LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 9 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:29 am

— Grande Rei, nas longas e claras noites do deserto, nosso céu permite o brilho de milhões de pontos luminosos, todos eles fiéis e silenciosos, nos mesmos lugares. Poder-se-ia pensar que se tratam dos olhos dos deuses a nos observarem a conduta durante a noite.
No entanto, tais pequeninas janelas são um mistério que nossos deuses antigos ou novos jamais nos explicaram. Nunca se presenciou a nenhum dos deuses do Egito fabricar a mais singela porção de areia, nem uma só das gotas que enchem o Nilo durante todo o ano. Cada cidade invoca um deus em particular e, entre si mesmos, nossos deuses disputam primazia uns sobre os outros, ora um erguendo-se na preferência ora perdendo popularidade e caindo para plano secundário.
Já tivemos deuses de Mênfis, deuses de Tebas, deuses de muitas cidades e, agora, temos o deus de Amarna.
Como os homens que os cultuam, respeitosamente, todos eles passarão um dia. Todavia, aquele que acendeu as estrelas da noite e que fez nosso Rá brilhar para sempre, este continua a mantê-los brilhante.
Nossos antepassados nos ensinaram coisas em que acreditavam, mas que, muitas vezes, estavam distantes da realidade.
O culto imposto em vosso reinado se aproxima mais da realidade em que acredito, ou seja, a de que existe um único Deus no Universo.
Todavia, ele não está representado no Sol, na água, no vento, nem necessita dos rituais a que nos acostumamos como se isso fosse da necessidade intrinseca.de sua existência.
Mesmo o culto a Aton tem sido revestido de um paramento que, apesar de respeitável e importante para seduzir o imaginário do povo, é dispensável já que, em se tratando de deus soberano, não se deixa seduzir pelos nossos cultos pequeninos. Imaginemos que todos os escaravelhos do Egito se unissem sob vossos pés para realizar um ritual no qual agitassem as asas em homenagem à vossa grandeza.
Isso teria alguma importância para o grande faraó Akhenaton?
Talvez nem lhe fosse compreensível o motivo de tanta agitação no reino dos besouros. Assim, todas as nossas condutas que busquem meios exteriores para adoração, são despidas de respeito à grandeza das forças que dizem reverenciar.
São quase exercícios de ingenuidade e só não são tidos como repugnantes por apontarem para a tola credulidade dos que o praticam.
O Deus Único a que me refiro, não é nem Amon, nem Rá, nem Osíris. É um Deus sem nome, superior a todos os outros e que não depende de nenhum culto para existir e para agir em favor dos que sofrem.
Não depende de oferendas, de agrados, por estar acima disso tudo, do mesmo modo que o faraó do Egito está acima dos escaravelhos rastejantes.
Dele derivam todas as forças mais poderosas que existem e que são capazes de tudo reconduzir ao estado de equilíbrio.
Foi a esta força soberana que recorri em minhas orações e que pude sentir fluindo para o corpo de vossa filha.
Nada dei que me pertença. Tudo pertence a essa força maior que a maioria dos sacerdotes de todos os cultos desconhece.
Em vossa tentativa de melhorar o nível de crença do Egito, elegendo um único deus para todos, vejo uma grande iniciativa para a compreensão de tais verdades. No entanto, está-se tentando reproduzir os mesmos padrões que se adoptavam nos antigos cultos, com a diferença de que, neste, a centralização da divindade única na pessoa do rei impede maiores desmandos por parte de sacerdotes iníquos, interesseiros e venais. Todavia, tal coincidência entre rei e deus pode gerar como já tem gerado inúmeros dissabores, seja ao faraó, seja a Aton. É um grande passo, mas segundo me parece, Aton ainda não é a força soberana que a todos dirige. E um deus que depende de oferendas, que se torna exclusivo de uma só pessoa, que beneficia os que o adoptam e pune os que não o aceitam.
O Deus Único entende os limites da crença de cada um e, compreendendo isso, sabe esperar que cada um amadureça por si próprio, até que venha a aceitá-lo por si mesmo. Não violenta, não agride, não impõe.
Não entenda isso, grande Rei, como referência à vossa pessoa.
Estou apenas apontando como entendo o Deus Único que um dia será compreendido por todos e não se manterá atrelado a um trono apenas no mundo.
Calara-se o sacerdote diante de um Akhenaton silencioso e pensativo.
Ali estava muita coisa para pensar. Era verdade que o faraó havia reunido sob um só deus todos os antigos focos de fé. Todavia, mantinha o novo deus atrelado aos mesmos padrões de antigamente. Rituais, oferendas, intercessões exclusivistas, compra de favores, negócios com o além, tudo isso seguia existindo de outra maneira.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:29 am

E a confirmar as afirmativas de Hatsek estava o fato de que por força de seus rituais, nenhum dos sacerdotes de Aton, nem mesmo o próprio faraó conseguiram modificar o estado de desequilíbrio orgânico da jovem princesa.
Ao passo que um só homem, adoptando a simples e despojada oração, conseguira recursos para modificar todo o cosmo orgânico sem uma explicação mais profunda ou complicada.
Vendo-lhe a disposição pensativa e envolvido pelo Espírito amigo que o inspirava, Hatsek retomou a palavra, afirmando, sereno:
— Grande Rei, vosso reinado será visto como uma ameaça por todo o Egito. Vosso nome, depois de vossa morte, será banido para sempre dos monumentos. Esta cidade será inteiramente destruída pelos que vos sucederem, com receio de que vossa crença regresse um dia para impor-se aos homens novamente. Mas um dia, todos estarão devotados a um Deus Único e, então, perceberão que o vosso esforço foi o primeiro a tentar levar o homem na Terra à compreensão de que só um Deus basta. Ainda que os homens de agora não vos compreendam e venham a reconstituir toda a antiga tradição da qual não estão preparados para se apartarem, chegará o dia em que todos eles se colocarão cultuando um só e único Deus. Não terá o nome de Aton, mas representará a justiça, a bondade, a igualdade que o Deus Único representa para todos.
E vossa memória, que os homens tentaram apagar rompendo as pedras que vos levavam as referências pessoais, será erguida à conta daquele que, visionário, levantou a primeira bandeira da verdade no meio da escuridão dos que estavam perdidos. Por isso, grande Rei, que vosso esforço nobilitante permaneça, mas que sejais sempre tolerante para que a grandeza de Aton se aproxime da grandeza do Deus Único. E ainda que não seja possível agora adoptar uma outra direcção para o culto de Aton, que, ao menos, ele seja caracterizado pela bondade, pela justiça e pela igualdade.
Tudo isso será muito difícil de equilibrar em uma só pessoa que tenha de conciliar esses princípios com os princípios do governo de uma Nação. No entanto, fazei o que for melhor por todos nós e, com isso, esta experiência inovadora será a base de outras que se edificarão sobre os alicerces que estais lançando hoje na Terra.
Silenciou novamente o sacerdote.
Todos estavam extáticos com aquelas palavras que eram mais do que simples explicações. Eram uma verdadeira profecia.
Voltando-se para Hatsek, interrompendo o longo silêncio, Akhenaton afirmou:
— Tuas palavras contêm muito de sabedoria e de revelação. Precisarei meditar sobre elas por longas horas. Contudo, tua presença não pode mais ser exigida entre nós, diante das tarefas que te aguardam.
Pelo bem que nos fizeste, ordenei que qualquer pedido teu fosse atendido regiamente. Não importa o que seja. Pede que te será concedido. Bens, riquezas, posição.
A única condição é a de que permaneças silente sobre o que ocorreu neste palácio para que a confusão não se estabeleça no espírito da massa ignorante. Não pretendo que se vejam aturdidas pela invocação de Amon em confrontação com Aton nesta altura de nossa caminhada.
Teu espírito generoso conquistou a liberdade para tua nova vida.
Nada mais te aprisionará neste reino, se seguires a jornada por este caminho de bondade e de dedicação aos que sofrem, pelo que estás autorizado a praticar teus conhecimentos, desde que enalteças a esse Deus Único, sem mencionar qualquer nome antigo para engrandecê-lo pelos feitos que conseguiste. Na mente do povo, esse Deus Único a que te referes será interpretado como sendo Aton a quem defendo. E assim, não teremos problemas.
Por isso, sacerdote, aqui estamos para ouvir-te o desejo.
Percebendo que o rei, acostumado a presentear com coisas, mantinha-se no mesmo procedimento de negociar com as benesses recebidas de mais alto, Hatsek dirigiu-lhe a palavra, amistosamente:
— Muito me enaltece, meu Senhor, essa consideração que não mereço por uma coisa que eu próprio não realizei. Sigo sendo o súbdito apagado de vosso reino, a servir-vos em silêncio como me pedis e muito grato já me sinto por poder me dedicar à única coisa que tem me valido a pena a existência. Evitarei em tudo criar conflitos de crença no coração das pessoas. Que elas pensem tratar-se de Aton quando estiver me referindo ao Deus Único já representará uma grande mudança no espírito dos homens presos a inúmeros deuses confusos e vingativos.
Agora, com relação a desejos e a bens que me autorizais a pedir, posso afirmar-vos que o que me dais já representa muito mais do que me seria lícito esperar receber.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:29 am

Mas se alguma coisa me permitis solicitar, não por mim, mas por todos os que vivem no Egito e que poderá tocar-lhes o coração pelo exemplo de grandeza de vossa alma, vos peço que afastai-vos de toda a injustiça, seja por motivos políticos, seja por motivos de crença. Que Aton se erga na consciência de todos como o mais generoso e sábio dos deuses que um dia já existiram no Egito, para que a era de Akhenaton nunca mais seja esquecida e seja marcada como a mais luminosa na aurora da humanidade.
Daí, meu Grande Senhor, o único pedido que faço, invocando a generosidade de Aton a espelhar a generosidade do Grande Deus Único, é pela liberdade de Nekhefre e sua família inocente. Não vos peço que lhes restituais as coisas materiais. Apenas que lhes permitais voltar à liberdade, pois nunca fizeram nada que conspurcasse o trono do Egito ou a crença em Aton. E se o seu crime foi o de ter-me oferecido o tecto para me abrigar no desamparo em que me encontrava, peço-vos que me mantenhais recluso aqui para sempre, mas que liberte a eles que são, em última hipótese, vítimas da insensatez e do ódio de um serviçal deste reino.
Observando-lhe a sinceridade do pedido, Akhenaton retrucou:
— Mas não foi Nekhefre que te repudiou na frente de todos nós?
Pedes por esse falso amigo?
Com um brilho nos olhos, o sacerdote respondeu:
— Peço por um irmão em crescimento. Um ser humano tão falho quanto qualquer de nós que não soube ter a coragem necessária para afirmar seus próprios pontos de vista, pagando o preço que pagaria por isso. Peço por um pai que pretendia defender sua família, com medo de ser dela despojado. Peço por alguém que não sabia o que estava fazendo e que, ao fazê-lo, estou certo, arrependeu-se e sofreu muito. Não peço pelo pecador frágil que Nekhefre pode parecer, mas que também existe em cada um de nós. Peço pelo espírito virtuoso e nobre que está oculto por detrás de cada um e que se revelará um dia.
Emocionados por tal gesto, todos naquela sala se elevavam nos conceitos nobres que Hatsek difundia com a sua conduta despojada e desinteressada.
Poderia pedir tudo para si, mas pedia apenas para a família de seu irmão e amigo, o mesmo que o traíra e o prejudicara.
Curvando a cabeça real em um gesto de inesquecível homenagem, Akhenaton lhe respondeu:
— Nobre Alma luminosa e boa, teu pedido está aceito. Todos serão libertados no momento adequado. Serão trazidos para Amarna como já ordenei e, aqui, num gesto de justiça e grandeza de Aton — ou do Deus Único, como afirmas — eles serão recolocados em liberdade para seguirem suas vidas. É a vontade do faraó, é a vontade do Egito.
Quanto a ti, estás livre para partir quando quiseres. Com a gratidão não apenas do rei e da rainha do Egito. Com a gratidão de dois pais que jamais te olvidarão.
Reverentes, Aye e Hatsek deixaram o recinto para dar seguimento às suas vidas.
A caminho de Tebas a comissão do faraó já se encontrava para levar a Mudinar a notícia de que o esperavam em Amarna para as “justas homenagens”.

(Nesta pequena estatueta inacabada, uma das obras mais expressivas da arte amarniana, encontrada no Museu do Cairo, Akhenaton abraça carinhosamente uma de suas filhas.)
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:30 am

45 — Mudinar, outro rochedo em ruínas
Com a morte de Nekhefre, um abatimento tomou conta dos seus entes queridos que com ele compartilhavam a prisão injusta.
Somente Marnahan se mantinha mais disposta e firme para poder dar forças à sua mãe que, por todas razões já explicadas, estava absolutamente despreparada para enfrentar situações desse tipo.
Kalmark tentava ajudar no que podia, mas, igualmente confundido pela condição de recluso, sem poder fazer nada para alterar isso imediatamente, deixava-se levar pela impotência, sobretudo por saber que cometera um delito grave ao falsificar as ordens de Mudinar a fim de fugir das obras funerárias do rei.
Sabia que, mais cedo ou mais tarde seria levado a julgamento e, como sabia das práticas da época, mantido encarcerado.
Hatsena, que não participara do drama da morte do pai por encontrar-se afastada do grupo por ordens do representante do faraó, tomara conhecimento do ocorrido pela informação do próprio Mudinar que, com sua crueldade e cinismo, desejava fazê-la sofrer ainda mais, fustigando-lhe a personalidade ainda em formação para dobrá-la aos seus caprichos masculinos.
No mais fundo de si mesmo, sentia uma atracção estranha por aquela jovem e, como seus pensamentos secretos lhe indicavam, tomá-la-ia senão por esposa, ao menos como serviçal de seus caprichos mais íntimos.
A jovem, entretanto, abatida pela perda do pai deixara-se arrastar para um estado de prostração e de abandono que nada seria capaz de alterar.
Sem a presença do genitor, sentia-se quase sem motivo para viver entre os homens, já que Nekhefre se apresentava como o seu protótipo de homem protector e generoso. Para Hatsena, o pai era alguém cujos defeitos e fraquezas não eram relevantes, eis que conhecera também os gestos de carinho e doçura com os quais sempre a mimara. Era o pai amigo e tolerante para com os seus desejos de criança e que, acima de tudo, representava o porto seguro para as suas incertezas.
Portais motivos, Hatsena não pretendia envolver-se com nenhum indivíduo que não tivesse muitas das virtudes que seu pai soubera cultivar e que lhe faziam tão bem.
Não sabia ela que tal afinidade entre eles era decorrência da convivência em vida anterior, quando envolvidos por um amor vigoroso e cáustico, que corroeu outras vidas e levou sofrimento a muita gente.
Também Mudinar não se lembrava de sua união com Hatsena em outra existência. Tinha, entretanto, a atracção inexplicada e, ao mesmo tempo, um desejo de feri-la constantemente. Não lhe suportava a aparência de superioridade e o espírito arrogante que não se dobrava nem mesmo diante de sua autoridade. Sentia uma mistura de amor e ódio.
A morte do príncipe em nada abalou os desejos de Mudinar de interferir para sempre no seio de sua família, já que seus próprios ancestrais muito haviam sofrido em suas sucessivas gerações por causa dos ancestrais de Nekhefre.
Seguiria prejudicando os seus descendentes e os manteria como encarcerados do rei, a fim de que não apresentassem maior perigo. Uma vez encaminhadas as coisas para tal situação, Mudinar via-se inclinado a regressar a Amarna para poder dar continuidade aos seus ofícios tão ligados a Akhenaton.
Sabia ele também que outras pessoas próximas ao rei se mantinham à espreita e tudo fariam para prejudicá-lo, valendo-se de sua ausência para influírem no ânimo de Akhenaton em detrimento de sua pessoa.
Assim, não foi de todo inesperado o encontro com a comissão oficial enviada pelo faraó, solicitando em termos amáveis o seu regresso à capital para que recebesse as justas e merecidas homenagens.
Mais do que isso, tal convocação nestes termos propiciou ao seu espírito vaidoso e inclinado para as demonstrações de poder uma sensação de euforia íntima que só fazia com que suas reacções se tornassem ainda mais altivas.
Ostentando a mensagem do faraó aos olhos das autoridades de Tebas, informou-as de que estava sendo convocado a Amarna para receber ainda maiores homenagens do rei e que, tão logo quanto lhe fosse possível, regressaria à velha capital para dar continuidade aos processos punitivos de tantos quanto estivessem praticando os antigos rituais.
Na verdade, a comunicação de sua partida correspondeu a um significativo alívio para todos os que em Tebas exerciam alguma autoridade administrativa, já que sua presença era extremamente desagradável pelas maneiras arrogantes que ostentava. Mandou preparar os presos que restavam para seguirem com ele, já que os iria entregar ao rei, pessoalmente, lastimando-se, porém, de não poder apresentar o próprio e principal acusado, o príncipe falecido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:30 am

Em poucas horas, tudo estava pronto e a viagem de regresso a Amarna foi realizada rio abaixo, o que consistia em uma economia de tempo significativa, já que navegavam a favor da correnteza.
Hatsena continuou separada dos demais, detida próxima das vistas de Mudinar, enquanto que os outros seguiam amarrados uns aos outros.
A presença de todos em situação tão precária desde longos dias, já era clara no abatimento orgânico que ia se apossando deles. Não acostumados aos rigores do cárcere, aos poucos recursos alimentares de péssima qualidade e à ausência de conforto mínimo, todos os pertencentes à família de Nekhefre iam se sentindo enfraquecidos e desanimados.
O pensamento de morrer não era estranho à mente de Kimnut, sempre fraca para estar perante a vida como quem enfrenta as dificuldades. No entanto, amarrada e sem forças, não sabia o que fazer para buscar a morte, o que seria delito pior do que todos os que já cometera na vida, juntos.
Kalmark, mais jovem e acostumado aos rigores de uma vida de dificuldades, mantinha-se mais firme diante dos tormentos pessoais, procurando infundir um pouco de ânimo em Kimnut e apoiar a disposição de sua amada Marnahan que vinha se demonstrando uma verdadeira heroína.
Sem maiores incidentes, a embarcação tocou o porto de Amarna logo ao amanhecer, depois de quase uma semana de viagem sem paradas, eis que Mudinar tinha pressa em chegar para receber as justas homenagens as quais ia antecipando em sua imaginação febricitante.
Emoldurava os quadros galantes dos rituais oficiais com as molduras da sua criatividade fértil e invigilante, vendo-se elevado no conceito de todo o Egito pelas grandes acções já desenvolvidas a serviço do faraó.
Sem levantar qualquer outra possibilidade que não fosse a de ser o objecto da lisonja real, Mudinar tomou o rumo de sua residência, determinando, antes, que os presos fossem atendidos nas suas necessidades mínimas de higiene para que comparecessem perante o rei em condições de asseio ao menos aceitáveis para a ocasião.
Estavam todos em péssimo estado.
Foram encaminhados para a higienização preconizada por Mudinar, enquanto este buscava o interior de seus aposentos pessoais para que se preparasse a fim de se apresentar ao rei no melhor de seu estado. Como estava com pressa para levar ao faraó o fruto de sua tarefa em Tebas, agiu rápido, sem se aperceber de qualquer mudança no interior de sua moradia sumptuosa, eis que por ordem de Aye, foram preservadas todas as coisas nas disposições em que estavam antes.
Nenhum indício estranho chamara a atenção de Mudinar, que seguia se paramentando com o melhor e mais belo que possuía para aquele que seria o grande dia do Egito em sua vida.
No menor tempo possível, já estava preparado para poder seguir ao palácio afim de apresentar-se ao rei no horário da cerimónia oficial e pública, aquela mesma que ocorria em homenagem ao deus Aton, na qual o povo era convidado a presenciar a sumptuosidade de seu reinado e reverenciar o único deus do Egito, representado por Akhenaton em pessoa.
A mesma cerimónia na qual Nekhefre havia sido ovacionado pela malta entusiasmada e estimulada pelo astuto Mudinar, antes de exigir-lhe o preço da própria dignidade na audiência com o faraó logo depois.
As mesmas pompas lá estavam a esperar por ele, Mudinar, e pelos seus conduzidos, esquálidos e indefesos.
A cena dos presos era de dar dó. Seguiam atados entre si, num carro tosco, enquanto que o Chefe da Guarda, empavonado com todos os galardões, braceletes e insígnias ia adiante, em luxuoso veículo, como a romper o ar, vitorioso e altaneiro.
O local da cerimónia, onde se localizava a Janela das Aparições na qual o faraó e sua esposa recebiam homenagens do povo e atiravam presentes para os que ali se apresentavam, estava repleto.
Sabendo da chegada dos viajantes por um emissário especial de Mudinar que se antecipara ao palácio para comunicar a presença do mesmo em Amarna, Akhenaton fizera chegar ao seu funcionário o desejo de que ele participasse da cerimónia naquele mesmo dia, ao meio-dia, o que obrigou Mudinar a acelerar todos os preparativos, feitos apressadamente para que a vontade do rei fosse observada com rigor.
Ao mesmo tempo, Akhenaton mandou fincar um poste na vasta arena onde se localizavam os rituais da aparição, bem adiante da referida Janela, destinada a receber um prisioneiro que se iria punir à vista de todos.
A cerimónia ia se desenvolvendo quando, como já vimos, ingressou pelo vasto ambiente a caravana encabeçada por Mudinar que, à luz do Sol brilhava quase tanto quanto o faraó.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:30 am

Seus berloques e adereços dourados rutilavam na luminosidade do deserto, causando inveja e ofuscando a vista de muitos que fixavam o olhar para melhor medir suas riquezas pessoais ali ostentadas.
O carroção dos presos vinha logo atrás, sem a presença de Hatsena, que não fora levada para a cerimónia para que não fosse desviada do destino que pretendia Mudinar lhe oferecer. Os integrantes da comissão antecipavam-lhe a caravana, como a constituírem o cortejo de abre-alas até o local das reverências oficiais.
À entrada sumptuosa de tal conjunto, os gritos dos presentes foram entoados em um só coro de vozes a gritarem o nome do Chefe da Guarda, para sua maior euforia e enaltecimento de sua vaidade.
Dirigidos por pessoas adredemente orientadas a fazê-lo, as vozes faziam-se ouvir em uníssono:
— Mudinar... Mudinar... Mudinar...
Ecoavam pelo vale onde Amarna se localizava, entre o rio e a cadeia de montanhas na qual se esculpia, pouco mais adiante, o túmulo do rei.
A cena era de arrepiar. Da Janela das Aparições o faraó mantinha um sorriso metálico no rosto, como se estivesse a admirar e aprovar tudo aquilo.
O cortejo seguiu na direcção do rei e, tão logo a comissão que antecedia a caravana atingiu o local adequado, interrompeu o passo e, cheio das cerimónias convencionais, um de seus representantes dirigiu ao faraó as saudações de praxe, gritadas para que fossem ouvidas pelo maior número dos presentes que se acotovelavam para assistir à cerimónia nem sempre tão repleta de pompa.
Ao lado de Akhenaton, a rainha se postava e, mais ao lado, podia-se ver a figura de Aye que, agora, fazia o que Mudinar costumava fazer.
O chefe da comissão informou ao rei a chegada dos convidados e mencionou oficialmente o nome de Mudinar que vinha logo depois.
Com um gesto da cabeça coroada com a dupla coroa do Egito, o rei demonstrou a autorização para que o mencionado funcionário se aproximasse de sua tribuna real, o que foi feito sem detença.
Levado pela sua biga até o lugar onde se podia falar e escutar, Mudinar aproximou-se e saudou em altos brados a figura do representante vivo de Aton na Terra.
— Grande Rei de todo o Mundo, prostro-me diante de vossa majestosa presença. Em cumprimento de vosso decreto, regresso ao centro do Mundo para informar-vos da fidelidade no cumprimento de vossas ordens. A heresia de Tebas foi combatida e serviu de exemplo a todos quanto ousavam desafiar as determinações do Rei do Egito.
Mantendo-se com a palavra e percebendo que o poste dos castigos estava ali esperando certamente por Nekhefre a fim de que fosse punido à frente de todos como exemplo de mau comportamento a merecer corrigenda, Mudinar viu-se forçado a revelar que o principal prisioneiro não estava presente, pois havia sido levado da vida por força da vontade de Aton, antes que pudesse chegar em Amarna.
— Apesar de não mais estar vivo o principal culpado, que não suportou a punição que lhe fora destinada em Tebas, aqui estão os que lhe compõem a família que, igualmente participavam de todos os actos de heresia e traição, junto ao culto de Amon, proibido em todo o Egito.
Apontou então para o carroção tosco que era preenchido pelas mulheres, Kimnut e Marnahan, e por Kalmark.
Observando aquela cena desumana na qual Mudinar se apresentava vitorioso sobre duas mulheres e um jovem, todos em frangalhos físicos, ainda que razoavelmente vestidos para ocultar os maus tratos que haviam recebido, Akhenaton dirigiu-se a Aye e determinou que ele desse prosseguimento às homenagens preparadas.
A um sinal do funcionário real, um grupamento de soldados leais ao rei cercou todo o cortejo de Mudinar, como que a proteger os seus integrantes da presença do povo ao redor.
Ao observar aquilo, Mudinar sentiu-se ainda mais lisonjeado com tal demonstração de cuidado e protecção.
Perfilados e armados com lanças pontudas e instrumentos contundentes, os soldados se mantinham firmes na posição, enquanto Aye dirigia a palavra a todos os ouvintes.
— Nobre Mudinar, a vontade do Rei é a vontade de Aton e a vontade do Egito. A sua chegada a Amarna é acolhida como a vitória da verdade sobre a mentira, da fidelidade sobre a traição. O poste do castigo está de pé e nele não se poderá deixar de punir alguém já que todo o povo aqui presente se encontra para assistir ao flagelo do traidor.
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Até aqui, as palavras de Aye nada diziam de diferente ao coração de Mudinar que, acreditava, referirem-se ao príncipe. A afirmação de que alguém seria punido no lugar para a satisfação do povo ali presente, igualmente, era algo normal, já que outros prisioneiros ali estavam que poderiam, igualmente, suportar o látego firme. Naturalmente, se poupariam as mulheres de tão pesada punição. Restava Kalmark a se candidatar como o provável destinatário da chibata.
No entanto, este cenário começou a mudar depois que Aye, com um outro gesto, determinou que outros soldados ingressassem no recinto transportando vastas mesas repletas de objectos do culto proibido pelo faraó e que haviam sido encontrados em seus aposentos íntimos.
Sem entender o que se passava ali, Mudinar continuou a observar a aproximação dos soldados e carregadores até que os mesmos ingressaram no círculo feito pelos guardas que os haviam antecedido e posicionaram as mesas diante da biga de Mudinar.
O silêncio do povo dava mostras da perplexidade no ambiente.
Todos conheciam aqueles símbolos e sabiam tratar-se dos instrumentos do ritual dos antigos deuses, além de outros destinados a cultos macabros e a magia oculta, próprios dos iniciados nos mistérios do mal, como eram conhecidos tais procedimentos naquele tempo. Da mesma maneira, Mudinar começou a reconhecer aqueles objectos como muito parecidos com os que ele próprio estava acostumado a manipular em segredo, nas dependências íntimas de sua residência oficial.
Todavia, mantendo-se firme, seguiu em silêncio até que Aye tomou a palavra.
— Certamente, nobre Mudinar, na falta do príncipe Nekhefre, acreditas que lhe tomarão ó lugar alguns dos prisioneiros que vieram contigo. A pele suave de duas mulheres ou as costas de um rapaz que nem pertence à família consanguínea podem, perfeitamente, ser entregues como maneira de saciar a vontade de sangue do povo insano. Todavia, aquele poste é para os verdadeiros traidores da verdade. Reconheces esses objectos postos bem diante de teus olhos?
A pergunta incisiva fora gritada a todo pulmão por Aye, que dirigia a cerimónia, a pedido do próprio faraó e que ia surpreender Mudinar para sempre.
Observando que o tom das homenagens estava se alterando gradualmente para um tom de julgamento, Mudinar começou a suar frio, em pleno calor causticante do Egito. Mantinha-se em silêncio, entretanto.
— Cala-te diante do que vês? — gritou Aye, dando um efeito teatral a suas palavras. — Pois eu revelo a todos os presentes que o próprio rei encontrou nos teus aposentos essa cornucópia de insultos à sua pessoa, esse conjunto de deuses incensados e homenageados, esses apetrechos odiosos que são o mais claro e decisivo libelo contra alguém.
Não foram fruto de insidiosa acusação, sempre muito comum nos momentos em que se pretende desvirtuar a conduta de alguém, como, aliás, sempre fora prática do Chefe da Guarda Rei. Foram, para dor e decepção do faraó, encontrados no quarto de seu até então fiel e confiável funcionário, o mesmo que seguia para Tebas a fim de punir os hereges que elegera como suas vítimas.
E como o acusador que se sente acima das próprias leis que deveria acatar, eis que o mesmo funcionário, fiel executor das punições, cometia crimes ainda mais graves contra o trono.
Por isso, Mudinar, todo o povo de Amarna foi convocado nesta manhã para que, ao meio-dia, testemunhasse a punição do maior infiel do Egito: a tua punição.
E dizendo isso, gesticulou para que Mudinar fosse retirado do veículo e levado para o poste do castigo, onde foi atado, destituído de suas insígnias, que foram atiradas ao povo presente e colocado de dorso nu para receber a punição inicial que marcava o começo de suas dores.
Sua alma estava em pior estado do que o corpo dos prisioneiros que trazia na carroça logo atrás. Jamais imaginara que seria surpreendido com tal conduta do rei. Um misto de ódio mortal e impotência tomava conta de sua alma.
Realmente, aqueles eram os seus próprios objectos e a sua conduta, efectivamente, se valia de recursos que não eram condizentes com as regras formais da nova religião do Egito.
Mas como é que isso tudo foi descoberto? Até então sempre fora um fiel funcionário sem qualquer mácula directa perante os olhos do faraó.
Os pensamentos fervilhavam-lhe quando começou a sentir cair-lhe sobre o rosto os impropérios do mesmo povo que o exaltava momentos antes, em forma de cusparadas que lhe eram desferidas em plena face.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 9 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:30 am

De mãos atadas, mal podia desviar o rosto. A malta ali presente aproveitava-se daquele momento em que o poderoso senhor descia do pedestal de seu despótico poder a fim de devolver-lhe o que ele próprio semeara.
Era o momento de mostrar ao Chefe da Guarda, altivo e arrogante, que ele não era mais o superior e nobre funcionário poderoso.
Assim, Mudinar viu-se humilhado diante do faraó que sempre servira, mas que o condenara pelas provas que ele próprio fornecera.
O carrasco postara-se para o início da flagelação e, se não fossem os soldados presentes a circundarem o poste, o próprio povo esfacelaria o seu corpo, num gesto de suprema vingança.
Tudo isto fora semeado pelo próprio Mudinar, afastando-se do dever de ser justo e correto e deixando-se levar pelas ilusões do poder e do mando, além do desejo de tudo fazer para vingar-se de Nekhefre.
Antes, porém, que a punição física se iniciasse, Aye exigiu silêncio da multidão e seguiu anunciando:
— A benevolência de Aton, no entanto, é bem conhecida. Por isso, pela vergonha que o maldito Mudinar derramou sobre o trono ao trazer até aqui, como prisioneiros, duas mulheres e um menino, todos inocentes das culpas do príncipe Nekhefre, que já pagou pelos seus crimes com a própria vida, o Grande Rei determina sejam eles postos em liberdade para que possam seguir seus caminhos.
Os bens de Mudinar estão todos confiscados para o tesouro do Egito e ele perde todos os títulos que possuía até os dias de hoje.
Será preso para sempre e banido para terras distantes, já que não é digno de pisar o solo sagrado da cidade que conspurcou com sua conduta infiel e mentirosa.
A cada nova notícia de Aye, o povo exultava e gritava em apoio à conduta do Trono para com aquele traidor da causa de Akhenaton.
— Receberá oitenta chicotadas e permanecerá no Sol, sob o olhar de Aton, até que o deus luminoso se oculte no horizonte e as sombras da noite cheguem para todos.
Aquele número de chicotadas era muito maior do que o normal e, pela sua quantidade, era quase certo que ele não sobreviveria ao castigo e, se sobrevivesse às chibatadas, sangraria tanto ao Sol que acabaria morrendo um pouco mais tarde.
Mas tudo isso era do agrado do povo que se via vingado daquele homem altivo e arrogante que nunca soubera cativar ninguém.
No entanto, no meio da multidão estava alguém que tinha gratidão por um gesto que recebera daquele homem. Era Kaemy, a mãe de Kalmark, que soubera da convocação do rei para o povo de Amarna comparecer à cerimónia especial daquele dia e onde já havia sido surpreendida pela visão de seu filho preso ao lado de Kimnut e Marnahan.
Tentara se aproximar do filho, mas fora impedida pelos soldados.
Agora, mantida à menor distância que lhe era possível, vislumbrava a figura desfigurada de Mudinar, semidespido e fragilizado pela perda de todas as prerrogativas que, antes, lhe conferiam o status de semideus. Lembrava-se de que, graças a ele, conseguira encontrar o filho perdido e, num gesto de elevação de alma, dirigia ao deus de sua fé uma oração em favor daquele homem que tanto mal fizera a muitos, mas que tanto bem lhe trouxera ao coração.
Era a única criatura que, ali, se mantinha em preces em favor do algoz reduzido a escombros humanos.
Não, havia outra também.
Perdido no meio da turba, Hatsek mantinha-se compungido diante de tão dantesco espectáculo.
Conseguira que dessem a liberdade aos familiares de Nekhefre, mas ficara perplexo com a notícia de que o mesmo não mais se contava no número dos encarnados. Falara da justiça e da bondade do Deus Único ao próprio faraó e, mesmo assim, presenciava a crueldade contra um ser humano igualmente cruel, como se uma maldade pudesse ensinar outra maldade a ser boa.
Começava o castigo físico de Mudinar e as mãos experientes do carrasco sabiam extrair o melhor de cada chicotada. O Sol do meio-dia havia dado o sinal para o início da flagelação, acompanhada com gritos eufóricos a cada golpe.
O sangue tingiu o local e, ao final do castigo, Mudinar era um amontoado de carnes retalhadas preso a um poste avermelhado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:31 am

Esse era o objectivo de Aye. Retirar do seu caminho, para sempre, aquele ser abjecto e perigoso para os seus anseios de crescimento ao lado do rei. Fora ele mesmo quem sugerira a quantidade de golpes a um rei que não fazia ideia muito clara do que representava cada chicotada.
Com o início da cerimónia punitiva e a declaração de Aye, Akhenaton retirou-se para o interior de seu palácio deixando ao povo a mensagem de que Aton era o único deus, mas que sabia ser, igualmente como os homens, duro e vingativo a quem quer que ousasse desafiá-lo.
Enquanto a punição prosseguia, os prisioneiros, segundo as ordens do rei, foram retirados do carroção para serem postos em liberdade.
Na medida em que tal movimentação ocorria junto ao veículo que os retinha, tanto Hatsek quanto Kaemy para ele se dirigiam rompendo o cerco da multidão, preocupada tão somente com o espectáculo da derrocada de Mudinar.
Quase que ao mesmo tempo ambos chegaram ao local onde os três prisioneiros eram desamarrados e deixados livres. Entreolharam-se todos e abraçaram-se numa explosão de felicidade e de afinidades que tanto lhes fizera falta no último período de suas vidas.
Kimnut não conseguia mais se manter em pé e, assim que se vira amparada entre braços amigos, desfalecera. Marnahan chorava de emoção e alegria, agradecida a Deus por aquela bênção de ganhar a liberdade e, ao mesmo tempo, reencontrar pessoas tão queridas em uma cidade estranha.
Kalmark beijava a mãe e era por ela beijado sem cessar.
Nenhum deles observava mais o que se passava à sua volta. Os gritos, os impropérios do povo, a crueldade das pessoas, tudo deixara de existir pela força daquele reencontro tão emocionante e inspirador.
— Vamos embora daqui, disse Kaemy. Minha casinha está aberta para recebê-los. Tratarei de todos vocês com o melhor de minha alma.
Deixemos que este ambiente seja apenas dos abutres que se satisfazem com carne e sangue.
Acompanhada por todos eles, tomaram o rumo de sua vivenda onde iniciariam os planos para nova jornada de suas vidas.
Hatsek, contudo, não permaneceria ali por muito tempo. Deixaria os amigos por algum tempo a fim de cuidar de um assunto muito grave que lhe competia tratar. Sob protesto de todos, jurou regressar em poucas horas, a fim de não mais se separarem.
O Espírito de Khufu tinha mais uma tarefa a esperar pelo discípulo obediente e fiel.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 10:31 am

46 — Os Rochedos são de Areia
Deixando os amigos em companhia de Kaemy e inspirado directamente por Khufu, o sacerdote tomou a direcção do palácio de Akhenaton de onde acabara de vir e em cujo pátio se encontrava o poste dos castigos no qual seguia amarrado o corpo flagelado de Mudinar.
Guardado por soldados leais a Aye, o antigo e todo-poderoso chefe da guarda ali permanecia exposto ao Sol inclemente do deserto para servir de exemplo a todos os que desrespeitassem os ditames do rei.
A malta ignorante, a mesma que sempre se comporta segundo as conveniências e o impulso colectivo dominante, ali tentava se aproximar para despedaçar o que lhe restava do corpo retalhado ou mesmo para desferir-lhe impropérios, revidando diante daquele ser humano impotente todos os ultrajes já suportados e originados da arrogância e altivez, quando exercia o importante posto do qual fora alijado.
Sem mais nada a lhe garantir a força e tendo semeado em seu caminho apenas a infelicidade e a dor nas vidas alheias, Mudinar recebia agora as consequências de seu comportamento irreflectido, a demonstrar-lhe que não soubera exercer a autoridade para beneficiar as pessoas.
Ainda que muito enfraquecido, a perder sangue pelos ferimentos abertos como flores alongadas, seu espírito era envolvido por reflexões que jamais lhe visitaram os pensamentos quando vivia uma vida irresponsável e tranquila. Doía-lhe a perda de tudo em tão breve espaço de tempo. Jamais imaginara que aquela era a homenagem que receberia do mundo a que tão devotadamente servira, atendendo a todas as prescrições do poder real com fidelidade servil.
Mais do que isso, percebia que na sua absoluta fragilidade seguia sendo hostilizado e, se não fossem os soldados, já haveria deixado avida. Ainda assim, era atingido aqui e ali por pedaços de pedras que voavam de longe ou por agressoras cusparadas carregadas de ódio e indignação.
Ninguém se apresentava para nenhum gesto de compaixão.
Aos poucos, sob o causticante calor e avançando o dia, o sangue que se empoçava aos seus pés dava notícia da extrema fraqueza de Mudinar, ao mesmo tempo em que os insectos voejavam sobre as feridas, tornando ainda mais crítico o seu estado, atraídos pelo odor que dele evolava.
O calor forte da tarde propiciou-lhe um pouco de paz, uma vez que os transeuntes buscaram o refúgio de suas casas deixando-o sozinho em pleno ambiente do pátio, apenas contando com a escolta ali presente, não para defendê-lo, mas para garantir o cumprimento integral de sua punição.
No fundo de sua alma altiva e arrogante, Mudinar guardava ódio por todos os que se aproveitaram de sua ausência para persegui-lo e levá-lo ao ponto mais baixo que já chegara em toda a sua vida.
Esse sentimento era o que estava acostumado a exercitar em silêncio, nos tempos em que arquitectava a vingança contra Nekhefre, instigado pelo rancor de seus antepassados e pelo desejo de destruí-lo.
Fixado na ideia de vingança, fria e serenamente orquestrada pelos seus pensamentos e atitudes, Mudinar viciara a afectividade em um sentimento inferiorizado e indigno da grandeza de Deus, o que o impedia de reagir de outra maneira e o que tornava ainda mais cruel ao seu espírito abatido aquele momento de derrota sangrenta que o direccionava para a morte.
Sim, morreria — pensava ele — mas morreria odiando o faraó, odiando Aye, odiando Nekhefre, odiando Amarna, odiando Aton, odiando o Egito e o mundo inteiro.
Em sua volta, sombrias entidades agarravam-se a ele, algumas chorosas, lamentando a perda de um aliado, instigando-lhe ainda mais ódio ao pensamento. Outras, sarcásticas, gritavam-lhe impropérios aos ouvidos espirituais como os homens o haviam feito até pouco tempo, já que eram as vítimas de seus actos infelizes no exercício da função poderosa de Chefe da Guarda Real.
Além delas, um outro grupo de entidades desencarnadas atirava-se à poça sanguinolenta para sugar-lhe os princípios vitais, como se lambessem a areia do chão em busca do líquido salvador.
Isso emprestava ao quadro, já tão deprimente pelo seu aspecto exterior e visível, uma repugnância sem paralelo, eis que se existiam aves de rapina prontas a devorarem-lhe os restos, mas que eram afastadas pela acção dos soldados, tais entidades se afiguravam verdadeiros abutres que não se tinha como afastar.
Diante de seu estado que periclitava a olhos vistos, Mudinar ia perdendo a facilidade de raciocínio e, na pouca lucidez que lhe restava, almejava morrer o mais rápido possível, deixar aquele mundo ingrato, confundir-se com a areia que tinha aos seus pés como se se ocultasse por entre os grãozinhos para confundir-se com eles e ganhar um pouco de paz íntima.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 7:29 pm

Misturado ao suor que lhe escorria gélido da face, lágrimas de dor, de ódio, de medo, de tristeza desciam-lhe dos olhos, de forma a compungir o coração de qualquer que pudesse entender-lhe o drama evolutivo.
No entanto, enquanto se sentia desamparado e sem arrimo, não percebia uma presença que se aproximava em pleno calor escaldante.
No ambiente do pátio vazio, nimbado por uma luz mais ofuscante do que o Sol, luz essa que Mudinar começaria a perceber em face de sua fraqueza orgânica, .Hatsek dirigia-se para o poste do castigo.
Que pretenderia agora? Já não lhe bastavam todas as humilhações e a própria morte? Será que aquele homem que ele mesmo injustiçara com a prisão e a humilhação não poderia escolher hora mais propícia para exercer sua vingança pessoal?
Tais pensamentos vieram-lhe desordenados à mente, sempre embasados na sua compreensão odienta da vida e das pessoas, assim que percebeu a presença de Hatsek.
Em realidade, o sacerdote não viera falar com ele. Viera apenas conversar com os soldados que lhe guardavam o corpo, o que fez rapidamente para logo se afastar, deixando o ambiente silencioso entregue ao seu próprio drama infeliz.
Ausentara-se o sacerdote em direcção ao palácio principal.
Ali chegando, solicitou uma entrevista pessoal com Aye que dava seguimento à rotina administrativa, envolvido pelo bom humor dos que conseguem afastar do caminho o pior dos adversários, o mais ameaçador dos contendores.
Recebendo a notícia da solicitação de Hatsek, Aye autorizou-lhe a entrada em seus gabinetes pessoais, ainda envolvido pela onda de admiração que lhe invadia o espírito desde a cura da princesa real.
— Salve grande sacerdote do bem — exclamou o agora principal funcionário do Egito.
Ouvindo a exortação gratulatória, Hatsek curvou reverente a cabeça e redarguiu:
— O menor homem do Egito pede desculpa pela insolência de voltar a incomodá-lo e assegura que a bondade pertence ao Deus Único, a fonte de todas as virtudes, nobre Aye.
— Não imagine que incomoda já que só a gratidão do rei é maior do que a que tenho por sua pessoa, Hatsek. Sente-se aqui e diga o que deseja.— Na verdade, não tomarei muito o seu tempo, já tão escasso para coisas tão importantes. Venho apenas solicitar os seus préstimos para falar ao faraó por alguns minutos.
Tomado de surpresa por aquela solicitação directa, Aye não se fez de rogado e, usando de sua possibilidade de dirigir-se ao rei a qualquer momento, não lhe seria difícil levar o sacerdote até o faraó.
— Sei que não é usual uma solicitação de tal natureza, mas só o faço não por me sentir credor de qualquer consideração especial, mas pela premência, pela urgência da situação e só o próprio rei pode resolver a questão.
— Posso saber do que se trata, com antecedência? — perguntou Aye, desejando maiores detalhes.
— Como não poderia, se é o benfeitor que, devotado, acompanhará a solicitação pessoalmente? Irei solicitar ao faraó a autorização para que Kaemy e os familiares do príncipe Nekhefre possam retornar para Tebas, ao mesmo tempo em que pedirei a dispensa de Kalmark dos serviços artísticos da tumba.
— Pois bem, trata-se de algo que só o próprio rei pode autorizar, realmente.
Demonstrando boa vontade em atender aquele homem digno e respeitável por todos os motivos conhecidos, Aye pediu-lhe que o acompanhasse e esperasse na sala pequena que antecedia o local onde o faraó se encontrava.
Depois de alguns minutos na companhia do rei, Aye regressou e, abrindo a porta da sala real, deu passagem a Hatsek que, humilde, aceitou ser conduzido com simplicidade e sem qualquer indício de intimidade com aquele mesmo pai cuja filha havia sido salva pela intervenção de Deus através de sua pessoa.
Vendo-lhe a chegada, Akhenaton adiantou-se e, já que estava na presença da rainha e das filhas queridas, falou:
— Grande sacerdote, sinta o regozijo do coração paterno diante da alegria da filha salva por suas mãos — disse ele apontando para a pequena jovem ali presente.
Reverente e humilde, Hatsek sorriu-lhe e respondeu:
— A vossa grandeza e generosidade impedem-vos de lembrar que somente pela força e bondade do Deus Único é que o bem prolifera através das mãos pobres de qualquer criatura de boa vontade.
Lembrando-se da conversa que tivera sobre o Deus Único, Akhenaton sorriu-lhe em resposta e disse:
— Sigo pensando muito naquilo que conversamos sobre o Deus
Único e estou ainda buscando entender-Lhe o modo de agir. Espero podermos falar mais vezes sobre isso um dia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 7:30 pm

— Estarei sempre pronto para obedecer-vos o desejo real, meu faraó.
— Mas Aye disse-me que você desejava falar-me — continuou Akhenaton, agora rodeado pelas filhas e pela esposa, numa cena de rara beleza e simplicidade, pela autenticidade daquele afecto compartilhado na intimidade de seus aposentos reais.
— Sim, meu senhor. Ouso vir à vossa presença para uma solicitação urgente pela delicadeza do momento.
— Pois não perca mais tempo. Fale o que deseja.
— Bem, meu senhor, quando da punição do príncipe Nekhefre, o mesmo decreto que lhe confiscara os bens dividira o património entre seus servos, além de impor-lhe a punição física da qual, pelas complicações posteriores, redundou a sua morte. Feitos prisioneiros, todos os seus familiares estão à mercê da miséria. Graças à magnanimidade de vosso coração, as três mulheres foram postas em liberdade, depois de terem aqui chegado prisioneiras, juntamente com um jovem enamorado da filha mais velha do príncipe falecido, serviçal da tumba funerária em construção segundo o vosso desejo. Assim, o pedido que faço é no sentido de receberem eles a autorização para que regressem a Tebas onde possam retomar suas vidas ao mesmo tempo em que pergunto se a questão da divisão do património entre os empregados do príncipe Nekhefre continua válida já que ainda não cumprida.
Tendo em vista que Kaemy recebeu pelo decreto a propriedade da casa do príncipe em Tebas, na condição de antiga serviçal dali banida injustamente e para que não lhe seja usurpada por algum aventureiro que se julgue no direito de lhe tomar a única coisa que possui, venho solicitar-vos a confirmação oficial de que, efectivamente, apesar de sua condição humilde, esteja garantida na referida moradia, contra todos os interesses conflituantes, mesmo da família remanescente.
Ouvindo-lhe as explicações sensatas, Akhenaton balançava a cabeça positivamente, demonstrando que suas determinações anteriores estavam válidas e seguiam exigíveis.
— Compreendo-lhe as inquietações, sacerdote, e dou-lhes razão, notadamente por se tratar de mulher, serva sem poderes, sem ninguém que a auxilie a se manter por si mesma contra outros mais agressivos e ambiciosos. Assim, autorizo que seja expedido documento oficial outorgando-lhe a propriedade daquilo que já lhe pertencia por força do decreto anterior.
Vendo-se atendido na sua primeira exposição, Hatsek seguiu acrescentando, tão logo Akhenaton lhe deu assentimento para continuar o diálogo.
— Essa preocupação para com a fragilidade de Kaemy, Grande Rei, também eu a possuía até que me lembrei de um fato que poderia, em grande parte, solucionar tal questão.— Exponha-o sem medo, Hatsek — disse o rei.
— Todos sabemos que Kaemy possui um único filho que é jovem e vigoroso e que muito poderia auxiliá-la a preservar-se do mundo cruel e indiferente diante de uma viúva indefesa. O jovem Kalmark, entretanto, está empregado como funcionário da necrópole real, na obra de acabamento do túmulo como artesão talentoso que é. Necessitaria da dispensa legal do próprio faraó para que pudesse regressar com sua mãe a Tebas e ali permanecer como o único ombro masculino que poderia salvaguardá-la. Além disso, o jovem pretende unir-se à filha primogénita de Nekhefre, igualmente jovem, sem o arrimo paterno e sem quaisquer recursos já que o pai morreu destituído de bens. Assim, Kalmark se ergueria como o ombro forte para amparar com seu trabalho modesto não só a mãe, mas também as filhas inocentes de Nekhefre e a sua própria esposa, Kimnut, totalmente perdida e sem forças para sair por si mesma da confusão onde se viu lançada.
— Essa, realmente, é uma solução muito adequada para que o furor de Aton se abrande contra as disposições anteriores, aventadas por Mudinar, o mesmo que providenciou todos os instrumentos de punição ao príncipe — falou o faraó. — Dispenso Kalmark dos reais serviços até que se veja livre dos compromissos familiares e deseje retornar a Amarna para reassumir as funções que lhe ficam reservadas. Vejo nesse seu alvitre a sagrada oportunidade de consertar alguns exageros que permiti fossem realizados quando da punição de Nekhefre por insistência de Mudinar que, com a desculpa de corrigir um infiel, parecia zeloso cumpridor dos ditames de Aton, mas que, no recolhimento de sua intimidade traía o Egito descaradamente, fazendo coisas piores do que o próprio príncipe era suspeito de fazer. Espero que, desse modo, esteja entendendo algo do que o Grande Deus Único pretende que façamos para reparar o mal e o erro praticados.
Vendo a referência ao grande Deus Verdadeiro, Hatsek curvou a cabeça, mas ousou dizer:
— Sim, meu senhor, essa atitude está dentro dos padrões da grandeza da Soberana Justiça, mas ainda me incumbe afirmar que o Soberano Amor impõe alvitres que ainda não foram adoptados e que, por fim, venho solicitar algo como oportunidade de entendermos, para sempre, a maneira como Ele nos educa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 7:30 pm

Ouvindo a referência directa quanto a lições ainda não compreendidas, Akhenaton sentou-se e apontou uma cadeira para que o sacerdote se sentasse diante dele e falasse sobre o assunto.
Envolvidos pelo Espírito de Khufu que sobre ambos lançava suas energias balsâmicas a preparar-lhes o espírito para aquele entendimento, Hatsek seguiu falando, humilde:
— Ensina-nos a Soberana Justiça que devemos restabelecer todas as coisas ao seu estado de correcção se, por nossa conduta ou por nosso descuido, acabaram feridas, o que representa gesto de sabedoria. No entanto, acima da Justiça paira uma força mais poderosa que ela e que é a única capaz de modificar para sempre todas as coisas. Se observarmos as poderosas montanhas rochosas que parecem portentos inexplicáveis, veremos que a seus pés amontoam-se milhões de pequeninos grãozinhos arenosos. Ainda que o rochedo desafie nossa vista impondo-se a ela e aos nossos músculos dizendo-se intransponível e indestrutível, o trabalho amoroso e calmo do vento, a força silenciosa do Sol e a placidez da noite vão revelando a sua estrutura íntima, esculpindo-lhe a fachada e diminuindo-lhe a altura, desfazendo-lhe as aparências para revelarem, apenas, a sua essência.
Isso porque, grande rei, os próprios rochedos não são mais do que pequenos grãos de areia.
Assim, a Soberana Sabedoria pede mais do que consertarmos o erro. Pede que amemos os que o cometem, única maneira de revelar-lhes a essência que vai além das aparências.
Por isso, meu faraó, em nome do Deus Único e de sua Soberana Sabedoria, venho pedir-vos que me autorizeis a retirar o que resta de Mudinar do poste do castigo já que está às portas da morte e não sobreviverá mais do que algumas horas, se tanto.
Eu mesmo me certifiquei de que está no fim de suas forças e, se o peço, não desejo intervir no cumprimento das ordens que precisam, muitas vezes, educar os outros. Não vos solicito que rompais as deliberações. Apenas peço que lhe seja declarada por antecipação a morte, para não parecer arrependimento ou tergiversação, e que o corpo que lá está ainda vivo possa ser preparado para entrar no reino dos mortos e aprender com tal experiência as lições, entregando-me tal possibilidade para que Mudinar aproveite estes momentos de dor e se compreenda perante os erros cometidos.
Para todos será noticiada a morte do traidor.
Para ele, no entanto, se abrirá, talvez, a única oportunidade de compreender os erros em que incorreu e, ao invés de morrer entre os sentimentos de ódio parta na grande viagem algo modificado.
Ao fazê-lo, vossa divina compreensão estará entendendo o que significa o poder do Deus Único, a solicitar sempre que auxiliemos a todos, sem qualquer excepção.
Aproveitando-se das palavras que Hatsek dizia, inspirado pela sua presença, o Espírito de Khufu, através dos canais da intuição, influenciou o espírito da jovem princesa real que havia sido tratada há poucas semanas, para que viesse à presença do pai e lhe buscasse o carinhoso abraço.
Aproximando-se a pequena, de um leve salto, sentou-se ao colo do faraó que acabara de escutar de Hatsek que só quando amamos a todos e ajudamos sem medo, o poder do Deus Único se revela e conquista para sempre. Ali estava o exemplo mais claro de tudo isso.
O próprio rei aceitara o concurso de um sacerdote do odiado culto de Amon-Rá e, graças a tal auxílio directo, a filha amada ali se encontrava sorridente em seu colo. E ao mesmo tempo lhe conquistara o coração abrandando-lhe a perseguição e dando liberdade de seguir curando em nome desse Deus Único.
Sim, tudo parecia começar a lhe fazer um sentido diferente. Perdoar Mudinar não estava em seus planos, já que seu delito atingia a ordem religiosa e merecia severa punição. No entanto, condenado por si mesmo à morte, um gesto de compreensão na hora extrema poderia ajudá-lo a entender seus erros e a entrar no reino dos mortos talvez arrependido do que fizera.
Tudo ainda era muito novo para ser entendido com clareza por Akhenaton. Todavia, Hatsek lhe falava com tal serenidade e esperança que o contagiava com a possibilidade de resgatar mais uma alma para a verdade. Afinal, com todos os seus defeitos, Mudinar lhe havia sido funcionário competente e zeloso em todos os demais sectores, segundo os seus interesses oficiais.
Tomando a palavra e, inspirado pela presença da filha no seu colo e pelo olhar confiante de Nefertite que acompanhava a conversa em silêncio e pensativa, respondeu o faraó:
— Seu pedido me é difícil de entender se olhar apenas para o homem ingrato e mesquinho. Mas vendo minha filha em meu colo, salva e saudável, tenho comigo que pensava a mesma coisa de você antes de conhecê-lo melhor, sacerdote.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 7:30 pm

Odiava a todos os sacerdotes de Amon Rá pelos descalabros que cometeram e pela conduta conspiradora contra os novos padrões religiosos. E, assim, odiava-o também, sem conhecê-lo e entender coisas que me escapavam.
Mas seus actos, mais do que as palavras, converteram em mim o ódio mudo em admiração. E ela só cresce quando percebo as lições desse Deus Único que você me aponta, de grandeza e magnanimidade que transformam as montanhas altivas em montes de areia indefesa que o vento transporta.
Recordo-me do desespero que me atingiu naquele dia. O mais poderoso homem do Egito transformado em um frágil pai amedrontado por muito amar a filha que estava prestes a partir. Que era eu senão amontoado de pó, apesar de ser o faraó do maior reino da Terra? Apesar de ser a Montanha altaneira, que era eu em minha essência, senão, apenas, areia?
E para a minha, ou melhor, nossa felicidade — disse olhando a mulher que amava — as orações que fazíamos foram ouvidas pelo ouvido daquele que me parecia ser o mais odiento dos seres — um sacerdote de Amon-Rá — que salvou a nossa filha!
Começo a compreender esse Deus Único que me pede coragem para combater o erro, mas compaixão para auxiliar o errado a consertar-se.
E com grande solenidade, diante de Aye que admirava a conversa sem intrometer-se, o faraó declarou qual era a sua vontade:
— É vontade do faraó e, por isso, vontade do Egito, que seja entregue ao sacerdote Hatsek o corpo de Mudinar no estado em que se encontra, declarando-se-mo morto ao público, a fim de que lhe seja dado o destino adequado sob o compromisso de jamais ser revelado o facto de ter sido retirado ainda com vida do poste do castigo. E que, em caso de morte, o próprio sacerdote se incumba das providências fúnebres, para as quais destino recursos suficientes do tesouro do reino a fim de que não falte ao morto as homenagens que o possam seguir no reino da noite e transformar seus sentimentos conforme a vontade do Deus Único.
Ouvindo-lhe as determinações, Aye saiu a providenciar o cumprimento de todas as ordens, incluindo aí os documentos que autorizariam Kaemy a assumir a propriedade de Nekhefre com a protecção do próprio rei.
Emocionado com a compreensão do faraó, o sacerdote ajoelhou-se diante do rei, que estava sentado, e elevou ao Criador a oração de sua alma agradecida:
— Senhor, bendizei o gesto do coração que abranda o ódio que a mente acoberta. Bendizei a alma que vos compreende e que, por isso, compreende o seu semelhante. Bendizei o rei e o homem que percebe que a finalidade da vida é servir com devotamento à Vossa causa.
Bendizei esta família que se encontra entre os sorrisos e as alegrias de agora para que jamais se percam tais sentimentos. Bendizei o Sol do Amor para que jamais deixe de nos aquecer a alma ainda quando Rá tiver deixado de existir no alto dos céus. Bendizei o filho fracassado no mal cometido e que se prepara para a experiência de voltar ao Vosso seio carregado pelas sombras de seus actos. Emocionado, Hatsek não mais conseguiu continuar.
Seu gesto de humildade comovia até as entranhas a todos ali presentes que, igualmente, não conseguiam reter as lágrimas. Erguido pelas mãos de Akhenaton, Hatsek osculou-as, agradecido e, respeitoso, depois de saudar a rainha que chorava comovida também, deixou o ambiente impregnado de vibrações luminosas de esperança e de confiança no Deus Único de todos os tempos.
Logo a seguir, Aye o esperava em seu gabinete, dando curso aos preparativos para tudo aquilo que fora deliberado, para sua surpresa.
— Nobre sacerdote, já ordenei trouxessem Mudinar até aqui para lhe ser entregue. Que mais deseja que se faça? — perguntou respeitoso e solene.— Se me é permitido pedir, gostaria que me auxiliasse a levar Mudinar até a moradia de Kalmark onde todos nos encontramos e onde pretendo orar para que seu Espírito parta com o amparo do afecto de alguém.
Assim escutando, ordenou de imediato já que as condições do homem eram muito graves.
Um veículo leve e rápido, para transporte de mercadorias, foi adequadamente preparado para o transporte secreto de Mudinar.
Retirado do poste e enrolado em panos para ocultar-lhe a personalidade, alguns minutos depois saía do palácio em direcção à casinha de Kalmark.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 7:30 pm

No meio da tarde, o pequeno e sigiloso cortejo chegava incógnito no destino final e, para surpresa dos ocupantes da pequena habitação, Hatsek vinha à frente de três fortes soldados que traziam consigo um objecto enrolado como se fosse um tapete volumoso ou algo parecido.
Todos se regozijaram pela volta do sacerdote e abriram espaço para que pudessem descarregar a carga na pequenina sala da casa.
Afastados os carregadores, Hatsek pediu que fechassem as portas e trouxessem água e panos.
— Mas o que é isso, Hatsek, um presente que você conseguiu usando seus poderes mágicos — brincou Kalmark.
— Não, meu querido amigo. Este é um presente que o faraó nos mandou para que nós desenvolvêssemos nossos poderes mais sagrados a ponto de fazermos milagres que outros ficariam abismados. Venham todos ao redor para que possamos reverenciar a Deus a oportunidade desta hora.
Aproximando-se dele, os outros ocupantes da casinha, Kalmark, Kaemy, Kimnut e Marnahan assustaram-se quando aquele grande embrulho foi desenrolado e deu mostras de seu conteúdo.
Todos se afastaram aterrados e quase que ao mesmo tempo, não por causa de algum ressentimento, mas pela cena dolorosa que viam.
— Sim, meus filhos, aqui está o que restou de Mudinar. Mas ele ainda está vivo. Dêem-me um pouco de água para molhar sua boca.
Valendo-se de um recipiente modesto, Hatsek fez com que lhe chegasse à garganta o frescor de um gole de água, o que lhe propiciou um alívio e uma aparente recuperação dos sentidos que se haviam entorpecido pela fraqueza. Abrindo os olhos, Mudinar esperava encontrar homens rudes e as mesmas imprecações agressivas, mas, para sua surpresa, encontrou o olhar sereno de Hatsek que lhe sorria em paz.— Acalme-se, meu irmão, você está entre criaturas que te querem bem e que oram ao Deus Único pela sua alma — falou Hatsek com carinho.
Os demais, refeitos do susto, adoptavam postura incerta diante daquele facto.
Hatsek era muito admirado por eles para ser desrespeitado com suas discordâncias. No entanto, uma mistura de medo, rancor, compaixão se misturava no coração de todos.
Kimnut via em Mudinar o assassino do marido e o algoz de sua vida. Tinha um sentimento de ódio na alma por causa de seu estado caprichoso e imaturo. Kalmark possuía um sentimento de medo e mágoa por conta da postura que infelicitara a sua vida e a de Nekhefre, mas lhe guardava certa gratidão pelo apoio que recebera quando chegara em Amarna. Kaemy, de espírito mais generoso, orava a Deus por aquele homem vitimado pela desgraça, ainda que compreendesse sua maldade crónica. Marnahan buscava isolar a figura de Mudinar da cena da morte do pai querido, desejando que seu sentimento estivesse o mais limpo possível no que se referia ao bem que deveria dedicar àquele ser ali, agora arrasado.
Hatsek era invadido por uma onda de verdadeira compaixão, vendo
em Mudinar apenas o irmão enfermo que acabava vítima de seus próprios bacilos íntimos más que, uma vez tratado com os medicamentos correctos, haveria de se tornar, um dia, uma radiosa estrela na constelação da humanidade.
Assim, tomou-lhe as mãos e lhe disse:
— Sua alma se prepara para ingressar na vida verdadeira, meu irmão. Lembre-se de que todos nós aqui lhe oferecemos nossas preces e lhe desejamos o melhor de nossas almas, não é, meus filhos? — dirigindo-se aos demais que se encontravam algo distante das vistas do moribundo.
Sendo assim convocados a se manifestarem, todos foram constrangidos pelas circunstâncias a se aproximarem e encarar os olhos de Mudinar pela primeira vez.
Ao reconhecê-los, o flagelado prorrompeu em um pranto comovente de dor moral e só pôde dizer:
— Eu prejudiquei todos vocês.... Eu matei seu marido,... seu pai.... atirei-os na miséria.... Persegui sua família....... e... agora... vocês estão aqui... certamente para exercer a justiça contra mim....
Ouvindo-lhe as referências desesperadas, Marnahan dirigiu-lhe a palavra, emocionada:
— Ninguém aqui está para repetir o erro e fazer o mal, meu irmão.
Como disse Hatsek, aqui estamos por desejarmos dividir com você as dores que carrega. Estimulado pela postura da amada companheira, Kalmark se aproximou e acrescentou:
— Sou agradecido a você pela ajuda que me deu, pela protecção que recebi de suas mãos e não desejo que sofra. Orarei com meu sentimento por sua alma, sempre.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 7:31 pm

Marnahan lhe apertou as mãos como a lhe dizer de seu orgulho pelo seu gesto de generosidade.
Na medida em que assim procedia com aquele pedaço de carne desfigurada, Kalmark sentia um alívio penetrar-lhe o coração. Pela primeira vez na sua vida, sentiu a força da bondade a invadir-lhe a alma, como se ali estivesse a chave da própria felicidade. Simplesmente ser bom, nada mais. Começou a chorar por tudo isso que sentia.
Kaemy também tomou as mãos para enfatizar a gratidão por sua protecção e amparo e que era ali, na mesma casinha que Mudinar lhe destinara como refúgio que ele era acolhido também na hora da necessidade.
Kimnut se aproximara, mas estava muda, com olhos que brilhavam de ódio e de medo daquele homem.
Vendo-lhe o silêncio e sem se lembrar de outra coisa, Mudinar mirou-a e, com dificuldade, balbuciou:
— Perdoe-me... senhora... o ... mal... que.... lhe causei! Não posso ... corrigir... o ... que ...fiz,... mas posso... tentar....conseguir ...a sua compaixão.
E vendo que todos estavam em silêncio para que sua voz fraca fosse audível, acrescentou:
— Sua filha, Hatsena............... está.... presa.... em ... meu quarto,...mas ... deve... estar... bem!
Ao escutar sua referência à filha desaparecida depois da chegada a Amarna, seu coração deu mostras de vida e de esperança a ponto de criar coragem e afastar o cabelo pastoso de sua testa num gesto de carinho.
Ali, naquela sala, todos encontraram forças para despir as suas mágoas e dar um alento a um ser que era vítima de si mesmo.
E, ao fazê-lo, todos se sentiam mais felizes por dentro, mais nobres e leves, deixando para trás um cortejo de desditas e dores morais que se ia apagando pelo influxo do perdão.
Mudinar não estava mais em condições de suportar as dores e a fraqueza. Olhando para Hatsek como a lhe pedir mudas desculpas, dele recebeu a exortação para seguir pelo caminho do bem em todas as horas de sua vida e a certeza de que um Espírito amigo o iria receber no pórtico da verdadeira vida.
De facto, na vida espiritual que convivia com as personagens naquele ambiente humilde, uma grande caravana de almas que se envolveram no cuidado daqueles seres, achava-se pronta para aquele fim de doloroso drama, a beneficiar a alma que deixava a vida material e regressava ao mundo da verdade.
Luzes serenas imantavam o ambiente e inúmeros trabalhadores da vida invisível postavam-se ali para proteger o ambiente do assédio das trevas que desejavam recuperar para si o homem que até então haviam dominado com os sentimentos de ódio e rancor.
Lento torpor invadiu-lhe o ser como se apontasse o momento da transição. Uma lágrima escorria-lhe do canto dos olhos ao mesmo tempo em que Hatsek erguia uma prece a Deus em favor do irmão que partia, no que era acompanhado por todos.
Do outro lado da vida, erguia-se do cadáver desfigurado um Espírito trôpego e escuro, igualmente deformado pela manutenção de ideias de vingança por longo período, mas que, pelas disposições sinceras daqueles momentos de agonia e de dor que haviam amolecido as fibras do coração, acrescidas dos gestos de carinho de suas próprias vítimas, começava a se apegar a outras forças até então desconhecidas de suas preocupações.
Recebido por trabalhadores invisíveis do grupo de Khufu, o Espírito de Mudinar foi encaminhado até o local onde o mentor de todos se encontrava para ampará-lo amorosamente.
Vendo-o nimbado de luzes, as mesmas que entrevira horas antes quando da aproximação de Hatsek do poste de castigos, Mudinar ajoelhou-se fraco e humilhado, dizendo:
— Por quem sois, deus de luz, não mereço vossa compaixão.
— Por quem tu és, Mudinar, o Deus Único te recebe como filho amado e te pede que aceites as mãos que se estendem para ti, neste momento.
Sem entender o que se passava, confuso por tudo aquilo que recebia, sua cabeça não conseguia pensar em outra coisa senão na dor que causara a Nekhefre.
— Deixai-me na escuridão onde posso pagar meus erros de assassino e perseguidor, meu senhor. Guardai as vossas mãos luminosas para almas nobres que não tenham matado seu semelhante como eu matei Nekhefre, o que confesso neste instante de arrependimento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 7:31 pm

Ouvindo-lhe a palavra sincera, uma portentosa e aveludada voz se projectou em sua acústica íntima e ecoou por todo o ambiente:
— NEKHEFRE NÃO MORREU....!
E, acto contínuo, destacou-se do volume luminoso que Khufu emitia, um par de mãos estendidas, as mãos do príncipe Nekhefre que vinha receber Mudinar para a reentrada na jornada luminosa da vida da alma que se arrepende. Mudinar não acreditava no que seus olhos viam. Nekhefre, orvalhado de pequeninos raios luminosos a lhe sorrir ternamente, com compaixão e afecto o recolhia nos braços e lhe dizia ao coração:
— Sou eu, meu irmão Medjar, o mesmo Kendjer que te feriu no passado que se humilha diante de ti e te pede perdão pelo mal que te fez. Afinal, também não morreste. Vivamos juntos para sempre, em paz.
Em lágrimas, abraçaram-se ambos e foram conduzidos por Khufu ao plano espiritual que lhes competia para darem seguimento às suas experiências.
Providenciado o funeral de forma simplificada diante do estado desfigurado que impediria qualquer preparativo mais demorado ou mesmo processo de mumificação que Hatsek sabia ser inútil, e recuperada Hatsena para o seio familiar conforme as indicações de Mudinar arrependido nos seus estertores finais, encontraremos a família, anos depois, novamente reunida sob o mesmo tecto na cidade de Tebas, sendo que, agora, por força da Soberana Justiça, a antiga serva Kaemy era a proprietária. Seu filho, unido à filha de Nekhefre pelos laços do matrimónio, administrava a propriedade com seu modo prudente e seu espírito empreendedor e talentoso. Hatsena tornara-se mais madura por força das dores suportadas e da presença de Marnahan e Kaemy, enquanto que Kimnut seguia um tanto atordoada por não poder mais mandar dentro daquela moradia que, outrora, lhe pertencera e onde exercera seu domínio absoluto.
Agora ela mesma não era mais dona de nada.
Hatsek encontrava-se por perto, mas nunca deixara passar a oportunidade de seguir fazendo o que lhe autorizara o próprio faraó: curando em nome do Deus Único.
E, agora, ao lado de Khufu, seus olhos espirituais se acostumaram a encontrar o vulto agradecido de Nekhefre, que dele recebera todos os demonstrativos de amizade verdadeira que haviam transformado sua vida e a de seus entes queridos.
Percebia, no entanto, que lhe faltava divisar a figura de Mudinar que, desde o desencarne em Amarna, afastara-se de todos e não mais fora visto por ele, nas visões mediúnicas a que estava acostumado.
Perguntando a seu mentor espiritual onde se encontrava o Espírito do antigo perseguidor, Khufu e Nekhefre sorriram para ele com ternura e responderam quase que juntos:
— Acalma teu coração, meu irmão. Em breve terás notícias dele.
Obediente como sempre, Hatsek seguia suas rotinas normais quando em certo dia foi chamado à casa de Kaemy com urgência. Segundo relato apreensivo de Kalmark, Marnahan estava muito enferma.
Há dias estava aflita, não comia, não dormia, não conseguia descansar e isso muito o preocupava. Assim, recorria aos conhecimentos de Hatsek para que lhe tratasse a mulher amada.
Assim que chegou diante da jovem, convertida pela força dos tempos em adorável senhora de beleza jovial, identificou-lhe o estado abatido e, ao seu lado, a presença de Khufu e Nekhefre, ao mesmo tempo em que se observava uma forma pouco luminosa, quase opaca presa à organização física de Marnahan.
Imaginando tratar-se de algum Espírito perseguidor que lhe consumia as forças, Hatsek se preparava para agir com o magnetismo a fim de aliviar tal vampirização, no que foi impedido por Khufu, que lhe disse:
— Acalme-se meu filho, não se trata de doença, mas de vida.
Marnahan está grávida e o filho lhe acompanha o esforço orgânico de construção do novo corpo.
Emocionado com a notícia, Hatsek recompôs-se para propiciar o tratamento, agora, de forma diferente.
Interessado pela novel mãezinha, endereçou a Khufu a indagação mental sobre a figura do reencarnante que se prendia à organização materna, ocasião em que ouviu dele:
— Observe bem, Hatsek, a força do Amor Sublime e mate as saudades de Mudinar, que regressa à família humana.
Emocionado, o sacerdote forçou a visão e pôde divisar nos contornos da forma que se amoldava ao colo materno a figura espiritual do irmão de sofrimentos que mergulhava no rio da vida para recomeçar o aprendizado e reaprender a perdoar.
Levantou-se diante do olhar ansioso de Kalmark e abraçou-o, dizendo:
— Parabéns, meu filho. Esta casa vai ver surgir mais um descendente de Meldek e de Nekhefre, para a felicidade de todos. Sua esposa será mãe.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 29, 2022 7:32 pm

Era a vida que reabria suas portas para que novas lutas trouxessem esperanças de recomeço para todos.
Assim, leitor querido, que nestas linhas que descrevem os dramas vividos há tantos séculos, você possa encontrar a convicção de que os problemas humanos seguem sendo os mesmos e, para eles, seguem sendo válidas e únicas as mesmas soluções.
Lembre-se de que as rochas podem parecer duras ou altas, fortes e altaneiras, imponentes e eternas. Todavia, são apenas grãozinhos de areia unidos pela força, esperando voltar à condição original.
Assim são os homens. Altivos, rudes, poderosos, grandes, mantidos nisso tudo por seu poder transitório que julgam definitivo, por seu dinheiro que acham infinito, por sua beleza que crêem eterna, por sua classe social que acreditam exclusiva, pela percepção mediúnica que julgam lhes pertencer para sempre, até que forças mais sábias, ainda que silenciosas os desbastem e os reduzam à própria realidade:
Simples punhados de areia, resultado dos rochedos que ruíram pela força da necessidade de evolução e da perda das ilusões.
Que a mensagem de Jesus, que tão bem demonstra a simplicidade necessária para a compreensão de todas as coisas e de nossa função real na vida, nos auxilie a não nos esquecermos de que somos apenas isso.
E que, ainda que sejamos apenas grãos de areia, lembremo-nos da lição ministrada por uma alma generosa que a ditou a um pequeno aluno, ainda no curso primário, para espanto de seus colegas: (*)
"Meus filhos, ninguém escarneça da criação. O grão de areia é quase nada, MAS PARECE UMA ESTRELA PEQUENINA REFLECTINDO O SOL DE DEUS!”
Por isso a mensagem do Mestre :
BEM-AVENTURADOS OS POBRES DE ESPÍRITO, PORQUE DELES É O REINO DOS CÉUS!

Brilhe vossa Luz
Muita paz!
Lúcius — 04/04/02

(*) O pequeno aluno aqui referido é o médium Francisco Cândido Xavier quando estudava no Grupo Escolar São José, em Pedro Leopoldo, MG. Este caso está descrito na obra Chico Xavier — Uma Vida de Amor, Ubiratan Machado, IDE, p. 22. (Nota da Editora)

§.§.§- Ave sem Ninho
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