençoava a sua união com sua filha e lhe pedia tudo fizesse para fazê-la mais feliz do que ele, Nekhefre a fizera durante a vida.
Vendo no que se transformara aquele príncipe arrogante a quem odiara, o jovem chorava emocionado e, num gesto de arrependimento sincero, beijou-lhe a testa suarenta e prometeu-lhe tudo fazer para proteger não só a filha amada, mas toda a família que, agora, ficaria sem o chefe e sem os bens. Trabalharia de sol a sol para lhes garantir, pelo menos, o pão de cada dia.
Segurou as mãos de Kimnut e lhe agradeceu a tolerância e a compreensão de sempre, dizendo-lhe de seu imenso carinho pela companheira que lhe dera as duas coisas mais importantes da vida, as filhas amadas. Rogou que entregassem seu beijo a Hatsena com as bênçãos do pai que nunca a esqueceria.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 8 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:28 am

Olhou para Marnahan e seus olhos se encheram de lágrimas. Lembrou-se de sua conduta egoísta, na tentativa de salvar a filha mais nova e envergonhou-se de si mesmo.
— Desculpa teu pai fraco e amedrontado, minha filha querida - falou com dificuldades, dirigindo-se à mais velha que lhe humedecia a face com o próprio pranto. — Nunca deixei de te amar, apesar de não ter sabido valorizar o teu amor. Errei muito ao pretender desconsiderar teus sentimentos para manter as aparências. Perdoa teu pai que não soube ser digno da filha amada... — e começou a soluçar.
Marnahan também chorava muito e, emocionada, beijou-lhe o coração por sobre as vestes ensanguentadas. Aquele gesto de amor filial desfazia todas as faixas de escuridão que poderiam estar envolvendo o coração paterno nas vibrações de arrependimento e vergonha.
Vendo-se amado acima de todas as coisas erradas que fizera, sentiu-se leve e pronto para dar início à longa trajectória de sua alma a caminho do aperfeiçoamento.
Visualizando o Espírito de Khufu, que agora podia ser percebido em face de sua maior liberdade de espírito com relação ao corpo fraco, lembrou-se de uma das coisas mais importantes que deveria fazer:
— Marnahan, minha filha amada.... — disse com esforço. — Não posso morrer sem te incumbir de... algo muito.... importante...
As palavras eram difíceis de saírem de sua garganta. No entanto, num esforço sobre-humano, continuou antes de dar-se por vencido e voltar ao seio do mundo invisível:
— Procura... Hatsek....
— Sim, pai, procurarei — falou a filha.
— Agra..de..,ce..-lhe.... por tudo... e.
— Sim, pai, farei isso...
— E,... pede a ... ele ... que me ... perdoe!
Emocionados todos, viram pender sua cabeça e prorromperam em um pranto silencioso e dolorido.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 8 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:28 am

44 — O Deus único ensina seu caminho
Em Amarna, por mais de um dia inteiro o sacerdote permaneceu acamado, recuperando suas energias, combalidas pelo esforço de doar-se para que a jovem enferma encontrasse recursos para a própria reestruturação de sua saúde.
Durante esse processo, os Espíritos amigos que o cercavam, dele retiravam os eflúvios magnéticos indispensáveis ao tratamento dos centros de energia enfraquecidos da princesa real o que produziu um natural entorpecimento de seu próprio tónus energético e, por isso, a fraqueza orgânica que demandava repouso, alimentação e hidratação para recuperar-se.
Atendido com cuidado pelos serviçais do palácio, Hatsek recebia todas as atenções de que necessitava e bastava-lhe solicitar a mais simples alimentação e lhe era fornecido em abundância todo um universo de frutas, sementes, líquidos e pães.
Aliviados por tudo o que havia acontecido, Akhenaton e Nefertite viam-se invadidos por uma onda de felicidade e suavidade desde há muito tempo não sentida. Ambos seguiam muito gratos a Aye que, com sua intervenção propiciara o tratamento misterioso e eficaz à pequena amada de seus corações.
Com essa gratidão, Aye e sua esposa passaram a se ligar ao casal real de forma ainda mais decisiva para o futuro deles e do próprio Egito. No entanto, ainda restava o problema de como reagir diante do sacerdote.
Nefertite, a rainha, passara a defender Hatsek em todos os sentidos, sem desrespeitar os pendores religiosos do marido. Dizia ela que a vida de sua filha estava perdida e, graças ao sacerdote, ela fora salva quando mesmo Aton não lhes garantira a melhora. Os sacerdotes do novo culto também haviam sido chamados, feito orações e rituais e a condição da filha só vinha piorando. Com a presença de Hatsek e seu processo curativo tudo retrocedera e, a toda evidência, o sacerdote era uma alma enobrecida que merecia todo o respeito e consideração não apenas do rei e da rainha, mas de dois pais agradecidos pelo salvamento da própria filha.
Akhenaton sabia do pensamento de sua esposa com o qual concordava, mas tinha o conflito interior de ter-se submetido a uma força diferente daquela em que acreditava, o que poderia colocar em dúvida a própria fé que vinha impondo sobre todos os súbditos.
Não poderia correr esse risco depois de tudo o que já havia feito.
Ouvindo-lhe as ponderações, Aye, que era um homem prático como costumam ser todos os homens de governo, agindo segundo as necessidades e interesses imediatos, pensou em sugerir a eliminação do sacerdote adoptando alguns dos venenos encontrados no quarto de Mudinar, como forma de silenciar o próprio benfeitor para sempre, preservando as aparências de que a filha real fora curada por força do próprio Aton.
Todavia, sem tocar directo no assunto, procurou sondar as tendências dos soberanos sobre a ideia, falando:
— Nobres Senhores do Egito, muitas vezes todas as soluções se tornam simples quando a fonte dos problemas desaparece do cenário...
Conhecendo as artimanhas e as sugestões mesquinhas próprias do poder que pensa ser capaz de deliberar sobre a vida e a morte das pessoas, Nefertite de um relance apreendeu toda a gama de consequências que poderiam advir daquele comentário.
Antes que o próprio marido falasse algo, tomou a palavra e respondeu firme:
— Creio, Aye, que nenhuma fidelidade ao trono comporta uma conduta de desumanidade e de ingratidão. No trono de Aton não há marcas de sangue e não as haverá como pagamento do bem recebido.
Somos devedores desse homem, ainda que ele fosse um dos piores magos que se conhecesse. Não poderia aceitar a hipótese de vê-lo sucumbir pelo bem que nos fez. O Egito tem mil meios de ser generoso.
Não poderá escolher o único e mais sórdido recurso para demonstrar-se mesquinho e amedrontado.
Ouvindo-lhe as palavras destemidas, Akhenaton afastou de sua mente a possibilidade que Aye levantava como uma solução menos amarga. Imaginava também a circunstância de fazer o sacerdote perecer ali mesmo para não comprometer a sua reforma religiosa. Todavia, a postura da rainha causara-lhe um impacto na visão frágil do homem do mundo.
Dirigindo-se ao funcionário querido, a quem atribuía também o sucesso do tratamento, respondeu-lhe:
— Querido amigo do Egito, tuas preocupações são compreensíveis e teu desejo de servir ao trono é reconhecido pelos gestos de nobreza de tua alma. Todavia, concordo com as palavras da rainha. Teremos outros meios de agir com grandeza para com o homem que só nos trouxe grandeza com a sua postura de humildade e devotamento.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 8 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:28 am

Matar Hatsek produziria mais mal ao culto de Aton do que tornar pública a notícia de que um sacerdote de Amon curara a filha do rei. Tornaria Aton o mais amesquinhado dentre todos os antigos deuses banidos.
Conversaremos com o sacerdote e escutaremos os seus pedidos. Procurarei recompensá-lo pelo bem que nos fez e solicitarei dele a discrição necessária para a manutenção da ordem em nosso país.
Dar-lhe-ei todos os bens que necessite para viver em paz e, se possível, longe daqui, sem que isso signifique banimento. Permitirei mesmo que, por onde caminhar, possa exercer a cura das pessoas, desde que não se refira aos deuses do passado.
Isso não é tudo o que mereceria receber, mas é o máximo que posso fazer, diante da nossa condição comprometida com a reforma dos costumes e das crenças.
Nefertite, aliviada, admirava ainda mais o marido que ela sabia conduzir segundo os seus critérios de nobreza feminina. Sentia que Akhenaton possuía nela uma das pilastras de seus ideais e esse respeito e consideração do marido os mantinham sempre mais juntos um do outro.
Aproximou-se do rei e, reverente e respeitosa, perante os mais íntimos, ajoelhou-se diante dele e depositou um beijo na barra de sua túnica real, como a lhe bendizer a sabedoria que deveria sempre governar o Egito com bondade e tolerância, ainda que o próprio Akhenaton se estivesse perdendo nos comportamentos fanáticos que já vinha adoptando, distante dos olhares da esposa.
Emocionado, levantou a mulher e a abraçou com carinho e orgulho, sentindo-se ainda mais feliz por poder contar com uma companheira assim tão devotada e amiga ao seu lado.
Procurando mudar o assunto e dar nova direcção aos planos, falou a Aye:
— Precisamos deliberar sobre Mudinar. Espero que o inventário que mandei fazer já esteja sendo realizado.
— Sim, meu senhor, devo tê-lo terminado em breve e penso trazê-lo à sua presença tão logo chegue às minhas mãos. lndependentemente disso, creio que podemos tratar do assunto do traidor e das condutas a serem adoptadas... — respondeu Aye, jubiloso por poder tratar da punição para o homem que, até então, havia sido o centro dos processos de perseguição e espionagem de todos os que se acercassem do rei, inclusive o próprio Aye, que fora objecto de inúmeras espionagens e ameaças veladas para que se mantivesse distante do centro do poder real.— O que pude ver com meus olhos dispensa qualquer processo acusatório e é, por si só, elemento de condenação. Todavia, não desejo que Mudinar suspeite de que caiu em desgraça antes que chegue a Amarna. Penso que deverá ser convidado a regressar até aqui para reassumir suas funções, trazendo os prisioneiros que fora justiçar em Tebas.
E o que é mais interessante é que o príncipe Nekhefre foi apenado por se desconfiar de sua conduta, por ter dado guarida em sua casa ao sacerdote que aqui está e por ter ido algumas vezes ao templo de Amon, continuando o culto aos seus antigos deuses.
Ao passo que Mudinar, ao mesmo tempo em que pedia punições contra pessoas que apontava serem infiéis ou hereges, ele próprio mantinha seus cultos heréticos no interior de seus aposentos, realizando oferendas e realizando rituais condenados por nossas leis. A sua conduta é ainda muito pior do que a de Nekhefre. Por isso, a sua punição precisa ser exemplar para que todos os que vivem no Egito possam perceber que o culto de Aton deve ser adoptado não apenas pelos mais simples mas, antes de tudo, por todos.
Assim, Aye, determine a uma comissão que faça chegar a Mudinar uma ordem oficial para que regresse a Amarna a fim de receber o que lhe é destinado por merecimento pessoal e que traga os prisioneiros que fez em Tebas, de forma que ele não imagine que o que receberá é a punição para seu grave delito.
Ouvindo-lhe a determinação, Aye, reverente, considerou:
— Creio que Mudinar é homem perigoso, meu rei, e que, por ter sido sempre muito ligado aos próprios soldados da guarda real, conseguirá sempre comparsas para se evadir de qualquer local onde seja encarcerado. De onde estiver, procurará sempre conspirar contra o trono e invocará as forças ocultas que está sempre manipulando para atiçá-las contra a família real. Não me espantaria se essa enfermidade misteriosa da princesa já não fosse consequência de seus sortilégios proibidos...
Ouvindo-lhe a palavra verdadeira, o faraó tranquilizou-o:
— Depois da punição, Aye, não sobrará muita coisa de Mudinar para fazer uso dos sortilégios malditos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:29 am

Um calafrio percorreu a espinha dos que ouviam a voz determinada de Akhenaton. Ninguém, no entanto, ousou perguntar-lhe o que pretendia fazer com Mudinar.
No dia seguinte, Hatsek já estava mais recuperado e deixou o leito para dar os primeiros passos depois da grande e desgastante operação magnética feita na princesa. Percebendo-se mais refeito, imaginou que naquele mesmo dia poderia apresentar-se ao funcionário dorei, Aye, para informar que estava pronto para regressar à prisão de onde tinha sido retirado.
Através de um dos servos do palácio, solicitou que Aye fosse informado do seu desejo de lhe falar, no que foi atendido prontamente.
Algum tempo depois, o mencionado alto funcionário penetrou no recinto onde Hatsek se achava e, sorridente, dirigiu-lhe as palavras de saudação:
— Bendito do Egito, pois que de há muito nosso rei não sorria como agora. Que Aton te preserve o dom da cura.
Ouvindo tão entusiásticas expressões, Hatsek se manteve de cabeça abaixada, como a não recebê-las para si mesmo. Buscando mudar o rumo da conversa, falou com simplicidade, depois de cumprimentar o recém-chegado:
— Pedi que o chamassem para informar que já estou refeito e pronto para regressar à prisão. Não pretendo permanecer mais tempo aqui para que nosso rei não se veja constrangido pela minha presença.
Que alma diferente era aquela — pensava Aye admirando-se de sua conduta. Como pensara em sugerir a sua morte naquela conversa com o rei?
E se sua sugestão houvesse sido adoptada por todos como a solução para as dificuldades e as conveniências do trono? Como poderia desculpar-se depois perante a própria consciência?
Voltando a si de tais divagações, Aye fitou Hatsek e respondeu:
— Antes de voltar à prisão, sacerdote, o rei pretende falar contigo. Se estás pronto, vamos à sua presença.
Acenando com a cabeça, afirmativamente, Hatsek deixou-se conduzir por Aye até a presença do faraó que, informado previamente de sua recuperação, encontrava-se nos seus aposentos mais íntimos, distante de todas as vistas de serviçais e funcionários do cerimonial real, acompanhado de Nefertite, da princesa recuperada e de Aye e sua esposa.
Percebendo a chegada de Hatsek, Akhenaton tomou a filha pela mão e dirigiu-se até a sua presença, como a levar-lhe o fruto reverdecido de seu esforço e dedicação.
— Nobre sacerdote, eis a filha amada que regressou da grande noite para manter a nossa alegria de viver. Graças a ti e ao teu poder, ei-la aqui para saudar-te.
E apontando para a filha, indicou que a mesma deveria reverenciar àquele homem desconhecido como sendo o benfeitor de sua saúde.
Entendendo as ordens do pai, a jovem prostrou-se diante de Hatsek como se ele fosse o próprio faraó do Egito. Desconcertado por essa conduta espontânea, Hatsek abaixou-se e com seus braços buscou reerguer a jovem afirmando-lhe, com sinceridade:
— Minha filhinha querida, sou apenas um homem falho e destituído de qualquer poder que não seja de propriedade do Deus Único.
Guarda tua reverência para essa Divindade Maravilhosa que te salvou e para o nosso rei que tanto te ama.
Ergueu-a diante de si mesmo e depositou-lhe um beijo na testa, devolvendo-a ao faraó que a tudo acompanhava com infinita comoção interior.
Novamente ouvira o sacerdote referir-se ao Deus Único.
Por que motivo não o chamava de Aton? Seria por considerar que o Deus Único não fosse outro que não Amon a quem se submetia como sacerdote?
Vendo-se envolvido nestas cogitações, convidou o sacerdote a sentar-se diante de si para que pudessem conversar sobre essas questões.— Sacerdote, tenho observado que te referes a um Deus Único sem lhe proferir o nome. Que Deus é esse? Seria nosso grande Aton?
Se não é esse o teu pensamento, pode expor tuas ideias sem medo para que eu possa compreender melhor teu ponto de vista e nada te acontecerá.
Diante de tal convite para expor as ideias, Hatsek foi invadido por uma onda de bem-estar e tranquilidade, como se, naquele momento, as forças do mais alto descessem para conversar com o homem mais poderoso da Terra, naquele período. Utilizando-se da faculdade mediúnica, Khufu se fazia portador das notícias que iriam chegar aos ouvidos de Akhenaton.
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