LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:53 pm

Era isso, efectivamente, o que pensava naquele momento em que seu comportamento era desconhecido, em todos os detalhes, daquelas que estavam ali diante de seus olhos.
A conduta ética do sacerdote lhe havia preservado a imagem pessoal de bom homem e de chefe de família generoso.
E era isso o de que necessitava para sair daquele embrulho no qual Mudinar o havia metido, com a surpresa que preparara, revelando através de Hatsek o que, a toda evidência, poderia comprometer o seu destino junto aos seres amados.
Depois de ter sido informado desses detalhes e certificar-se de que seus deslizes tinham ficado encobertos pela personalidade discreta e generosa de Hatsek, um pouco mais aliviado, Nekhefre retomou a palavra e seguiu na trilha da inocência.
— Sim, minhas queridas, é verdade... Diante do faraó que ordenou, não tive como lhe recusar a solicitação e, com muito pesar de meu espírito, tenho que informá-las que um casamento arranjado está esperando por vocês dentro de alguns meses. Gostaria, no entanto, que soubessem que isso ocorreu sem que eu tivesse qualquer condição de impedir, já que se recusasse tal enlace, poderia estar condenando todos nós à morte por desrespeitar o próprio deus Aton, como se considera o faraó.
— Pois eu prefiro morrer a me casar com essa criatura asquerosa — respondeu Hatsena, entre a revolta e as lágrimas.
E tentando ser compreensivo para amenizar a situação interna, Nekhefre puxou-a pelo braço a fim de que se alojasse em seu colo paternal, consolando-a de modo a dar-lhe forças a fim de enfrentar um futuro que não poderia mais ser evitado.
Marnahan também se aproximou do pai e, misturando as suas lágrimas às da irmã deixou que seu coração chorasse a mágoa silenciosa de ver perder-se para sempre a possibilidade de construir uma vida com o jovem de seus sonhos.
No entanto, não ousara proferir uma só palavra acerca da dor íntima que lhe consumia o coração e que, pensava ela, somente lhe cabia conhecer como sonho quebrado, cujos cacos guardaria no relicá­rio do coração como o tesouro precioso que, em segredo, manteria para sempre.
A esta altura dos acontecimentos, chegou a notícia de que Hatsek retornava de suas andanças e que, se não fosse incomodar, iria até a sala onde estavam todos reunidos.
O pensamento de Nekhefre agitou-se, mas para não trair a sua aparência de equilíbrio, fez saber que o sacerdote era bem-vindo, como sempre o fora.
Iria, ali, ter de olhar nos olhos do amigo de sempre que, sem parecer ter-lhe guardado rancor, produzia nele ainda mais vergonha dos actos cometidos à distância de todos.
Nekhefre começava a provar o amargor de ter de enfrentar as suas próprias fraquezas e envergonhar-se perante um ser moralmente superior a ele próprio.
E isso não seria nada, diante do que estava por vir.

() Detalhe de um fragmento de papiro do Livro dos Mortos retratando o julgamento a que era submetido o morto, quando tinha o coração colocado em um dos pratos da balança e no outro a pena que representava a verdade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:53 pm

36 — A verdade ressurge
Ali reunidos em família, todos se encontravam preparados
para receber Hatsek que, pelas suas características de equilíbrio e sabedoria, era a pessoa adequada para contornar todos aqueles problemas e infundir novo ânimo às mentes e corações abatidos pelas novas notícias.
No entanto, a chegada do sacerdote havia sido apenas parte da realidade.
Enquanto Hatsek se aproximava da vivenda de Nekhefre, cruzando as poeirentas ruas de Tebas, sentiu que suas vestes eram puxadas por alguém que desejava falar-lhe.
Ao voltar sua atenção para o que lhe estava causando tal incómodo, percebeu tratar-se de um jovem que, na penumbra do crepúsculo, se confundia com a sombra das paredes dos edifícios, nas quais se ocultava.
— Grande Hatsekenká, por quem sois, sacerdote de Amon-Rá, eu vos peço que me escuteis — falou a voz em tom baixo, como que num sussurro.
Retendo o passo e aproximando-se do seu interlocutor, Hatsek surpreendeu-se.
Era Kalmark que ali estava.
— Kalmark, que bom encontrá-lo por aqui. Espero que sua presença em Tebas tenha ocorrido depois de você ter encontrado sua mãe que o busca ansiosamente em Amarna.
— Sim, sacerdote, já tive a alegria de encontrar minha mãe. Venho até aqui para falar com Marnahan e como já faz muito tempo que saí desta casa, tive receio de bater à porta, simplesmente, e pedir para entrar. Por isso, estava por aqui imaginando um modo de conseguir penetrar na antiga moradia de meus pais quando percebi a vossa aproximação e venho solicitar a vossa ajuda para que eu possa ingressar na residência sem problemas.— Claro, meu jovem. Não há nenhuma dificuldade nisso. Afinal, você é filho de Meldek e de Kaemy, pessoas de muito respeito e consideração neste lar e, já por essa ascendência, sua pessoa merece toda a estima da família do príncipe. Venha comigo.
— Eu gostaria, então, de pedir-vos mais uma coisa.
— Pois não, vamos lá, pode falar.
— Se possível e se me permitirem entrar, pedi ao serviçal que não anuncie meu nome, pois tenho certeza de que, por tudo o que aconteceu, a senhora Kimnut não me receberá, pois deseja me afastar de sua filha a todo preço. Afinal, vós deveis saber que, pelo simples facto de suspeitarem de meu amor por Marnahan, não tiveram compaixão de meus pais e os expulsaram daqui.
— É, meu filho, foram dias tristes aqueles — respondeu Hatsek, com um ar de tristeza. — Está bem. Farei como me pede. Como o leitor pode recordar-se, tanto Hatsek quanto Kalmark desconheciam que Nekhefre tinha chegado e se encontrava, já há algumas horas, em conversação íntima com sua esposa e filhas, relatando os factos à sua maneira.
Assim, quando Hatsek se fez apresentar e obteve a autorização para ingressar no ambiente, foi com espanto que se deparou com a presença de Nekhefre também ali, claramente desconcertado com a sua chegada. Kalmark ficara na entrada, oculto pela parede divisória, esperando o momento em que o próprio sacerdote iria anunciá-lo à família.
Enquanto as reverências foram trocadas, nos cumprimentos tradicionais, esforçando-se Nekhefre por parecer amistoso e, assim, ocultar dos seus os momentos amargos que fizera Hatsek passar na corte do faraó, o sacerdote correspondera-lhe à saudação com naturalidade, não deixando transparecer qualquer sentimento de rancor ou mágoa.
Isso representou um alívio imediato ao coração de Nekhefre que, como havia planeado, desejava, a todo o custo, conversar com o sacerdote reservadamente, a fim de justificar-se pela conduta anterior na audiência e, ao mesmo tempo, pedir-lhe que fosse discreto quanto a esses mesmos factos, pois de nada sabiam aquelas que lhe compunham a
família, preservando, desse modo, a sua própria imagem.
Contudo, a força das coisas o impedira de entrevistar-se a sós, primeiro, antes do encontro colectivo. Daí, ter-lhe sido fonte de alívio perceber que o sacerdote se mantinha da mesma maneira como sempre se comportara, agora que voltavam a conversar pela primeira vez depois de todos aqueles factos tristes.
Vendo-lhe a amistosidade, Nekhefre arriscou:
— Pois que grata surpresa revê-lo nesta que é também a sua casa, Hatsek!
— Idêntico sentimento me preenche a alma, nobre príncipe, ao reencontro daqueles que me são caros ao coração. E se posso dizer isso, reafirmo ainda que minha alegria, hoje, é maior, pois não venho a esta casa sozinho. Trago comigo um coração generoso que, estou certo, será igualmente bem recebido por todos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:53 pm

A palavra de Hatsek causava surpresa e expectativa nos semblantes, todos com a atenção voltada para o sacerdote que, percebendo-lhes a aprovação silenciosa, encorajou-se a convocar o misterioso visitante.
— Já que não há nenhuma objecção, posso dizer, com grata satisfação, que está nesta casa para dirigir-lhes a palavra, o jovem Kalmark, filho de Meldek e Kaemy.
Ao ouvir a referência ao seu nome, o jovem deixou o lugar onde se ocultava e cruzou a porta que dava acesso ao interior do ambiente, para admiração de todos os que ali estavam.
Marnahan, sem saber como conter seus sentimentos, foi acometida de tal emoção que perdeu a cor das faces e, a muito custo, não se permitiu um grito de alegria. Esquecendo-se da presença de seus pais, correu na direcção do jovem e o enlaçou num abraço apertado e cheio de saudade.
O jovem Kalmark correspondeu-lhe ao abraço e, como naquele dia às margens do Nilo, o jovem pôde beijar as lágrimas de sua amada, secando-as de seu rosto pela força de seu sentimento.
Kimnut assistia àquela cena sem saber o que fazer, já que Nekhefre estava presente e era o chefe da família. Hatsena acompanhava a cena entre o encanto e a alegria de ver aquele jovem que conhecera e com quem brincara nas suas épocas de criança.
Hatsek permanecia em silêncio, observando o carinho sincero de ambos.
Somente Nekhefre estava absolutamente descontrolado.
Seu comportamento estava beirando a alucinação. Ele não aprovava aquele sentimento de sua filha por um rapaz de classe inferior e, num gesto de insensatez, levantou-se e ordenou a Marnahan que voltasse ao seu lugar, pois ali não se permitiam estas demonstrações inaceitáveis e desrespeitosas.
Por um momento, o egoísmo de Nekhefre foi maior do que a sua preocupação com suas aparências. Havia-se esquecido de que Kalmark presenciara toda a audiência com Akhenaton e que, agora, poderia desmascará-lo.
A cena de sua filha nos braços daquele jovem empregado de sua casa ferira-lhe o orgulho mais do que qualquer outra coisa e, vendo que Marnahan não lhe obedecia de imediato as determinações, pessoalmente dirigiu-se para o casal a fim de afastá-los à força.
Esse gesto de intolerância foi o suficiente para selar o seu próprio destino. Começava, ali, para Nekhefre, o amargoso processo de amadurecimento.
— Muito me admira, nobre príncipe — falou Kalmark — que o senhor seja tão zeloso para com o afecto verdadeiro que sua filha e eu nutrimos, mas, ao mesmo tempo, a tenha oferecido, graciosamente, ao bandido Mudinar, na frente do faraó e de todos os que assistiam à sua audiência, inclusive eu mesmo.
A referência a esses factos foi uma punhalada no peito de Nekhefre que, agora, se via devolvido à realidade de sua condição vulnerável.
— Como assim, oferecido? — perguntou Hatsena espantada. - Ele nos disse que se tratou de um pedido de Mudinar com o consentimento do faraó e que ele-não pôde impedir.
— Foi isso mesmo — gaguejou o príncipe, abalado em seu equilíbrio.
— Nada disso. Eu estava lá, junto dos que puderam ver o triste espectáculo de um homem covarde, primeiramente repudiar o melhor amigo, aquele que somente benefícios lhe havia propiciado e que, ainda hoje, o trata com sinceridade fraternal. Eu estava lá quando este homenzinho miserável renegou Hatsek diante de toda a corte, humilhando-o sem qualquer comiseração.
As palavras de Kalmark eram proferidas com a dureza da verdade e atingiam tão fundo a todos os presentes que nenhum deles ousava interrompê-lo.
O próprio Hatsek ia impedir que o jovem continuasse quando o Espírito de Khufu surgiu diante dele e o advertiu de que não deveria intervir, já que aquele acerto era necessário até para o despertamento das personagens envolvidas naquele drama.
— Como isso é possível? Hatsek é o nosso maior amigo e protector! — exclamou Marnahan. Você não pode ter feito isso, meu pai. E uma suprema ingratidão...
Nekhefre tinha sentado para não cair. A força da verdade o atingia e a vergonha que seria a sua herança começava a cobrar o seu preço.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:53 pm

Não tinha forças para fazer valer sua superioridade. Afinal, ali, diante dele, estavam duas personalidades que poderiam confirmar a sua fraqueza de carácter.
Não era só o jovem Kalmark, a quem poderia fazer calar facilmente, bastando, para tanto, que se ordenasse aos seus serviçais que o expulsassem de dentro de sua casa. Ali estava também o sacerdote que, a toda evidência, não poderia expulsar.
Sem esperar qualquer reacção ou resposta, Kalmark passou a relatar tudo o que aconteceu com os seus pais depois que haviam sido enxotados daquela casa.
Falou da morte de Meldek, culpando Nekhefre por sua ocorrência. Eles não sabiam desses fatos, já que Hatsek jamais havia tocado no assunto, em respeito ao silêncio que eles próprios desejavam manter sobre o acontecido.
Contou sobre a peregrinação de sua mãe, destituída de todos os recursos. Falou da ajuda que recebera de Hatsek, tanto para os derradeiros dias de vida de Meldek quanto para a sua viagem até Amarna ao encontro do filho.
Cada informação nova era uma adaga lancinante ferindo o espírito de todos ali naquela sala.
O conceito de Nekhefre ia caindo cada vez mais ao nível da realidade de seu carácter, até então oculto pelas aparências que se desfaziam como poeira.
— E, além disso tudo — continuou o jovem — no dia da audiência eu também fora levado até ali para entrevistar-me com o faraó, quando pude ouvir toda a conversa havida na qual o príncipe traía o melhor amigo para não perder sua posição. Tão logo ter repudiado tudo o que acreditava — a religião antiga, a amizade sincera — Mudinar, astuto como sempre, desejou selar essa aliança com uma união, pedindo ao rei que lhe permitisse desposar Hatsena. Instado a mediar tal solicitação, o rei, que a via com bons olhos, antes de permitir-lhe a ocorrência, julgou prudente escutar a opinião do pai da pretendida, já que se tratava de uma aliança. Depois de muito afirmar que julgava enobrecedora tal união, este homenzinho fez ver ao rei e ao seu funcionário que Hatsena era ainda muito jovem, mas que, em seu lugar, possuía uma outra filha que, por seu amadurecimento, poderia substituir a filha mais nova. Obviamente, tentava proteger Hatsena, mesmo que, para isso, entregasse a outra. Vendo-lhe o intento, Mudinar, que não é ingénuo, concordou em receber as duas como esposas, até porque não achava conveniente separar duas irmãs. Uma seria a tutora da outra e se consolariam mutuamente. Marnahan, mais velha, iria modelando Hatsena, mais nova, para servir de esposa ideal ao importante funcionário.
Sem poder opor-se ou sem querer dizer que não concordava, tal ajuste foi admitido por todos, com o beneplácito do faraó que, assim, oficializou a união.
Tudo isso ocorreu na minha presença e na do próprio sacerdote que aqui está.
Todos olhavam para Hatsek que, com os olhos abaixados, não se dignava a pronunciar qualquer palavra. Seu silêncio dizia tudo.
Marnahan escutara aquelas acusações com o coração ferido entre a decepção e a repulsa. Não poderia acreditar que seu próprio pai a havia oferecido como material de troca a um homem de tão baixo carácter, ao mesmo tempo em que desejava impedir que ela se unisse a um jovem honesto e bom, pelo simples fato de ser pobre.
Hatsena não tinha palavras de rebeldia com que expressar sua indignação. Sua vergonha era maior do que todas as suas forças. Chorava agarrada à irmã. Kimnut, sem saber como agir em momentos como esse, limitava-se a olhar para o marido, vencido e entregue ao descrédito, sem conseguir avaliar seu próprio sofrimento. Sentia vergonha por tudo aquilo, mas era muito ligada às tendências do mundo, aos modismos, aos interesses materiais, para avaliar a gravidade da afronta a princípios de honradez, amizade, afecto, etc.
Kalmark estava sendo aquele por meio do qual a verdade se restabelecia, assumindo deste modo as responsabilidades pelo sofrimento e pela humilhação que estava produzindo no espírito de Nekhefre.
Isso porque, por mais que se tenham de corrigir todas as coisas, tal correcção não pode desprezar a fragilidade dos homens. Ao aproveitar-se de sua situação vantajosa, com as informações de que dispunha, dilacerando o conceito de um irmão, perante seus próprios entes amados, Kalmark assumia responsabilidades para com o sofrimento produzido.
Deveria ter buscado um meio menos chocante para fazer o que pretendia. Afinal, tinha ido a Tebas encontrar Marnahan e tentar construir seu sonho com a amada ao seu lado. Não fora investido dos poderes de juiz e carrasco ao mesmo tempo.
Todavia, na efervescência de sua idade inexperiente, o rapaz se deixou levar pela tentação de humilhar aquele que lhe havia produzido tanta dor, além de ter prejudicado pessoas inocentes como Meldek e Kaemy.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:53 pm

Estava agindo como alguém que vinga uma dor que supunha de responsabilidade de Nekhefre. Seu comportamento era o do vingador.
Não era o do que pretende solucionar os problemas sem causar outros maiores.
Por isso, Kalmark também sofreria as consequências de tal acto açodado e desumano.
Lembre-se, leitor amigo, de que todos temos responsabilidades para com o nosso próximo. Estabelecer o procedimento da maledicência significa semearmos espinhos em nossos caminhos, os mesmos que irão nos ferir os pés.
Mesmo diante de problemas graves e de difícil solução, longe de nossos corações o desejo de “desmascarar” através das tintas do escárnio público, quando existam canais de entendimento privado que devem ser usados sempre para os ajustes necessários.
E ainda que tais canais se demonstrem incapazes de solucionar a questão a contento, lembremo-nos de agir com benevolência e caridade. Jamais nos arvoremos em sentenciadores e carrascos da personalidade alheia.
Lembremo-nos de que cada pessoa possui os seus motivos e que, se nos parecem motivações levianas e fúteis, dentro delas, perante a sua história pessoal, merecem consideração na avaliação de todo o ambiente onde ocorreu a falha de carácter que nos está causando incómodo.
É fácil apontar o dedo na direcção do caído para publicar-lhe a falta perante os demais, principalmente se nos achamos acima de tais condutas.
Não nos surpreendamos, entretanto, que nos vejamos tentados a cair nas mesmas condutas que julgamos ilícitas, tão logo se nos apresentem as condições favoráveis ou estejam presentes em nossos corações as carências afectivas que sentimos necessidade de suprir.
Quantos que, condenando a traição afectiva dos outros, meses depois se vêem envolvidos pelas teias do amor clandestino, justificando tal comportamento com a descoberta da verdadeira alma gémea.
Quantos que, valendo-se do preconceito social, escarneceram das jovens que se viram grávidas antes do casamento, apontando-lhes os deslizes como chaga moral irreparável, chegando até ao descalabro de justificarem a existência do abortamento como terapêutica de salvação das aparências.
E muitos desses, algum tempo depois, envolvidos por uma paixão avassaladora, com as tintas generosas da sensualidade desenfreada, se permitem os comportamentos idênticos aos daqueles que havia condenado antes, chegando mesmo a, em alguns casos, receber como resposta ao seu preconceito, a gravidez antes do casamento também.
Quantos de nós pretendemos ser como Nekhefre, zeladores das aparências e condenadores dos outros. Moralistas para os de fora e depravados intimamente.
Expor a imperfeição alheia como Kalmark estava fazendo, por ódio ou rancor, num ato de vingança, representa expor nas pessoas os defeitos que, mais cedo ou mais tarde, estarão à mostra em nós mesmos.
Daí Jesus ter aconselhado que não deveríamos ser a pedra de escândalo. Que se tivéssemos algo contra nosso semelhante, que o procurássemos em particular para conversarmos com ele, expondo-lhe os problemas. Que, se isso fosse inócuo e acabássemos levados a dar a conhecer aos demais as suas quedas, que procurássemos sempre o bem que pudesse atenuar a falta, na generosidade que sabe compreender as fraquezas e que diminui a gravidade do ato em si, preservando ao máximo aquele que caiu, por ver nele a manifestação de uma enfermidade que, por fim, contamina a todos nós.
Nekhefre ali estava, vencido e diminuído ao seu efectivo tamanho moral. Havia dado causa a tudo isso. Nenhuma das coisas que contra ele foram levantadas era inverdade. Todas representavam apenas a sua própria conduta. Se tivesse tido mais convicção da fé que nutria em sua alma, renunciando aos interesses imediatos para a manutenção de sua fidelidade; se houvesse elevado a consideração à amizade e à gratidão aos patamares da justiça; se houvesse compreendido o amor como um sentimento que não se mercancia, tudo isto teria sido evitado e, hoje, seria um homem admirado pela sua coragem moral, servindo de paradigma comparativo aos demais.
No entanto, era um farrapo de gente, levado ao mais baixo patamar da auto-estima por sua única escolha.
Nem mesmo a esposa, que comungava com ele de todas as prevenções que o levaram à queda, era capaz de compreendê-lo e estender-lhe a mão. Afinal, os que se igualam nas fraquezas costumam não se reconhecer quando um deles é flagrado nas quedas. É a maneira silenciosa de dizer, falsamente, “eu não sou como ele”, “que vergonha, fazer uma coisa dessas”...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:54 pm

Naquele momento, somente Hatsek mantinha a sobriedade e o equilíbrio necessários para pensar com isenção e honestidade e, mesmo assim, orava em silêncio para que os envolvidos naquela situação pudessem aprender com a tragédia moral que se abatia sobre todos.
Lentamente, Marnahan deixou a sala, seguida por Hatsena e Kalmark que, sem oposição de ninguém, acompanhou-as para continuarem a conversar separadamente.
Kimnut, vendo-se sozinha, olhou para Hatsek como a perguntar em silêncio, como deveria proceder.
Vendo-lhe a confusão, o sacerdote apontou-lhe a direcção dos aposentos privados, indicando-lhe que desejaria permanecer a sós com o marido, no que foi atendido prontamente, numa sensação de alívio que tomou conta da mulher, despreparada para agir no sentido de consolar ou amparar.
Ali estavam, agora, os dois homens de estatura moral muito diferente, para a conversa por meio da qual Hatsek tentaria elevar o padrão de Nekhefre e lhe propiciaria uma melhor visão das coisas.
Ao lado dele, os Espíritos capitaneados por Khufu se postavam, pois a cirurgia moral iria ter início e os amigos invisíveis contavam com a derrocada de todas as barreiras mentirosas da personalidade fantasiosa de Nekhefre para reconduzi-lo a si mesmo e à realidade da vida que o esperava como um campo aberto precisando de agricultor honesto e competente.
Até aquele dia, a gleba estivera entregue às ervas daninhas da personalidade hipócrita e iludida daquele espírito imaturo a caminho do crescimento. Agora, derrubadas todas as fronteiras artificiais que o afastavam da realidade, chegara o momento em que Nekhefre estava preparado para sentir a força do Amor Verdadeiro falar ao seu ser desnudo das convenções e conceitos dos homens, na tentativa do mundo espiritual de encaminhá-lo para o caminho da luz e da verdade.
Mais uma vez, seria através das mãos de Hatsek que a ajuda lhe chegaria. Seria o traído que haveria de erguer o traidor e o transformar para o Bem.
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37 — Os ensinamentos de Khufu a Nekhefre
Aproveitando-se da imobilidade vencida de Nekhefre, o Espírito de Khufu envolveu Hatsek em uma atmosfera fluídica tão intensa que poderia comandar todos os centros de energia com independência, isolando ao máximo a personalidade do próprio sacerdote de qualquer ingerência nas ideias que iria procurar transmitir ao príncipe, arrasado.
Vendo-lhe a hora de necessidade e o interior predisposto a uma mensagem de edificação que pudesse restabelecer-lhe a vontade de seguir lutando, uma grande equipa de Espíritos reunia-se ali, sob o comando do amigo espiritual de Hatsek. Uns envolviam Nekhefre em vibrações suaves a fim de que conseguisse guardar equilíbrio e uma mínima lucidez, já que em casos como o dele é muito comum que a pessoa ferida acabe se isolando internamente, cerrando todas as possibilidades de auxílio externo, aceitando um mutismo e uma condição de vítima das circunstâncias que lhe imobilizam toda a reacção.
Visando impedir que Nekhefre se colocasse nessa órbita de ideias, um grupo de Espíritos se mantinha a postos, aplicando-lhe recursos calmantes, ao mesmo tempo em que defendiam seu cérebro de todos os ataques violentos de suas emoções abatidas e em reboliço, pelas decepções sofridas naqueles breves momentos.
Ao lado deles, outros amigos inspiravam as filhas e o jovem Kalmark para que não mantivessem o mesmo padrão de rancor, decepção ou sofrimento que viessem a contribuir para agravar o estado daquele homem já entregue às suas próprias incertezas.
Outro contingente de Espíritos amigos envolvia o ambiente em um cordão de isolamento magnético com o qual preservava aquela moradia do ataque de muitos outros Espíritos ignorantes, sempre predispostos a se valerem do abatimento moral ou físico dos encarnados para tornar-lhes mais amarga as provas que devem suportar.
Impedidos de ingressar livremente naquele ambiente que, antes, os recebia com facilidade, postavam-se no limite do campo energético, lançando impropérios e ridicularizando os que os impediam de passar, através de desafios e doestos os mais deprimentes, que caíam no vazio sem resposta, o que mais os irritava.
Do lado espiritual, a algazarra era muito grande, já que os antigos inquilinos invisíveis se revoltavam por não poderem retomar a vivenda que lhes parecia pertencer desde os idos em que Nekhefre ali residia.
Sem se importarem com tais procedimentos, a equipe espiritual encarregada de amparar os seres envolvidos naquele processo doloroso de resgate, tudo fazia para que estivessem protegidos para o aproveitamento de todas as lições que lhes seriam importantes no processo evolutivo.
E no centro desse vórtice bondoso de amparo e carinho, estava Khufu e Hatsek, dois amigos que partilhavam o mesmo desejo de servir à Verdade e ao Amor, através da mão estendida, com esquecimento de si mesmos.
Por esse motivo, ali estariam em verdadeiro intercâmbio mediúnico, através do qual a Verdade Divina procurava e procura encaminhar os homens pelas sendas do progresso, com os conselhos e esclarecimentos indispensáveis para a rectificação de seus erros, dando-lhes o direito de aceitarem ou recusarem as orientações, sem deixar de amá-los por isso.
Desse modo, estando favorável o ambiente, livre de perturbações grosseiras, sustentado pela vibração do mundo espiritual ali presente, afastadas as possíveis ocorrências agressivas de pensamentos e sentimentos de baixo teor que fossem endereçados a Nekhefre, Khufu assenhoreou-se de Hatsek e, com voz pausada e grave, apresentou-se ao homem derrotado porque flagrado nos erros até então desconhecidos dos demais.
— Nobre filho e irmão querido — disse o Espírito de Khufu através da boca de Hatsek que, num exercício de afastamento já muito comum ao seu espírito disciplinado, deixara o caminho corporal livre à influenciação directa daquele mentor luminoso e amigo — que o abatimento não seja a tortuosa rota de fuga de sua alma, diante dos caminhos retos do refazimento de seus passos.
Ouvindo-lhe a palavra em uma voz que diferenciava muito da conhecida tonalidade de Hatsek, Nekhefre levantou a cabeça e percebeu que o sacerdote falava-lhe de olhos fechados, com uma expressão facial diversa da que lhe era comum e com expressões que não usava normalmente.
Percebendo tratar-se de algo sobrenatural ou incomum, ainda que não entendesse nada sobre as coisas do Mundo dos Espíritos, Nekhefre viu-se atraído por essa convocação e, sem dizer qualquer palavra, colocou-se atento ao que esse ser lhe dizia.
— Os caminhos dos homens são estradas que percorrem para levá-los a um destino. E como em todas as estradas há trechos de subida, de descida, com curvas, rectas, buracos ou acidentes que tornam a viagem diferente a cada instante.
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Sua jornada, meu filho, está sendo marcada, agora, pela parte acidentada do caminho e, sem que isso signifique desastre, quer dizer que é preciso caminhar com mais cuidado, ir mais devagar, levar o veículo com maior zelo pelas armadilhas da jornada.
Sua alma alquebrada se vê assim porque acabou sendo surpreendida pela própria verdade. Se nada lhe tivesse acontecido em prejuízo da personalidade fulgurante de príncipe humano, agora você estaria radiante e feliz, conseguindo levar o carro das ilusões um pouco mais à frente, acreditando que seria capaz de continuar a farsa por tempo indefinido.
No entanto, a Sabedoria Superior faz soar o momento em que os que dormem necessitam acordar para uma nova fase de viver e, quando o ser humano se recusa a compreender espontaneamente a necessidade de abrir os olhos, não lhe faltam motivos e situações, criadas por ele próprio, que se movimentarão para que isso ocorra naturalmente.
Seu comportamento, até aqui, foi uma sucessão de tentativas de adiamento da própria modificação.
Convocado a ser menos apegado às coisas transitórias da vida material, em cuja transformação poderia você beneficiar todos à sua volta, a começar de sua esposa, imatura e sem profundidade, deixou-se dirigir por seu medo e por esse mesmo apego que deveria ser vencido, para agir como aceitou fazer.
Vendo-se diante da opção entre o interesse material da manutenção do prestígio e dos bens e a manutenção de seus sentimentos verdadeiros em questões de fé, preferiu abdicar do que era essencial para escolher o que era passageiro.
Colocado diante da escolha entre as vantagens imediatas da vida e a amizade que lhe poderia comprometer o desfrute de tais regalias materiais, desprezou a sinceridade e os princípios verdadeiros para aceitar apenas os interesses mesquinhos.
Vivenciando a possibilidade de compreender os sentimentos verdadeiros daqueles que estão sob a sua tutela na condição de filhas do coração, preferiu banir-lhes os anseios e os sonhos para entregá-las numa aliança mentirosa e infeliz.
Mais do que isso, pela constatação de que sua filha se deixara apaixonar pelo antigo companheiro de afecto não esquecido, que reencontrava dentro de sua própria casa, não mediu as consequências de seus actos e expulsou daqui aqueles inocentes seres que o serviam fielmente a troco de pagamentos tão ínfimos e injustos.
Por causa de suas próprias escolhas é que a vida o trouxe até aqui. Acreditando que você possui o poder para dirigir a tudo e a todos, não percebeu que está sendo guiado para o sorvedouro profundo da aniquilação de seu próprio personalismo.
Além disso, de igual sorte, você também possui seus próprios compromissos como espírito endividado à procura de reparação. Sim, Nekhefre, não se iluda acreditando que a visão dos deuses da morte e o ritual que nos esperam a todos depois da grande travessia são o fim de tudo. Pesados nossos sentimentos na balança da verdade, compete-nos apurar as responsabilidades para que nossos actos possam reparar os erros cometidos.
E não haveria sentido algum em um julgamento se dele não restasse a oportunidade de continuarmos a jornada, agora mais esclarecidos e dispostos a maiores sacrifícios para consertarmos o que destruímos.
Por isso, a continuidade da vida que os antigos sempre acreditaram ocorrer e que se supunha ser a preparação para a retomada do antigo corpo, para nós, que já nos colocamos diante da verdade da vida imorredoura, apresenta-se como sendo uma renovação da oportunidade de viver, não mais num corpo enrolado em faixas intermináveis, ferido pelos instrumentos que removeram vísceras e danificaram para sempre tal vestimenta carnal.
Significa viver novamente em um corpo novo, livre das amarras e feridas do velho e desgastado corpo material. E tal ocorre com você também. Na condição transitória de príncipe de hoje, num mundo em que tais designações são apenas adereços para as ilusões e o cultivo de tolas vaidades, você revive a antiga personalidade que estivera envolvida com muitas das atuais companhias que retornam a você para recolherem novos exemplos e novas esperanças.
Não lhe causa estranheza que tenha por ambas as filhas um sentimento de carinho paterno, mas que por Hatsena seu afecto se intensifique a ponto de oferecer até mesmo a outra mais velha com o intuito de impedir o seu afastamento da mais nova?
Nunca pensou nisso? Por que os traumas da gravidez de Kimnut, que não suportava a sua presença ao seu lado e que, a todo o custo buscava humilhá-lo gerando, inclusive, o desejo de livrar-se dela através do envenenamento?
Para que possa entender o futuro que o espera, olhe um pouco para o passado remoto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:54 pm

Naquele período, seu “ka” (*) vagava pela Terra usando um corpo diferente e era conhecido pelo nome de Kendjer. Era um alto funcionário de um rei, casado com a mesma Kimnut de agora, cheio de influências e poderes. No entanto, apesar de possuir família, incluindo aí uma filhinha amorosa e inocente, envolveu-se com uma jovem casada de nome Serahia, mulher voluntariosa, envolvente, mestra nas artes da sedução masculina, experiente na forma de conquistar e insinuar-se sexualmente através das fraquezas do sexo oposto.
Usando de seu poder, Kendjer enviou o esposo de Serahia, conhecido então como Medjar, para distante região, afastando-o da mulher disputada, como forma de poderem desfrutar do amor ilícito. Lá, na solidão das areias escaldantes, Medjar não resistiu ao isolamento e deliberou fugir, depois de ter contraído enfermidade que o desfigurou e que causava repulsa a todos quantos o encontrassem.
Medjar, entretanto, ajudado por mãos generosas, sobreviveu a tais provas acerbas, desfigurado como ser humano, tanto por fora quanto por dentro de si mesmo.
Já não apresentava os traços antigos que lhe permitissem ser reconhecido. Vestido de chagas, era um farrapo de gente que não era, sequer, encarado pelas pessoas, que fugiam amedrontadas. Desse modo, usando de tal escudo que o protegia, voltou à antiga cidade de onde fora banido, não sem antes ter feito correr a notícia de que havia morrido.
Chegou em tempo de presenciar o noticiário e as cerimónias sumptuosas do casamento de sua verdadeira mulher, Serahia, com o odiento Kendjer. Todavia, vendo-se naquele estado desfigurado e frágil, preferiu guardar o ódio que passara a nutrir por ambos para o momento adequado em que sua vingança pudesse ser exercida.
Ficara sabendo que a união fora possível em face do desaparecimento do marido da noiva e da morte da esposa do funcionário real em misteriosas circunstâncias, muitos falando de suicídio e outros de verdadeiro homicídio, não faltando más línguas que atribuíssem o crime aos dois consortes, justamente para oficializarem a relação ilícita que já era vivida há muito tempo, quase publicamente.
Na verdade, Serahia produzira o envenenamento da primeira esposa, valendo-se da contribuição de um mago de nome Tenief, cultor de conhecimentos profundos, mas que não tinha, ainda, a visão ampla da responsabilidade plena sobre os actos, que permite ou facilita a prática do mal.
Naquelas condições, como um fantasma vestido de infelicidade e desdita, Medjar jurou vingar-se dos dois e fazer com que sua felicidade fosse apenas o preâmbulo de muitos dissabores.
O amor que Medjar sentia por Serahia era sincero e verdadeiro, mas diante das circunstâncias que passara a conhecer, tornara-se um ódio igualmente sincero e real, não se contentando em seguir-lhe os passos à distância, mas tudo fazendo para que jamais fossem felizes os dois nubentes.
No entanto, quando se preparava mais directamente para realizar os planos de vingança, o Soberano Poder fez soar o momento de sua própria transferência para o plano invisível, já que não resistira mais à enfermidade e às privações que vinha suportando. Morrera em míseras condições, nas quais fora projectado pela deliberada acção de Kendjer e Serahia.
Como espírito, passara a perseguir os dois durante os períodos do dia e, mais fortemente, nos períodos da noite quando, valendo-se do reencontro no Mundo dos Espíritos, se aproximava e causava inúmeros pesadelos nos quais se valia de sua aparência totalmente desfigurada para assustá-los constantemente, impedindo que tivessem sono tranquilo.
No fundo de si mesmos, tanto Kendjer quanto Serahia sabiam das próprias responsabilidades e, por isso, através da brecha da culpa, aberta na consciência dos que agem em desrespeito às leis da Soberana Justiça, os dois assimilavam os estiletes de ódio magnético que lhes eram remetidos pelo Espírito que prejudicaram, o que lhes amargou todo o convívio.
Com o tempo, o calor da convivência foi dando lugar a um estado de mal disfarçada e difícil tolerância entre os antigos amantes. O que teria acontecido com aquele fogo apaixonado? Passados os anos, havia-lhes empalidecido o desejo, dando lugar, apenas, ao amargor da consciência do erro cometido. Buscaram apagar tal mácula através dos rituais oficiais nos diversos templos da antiga fé que viviam, mais por convencionalismos do que por sinceridade.
Tudo em vão.
Voluntariosos e superficiais como eram ambos, deixaram-se arrastar por outras aventuras que lhes pareciam mais saborosas e, numa conduta ainda mais irresponsável, trouxeram para o seu drama pessoal mais e mais pessoas inocentes, as quais feriram e iludiram no afecto sem poderem dar-lhes a esperada resposta positiva. Apenas afogavam as próprias frustrações em relacionamentos passageiros que lhes fazia aumentarem as mesmas frustrações.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:55 pm

Tudo isso era feito com a indução mental do Espírito de Medjar que, sabendo da fraqueza moral de ambos e, com a vantagem de ter sido colocado por eles mesmos na condição de vítima, passara a usar de tal prerrogativa que se plasmava na consciência de seus algozes para exercer aquilo que lhe surgia como um direito inalienável: o de vingar-se.
Empurrava ambos para a busca de prazeres com os quais se feriam, esquecendo-se da satisfação que nutriam no passado, quando se uniram para que vivessem apenas da paixão que os consumiria.
Antes que todos estes fatos tivessem ocorrido como ocorreram, voltemos para averiguar a conduta de ambos com relação aos outros envolvidos na trama da convivência.
Uma vez enviuvando com a morte da primeira esposa, restara-lhe a filhinha do primeiro casamento, que fora mantida no novo lar a muito custo, já que Serahia não lhe guardava simpatia, por ser oriunda da antiga união do homem amado. Os planos desta eram o de dar à menina o mesmo destino que providenciara para a mãe. No entanto, como duas mortes misteriosas seriam consideradas muito suspeitas, dentro da mesma família, ocorrências estas que incriminariam Serahia naturalmente, fez tudo o que podia até conseguir que a menina fosse criada longe de seu ambiente íntimo, afastando-a do progenitor e mantendo-a sob a convivência de empregados, com os quais pretendia confundi-la a ponto de sentir-se como mera serviçal daquela casa.
Sempre ausente e, envolvido nos primeiros anos de união pelos vapores da sedução que Serahia bem sabia produzir e manipular, Kendjer permitiu-se afastar da filha que crescia entre a amargura do isolamento e as alegrias dos que conviviam ao seu lado, modestos servos ou escravos, dentre os quais se achava um que lhe votava sincera reverência.
A filha do primeiro casamento de Kendjer, então chamada de Melyah, igualmente correspondia aos apelos afectivos e, sem muita dificuldade, apaixonou-se por Litane, escravo pertencente ao seu pai.
Sabendo que não poderia unir-se à filha de seu senhor, Litane buscava meios para conseguir alguma forma de erguer-se da condição apagada de reles propriedade, a fim de poder unir-se àquela que era desprezada como herdeira de Kendjer. Certo dia, Litane acercou-se de seu senhor para, num gesto de ousadia e ingenuidade, rogar-lhe a possibilidade de ganhar a liberdade para desposar Melyah. Tocado nas fibras mais profundas de seu orgulho e acreditando necessitar punir a insolência daquele jovem que desejava romper todas as linhas e limites de classes daquele tempo, ordenou que o mesmo fosse açoitado pela arrogância de dirigir-lhe a palavra e, ao mesmo tempo, se providenciasse a sua venda imediata para distante região, a fim de afastá-lo da tentação de manter o sentimento inconcebível que externara em relação à sua própria filha.
Não importava que ele próprio não se dedicasse a ela, em face dos estratagemas que Serahia havia criado para afastá-los. O que era importante é que ela possuía o seu sangue e, com isso, não seria jamais entregue a um indivíduo de classe inferior, notadamente um escravo sem qualquer direito.
Estes fatos foram suficientes para inspirar em Serahia a ideia de livrar-se de Melyah, induzindo-a a seguir os passos de Litane, fugindo de casa para poder unir-se ao homem que amava, estivesse ele onde estivesse.
Assim, sem conhecimento de Kendjer e desejando permitir que Melyah se afastasse para sempre de seu caminho sem precisar matá-la sorrateiramente, a madrasta providenciou-lhe recursos financeiros para que a jovem pudesse deixar a família, como uma fugitiva que desrespeitasse as ordens de seu progenitor na busca da concretização de seus próprios sonhos.
Serahia fazia isso com a desenvoltura da mulher que quer parecer compreender os sonhos de amor de outra e tudo faz para auxiliá-la nessa concretização. Todavia, seu intento secreto era dar um fim na presença da filha odiada.
Melyah, jamais tendo-se considerado amada por Kendjer, que, com a morte de sua mãe, elegera Serahia como o horizonte absoluto de seus sentimentos, afastando-se de tudo o mais, não via por que motivo não seguir os passos de Litane, o único ser que a tratara com consideração e devotamento. Além do mais, dispondo de recursos que lhe foram dados pela madrasta, passara a ver nesta a benfeitora de seu destino, a mulher que, afinal, compreendera seu desejo de ser feliz, ainda que, até àquele momento tivesse conspirado secretamente para usurpar-lhe o amor e o afecto no coração do pai.
Litane foi vendido, Melyah abandonou a família para seguir-lhe os passos e, fosse porque isso acabava sendo conveniente para todos, fosse porque não houvesse informações acerca de seu paradeiro, tudo voltara à aparente normalidade de antes, com a vida retomando seu roteiro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:55 pm

Usando dos recursos recebidos de Serahia e do esforço que um trabalho quase braçal lhe exigia no emprego que conseguira em abastada vivenda, nas proximidades do paradeiro de Litane, Melyah conseguiu, com muito sacrifício, o auxílio de seu novo patrão para que o objecto de seu afecto e a razão de seu viver fosse comprado e passasse a permanecer na mesma casa em que ela prestava serviços. Tudo isso foi conseguido graças ao seu carácter doce que conquistava as pessoas, pela simpatia e devotamento que não media sacrifícios nem reclamava de nada.
Enternecidas pela história daquela criatura, as filhas de seu patrão tudo fizeram até que o pai comprasse Litane por vultosa quantia e o trouxesse para a casa onde Meliah poderia, afinal, viver em sua companhia.
Tudo isso foi feito, mas à custa de muito sofrimento tanto de Melyah quanto de Litane que, agora juntos, poderiam aprofundar os laços de afecto, no serviço quase escravo que lhes consumiria a saúde e o bem-estar.
Nem parecia que aquela era a filha do poderoso Kendjer que, nestas alturas da história, já estava passando pelos dissabores e frustrações que já relatei anteriormente, na companhia de Serahia.
Por isso, caro Nekhefre, posso afirmar-lhe que sua vida de hoje está sendo quase uma verdadeira repetição dos mesmos erros e fracassos do passado, notadamente pela manutenção, em sua alma, das mesmas fraquezas de carácter que é preciso expulsar para sempre de dentro de sia esposa assassinada é a mesma que hoje lhe ornamenta o lar.
Serahia, como pode perceber, retornou como sua filha Hatsena, rebelde, insatisfeita, arrogante ainda que pequena, extremamente ligada a você. Marnahan é a mesma Melyah, que está tentando reassumir seu afecto de maneira serena e sob a sua protecção com o mesmo Litane daquela época, hoje chamado Kalmark e que lhe devolveu, nesta sala, os açoites que você lhe mandara aplicar quando na pele do escravo arrogante aos seus conceitos estreitos.
Para onde os seus passos o estão levando, meu filho, sua conduta o comprometerá novamente nos mesmos delitos. Não aceitando o amor da filha por Kalmark, você nada fez a não ser produzir o mesmo sofrimento injusto nos corações à sua volta, proibindo a união que deveria ser consentida como uma reparação de seus erros. Se isso tivesse sido feito, hoje você contaria com um defensor ao seu lado, jovem vigoroso, amigo e não com um adversário que você açoitou novamente através do sofrimento imposto aos seus pais inocentes.
Serahia / Hatsena está se aproximando da enteada de ontem pelos laços da fraternidade real, mas você pretendia, novamente, usar sua filha Melyah / Marnahan para manter a outra somente para si.
Kimnut, a vítima de seus deslizes, ao invés de estar sendo amparada pela sua exemplificação firme e resoluta, amedrontada por se ver abandonada novamente, apega-se às contingências materiais e estagia na infantilidade de alma, graças aos traumas sofridos e que lhe competiriam consertar. Ao invés disso, está reforçando nela os apegos tolos bem como o medo e a insegurança de viver no mundo.
Por esse motivo, meu filho, é necessário que sua conduta seja modificada da maneira mais ampla e profunda, antes que seus passos o levem a uma derrocada ainda mais cruel para si mesmo.
Nekhefre escutava, atónito, a todas estas revelações que, apesar de lhe fazerem um sentido profundo e desconhecido, eram contrárias a todas as antigas crenças que corriam pelo seio do povo, mesmo entre os mais cultos e mais capacitados.
O envolvimento magnético mantinha-se firme para que ele não perdesse qualquer explicação e que todas elas ficassem gravadas em seu mais profundo entendimento.
Retomando a explanação, Khufu passou a dar-lhe as derradeiras advertências:
— Você será, doravante, meu filho, confrontado por uma série de desafios que poderão alterar toda a sua trajectória de espírito imortal.
Precisará, então, revestir-se de coragem, de grandeza, de humildade sincera, de compaixão e de desprendimento para que seu caminho não seja o da descida moral.
Nos momentos de decidir o seu destino, lembre-se de que aquilo que o mundo homenageia e cultua, geralmente, é aquilo que devemos desprezar como coisa sem o mesmo valor que as verdades da alma possuem.
De que lhe adiantará manter-se como príncipe e ser recebido no reino dos mortos como um esfarrapado ser desprezível? As prerrogativas de Estado e os títulos do mundo poderão garantir-lhe a vida física para sempre? Não será necessário abandonar todas estas coisas diante do barqueiro que nos conduzirá na travessia fatal? Pense no que você está lutando tanto para preservar e quanto tempo vai ser possível manter essa ilusão dos sentidos.
Honrarias e títulos, posições e cargos são dados e retirados segundo as conveniências dos governos e o seu desejo de fazer aliados.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:55 pm

A verdadeira Honra, diante da Soberana Verdade, é ter estado entre os homens e voltar para o julgamento com o coração leve e a alma livre de acusações.
Lembre-se disso em todos os momentos que o defrontarão daqui para a frente. Nas horas difíceis, leve seu pensamento à Soberana Sabedoria para que ela o inspire. Ore, Nekhefre. Ore no silêncio de seu pensamento e nós estaremos ao seu lado para amparar-lhe os passos.
Perdoe os que hoje lhe causaram o mal-estar merecido para que pudesse estar escutando com outros ouvidos tudo aquilo que lhe estamos dizendo.
Perdoe porque, antes de ser seus algozes, todos eles foram suas vítimas de ontem. Compreenda os desejos de felicidade que existem em todos os corações e jamais se oponha a que dois corações desejem concretizar um afecto verdadeiro. Aconselhe, auxilie, esclareça, mas não violente.
Prepare-se porque a sementeira foi livre, mas a colheita é obrigatória.
Estaremos perto de você para que seu coração sinta a nossa presença e, em momento algum pense em sair da vida pelo caminho da auto-destruição.
Lembre-se: você não morre nunca e, depois de ter atentado contra a própria vida, as dores que encontrará por aqui dar-lhe-ão saudades daquelas que sentia ao contacto dos problemas que o desafiavam quando no corpo físico.
Tenha coragem e confiança em si mesmo para saber escolher o que é o correto. Pense sempre nos interesses da alma e nunca mais se deixe conduzir pelos interesses imediatos e pelas vantagens da matéria.
Estes são sempre, os piores conselheiros.
Com essas palavras, Khufu abençoou o príncipe, que foi sendo tomado por uma sensação de cansaço e sonolência, produzida pela acção magnética dos Espíritos a fim de que pudesse dormir e descansar dos embates tão tormentosos daquele dia.
Caindo no torpor que ia crescendo sem que pudesse controlar, Nekhefre entregou-se ao sono na posição em que se encontrava, permitindo a Khufu retirar-se e deixar Hatsek recompor-se integralmente.
Retomando o corpo, o sacerdote presenciou o estado de prostração do amigo e, vendo-lhe a necessidade de descanso, afastou-se em silêncio demandando o interior da casa.

(*) Ka ou duplo era um termo usado pelos sacerdotes do Egito antigo que corresponde ao corpo espiritual ou perispírito, mediador entre o Espírito e o corpo físico.
Na prática o ka era o fantasma dos egípcios. (Nota da Editora)
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:55 pm

38 — Segue a perseguição de Mudinar
Enquanto todos estes fatos ocorriam em Tebas, na cidade capital do império de Akhenaton, Mudinar se preparava para desencadear os próximos passos de seu plano de perseguição a Nekhefre, valendo-se da circunstância de ele já se encontrar afastado de suas funções há algumas semanas.
A viagem, rio acima, que fora empreendida por ele por determinação de Mudinar sem o conhecimento do próprio faraó, levava, por si só, várias semanas, pois dependia dos ventos favoráveis e tinha contra si a força do próprio Nilo, correndo em sentido inverso.
Por isso, tão logo um dos informantes secretos — que seguiram a viagem no mesmo barco, incógnitos, ao lado de Nekhefre — chegou a Tebas e constatou que o príncipe dera entrada em sua moradia, imediatamente embarcou para Amarna a fim de comunicar a Mudinar que a primeira parte da viagem tinha sido concluída com êxito.
Informado pelo seu espião, Mudinar procurou o faraó para dar início à segunda parte de seu astuto projecto.
— Grande Rei de Todo o Egito, recorro à vossa sabedoria para as decisões que serão necessárias — falou reverente e submisso o ambicioso Chefe da Guarda Real.
— Que dúvidas afligem seu espírito? — indagou-lhe o faraó.
— Ocorre, meu senhor, que o nosso novo aliado, que recebeu todas as honras do trono, incluídas nelas o cargo de fiscal do tesouro real — o príncipe Nekhefre — não sei por que motivo se ausentou da cidade sem qualquer autorização e, pelas informações que acabaram de chegar, encontra-se em sua casa, na cidade de Tebas. Com certeza, não se submeteu à fidelidade prometida e se vê seduzido pelas antigas crenças, além, é claro, de estar sentindo falta da família que eu mesmo já havia mandado ir buscar. A palavra bem medida de Mudinar era colocada nos ouvidos do rei com o propósito deliberado de induzi-lo a sentir que a conduta de Nekhefre era grave lesão aos deveres por ele assumidos e aos votos realizados.
Por essa época, Akhenaton já estava se perdendo na condução do próprio reinado, envolvido pela fanática visão religiosa de que estava cercado de pessoas que conspiravam contra a crença monoteísta que ele instituíra no Egito. Via traidores em toda parte e buscava comprar os aliados com homenagens e jóias, abandonando quase por completo as questões de Estado, o que fazia periclitar os negócios oficiais, cair a arrecadação de tributos e dificultar a manutenção do equilíbrio interno.
Com as notícias de Mudinar, o rei se deixou sentir profundamente traído, ainda mais depois de ter recebido do príncipe tebano toda a sorte de demonstrações que pareciam verdadeiras.
— Quer dizer, então, que Nekhefre fugiu daqui, desrespeitando os deveres que lhe são impostos pelo cargo que o trono do Egito lhe concedeu? — indagou o rei, procurando dar às palavras o tom da dignidade ferida, no que foi reforçado por seu funcionário.
— É o que parece, meu faraó. Aliás, nunca acreditei na declaração daquela audiência, já que, pelo que soube de sua conduta privada, seu relacionamento com Amon-Rá sempre persistiu, apesar da imposição de todos os decretos. Enquanto esteve em Tebas, o príncipe sempre esteve estreitamente ligado ao culto proibido e não o abandonou
mesmo depois de ter sido proibido.
— Mas você está certo destas coisas? Apesar de toda a sua reconhecida diligência e seu penhor de devotamento ao Egito, não pode haver engano da parte de quem lhe informou a respeito destes factos? - falou-lhe o faraó buscando certificar-se de que tudo aquilo que ouvia era expressão da verdade.
Prevendo que seria natural que o rei lhe colocasse tal questão, em face de conhecer-lhe a personalidade, Mudinar já tinha se preparado para tal situação e respondeu-lhe:
— A Sabedoria de Aton que habita em vosso íntimo me ensina muitas coisas, nobre rei. Uma delas é, justamente, a de não acreditar sem ter provas das informações que me chegam aos ouvidos. Desse modo, tudo aquilo que vos falo, faço-o com base em provas reais e que posso apresentá-las para que essa mesma Sabedoria que vos inspira possa aquilatar.
Com um gesto de assentimento da cabeça do rei, Mudinar deu ordem para que fosse trazida à sua presença uma das pessoas que lhe serviam de base para tais acusações.
Tratava-se de Kaemy, a mãe de Kalmark, que ficara hospedada na modesta casinha do artesão, enquanto este se encontrava, como se imaginava, trabalhando nos túmulos reais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:56 pm

Surpreendida com a convocação de Mudinar para comparecerão palácio para onde fora levada por uma escolta de soldados em determinada manhã, a senhora não tinha ideia do que lhe aconteceria, até que se avistou com o Chefe da Guarda que, muito solícito e educado, pediu-lhe que aguardasse um pouco e informou-lhe que iria ser levada perante o faraó, se se fizesse necessário o seu depoimento e que, nesse caso, deveria responder a todas as perguntas de Mudinar e do rei com a verdade.
Assustada com a situação para a qual não estava preparada, já que estar perante o rei era como enfrentar pessoalmente o próprio Deus de suas crenças, Kaemy procurou refúgio na oração, lembrando-se dos conselhos de Hatsek para as horas difíceis.
Enquanto aguardava, elevava o pensamento a Amon rogando ao antigo deus que a fortalecesse naquele momento tão delicado.
Fora tirada bruscamente dessa situação de elevação pelas mãos firmes de um soldado de Mudinar que a conduziu ao salão onde se encontravam o rei e seu funcionário.
Impressionada com o ambiente, Kaemy tremia, mas procurava controlar-se. Era a primeira vez que estava diante de um faraó em toda a sua vida.
Ao seu lado, amigos espirituais procuravam ajudá-la na manutenção de uma calma relativa que lhe garantisse, ao menos, a capacidade de escutar e responder com certo controlo de ideias e emoções.
Levada pelo soldado até a presença do rei, naquele ambiente sumptuoso e solene, Kaemy não fez outra coisa além de se prostrar aos pés do faraó, cuidando de não olhá-lo directamente no rosto, eis que era costume dos plebeus não fixarem o olhar no deus que encarnara na pessoa do mais alto governante humano de suas vidas.
Percebendo-lhe a situação de constrangimento e quase pavor,
Mudinar aproximou-se de Kaemy e, com delicadeza não usual, falou-lhe ao ouvido que o rei ordenara que ela se levantasse e se colocasse à vontade na sua presença.
Ouvindo tal determinação, Kaemy recompôs-se e, de pé, seguia de olhar abaixado, como forma de não ofender o rei com o seu olhar humano.
— Minha senhora — falou Mudinar — como sabe, sua presença aqui liga-se a importantes fatos que conhece e que são do interesse do rei conhecê-los também.
— Aqui sou serva do meu rei e tudo o que lhe seja da vontade conhecer e que me esteja à altura de informar, o farei sem nada esconder— disse a mãe de Kalmark.
— Pois então, responda às minhas perguntas com clareza. Já esteve em Tebas alguma vez na vida?
— Sim. Morei lá vários anos de minha existência infeliz.— O que fazia naquela cidade? Onde trabalhava? — seguiu o interrogatório sumário.
— Era serviçal na casa do príncipe Nekhefre, onde morava com meu esposo Meldek e nosso filho Kalmark, e lá permaneci até há alguns anos quando fomos expulsos sem motivo.
— Quando de sua estada naquela casa, tinha contacto com as pessoas que a frequentavam na intimidade? Conhecia os visitantes do príncipe?
— Tínhamos que servir os convidados. Por isso, os que iam esporadicamente não sabíamos quem eram. Todavia, os que iam sempre, acabávamos sabendo de quem se tratava e tornavam-se, muitas vezes, íntimos até mesmo dos próprios servos, ainda que guardassem a distância própria das diferenças sociais.
— O sacerdote Hatsekenká se encontrava entre os esporádicos ou entre os íntimos?
— Bem, pelo que posso me recordar, o sacerdote achava-se entre os íntimos, já que, quando do fechamento do templo de Amon-Rá e da dispersão dos sacerdotes, por ser muito pobre e não ter moradia, passou a residir com o próprio príncipe que, desde longa data mantinha uma grande ligação com ele.
— Apesar de já sabermos destes fatos, você confirma que mesmo depois de ter sido banida a malfadada religião pelo nosso rei, Nekhefre mantinha em sua própria casa um sacerdote dos antigos credos? — falou Mudinar apimentando o tom de voz para causar mais indignação ao faraó.
— Todos estes fatos se deram depois que o templo de Amon foi fechado por ordem do rei — respondeu simplesmente Kaemy que, até agora, não tinha dito uma só mentira, fosse para piorar ou para melhorar a situação de quem quer que fosse.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Dez 27, 2022 7:56 pm

— E antes do fechamento dos templos, determinado com sabedoria pelo nosso faraó, quando já existia a proibição do culto, mas os templos permaneciam abertos, Nekhefre costumava ir ao templo de Amon ou trazer seus sacerdotes à sua casa?
— Bem, antes de ter sido fechado o templo, todas as pessoas que acreditavam em Amon dirigiam-se até lá para fazer pedidos e oferendas. O príncipe, pelo que sei, ia semanalmente, não sei se à procura do sacerdote amigo para aconselhar-se com ele, ou para fazer oferendas. O sacerdote, entretanto, jamais deixou de frequentar a sua casa, nem antes nem depois do fechamento do templo quando, como já disse, passou a ocupar pequenos aposentos, na condição de convidado do príncipe.
Percebendo que já tinha atingido seu objectivo inicial, Mudinar exultava internamente ao constatar o efeito que aquelas palavras causavam em Akhenaton. Escutara com os próprios ouvidos a confissão da verdade sobre a conduta do príncipe que, a toda evidência, era mais do que mentiroso. Era um traidor de sua palavra e de toda a tradição que dele fizera um príncipe.
Obtendo a certeza de seus objectivos, Mudinar agradeceu com um largo sorriso pelo testemunho de Kaemy e, com a aprovação do rei, igualmente satisfeito, ainda que fundamente contrariado, determinou que Kaemy fosse reconduzida à sua modesta vivenda.
A boa impressão que causaram as palavras de Kaemy fizeram com que Mudinar nem se preocupasse com a ausência de Kalmark, o qual havia mandado buscar no local das obras funerárias para reforçar o seu conjunto de provas contra Nekhefre. Fora informado pelo responsável pelas tumbas reais que, por uma ordem sua mesmo, ele havia sido dispensado das tarefas para ser transferido para outra obra do faraó já há alguns dias. Acabara, assim, descobrindo que Kalmark conseguira fugir de seus deveres, valendo-se de uma falsificação de seus próprios decretos. Tomaria severas providências quando se apresentasse a oportunidade.
Tão logo Kaemy deixou a presença do rei, Mudinar se pôs a esperar-lhe as primeiras palavras, como que a deixar que a indignação real brotasse do fundo de suas fibras.
— Este é um homem sem carácter e sem valor — falou Akhenaton.
Traía o Egito quando, morando em Tebas, dedicava-se ao culto da religião condenada. Traía Aton quando, com conhecimento de minhas ordens, abrigava em seu lar o sacerdote de Amon. Traiu o amigo, perante meu trono, negando-lhe consideração por interesse próprio. Traiu a minha benevolência, agora, ausentando-se daqui sem qualquer autorização ou permissão e retornou ao antigo covil onde, por certo, irá continuar suas escusas actividades heréticas.
Tão graves são suas condutas que, de minha parte, aguardo as suas sugestões, Mudinar, sobre como adoptar as punições mais justas, eis que, o impulso inicial de meu coração é exterminar-lhe a vida a fim de banir da superfície do Egito um sertão desprezível.
Satisfeito com tal afirmativa, Mudinar aproveitou-se da convocatória que lhe endereçara o faraó e opinou:
— Longe de mim; meu senhor, contradizer os vossos desejos. No entanto, matar o príncipe seria perder a oportunidade de exemplificar aos outros como devem conduzir-se e o que acontece a quem não se comporta com correcção e obediência ao faraó. Creio que a volta de Nekhefre ao seio da velha capital, certamente uma das mais heréticas que se conhece e que persiste na devoção ao culto de Amon, permitirá que todos os hereges possam ser alertados pelo exemplo do que ocorrer a ele e de que devem pensar melhor no que estão fazendo.
Matá-lo, seria perder tal oportunidade. Creio que, sobre ele e sua família, deverão pesar a indignação de todo o Egito, através da prisão humilhante de todos, o confisco dos seus bens e a divulgação aos habitantes de Tebas dos crimes que cometeu contra Aton e contra o Egito.
Isso se tornaria um tão profundo alerta para todos que, com certeza, o trono do Egito ver-se-ia mais respeitado no culto de Aton que determinara a todos os seus súbditos.
A palavra lógica e inspirada de Mudinar seduzia o pensamento do faraó que, naquele momento, via na sugestão a melhor maneira de obter uma vitória sobre os insatisfeitos.
Além do mais, com tal solução, Mudinar manteria Nekhefre longe de Amarna e evitaria que suas palavras pudessem ser conhecidas pelo faraó, no sentido de esclarecer o fato de que não havia fugido, mas tinha sido mandado a Tebas cumprindo ordens do próprio Mudinar.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 10:40 am

E aproveitando-se do estado íntimo favorável, o Chefe da Guarda confidenciou-lhe, como se revelasse algo extremamente sigiloso, num favor especial que concederia ao soberano.
— E o que mais me preocupa, Grande Faraó, é que pelo que meus informantes me avisaram, Nekhefre está tentando vender todos os seus bens para obter dinheiro grosso. Talvez, pretenda fugir para longe de vossa Justiça...
A informação ficara no ar, sem nenhuma prova concreta. No entanto, no espírito de Akhenaton fora recebida como a confissão de um funcionário íntegro e dedicado que merecia toda a consideração e confiança.
Tais palavras foram as que faltavam para que o decreto fosse sacramentado.
Nekhefre seria preso juntamente com toda a sua família para escárnio público. Receberia punição física através de flagelação perante as pessoas a título de traidor. Teria todos os bens confiscados e nada mais lhe restaria até o fim dos dias do que amargar a condição de prisioneiro do rei.
Ao lado do confisco de suas riquezas, as mesmas que seus ancestrais recentes havia recebido do mesmo trono como gratidão para participação nas lutas de independência do Egito da dominação estrangeira, Nekhefre perderia todos os títulos honoríficos e as prerrogativas de funcionário do faraó. Aliás, tal condição de favorecido do rei apenas lhe agravaria todas as punições pois lhe imprimia a pecha de um traidor ainda mais sórdido.
Enquanto ditava os termos do decreto ao escriba real, acentuando a necessidade de ser ele divulgado em todas as esquinas de Tebas e em todas as principais cidades do Egito, Akhenaton pretendia tornar ainda mais exemplares as características de sua ordem.
— Confiscar-lhe os bens não é o bastante, Mudinar. Preciso dar a este confisco o contorno de um ato de punição, por um lado, e de premiação por outro, a fim de que os meus súbditos saibam que, se sou duro e rigoroso com os que traem Aton, sou generoso e complacente com os que o defendem — falou o rei. Desse modo, dividirei o património de Nekhefre em duas partes.
A primeira delas, menor que a outra, entregarei aos seus serviçais que trabalham em sua casa até hoje e que, com isso, passarão a desfrutar dos bens que antes pertenciam ao seu senhor. Isto será uma soberana humilhação. Nesta divisão, pretendo entregar a essa mulher que aqui esteve para testemunhar a verdade dos fatos, a própria casa do príncipe em Tebas, como forma de premiar-lhe a conduta e compensar-lhe a desdita até hoje suportada.
A segunda parte, mais valiosa e expressiva, correspondente a um grande número de prédios importantes em Tebas e vastas extensões de terras ao longo do Nilo, recebidas de meus antecessores, conforme já me certifiquei, preciso deliberar o que fazer com ela. Que pensa?
Ouvindo-lhe as afirmativas, Mudinar sentira ter chegado o momento mais importante de sua cartada.
— Bem, Grande Senhor, o que um insignificante servo de vossa luminosidade poderia dizer quanto a tão sábias e oportunas definições?
Muito me honra vosso poder de me consentir servir-vos assim tão de perto. Posso afirmar que mais me admiro da vossa sabedoria quando posso perceber o alcance de tais medidas no seio do povo tebano, ao ver os antigos empregados elevados à condição dos príncipes. Quanto à outra parte do património, creio que, se a sugestão que me pedis puder ser tida em conta de algum valor, que se devolvessem os bens aos antigos e verdadeiros proprietários ou seus sucessores, de quem foram confiscados para ser entregues à sua família, como forma de dar-se a
eles o que lhes pertencia desde os idos tempos das velhas gerações.
Sabemos que a família de Nekhefre não pertencia à grande nobreza hereditária e que obteve tais títulos à custa dos favores do trono por fidelidade às lutas de independência.
Uma vez vitoriosa a causa, seus ancestrais foram premiados pelo faraó com o título de nobreza e com os bens que escolheram a bel-prazer, confiscados de seus verdadeiros donos para lhes serem entregues à conta de gratidão do trono pela aliança na luta contra os invasores.
Tais pessoas, que eram detentoras com justiça dos tratos de solo fértil, viram-se, repentinamente deles alijadas, sem quaisquer indemnizações que lhes fossem compensadoras da perda e passaram a se somar ao grande número de miseráveis que enchiam as cidades.
Acredito que muitos pereceram, mas o conceito de Justiça de Aton muito ganharia se, em se buscando os antigos donos e seus descendentes, a eles se devolvessem os bens que Nekhefre desfruta sem qualquer merecimento pessoal.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 10:40 am

O pensamento de Mudinar era valioso para a continuidade da exaltação de Aton que seria visto como um deus justo e generoso, reparando um erro que fora cometido ao tempo da velha religião de Amon devolvendo o património aos que haviam sido prejudicados com tal confisco.
Seria uma forma muito clara de demonstrar a todos a superioridade do novo deus único e, desse modo, granjear a simpatia das pessoas pela justiça de Aton, mais perfeita e confiável do que a justiça de Amon.
E, com tal sugestão, mais crescia em Akhenaton a admiração
pelo seu funcionário que sempre possuía uma sugestão acertada e aparentemente sábia para a solução de problemas espinhosos.
— A sua colaboração com o trono do Egito, meu fiel servo e amigo, representa para mim um motivo de júbilo no meio de tantas confusões e desgostos. Em face de tanta fidelidade e devotamento, dividirei a segunda parcela do património de Nekhefre ao meio e entregarei uma metade aos seus antigos donos ou descendentes e a outra metade entregarei a você mesmo, como gratidão do trono do Egito pelos sábios alvitres de seu coração fiel e amigo.
Sem pronunciar qualquer palavra em face da emoção íntima que lhe dominava o peito depois de um longo período de provações, Mudinar só conseguiu prostrar-se aos pés do rei, num comportamento servil próprio dos que se humilhavam por gratidão na expressão máxima da subserviência. Praticamente deitado aos pés do faraó, deixava rolarem pela sua face grossas lágrimas de emoção que foram interpretadas pelo rei como gratidão, mas que eram lágrimas de vitoriosa conquista, alegres pela consecução de seus planos desde há muito sonhados.
— Levante-se, meu amigo, pois nada mais faço do que premiar o seu próprio valor.
— Sou apenas vosso servo, independentemente de qualquer reconhecimento ou pagamento — disse Mudinar fingidamente.
— Providencie para que o decreto esteja terminado a fim de que seja cumprido imediatamente. Ao mesmo tempo encarrego-o de providenciar a prisão de Nekhefre em Tebas e a apuração do paradeiro dos que foram alijados da terra entregue ao príncipe e que lhes será devolvida, sejam os seus originais proprietários ou os seus descendentes.
Dito isto, Akhenaton levantou-se e deixou Mudinar incumbido de levar seus planos até o final, sem suspeitas.
Seus sonhos de vingança estavam a caminho, para sua própria infelicidade.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 10:41 am

39 — Entre o dever e o querer
Envolvido pelas novas determinações do faraó, Mudinar passou a dedicar-se com absoluta prioridade ao cumprimento do decreto real.
Desejava estar à frente de todos os actos, inclusive o da própria prisão do príncipe. E como o faraó o incumbira para que suas ordens fossem integralmente obedecidas, organizou um grupamento de soldados e, o que não era usual, solicitou autorização para seguir juntamente com ele até Tebas, no encalço de Nekhefre.
A fuga de Kalmark também não lhe saía da cabeça, tendo deixado ordens expressas para que redobrassem a vigilância na vivenda de Kaemy e prendessem Kalmark imediatamente se por lá aparecesse.
Todavia, seu instinto ardiloso dizia-lhe que o rapaz não surgiria por ali. Que era mais fácil encontrá-lo em Tebas do que em Amarna.
Entregando temporariamente suas funções a outro funcionário real de nome Aye, que despontava como fiel servidor de Akhenaton, Mudinar pôde empreender a viagem desejada.
Comandando o magote de soldados rio acima, na embarcação apropriada para o transporte de um número grande de pessoas e aproveitando os ventos favoráveis, a viagem durou poucas semanas.
Enquanto isso, em Tebas, a família de Nekhefre reunia-se para deliberarem sobre os novos destinos.
Depois das difíceis emoções vividas com o relato de Kalmark, o sacerdote deliberou ficar mais alguns dias junto da família para que pudesse servir-lhe de amparo e força moral perante as necessidades emocionais de todos ali.
Retirados para o interior da moradia confortável, Marnahan, Kalmark e Hatsena deixaram-se envolver pela sensação de abatimento.
Hatsena, espírito mais rebelde e impulsivo, contaminava-se com uma revolta muda, na qual se poderia identificar todo o seu carácter de mulher acostumada a agir para mudar os rumos dos destinos humanos segundo os mesmos critérios do passado, quando vivera como Serahia.
Já Marnahan e Kalmark conversavam entre a angústia e a incerteza.
— Eu vim até aqui para que nós possamos fugir deste emaranhado de perseguições e mentiras, minha querida, — falava o jovem rapaz, trazendo entre as suas as mãos de Marnahan.
— Como eu sonhei em poder afagar suas mãos, meu amor! Como meu coração se via envolvido pela saudade de sua presença e como me é difícil ter de conciliar todas estas coisas — respondia reticente a filha mais velha de Nekhefre.
— Não temos muito tempo para pensar, Marnahan. Eu fugi do trabalho nas câmaras funerárias, falsificando um documento para que pudesse deixar o encargo sem o conhecimento dos outros justamente para poder estar aqui e cumprir minha promessa. Nós nos uniremos e vamos embora para qualquer lugar bem longe, começar nossa vida juntos.
A aflição de Kalmark era visível na sua voz trémula e nos gestos agitados.
Marnahan ouvia-o entre emocionada e abatida. Na sua concepção mais madura para compreender as coisas, a sua situação de agora era diferente da anterior.
Sem desejar ferir o coração amado, a jovem lhe confidenciou:
— Como seria venturoso para mim, meu amor, deixar para trás as tristes condições de minha alma para seguir ao seu lado na construção de nosso futuro. No entanto, Kalmark, eu não posso fazer isso agora.
— O quê? O que é que você está dizendo? — exclamou o jovem entre surpreso e decepcionado. — Porventura seu sentimento por mim deixou de existir no coração? Depois de ter-me exposto a todo o tipo de risco para vir buscá-la conforme havia prometido há mais de dois anos, é essa a resposta que recebo?
— Não se amargure, meu querido — disse Marnahan suavemente, acariciando-lhe a face e os cabelos em desalinho. — Nossos sonhos haverão de se concretizar. No entanto, há mais de dois anos os planos que fizemos eram os de você partir para reunir recursos a fim de que nos uníssemos sem obstáculos, conseguindo a autorização de meus pais para tal cometimento. Hoje, no entanto, ainda que contra a minha vontade, estou prometida a um homem que não conheço e que, pelo que pressinto, é o causador de muitos malefícios que se abatem sobre nós.
— Isso não é nada, Marnahan. Esse obstáculo não existe para os que se amam verdadeiramente. Nada que as areias do deserto não possam apagar, depois de nossa fuga. Mudinar não vai descobrir nunca para onde fomos. O Egito é muito grande...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 10:41 am

— Sim, Kalmark, é verdade. No entanto, se fugir com você, deixo para trás meu pai, que não poderá cumprir a palavra empenhada no acordo sancionado pelo próprio faraó e, nessa condição, poderá sofrer todas as represálias por meu comportamento audacioso.
Se fujo com você agora, isso será interpretado como desrespeito a uma ordem oficial, que ensejará as punições correspondentes sobre aquele que detém a responsabilidade sobre mim, meu pai. Ele poderá ser supliciado até mesmo para dizer para onde fui ou onde me ocultei.
Não posso expor meu pai a esse tipo de sofrimento sem me deixar sofrer duplamente por ser a responsável.
— Mas.... — tentava argumentar o jovem apaixonado, quase em desespero — seu pai entregou-a sem nenhuma consciência para salvar Hatsena das garras da víbora. Por que agora você tem que ficar pensando nele? Ele que sofra as consequências de seus actos...
— Compreendo a sua angústia — falava Marnahan, sem esconder as lágrimas que escorriam volumosas pela face pálida. — Todavia, os erros de meu pai serão de sua responsabilidade e os meus pertencerão a mim própria. Meu amor por ele não diminuiu apesar de sentir em meu próprio futuro as consequências de sua fraqueza. Além disso, não sou capaz de acreditar que tenha feito isso por não gostar de mim. Com certeza, desejava preservar Hatsena por ser muito criança e estar despreparada para submeter-se a um homem mais velho e perigoso.
— Não acredito no que estou ouvindo...
— Não me queira mal, Kalmark. Apenas estamos adiando a nossa união para que ela não seja construída sobre um alicerce de espinhos e lágrimas amargas, que haveriam de amargar os doces sonhos de ventura que entretecêssemos. Como ser feliz sabendo que os nossos amados se acham dilacerados por nossas condutas?
— Mas eu tenho medo de perdê-la — falou o rapaz, lacrimoso e triste.
— Nós nunca nos perderemos, Kalmark. Nem que tenha de me unir a um homem mau, nem mesmo que me veja afastada de você para sempre. Sempre estaremos unidos pelo sentimento que nunca morre e que ninguém tem o poder de matar. Quantas criaturas dizem que amam e, na primeira curva do caminho deixam-se arrastar pelas aventuras insensatas de qualquer provocação. Pois eu posso garantir-lhe que esse é um sentimento muito distante daquele que o Amor efectivamente representa. Esse apego ao qual as pessoas chamam de Amor depende de retribuição para existir. E um sentimento bonito a princípio, pois baseia-se na euforia dos sentidos que inebria as emoções.
No entanto, decorridos alguns momentos em que tais emoções se embriagam, faltando-lhes o vinho da novidade, em geral, avinagram-se e transformam-se em um peso que frustra e faz a infelicidade dos que, antes, se pensavam venturosos.
Meu sentimento por você é como aquela pedra que me deu e que trago pendurada no meu pescoço até hoje.
E falando assim, puxou o cordão que lhe havia sido entregue pelo jovem artesão, à beira do Nilo, tanto tempo atrás e cujas belezas e detalhes ele próprio havia esquecido.
Lá estava a jóia que ele havia produzido, pelo talento que o caracterizava.
A pedra encontrava-se brilhante e aveludada pelo contacto constante com a pele de Marnahan.
— Lembra-se, Kalmark, daquele pôr-do-sol?
— ... Sim... Marnahan.......... eu nunca me esqueci daquele dia...
— Meu sentimento por você, Kalmark é como a pedra que entalhou e me deu. Veja como ela está bonita, depois de tanto tempo. Não mudou nada.
— Ficou mais brilhante — respondeu ele.
— Está assim porque nunca a afastei de minha pele. Nutro por ela o mesmo afecto que gostaria de estar lhe entregando desde aqueles dias. E quando sinto sua falta, beijo a pedra, converso com ela, como se dentro dela você estivesse. Quando o calor se torna abrasador e meu suor a envolve, procuro secá-la limpando-a de todas as minhas próprias impurezas. E a cada gesto de carinho ela se torna mais brilhante e sedosa.
Por isso, meu amor, meu sentimento por você parece essa pedra. Nunca deixará de existir, apesar de não estar perto. Nenhum outro coração poderá estar pulsando de maneira tão irresistível e forte junto ao meu.
Daí, Kalmark, ninguém poderá destruir o que dura mais do que as pedras do mundo. Veja os grandes monumentos de nosso país, dormindo e acordando sob o mesmo Sol abrasador e suportando as frias noites do deserto, presenciam a passagem das gerações sem saírem do lugar, sem deixarem de existir. Faraós e deuses nascem e morrem e as pedras em que foram lavradas dão testemunho de sua perenidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 10:41 am

E eu, com segurança e sinceridade, posso afirmar-lhe que o meu amor é maior e mais perene do que as pedras, pois estas se fraccionam e quebram, tornando-se areia. Meu sentimento não!
A palavra de Marnahan soava profundamente no espírito daquele jovem impetuoso. Esse cântico de emoção e afecto que ele jamais ouvira da boca de nenhuma outra jovem representava a mais concreta confissão de afecto que ele jamais imaginara receber de alguém. Envergonhava-se diante de tal demonstração de carinho. Via-se pequeno, ainda que diante do grande amor que sentia por ela. Sentia-se como um filho apegado à mãe amada que lhe tenta explicar os mistérios do afecto, preparando-o para o amadurecimento.
Lá no íntimo, Marnahan alegava as razões verdadeiras que impediam-na, por um dever moral, de afastar-se afim de não comprometer o próprio pai.
No entanto, seu espírito sabia que nesta vida se preparara para não se comportar como outrora, como Melyah, fugindo dos próprios deveres para seguir os passos de Litane. Sua união com o mesmo Litane de ontem, Kalmark de hoje, deveria ocorrer com a permissão e o beneplácito da compreensão dos que lhe dirigiam os destinos aqui na Terra. Não seriam mais fugitivos nem escravos.
Esse era o principal compromisso de Marnahan e de Kalmark que, infelicitado por ver-se novamente na condição social inferior à dela, tudo teria de fazer para erguer-se à dignidade necessária exigida pelos costumes da época para desposá-la sem oposição.
No entanto, uma vez se vendo defrontado pela dificuldade de concretizar seu sonho, novamente valia-se dos mesmos antigos recursos, sugerindo a fuga e o afastamento da realidade, como se pudessem construir um mundo isolado dentro do mundo real.
Marnahan tentava recolocar as coisas onde deveriam estar e fazer aquilo que se haviam comprometido a fazer, antes de renascerem.
Vendo-se sem argumentos e sem capacidade para reflectir melhor, Kalmark calou-se emocionado, sem poder acreditar que todos os seus planos haviam sido frustrados por uma posição segura e firme da jovem que se declarava apaixonada, mas que, por agora, não poderia unir-se a ele, até que os meandros humanos lhes favorecessem o consórcio.
Não sabendo o que fazer, Kalmark deliberou ficar o maior tempo possível na companhia da jovem até que decidisse como agir.
Por sua vez, Nekhefre, refeito do impacto de todas as experiências, era um homem abatido e sem segurança no que deveria fazer.
Aproximou-se de Kimnut em quem desejava encontrar forças para se refazer. Esta, entretanto, estava igualmente prostrada, sem saber como agir diante de tantas confusões que a envolveram. Não criticava o marido, pois sabia que ele fizera o que fizera para tentar manter as aparências que a ela eram tão valiosas. No entanto, faltava-lhe energia ou maturidade para ajudá-lo.
Hatsena, sabendo que seria esposa de um homem rude, votara-lhe um desprezo quase desumano. Evitava-lhe a presença e, quando a isso era obrigada, não lhe dirigia a palavra nem demonstrava qualquer afectividade. Sentia-se traída justamente por aquele que lhe inspirava o sentimento de maior afeição.
Pelas ordens recebidas de Mudinar, deveria providenciar a venda de todos os bens e transferir-se para a capital, a serviço do rei. No entanto, depois de tudo o que passou, não sabia se não seria melhor fugir dali também.
Um turbilhão lhe alvoroçava os pensamentos. Enquanto isso, os espiões de Mudinar rondavam-lhe a casa e os dois homens que acompanharam a sua viagem testemunhavam como seus hóspedes todos os actos daquele drama difícil na vida das personagens.
Reunindo a família para uma conversa mais directa, Nekhefre expôs o problema de forma prática, nos seguintes termos:
— As ordens que vim até aqui para cumprir obrigam-me a vender tudo o que temos em Tebas e nos transferirmos para Amarna, onde ocupo um importante cargo junto ao próprio Faraó. No entanto, a nova capital é um covil perigoso onde se amontoam inúmeras serpentes em forma de gente. Por isso, depois de tudo o que pude passar lá e aqui, não sei se não seria melhor fugirmos todos para nos protegermos de tal bando de aves de rapina. Por isso, estamos aqui.
Hatsekenká fora convidado a participar da reunião. Todavia, permanecia quieto no seu canto, já que, por ordem de Khufu, o Espírito amigo que lhe apoiava a jornada terrena, não deveria intervir nas resoluções de todos os presentes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 10:41 am

Cada qual deveria estar livre para escolher o que fazer, já que isso fazia parte da experiência e do amadurecimento de todos.
Kimnut, mais uma vez, não sabia como opinar, notadamente por não desejar enxergar as coisas por outro lado que não fosse o da própria segurança. Segundo seu raciocínio estreito, seria melhor voltar para a importante situação junto ao faraó do que se tornarem, todos, fugitivos e perseguidos, apesar de levarem dinheiro para uma vida razoavelmente confortável.
Hatsena, por sua vez, convocada a dizer o que pensava, apesar de sua pouca idade, foi extremamente directa nas suas opiniões.
— Não importa para mim o que se faça. Se me obrigarem a um casamento que não aceito, sairei dele morta ou viúva.
Sem darem muita importância ao seu explosivo carácter, tido à conta de rebeldia juvenil, Marnahan foi convocada a pronunciar-se:
— Meu pai, não creio que devamos nos comportar como bandidos, fugindo de nossos deveres. Se é certo que Amon nos permitiu chegar até aqui, igualmente nos ajudará a enfrentarmos todos os obstáculos que nos estão reservados. Se suas ordens são as de vender tudo e regressar, devemos cumpri-las para que não sejamos vistos como pessoas insubmissas e ingratas, autorizando, aí sim, todo o tipo de perseguição.
Vendo-a falando assim, com seriedade, Hatsena replicou.
— Mas voltarmos para lá será entrarmos no caldeirão fervente, eu e você. E seu amor por Kalmark?— Ele continuará existindo, Hatsena, independentemente de qualquer coisa. No entanto, não estaremos dando motivo a qualquer perseguição maior do que aquela que os corações maldosos são capazes de engendrar.
A referência ao amor de Marnahan por Kalmark fez tremer o íntimo de Nekhefre, nos pruridos de indignação e nos preconceitos que continuavam a permear o seu carácter. Todavia, reconhecia-se em condição interiorizada para fazer valer sua autoridade e, por isso, preferiu calar qualquer manifestação contrária à referência ouvida.
Convocado a falar, Hatsek asseverou tratar-se de uma opção pessoal de todo aquele grupo e que ele não deveria intervir, lembrando, apenas, que todas as vezes que o ser humano cumpre seus deveres, apesar de ferir suas conveniências, estará adoptando o caminho que será menos doloroso para a. própria jornada futura. Informou ainda que, em breve, talvez daí a dois dias, cumprindo os deveres que a ele haviam sido atribuídos, regressaria para Amarna e se apresentaria a Mudinar para informar que havia terminado a tarefa de notificar a família do príncipe, consoante lhe havia sido ordenado.
Como percebia Nekhefre, apesar da manifestação do sacerdote, abstendo-se de opinar, a opinião da maioria era a de voltarem para Amarna, depois de terem-se livrado de todos os liames existentes em Tebas.
Via-se, então, premido por uma necessidade de vender todos os seus bens e propriedades para que, reunidos os valores, se transferisse para próximo de Akhenaton.
Isso levaria mais tempo do que imaginava, principalmente porque não pretendia perder recursos com uma venda apressada. No entanto, tinha obtido de Mudinar a autorização para ali permanecer pelo tempo necessário ao cumprimento de todas essas determinações.
Enquanto Nekhefre dava os primeiros passos para a realização dos negócios necessários, sempre sob a vigilância dos encarniçados espiões de Mudinar; Kalmark desfrutava da companhia doce de sua amada e era por ela envolvido por uma teia de carinho; Hatsena se perdia nos meandros de seus pensamentos cavilosos para encontrar um meio de livrar-se daquela situação; Kimnut dava seguimento aos preparativos da viagem para Amarna, sonhando com as belezas da corte e, enquanto Hatsek singrava o Nilo em regresso à cidade de Akhenaton, a expedição punitiva subia o mesmo rio sob o comando pessoal de Mudinar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 10:41 am

40 — Mudinar concretiza sua vingança
A expedição de Mudinar aportara em Tebas e se dirigira imediatamente às autoridades da cidade a fim de dar a conhecer o teor do decreto de Akhenaton e da plena autoridade de Mudinar para cumprir as ordens do rei.
Reverenciado pelo governante da antiga capital como se fosse a extensão do próprio faraó, o chefe da guarda planificou todas as medidas a fim de que a sua tarefa se concretizasse da maneira mais retumbante e chocante, não só para a família do príncipe, como igualmente para todos os que, iguais na conduta infiel, poderiam ser expostos aos mesmos riscos.
Providenciaram-se cópias do decreto para serem espalhadas por todos os cantos da cidade, fazendo referência ao motivo da prisão.
De igual sorte, ao comando de Mudinar, inúmeros funcionários se postariam nas vias públicas procedendo à leitura do documento ao longo de toda Tebas, como forma de fazer a notícia espalhar-se celeremente.
Tal divulgação, no entanto, deveria ocorrer somente após a prisão de todos, em face da necessidade de impedir que alguma coisa viesse a alertar Nekhefre de sua iminente detenção e provocasse sua fuga.
Além disso, não seria apenas uma prisão convencional. Junto com ela viriam os açoites públicos, para cujo espectáculo dantesco seriam convidados os moradores da cidade. Necessário, portanto, especificar-se o dia, o horário e o local para que a punição ocorresse à vista de todos.
Uma vez estipulados os detalhes mais ínfimos do projecto, Mudinar reuniu a quantidade de soldados necessária para que se pudesse impedir, no ato da prisão, quaisquer reacções de rebeldia e, assim, dirigiu-se para a residência do príncipe. Pretendia estar presente no momento mesmo da detenção a fim de que ela ocorresse sob seus olhos físicos e sem que nada lhe escapasse nesse momento maior de sua vitória sobre aquele a quem considerava seu inimigo, ainda que não declarado.
Chegaram à porta da casa e, sob as determinações de Mudinar, toda a vivenda foi cercada a fim de que se impedissem todas as possíveis tentativas de fuga. Ao barulho do contingente e das exclamações apavoradas dos transeuntes, muitos cidadãos, curiosos como todo o ser humano sabe ser, aproximaram-se a certa distância segura, com a finalidade de acompanharem os fatos, até então nunca observados naquela região da cidade.
A plebe desocupada, sempre à espreita de qualquer novidade que lhes ocupe o tempo vazio, deixava-se envolver pelos lances emocionantes de um grande contingente de soldados paramentados, liderados por um comandante tão importante e altivo, cujos adereços dourados brilhavam à luz do Sol egípcio causando ainda mais forte impressão.
Por esse motivo, a rua onde se localizava a casa da família, rapidamente, foi tomada por curiosos de todos os tipos que, com receio de alguma represália, guardavam distância segura para poderem observar os factos dentro de razoável anonimato ou com suficiente espaço para fugir sem riscos.
Convocado à porta pela representação militar, o administrador da vivenda de Nekhefre atendeu ao chamamento e, percebendo a algazarra que se postava sob suas vistas, entendeu de imediato tratar-se de coisa séria.
Imediatamente foi indagado sobre a permanência do príncipe em casa, ao que respondeu afirmativamente, apontando ao interlocutor que Nekhefre ainda não se havia ausentado para os compromissos do dia que começava.
Diante de tal informação, Mudinar desceu de sua biga e dirigiu-se ao empregado da casa, arbitrário e arrogante:
— Informe seu amo que ele deve preparar-se para receber uma delegação do faraó em sua casa e convoque toda a família para que se coloquem todos juntos a fim de escutarem a mensagem do soberano.
— Sim, meu senhor — respondeu o homem, humilde e assustado.
Num relance percebeu que a casa toda estava envolvida tanto pela curiosidade pública quanto pela força militar.
Dirigindo-se ao interior a passos largos, o serviçal de Nekhefre deu-lhe a conhecer a presença dos homens do faraó que desejavam falar a toda a família.
Sem se dar conta do que estava acontecendo, imaginou a princípio que se tratava de alguma comissão oficial que viera de Amarna para apresentar algum pedido de hospedagem em sua casa, ou ainda, um grupo que lhe viera trazer alguma homenagem ou presente do faraó, eis que desde a sua conversão pública a Aton demonstrara ser-lhe um fiel colaborador, relembrando-se das homenagens de que fora objecto naquele fatídico dia da audiência, quando fora levado em passeio público a céu aberto.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 7 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Dez 28, 2022 10:42 am

Imaginando que se tratasse, pois, de alguma cerimónia que lhe exaltaria a personalidade sempre desejosa de encómios, lisonjas e elogios, sem saber que era o próprio Mudinar que se encontrava à porta de sua casa, aguardando a entrada para cumprir a ordem punitiva, determinou que todos os de sua família comparecessem à ampla sala onde costumavam se reunir.
Era um dos mais sumptuosos locais da sua confortável residência e onde localizava todo o tipo de reunião social cuja finalidade principal era a de impressionar os convidados demonstrando-lhes tanto a sua importância quanto a sua riqueza. As paredes do aposento achavam-se decoradas com os baixos relevos que contavam, de maneira heróica e exagerada, como era costume do Egito, os feitos de seus recentes ancestrais. As pinturas bem elaboradas, em muitas das quais já se podia divisar o talento de Kalmark que ali exercitara muito de sua técnica que desabrochava, apontavam para o poderio e os bens acumulados por seus antepassados, de tal maneira que, além dos objectos de valor elevado que se ofereciam aos olhos dos visitantes cujo objectivo era atestar a sua condição principesca, as paredes falavam das qualidades de luta e fidelidade de todos os que lhe antecederam, graças às quais, haviam conquistado todos os seus louros e honrarias.
Tão logo toda a família se reunira ali, o que se procurou fazer com rapidez para que não se deixasse tão importante comissão aguardando desnecessariamente, Nekhefre determinou que os que a compunham pudessem entrar no recinto.
Por ser homem que não admitia ingerências estranhas à sua autoridade, não deixou que o administrador que havia mantido o primeiro contacto com os que chegavam se expressasse em seus temores, fundados na observação da quantidade de pessoas armadas que ali estacionavam. Tão logo ouviu tratar-se de uma delegação vinda de Amarna para falar-lhe, logo imaginou a situação segundo os seus próprios interesses, sem desejar maiores informações ou permitir que o serviçal o alertasse sobre a realidade efectiva do que observara.
Desse modo, sem ter sido admitido à sala de reuniões, postara-se Kalmark nas proximidades do salão, a fim de que pudesse, igualmente, escutar o que seria comunicado, sem ser visto pelos que visitavam a família.
Autorizado o ingresso, Mudinar e um grupo significativo de soldados deu entrada no recinto, encaminhados até o local da entrevista pelo funcionário de Nekhefre que, amedrontado, fazia as vezes de arauto.
Parado à entrada do ambiente e observando-lhe o carácter sumptuoso, Mudinar viu-se ainda mais lisonjeado por ter sido ali o lugar escolhido para o seu ato final na perseguição ao príncipe.
Antecedido por soldados, Mudinar aguardava do lado de fora do salão ser anunciado, o que o obrigou a revelar ao encarregado de sua apresentação a sua condição de enviado do faraó para o cumprimento de suas ordens pessoais.
Lá dentro, ansiosos e já com uma certa ponta de orgulho a lhe surgir pelo sorriso altivo que estampara no semblante, o abatido Nekhefre havia recobrado, parcialmente, o viço e a satisfação de ser quem sempre fora. Afinal, poucos egípcios poderiam dizer-se honrados pela delegação enviada pelo próprio faraó.
Em um período em que a sua imagem havia sido enxovalhada pela descoberta de seus actos de traição e seus gestos de mesquinha subserviência, aquela visita inesperada lhe surgia como uma revivescência de seu estado de grandeza. Imaginava-se impressionando a sua família por ter recebido uma tal deferência do rei.
Colocou-se no centro do vasto salão, ladeado pelos seus entes queridos que, indiferentes e curiosos, esperavam pela entrada da delegação.
Ao mesmo tempo em que isso se dava lá dentro, Nekhefre começou a escutar um alarido fora dos muros de sua casa. Algo como uma grande ovação vinda da multidão que se aglomerava à sua porta e envolvia a sua casa.
Sem saber do que se tratava, imaginou que seria o ajuntamento de curiosos que para lá foram atraídos pela importância da visita e que estavam empolgados com o relevo de tal ocorrência.
Não sabia ele que, por ordem de Mudinar, tão logo entrassem na casa para prenderem Nekhefre, lá fora fosse o primeiro local a se publicar os motivos de tal visita. Assim, o oficial que ficara no exterior com as funções de divulgar a ordem de prisão e seus motivos, lera em altos brados o conteúdo do documento que, por óbvios motivos, não descia a detalhes, mas fazia realçar a conduta indigna do príncipe e a determinação da prisão de toda a sua família e o confisco de seus bens.
Ao ouvir as ordens lidas, a malta ali reunida, sempre ávida por emoções e novidades, exultou, jubilosa, aplaudindo e dando vivas à figura do rei que derrubava de seu pedestal de riqueza mais um daqueles que eram favorecidos pela sorte, em contraposição aos que, na rua, nada tinham para comer.
Uma das maiores alegrias do populacho, sempre esquecido pelos poderosos, é vê-los perderem os privilégios e descerem ao pó das ruas compartilhando com eles de suas necessidades cruciais e agoniantes.
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Por isso, ao saberem que Nekhefre seria preso e confiscados todos os seus bens, a explosão de alegria e aplausos encheu o ar de macabra demonstração de felicidade, própria do despeito e da sanha de vingança do espírito medíocre, condição de muitos seres humanos.
Lá dentro, entretanto, tais ovações jubilosas eram interpretadas por Nekhefre como exaltação à sua pessoa, homenageada pelo faraó.
Era esse o seu estado de espírito agora, mais orgulhoso, esquecido dos ensinamentos que o espírito de Khufu lhe havia ministrado alguns dias antes, dos conselhos elevados para que guardasse confiança, serenidade e humildade em todos os lances difíceis por que iria passar.
Todavia, a sua altivez teve curta duração. Enquanto seu pensamento viajava pelos tortuosos caminhos das honrarias humanas, seus olhos viram entrar pela sumptuosa sala a figura repugnante de Mudinar, acompanhado de cerca de dez soldados.
Um calafrio percorreu-lhe a espinha até a base do cérebro e, quase que imediatamente, seu corpo começou a apresentar um suor gelado.
Ninguém ali, até aquele momento, sabia quem era aquele homem que não declarara o seu nome justamente para preservar a surpresa até o fim.
Caminhando com um sorriso de desdém, seus olhos percorriam todas as paredes do aposento, como que a confirmar os informes já observados antes de ingressar no recinto, fazendo Mudinar saborear aquele momento como uma serpente apreciando os movimentos de agonia da própria presa, antes de devorá-la.
Adiantando-se a ele, pretendendo parecer amistoso e cordial, Nekhefre deu dois passos e exclamou:
— Nobre Mudinar, enviado de Akhenaton, possa ser inesquecível para esta casa a sua visita neste dia — disse profeticamente o príncipe.
— Nobre príncipe Nekhefre — respondeu o visitante — pode estar certo de que isso o será.
— Por favor, aproxime-se e partilhe connosco estas acomodações tão modestas para receberem personalidade tão importante.
Parecendo não lhe fazer caso ao convite reverente e lisonjeiro, Mudinar desanuviou o semblante em um sorriso de satisfação, dando a entender ao seu anfitrião de que aceitara tais exortações com gosto. No entanto, ao invés de se aproximar dos móveis apontados por Nekhefre, Mudinar dirigiu-se às paredes que ornamentavam aquele ambiente bem como às obras de estatuária de elevado padrão artístico que emprestavam sumptuosidade ao local e afirmou:
— Poucas vezes, longe do palácio do rei, pude ver tantas belezas como estas. Estes entalhes na parede relatam, pelo que presumo, a história de sua família... — afirmou o visitante, como que perguntando.
— Sim, meu senhor. Representam a saga lutadora daqueles valorosos tebanos que ajudaram nossos reis a libertarem o Egito da dominação estrangeira, dentre os quais, meus antepassados se inseriram.
— Ah, sim, muito bem.
Observado por todos naquela sala, a sua presença pesava mais do que desejavam.
Kimnut observava curiosa, vendo aquele importante homem que era sempre mencionado pelo seu marido.
Marnahan visualizava-lhe os modos altivos e orgulhosos, percebendo em seu semblante o tanto de ironia de que se utilizava para responder às palavras de seu pai, que se esforçava por ser agradável.
Hatsena, por sua vez, tremia no mais fundo de sua alma, nos seus quase 17 anos, sem saber se odiava aquele homem que pretendia desposá-la juntamente com sua irmã, se lhe desejava a morte ou se gostaria mesmo de fugir de sua presença, amedrontada. Estava petrificada no lugar, sem reacção nem coragem.
Kalmark, oculto pela situação privilegiada onde se posicionava, ouvia sem ser visto e, agora, prendia a própria respiração para não ser notado ali, por aquele que havia ludibriado e que, a esta altura, sem que o rapaz o soubesse, já se inteirara de sua fuga.
Mudinar fazia suspense, enquanto que o barulho lá fora indicava que as pessoas já estavam sendo informadas da desgraça que se abatera sobre aquela casa.
— É uma pena que tal trajectória gloriosa de seus ancestrais, nobre príncipe, venha a ser maculada pela conduta de um seu descendente, que possuía tudo para erguer-se mais do que eles próprios, mas que preferiu resvalar pelos caminhos torpes da traição — afirmou friamente o Chefe da Guarda Real, fixando o seu olhar no rosto de sua vítima.
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Sem entender o que se passava e o que havia mudado tão repentinamente na conduta daquele homem, Nekhefre, estarrecido, perguntou-lhe:
— Mas como assim... não entendo tais referências insultuosas sem que eu tenha feito algo que pudesse desonrar a memória de meus ancestrais.
— Lamento informá-lo, ou melhor, informar a todos vocês que, por ordem pessoal do próprio faraó, O Grande Akhenaton, a partir desta data foram destituídos de todos os títulos e regalias pessoais por terem sido considerados culpados de alta traição.
— O quê? — explodiu Nekhefre indignado. — Perante o próprio rei me coloquei de acordo com as suas novas construções religiosas. Num mesmo dia repudiei os velhos deuses de meus pais, publicamente, ao mesmo tempo em que tive de renunciar à pessoa do sacerdote que me acompanhava. Aceitei manter-me junto ao rei, ocupando um cargo para o qual fora honrosamente nomeado, ofereci uma de minhas filhas para confirmar a aliança entre nós e me vi compelido a entregar as duas para que fossem o selo de meu devotamento e, agora, vem contra mim e contra todos nós esta acusação?
Sua voz se deixava envolver pela indignação e, por isso, tremia sem entender.
— No entanto, Nekhefre, todas estas coisas que você alega ter feito, não puderam impedir que a sua traição se estabelecesse com toda a certeza que o faraó pôde constatar. Não era aqui que residia, a seu convite, o malfadado sacerdote, quando o próprio faraó decretara o fechamento dos templos de Amon-Rá?
E mesmo antes de ter sido decretado tal fechamento, quando Aton já imperava como crença única no coração dos egípcios, não era você quem se dirigia ao templo de Amon-Rá para entender-se com o seu sacerdote, desrespeitando todas as determinações oficiais? Os ritos aos quais você e sua família se submetiam em nome da velha fé, destituída de validade e proibida pelo próprio rei não deveriam ter sido evitados por todos? No entanto, mantinham-se fiéis a Amon, ainda que, por interesse, cortejassem as vantagens que Aton lhes permitia.
As afirmativas de Mudinar eram incontestáveis. Realmente, não apenas ele tivera essa dupla conduta. Todos os egípcios se dedicavam aos velhos deuses, à sobra dos quais ofereciam suas preces, fingindo que, na luz do dia, aceitavam as imposições de fé por decreto, como o estava fazendo o novo rei.
No entanto, apesar de muitos fazerem o mesmo, isso não atenuava a sua conduta infiel, notadamente na condição importante de príncipe. Sem ter o que responder, mantinha-se Nekhefre silencioso e arrasado.
Firmara-se sobre os pés para não dar um sinal de fraqueza. Khufu e outros Espíritos amigos os amparavam naquele doloroso transe para seus destinos.
— É triste que tais coisas tenham que ser ditas diante dos seus antepassados, cuja memória acaba aviltada pela sua conduta — disse fingidamente o visitante, como que a piorar as impressões daquela hora.
— No entanto, por outro lado é bom que sejam eles testemunhas de tais delitos para que possam julgá-lo por si mesmos, retirando toda a protecção que, porventura poderiam oferecer-lhe, como seu sucessor. Daqui todos partirão para a prisão da cidade, sem excepção.
Vendo a disposição intransigente das ordens, Nekhefre tomou a palavra para proteger as filhas.
— Mas se o culpado sou eu, minha família nada tem a pagar por meus delitos. Deixe-as livres para que possam viver sem a paz que tinham antes, mas, ao menos, com a liberdade de poderem lastimar meus actos sob a luz do Sol.— As ordens são muito claras. Além do mais, todos aqui participaram do culto proibido e, por isso, são igualmente culpados, ainda que em grau inferior ao do responsável por esta odiosa traição. Seguirão presos para o calabouço da cidade.
Kimnut estava arrasada e parecia despertar de um longo sono, caindo em si e prorrompendo em lágrimas sofridas e medrosas.
Hatsena agarrara-se à irmã, nela procurando refúgio para seus receios mais profundos acerca da incerteza do futuro.
Marnahan, em melhor sintonia com os Espíritos amigos que ali estavam, mantinha-se em estado de oração silenciosa, o que a protegia contra o desequilíbrio feroz que rondava o ambiente.
— Mas isso não é tudo — disse Mudinar, cruel. — Será aplicada ao traidor a punição física para servir de exemplo a todos os desta cidade, em local público já escolhido, para que tal comportamento jamais se repita. Apesar de terem sido todos considerados traidores e, por isso, passíveis da punição do açoitamento, a magnanimidade do Grande Akhenaton a manteve apenas para o mais reprochável dentre todos.
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