LUZ ESPÍRITA
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 2 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 12:51 pm

Sobre todos eles pairava a protecção de Khufu e de uma vasta equipa de Espíritos amigos que buscava encaminhá-los diante do roteiro das decisões. Todos poderiam senti-los se o desejassem. No entanto, somente alguns deles estavam dispostos a aprofundarem-se o suficiente para entender as grandes riquezas que se acham guardadas no íntimo de nosso próprio ser, no intercâmbio com a harmonia do Universo representada pelos tutores invisíveis de todos nós.
Aquele que mantém os olhos fechados por medo da escuridão, não vê a vela acesa à sua frente, que já o está livrando da noite. Bastar-Ihe-ia abri-los...
Assim é a maioria dos homens... cegos por opção!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 12:51 pm

9 — A caminho do palácio
Chegara, enfim, o dia tão esperado pelos viajantes, no qual se daria o encontro entre Nekhefre e Akhenaton.
Já se havia decorrido mais de duas semanas entre a chegada a Amarna e o momento de serem levados à presença do rei, o que propiciara a Mudinar o tempo mais do que necessário para tomar todas as providências a fim de melhor envolver os visitantes na sua teia sórdida, enquanto a espera mais aumentava a ansiedade de Nekhefre que, acostumado a ter todos os seus desejos e caprichos atendidos na hora, tinha de aprender a se manter no aguardo do capricho dos outros, mais poderosos do que ele.
Hatsek seguia sereno, ainda que prevenido pelos Espíritos amigos de que iniciariam uma fase de dificuldades, para a qual seriam necessários muito equilíbrio, tolerância, calma e confiança na Soberana Força Criadora.
Notificados por um enviado do palácio, prepararam-se os dois homens para a cerimónia que iria ocorrer no dia seguinte, em pleno meio-dia, horário que Akhenaton considerava o mais adequado para que todos se relacionassem com Aton por seu intermédio, já que o disco solar se achava à vista, bem no centro do céu, demonstrando todo o seu poderio e esplendor.
Logo pela manhã, uma comitiva real veio até o local onde se encontrava Nekhefre e, rodeando-o de todos os privilégios principescos convidaram-no a dirigir-se ao palácio e ao templo solar, onde se realizaria a audiência pública com o faraó.
Ao apresentar-lhe o edito real, documento oficial do governo que assim deliberava sobre a vida dos cidadãos, o chefe da comitiva pronunciara o nome de Hatsekenká, igualmente incluído no papiro oficial e que, assim, não poderia escusar-se de comparecer, como havia pretendido fazer, quando fora solicitada a sua companhia, exactamente para não comprometer o amigo Nekhefre, por ser considerado um intruso à vista do rei. Agora, graças à astúcia de Mudinar, Hatsek se achava oficialmente autorizado a seguir ao lado do companheiro de viagem até as instalações sumptuosas e impressionantes do faraó monoteísta.
Aquela pompa impressionara agradavelmente a Nekhefre, acostumado sempre às posturas bajulatórias que tão bem-vindas eram ao seu espírito, que se acreditava melhor do que os outros. Seria muito honroso receber do faraó estas demonstrações de consideração e de importância, pelo que dirigiu-se a Hatsek, iniciando o rápido diálogo que antecedeu a sua partida rumo ao seu destino:
— Você viu, meu nobre amigo Hatsek, como fomos bem recebidos por aqui? Parece que o faraó sabe que pertenço a uma estirpe diferente da dos demais e que, por tudo que meus ancestrais e eu representamos no destino do Egipto, fizemos por merecer uma tal recepção. Não pensava em encontrar melhor acolhida. Aliás, tinha me preparado para outra coisa, muito pior do que tudo isto. Veja, guardas palacianos, trajados nobremente, bigas de transporte, cortejo oficial..., grandes progressos, não acha você?
— E isto tudo me causa mais apreensão, meu jovem príncipe - respondeu-lhe o sacerdote, com o olhar preocupado.
— Lá vem você, Hatsek, parecendo uma ave agourenta, vendo desgraça por todos os lados, imaginando sempre o pior — respondeu Nekhefre, querendo imprimir uma direcção mais alegre à conversa.
— Antes fosse só isso, meu amigo. Já se esqueceu do por quê fora convocado até aqui? Esqueceu-se de que lhe competirá renegar todo o seu passado de crença e de devoção diante de nosso rei?
— Claro que não, Hatsek, mas antes pensava que teria de fazer isso quase que sob as lanças dos soldados do faraó, premido pelo medo, mas vejo que agora tudo será mais fácil, afinal somos convidados especiais do rei. E depois, vou levar adiante o meu plano de tudo renegar por fora para nada mudar por dentro.
— Ocorre, Nekhefre, que agora o faraó o está conduzindo ostensivamente, à vista de toda a população da cidade, testemunha das honras que ele lhe concede, honras públicas e que o comprometem diante do faraó como um grande aliado. Além disso, se não estou enganado, pelo horário de nosso encontro, estaremos em uma cerimónia religiosa em homenagem a Aton, na qual uma grande massa humana de todos os lugares do reino participa e presencia. Será ali que se dará a sua abjuração da antiga fé.
Ao falar assim, o Nekhefre tolo e iludido pelas honrarias do mundo começava a cair de seu pedestal para dar lugar ao Nekhefre confuso, que abria os olhos para o momento muito mais grave do que imaginara. Através dos alertas de Hatsek, as coisas passavam a ganhar outro
sentido para seu espírito, que voltara a se preocupar com as consequências de tudo isso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 12:51 pm

Ante o silêncio tumular do amigo, o sacerdote continuou:— Se me permite lhe dar algum conselho, ainda que não me tenha solicitado, quero pedir-lhe que não se rebele contra nenhuma determinação de nosso faraó ou de seus funcionários, já que toda esta pompa, com certeza, não foi planejada por ele, em pessoa, mas deve ser organizada por alguém muito próximo ao rei e que está incumbido de levar a cabo toda esta cerimónia. Por pior que possa parecer a situação, mantenha-se calmo e sem demonstrar qualquer contrariedade, a mais leve que seja, uma vez que, se você se trair, as coisas vão ficar cada vez piores para seu futuro. Provavelmente, sejamos separados temporariamente, já que a astúcia dos que dirigem nosso governo em nome do grande rei não pretenderá ver você ladeado por um sacerdote adversário da nova fé, ao mesmo tempo em que desejarão saber qual é a minha ideia sobre toda esta nova criação religiosa oficial. Lembre-se: de seus lábios pode sair a sua absolvição ou a sua desdita.
O cortejo dava sinais de que estava pronto para seguir ao palácio.
A manhã já ia alta e, de acordo com as ordens secretas de Mudinar, os dois deveriam ser conduzidos até o palácio sob uma grande algazarra festiva, a fim de chamar a atenção de todos os moradores da cidade sagrada que, obviamente, acorreriam até o local da cerimónia, atraídos pela curiosidade decorrente daquela tão calorosa recepção.
Com isso, mais e mais pessoas se aglomerariam para assistirem aos rituais de Aton, preenchendo toda a estrutura externa do Templo Solar e causando maior impacto ao ato de Nekhefre.
Por isso, o condutor do cortejo tinha ordens secretas de esperar para iniciá-lo em um horário da manhã no qual os moradores já estivessem mais despertos, mais prontos a sair à rua e que, para maior curiosidade criar, o cortejo deveria serpentear toda a cidade a fim de que não chegassem ao palácio senão depois de todas as ruas principais de Amarna terem sido visitadas pela grande procissão oficial, cheia de tambores, flâmulas, cavalos e carros reluzentes, cobertos pelo ouro do Egipto Faraónico.
Isso tomou muito tempo, mas antes que o Sol se localizasse a pino no céu, todos estavam já dentro do palácio.
No entanto, as determinações de Mudinar tinham-se resultado muito efectivas, já que quanto mais transitava pelas ruas de Amarna, mais gente curiosa se acercava e passava a acompanhar o cortejo que, sabiam, terminaria dentro do palácio para as tradicionais cerimónias daquela hora.
Mais do que qualquer outra em semanas ou meses anteriores, aquela estava especialmente atraente aos olhos atentos, em face da importância dos convidados, que tudo faziam para esconderem a preocupação atrás de uma máscara de sorriso discreto.
Para Nekhefre, apesar de todos os avisos de Hatsek, aquilo ainda lhe soava agradavelmente ao espírito vaidoso e cheio de fraquezas, e tão longa fora a passeata cheia de homenagens que, ao chegarem ao seu destino, Nekhefre já tinha se esquecido de todos os conselhos de seu amigo e estava tomado de uma euforia e entusiasmo jamais sentida.
Hatsek seguia observando tudo e percebia a armadilha que se estava armando para apanhar as vítimas ali conduzidas garbosamente.
Parecia que estavam dando o melhor queijo por causa da importância dos ratos que iriam ser caçados, a fim de que acabassem presos nas grades douradas que os manteriam enjaulados por muito tempo.
Ao presenciar todas aquelas cerimónias de que eram objecto, Hatsek começou a entrever por detrás de tudo aquilo, com seus olhos argutos e a experiência madura de seu espírito, a presença de algum personagem muito astuto e que, por certo, não se limitaria a produzir uma pomposa acolhida. Tudo aquilo estava feito para levá-los a algum outro ponto, mais doloroso e cruel para todos.
Pensando nisso, Hatsek procurou isolar-se do burburinho da aclamação festiva e, inspirando-se nas orações com que se elevava a patamares mais altos no contacto com a Soberana Força do Universo, buscou, com o seu pensamento, o espírito de Khufu a quem recorria sempre que algum problema mais grave se apresentava.
Presentes sempre ao lado de seus tutelados, os amigos espirituais de todos os encarnados estão a postos nas horas cruciais e difíceis dos destinos daqueles que tomaram como seus discípulos para ajudá-los a enfrentarem as adversidades, cumprindo com as tarefas a que se comprometeram antes de reencarnar.
Isso porque não existe nenhum ser humano que venha à vida física, depois de experiências anteriores nas quais acabou fracassando, que não tenha se preparado para enfrentar os mesmos obstáculos e vencê-los definitivamente. Todo regresso ao mundo físico é precedido de uma preparação profunda e meticulosa que respeita, em primeiro lugar, a Misericórdia do Criador, que não dá fardo mais pesado do que as forças de quem o transportará.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 12:52 pm

Em segundo lugar, tal preparação leva em conta as necessidades do reencarnante, que precisará enfrentar determinados e específicos problemas para lapidar seu espírito fraco ou adormecido em determinadas áreas da experiência. Em terceiro lugar, a preparação indispensável visa fortificar a alma renascente através de cursos, lições, tratamentos magnéticos, etc., para que ela possa estar qualificada para superar todas as dificuldades, antes de nascer.
Tal avaliação ocorre sempre, mesmo para os casos em que a reencarnação seja imposta ao indivíduo como único recurso para a sua melhoria.
Nos casos em que se trate de Espírito com algum mérito evolutivo, ele é conduzido a participar do processo de modelagem da nova experiência física que deverá enfrentar, com a escolha de corpos mais ou menos resistentes, experiências mais ou menos dolorosas ou laboriosas, organismos mais ou menos saudáveis, famílias mais ou menos difíceis, etc.
No entanto, quando o Espírito não tem discernimento para escolher de acordo com as próprias necessidades, os Espíritos superiores por ele determinam qual o melhor estilo de vida a ser desenhado em sua jornada e, franqueando todos os tipos de ajuda ao Espírito renascente, encaminham-no para que possa passar pelas provas necessárias à sua modelagem pessoal.
De qualquer maneira, todos renascem com condições de superar as quedas, elevar-se sobre os degraus, saltar sobre os buracos, atravessar as correntezas que forem surgindo em sua trajectória.
E quando tudo possa estar nebuloso, confuso, de difícil compreensão ao encarnado, Deus lhe permite ter acesso pessoal aos que lhe estão auxiliando através da intuição, aos amigos que, no invisível, nos mantêm com os pensamentos voltados para o poder de vencer a si mesmo que cada um possui.
Por meio da oração sincera e do recolhimento íntimo, cada encarnado pode entrar em sintonia com esses amigos vigilantes e presentes em nossas vidas e que, longe de resolverem por nós os problemas que nos cabem solucionar, buscam infundir-nos boas ideias, pensamentos mais claros e estado de ânimo propício ao caminhar correto, dentro das necessidades evolutivas de cada um.
Todas as pessoas, sem dependerem de nenhum intermediário, nem de qualquer sensitivo especialmente dotado, podem ser seus próprios oráculos, através da elevação interior, da confiança na bondade de Deus, na oração simples e sincera, que dispensa todas as fórmulas ritualísticas ou artificiosas, para transformar-se, tão somente, na conversa franca entre filho confuso e Pai compreensivo e sábio.
Por isso, fazendo o silêncio interior, o ser reencarnado está abrindo condições para escutar as vibrações subtis que lhe tocam a alma e que, em forma de intuições lhe aconselham sempre o melhor caminho, dentro da harmonia das leis do Universo.
Quando ligados ao mal, quando habituados a praticar o que não é adequado, nossa sintonia sofre a interferência de inteligências igualmente votadas a desestruturar nossos passos, confundir nossas mentes, alvoroçar nossos sentimentos. A grande gama de Espíritos sem lucidez ou sabedoria busca a manutenção de seus interesse mesquinhos e suas sensações inferiores, aproximando-se dos encarnados que lhes permitam a companhia por terem as mesmas sensações ou tendências e, nestes casos, a intuição será sempre negativa.
Todavia, basta ao encarnado ligar-se a Deus, repudiando o mal, contrito e humildemente, arrependido e autêntico, para que novas ligações magnéticas se estabeleçam com planos mais elevados e com Espíritos mais nobres que saberão propiciar-lhe as intuições necessárias para superar a si mesmo e encontrar um caminho.
Era isso que Hatsek estava fazendo.
— Aqui estou, filho amado — disse Khufu, projectando-se na acústica mais clara de seu pupilo espiritual — atendendo ao teu chamado e fortalecendo tua força interior. Não temos muito tempo nem condições para maiores esclarecimentos. Posso te dizer, contudo, que tuas percepções estão corretas. Há uma concentração de forças nocivas em um dos mais próximos serviçais do rei que, por estar cheio de compromissos administrativos, nele deposita integral confiança e confere poderes muito amplos. É irmão enfermo que não se deu conta do mal que pode estar ajuntando para sua própria colheita. Longe de temê-lo, apiada-te dele, eis que ninguém é mais poderoso que Aquele que nos criou.
Lembra-te, Hatsek, do simbolismo de nossa crença: o mesmo Sol que ilumina e nos beneficia todos os dias, queima aqueles que ficam expostos aos seus raios sem saberem se proteger adequadamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 12:52 pm

Aquela resposta silenciosa, em sua acústica interior, aliviou-lhe as apreensões e, agradecido, o sacerdote pôde deixar-se conduzir ao interior do palácio, a fim de aguardar o momento mais solene daquele dia, na apresentação de ambos diante das autoridades mais elevadas do Egipto.
Como já se falou, o povo ali se concentrava mais do que nos dias anteriores, preparando-se para o grande espectáculo que envolveria o faraó, os convidados e todas as forças do destino que se orquestravam para que, naquele momento, os projectos realizados no mundo espiritual, antes do renascimento, pudessem ter o seu curso na direcção da construção de almas mais nobres, condenadas a durar muito mais do que as antigas construções sumptuosas de pedra com as quais os antigos dignitários egípcios pretendiam tornar-se imortais e indestrutíveis.
Perceberiam que, na suavidade e na nobreza de suas almas, os homens são mais duráveis do que a mais dura das pedras e que, com o passar dos milénios, ao invés de se degradarem, mais se embelezam e crescem em esplendor desde que entendam que, nas questões exteriores da vida humana, as mais sólidas posições, as mais firmes propriedades, as mais resistentes castas sociais, todas as coisas estão condenadas a ruir, transformando-se em areia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 8:53 pm

10 — A recepção de Nekhefre
Diante do rei, desfilavam delegações de diversos lugares, tanto do interior do país quanto de países vizinhos, interessados em manter boas relações com o poderoso estado egípcio.
Ao mesmo tempo, entre as diversas cerimónias nas quais o faraó se colocava em evidência, sempre ao lado de sua esposa, reverenciada tanto por sua condição de mulher do rei quanto pela de sua beleza especial e diferente, havia uma destinada a entrevistas públicas que se realizava na sala do trono e que era presenciada por todos os mais elevados funcionários e autoridades do reino.
Salão de vastas proporções, repleto de maciças colunas esculpidas e encimadas por capitéis arredondados que sustentavam os grandes blocos de granito que modelavam o tecto, o trono era uma peça singular de riqueza e bom gosto, combinando madeira, ouro e pedras numa elegia à grandeza do seu ocupante.
Ao chegarem às dependências do palácio real, Nekhefre foi separado de Hatsek e encaminhado para dependências reservadas onde poderia trocar suas vestes e aliviar o calor que, àquela altura, já lhe causava acentuado incómodo.
Hatsek fora igualmente conduzido para outros aposentos específicos, algo mais distanciados dos de Nekhefre e sem a mesma sumptuosidade, mas, ainda assim, dotados de conforto para que o seu ocupante fosse beneficiado com um confortável momento de relaxamento.
Mudinar preparava-se para as ocorrências daquele dia.
Akhenaton encontrava-se em seus aposentos reais, preparando-se para continuar a encenar aquele papel tão importante na crença religiosa por ele imposta e que exigia dele a condição de intermediário entre Deus e os homens.
Ao chegar o momento específico do início das celebrações, marcado pela posição solar definida por uma sombra produzida por estrutura de pedra construída especificamente para assim determinar a posição do meio-dia, o faraó e sua esposa surgem em uma ampla varanda na qual se acham esculpidas as marcas representativas do deus Aton, a saber, o disco solar e os seus raios que chegam até as cabeças do rei e da rainha e terminam por pequeninas mãos como a entregar a eles as dádivas do Alto a fim de que fossem repassadas aos demais mortais cujos destinos dirigiam.
A euforia popular demonstrou o quanto havia de ansiedade no íntimo de cada um dos que ali se achavam, eis que as manifestações bulhentas e a algazarra denunciavam o alvoroço interior de todos, na expectativa de revelações miraculosas ou de espectáculos intensos que, tão oportunamente, poderiam tirá-los da monotonia que se instalava no culto de um só e único deus.
Do alto de sua varanda, o faraó conduzia todo o ritual, acompanhado de auxiliares e de inúmeros funcionários que se incumbiam de indicar a todos os que assistiam quais eram as fases do culto e o que o rei iria fazer, em cada um desses momentos.
Através de sinais sonoros produzidos por instrumentos típicos, todos eram convocados a escutar, a aplaudir, a silenciar, a reverenciar, a aproximar-se do alpendre e, o momento mais esperado, a passar sob a varanda de onde o rei e sua esposa atiravam presentes, moedas, dádivas, jóias, sempre muito disputadas por todos os que para ali se dirigiam.
Naquele dia, no entanto, Mudinar estabelecera pequena alteração no ritual.
Antes de fazer com que o faraó se apresentasse ao povo, o chefe da guarda fez correr aos ouvidos dos presentes, através de seus diversos agentes misturados ao público, a notícia de que um príncipe viera de longe para trazer ao faraó a sua confirmação e o seu apoio incondicional à nova crença nacional.
Informou tratar-se de Nekhefre de Tebas e que, em determinada altura do ritual, todos agentes infiltrados deveriam incentivar o público a gritar-lhe o nome perante o próprio faraó, no momento adequado às homenagens públicas.
Colocado em um local estratégico que permitiria fácil acesso tanto ao interior do palácio quanto à varanda real, Nekhefre assistia aos preparativos sumptuosos algo preocupado e inseguro diante da ausência de seu amigo Hatsek.
Uma vez chegada a sombra produzida pela pedra ao ponto adequado que indicava o início da cerimónia, todo o cortejo foi conduzido pelos funcionários até o local especialmente preparado.
Colocado o faraó em sua posição apropriada para as celebrações, o povo dirigia toda a sua atenção aos seus gestos e às suas palavras. A varanda, pela própria estrutura e planeamento com que fora edificada, causava um forte impacto em todos os que, naquele momento, pudessem observar o faraó. Isso, porque o disco solar esculpido em baixo relevo na parede dos fundos da varanda era revestido de grossa camada de ouro polido e, no horário do início das celebrações, em face de sua peculiar posição, recebia a luz directa do sol e parecia converter-se em um sol a brilhar dentro da pedra onde estava esculpido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 8:54 pm

Ao mesmo tempo, recebendo a luz solar intensa do meio-dia, os raios reflectidos no disco de ouro eram direccionados para a cabeça de Akhenaton, situado mais abaixo e trazendo em sua cabeça as insígnias reais e as coroas do Egipto, igualmente douradas, a reluzir e criar ao redor de sua figura um halo da cor do ouro vivo, impressionando a todos os que, de qualquer ângulo da praça podiam visualizar a sua pessoa. À medida em que o Sol caminhava no céu, Akhenaton ia igualmente caminhando alguns passos para a frente para que continuasse pelo maior tempo possível debaixo dos raios luminosos reflectidos no disco solar.
Era o momento supremo do intercâmbio divino e público entre o faraó e o único deus do Egipto e de todos os países por ele controlados.
Nessa hora, tocado pela fantástica atmosfera, o faraó se permitia envolver pela inspiração e se punha a fazer certas revelações divinatórias que, segundo a sua interpretação, representavam a vontade de Aton.
Passado esse momento de êxtase, o rei e a rainha se punham a escutar a nomeação das diversas caravanas e representações oficiais que até ali vinham prostrar-se em homenagem ao faraó e a seu deus.
Depois de terem sido apresentados, todos os dignitários eram conduzidos ao salão real, no qual estariam mais próximos do próprio faraó.
O povo assistia a tudo isso, entre o enlevo e o encantamento, sempre impressionável pelos rituais sumptuosos e cheios de mistérios, notadamente pelos efeitos de luminosidade que Akhenaton conseguia obter nos momentos do reflexo do Sol sobre o disco dourado na parede.
Tais efeitos faziam o povo acreditar, sinceramente, que o rei era ungido pelo deus que reverenciava com exclusividade e que de suas mãos viriam as bênçãos que todos precisavam ou esperavam receber.
Depois da apresentação das delegações visitantes, o rei se dirigia à beirada da varanda, onde se debruçava e por onde passavam alguns dos súbditos escolhidos pelas autoridades mais próximas para receberem homenagens especiais e que tinham seus nomes gritados ao povo por uma espécie de arauto real, sendo imediatamente saudados pela massa embevecida.
Na ante-sala, Nekhefre se via maravilhado e impressionado com tal esplendor que não presenciara jamais em nenhum outro culto religioso ou cerimónia a que fora admitido nos diversos templos onde fora buscar solução para seus problemas.
A cada pessoa cujo nome era declinado pelo arauto, uma ovação se seguia e uma chuva de pequenos pedaços de tecido coloridos era atirada do alto dos muros que circundavam aquela região do templo.
Quando tudo estava se encaminhando para o final e uma vez que não havia mais nenhum nome a ser declinado pelo arauto, os agentes infiltrados de Mudinar, sorrateiramente espalhados pela multidão, começaram a gritar o nome de Nekhefre. Imediatamente imitados pelos que estavam ao redor, logo o nome começou a ser ouvido com maior intensidade, ampliando-se a referência à sua pessoa para, momentos depois, todo o amplo local da cerimónia entoar a mesma menção em um uníssono de impressionar e fazer tremer o íntimo do mais experimentado homem público.
Certamente, Nekhefre não estava entendendo nada daquilo. No entanto, era o seu nome que todos estavam gritando. Jamais se achara tão popular e conhecido em região tão distante de sua própria casa.
Aquela demonstração de popularidade passou a incomodá-lo a ponto de não saber como agir e desejar sair dali correndo por qualquer porta que lhe permitisse fugir.
Diante de tal ovação pública, o faraó, que se preparava para se dirigir novamente ao local anterior, mais para o interior da varanda, deteve o gesto e regressou ao parapeito como a esperar que o povo silenciasse.
E todos continuavam a gritar:
— Príncipe Nekhefre..., príncipe Nekhefre..., príncipe Nekhefre...
Nesse momento, Mudinar surgiu ao seu lado, para segredar-lhe algo, já que o próprio faraó não sabia que aquilo se tratava de mais uma parte do astucioso plano de seu Chefe de Guarda.
— Grande Rei, Luz do Mundo, as determinações de vossa sabedoria produziram este efeito intenso no povo que, desde a manhã de hoje, pôde presenciar a nobre caravana conduzindo o príncipe Nekhefre a este palácio. Por isso, acredito, todos desejam vê-lo perante o símbolo do Sol radioso, coisa que, aliás, será muito positiva para os planos de mantê-lo compromissado com nossa causa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 8:54 pm

— É verdade, Mudinar. Todavia, não desejo ter Nekhefre aqui ao meu lado. Providencie para que passe diante da varanda real, sobre uma biga de guerra para que possa ser visto por todos os que aqui lhe indicam o nome, mas que esteja sob a figura do representante de Aton.
— Sábias determinações, ó Grande Rei. Assim o será. Dirigindo-se para os compartimentos próximos, onde Nekhefre se achava aturdido diante de tal surpresa, ordenou aos seus soldados que acompanhassem o visitante convidado até a biga que se achava colocada nas proximidades e que conduzissem os cavalos, lentamente, por debaixo da varanda real, deixando que a mesma parasse alguns instantes sob o faraó a fim de que Nekhefre pudesse reverenciar o único representante de Aton.
Algo distinguido em sua personalidade vaidosa, Nekhefre se deixou conduzir como alguém que não tem como escolher coisa diferente e, sem perceber como, em breves instantes estava acomodado dentro de uma biga dourada, conduzida por um escravo forte e que contrastava com a tez clara do visitante.
Sob os aplausos do público que, agora, não mais precisava de qualquer indução dos agentes de Mudinar, Nekhefre desfilou no meio da massa e, logo depois, foi conduzido sob a varanda de Akhenaton que se postava altivo em seu estilo próprio e esguio, permitindo assim que o príncipe visitante pudesse vê-lo com clareza e proximidade, para que soubesse que estava sendo directamente observado pelo rei da nação.
Despreparado para situações desse tipo, Nekhefre não sabia como se comportar e, ao ser conduzido sob a presença de Akhenaton, viu-se avassalado pela grandeza daquele momento e, outra coisa não fez senão curvar-se solenemente diante do rei, num gesto público que fora interpretado como incondicional apoio e aceitação pública de suas ideias.
Ali começava a morder todas as iscas que Mudinar tinha colocado em seu caminho. Fora conduzido a uma situação extrema, na qual não poderia ter opções outras que não as de agir como os outros determinassem a sua conduta. Sua mente confusa já há muito tinha perdido o senso da avaliação das coisas, diante da empolgação causada pela cerimónia em si, e mais ainda, agora, quando era elevado a tão efusiva consideração.
Não poderia ferir a generosidade daquele que o recebia e permitia tais manifestações públicas de consideração.
Nem sequer pensara em suas antigas crenças e que, com aquele gesto, as estaria repudiando diante de todos ou, pelo menos, assim seria ele interpretado.
Pensava, apenas que, dentro de mais alguns dias voltaria a Tebas, para a companhia dos seus e para as antigas práticas religiosas.
Então, que mal haveria em aproveitar esses presentes inesperados e sempre tão bem-vindos a um espírito cheio de fraquezas e de quedas perante as coisas que brilham e que causam a ilusão de grandezas?
Sim, aproveitaria ao máximo esses favores reais e se embriagaria com as honrarias que conquistaria pelo preço singelo de uma mentira bem disfarçada. Valia a pena receber tanto por um pagamento tão insignificante. Algumas reverências e palavras de fidelidade, em troca de sossego, homenagens, grandezas e privilégios tão a seu gosto.
Terminada a cerimónia pública com a entrega dos diversos presentes e riquezas por parte do rei e da rainha aos que se encontrassem mais próximos daquele lugar cerimonial, foram eles conduzidos ao interior do palácio/templo, para a continuidade das actividades daquele dia de audiências públicas. Lá já estavam todos os dignitários que haviam sido vistos na primeira parte dos procedimentos religiosos e, em lugar especial, o próprio Nekhefre, ainda não refeito das emoções embriagadoras para a sua fraqueza e invigilância.
Postado à distância, Hatsek observava as ocorrências algo preocupado, esperando que o seu amigo se lembrasse dos conselhos que lhe havia dado por ocasião da chegada a Amarna, quando esperavam ser recebidos pelo faraó.
Tudo aquilo estava armado bem demais para ser apenas um momento de homenagens, pensava o sacerdote, acostumado às pompas que se prestavam aos antigos deuses, mas igualmente impressionado com a riqueza e os detalhes do cerimonial presente que, longe de romperem com as antigas tradições dos velhos deuses, ampliavam-na com maior requinte, apenas privilegiando apenas à divindade exclusiva de Aton.
O que era diferente, no entanto, era o fato de ser, o faraó, o maior e único sacerdote admitido no culto, o que representava uma inovação significativa e que, de uma certa forma, beneficiava a pureza do acto, sem admitir maiores intermediários que, por sua vez, poderiam valer-se disso para deturpar o ministério sagrado, permitindo que interesses subalternos se imiscuíssem nas coisas religiosas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 8:54 pm

Com isso, conseguia-se fugir da venalidade antiga, fonte de corrupção e de impureza que contaminava as fontes da divina verdade.
Todavia, corria-se o risco de se cair num outro extremo, a saber, o de ser o rei manipulado facilmente por alguém muito astuto e que, de acordo com as observações de Hatsek, ali não deveria faltar.
O sacerdote de Amon-Rá fora igualmente trazido ao recinto, sem que, contudo, fosse colocado junto ao amigo que, pelos planos de Mudinar, precisaria ficar muito afastado para não ser por ele influenciado.
A sessão do reino iria ter início e todos os convidados curvaram-se reverentes, prostrando-se diante da passagem do representante da divindade na Terra.
Ali todos poderiam observar a figura esguia, diferente e algo misteriosa que aquele rei representava, para certificarem-se de que, se nada de novo tivesse realizado nas terras egípcias, a sua figura física, por si só, já seria uma novidade digna de admiração nos quatro cantos do reino.
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11 — A cerimónia na sala do trono
Enfileirados em extensa área da sala do trono, todos os representantes estrangeiros se postavam no aguardo da sua vez para se apresentarem diante do faraó para a apresentação das homenagens habituais e dos presentes com os quais pretendiam agradar e atrair a boa vontade do rei egípcio.
Para cada delegação havia um espaço próprio e um encarregado do reino, funcionário do faraó, que se responsabilizava pela sua condução até a presença da autoridade maior que trocava algumas frases de agradecimento e demonstrava o beneplácito de sua aceitação diante das ofertas recebidas.
Ali, na fila, em ponto estratégico e entre duas grandes delegações importantes, fora colocado Nekhefre que, lentamente, ia caminhando deslumbrado até a presença daquele que seria o exclusivo representante de Aton.
O ambiente era revestido de uma tensão natural, uma vez que a cerimónia pomposa impunha essa atmosfera e propiciava em todos uma ansiedade angustiante, quase intimidatória, avassalando os mais corajosos diante do luxo, do poderio e da representação da divindade, igualmente esculpida na forma do disco solar com os braços terminando em pequenas mãos, espalhada por todas as paredes.
Muitos dos delegados, quando se apresentavam diante do faraó, não conseguiam sequer articular uma palavra, embasbacados diante do nervoso e da situação de adoração que se apresentava naquele clímax, ocasião em que o mesmo funcionário do reino tinha de traduzir as pretensões e as homenagens daquele grupo, à falta de outro representante que o fizesse e para que se evitasse a constrangedora situação de deixar o rei esperando pela apresentação que não vinha.
Mudinar, atento a tudo, se colocava à direita do faraó, um passo atrás do trono real, tendo ao seu redor um número suficiente de funcionários que poderiam ser accionados para solucionar quaisquer problemas imediatos, escribas para registro das ordens ou decretos ali proferidos pelo rei, carregadores que se incumbiam de recolher as riquezas apresentadas e levá-las ao tesouro real, contadores reais que registravam todos os presentes e seus valores aproximados, fazendo longos relatórios.
Sempre que alguma dúvida se apresentava ao soberano, era a Mudinar que ele se dirigia e, rapidamente, dele obtinha as informações ou esclarecimentos necessários para entender melhor a questão sob sua observação.
Lentamente, Nekhefre se ia aproximando do trono do rei e, enquanto isso, sua pressão sanguínea ia se alterando, a pulsação aumentava, o suor começava a brotar de sua pele pouco acostumada a cerimónias de tal envergadura. O que ocorreria quando estivesse diante de Akhenaton? — era o seu pensamento. O que iria dizer? Como dirigir-se ao faraó? Como responder-lhe? Nada havia trazido para oferecer como tributo de sua homenagem. Teria isso sido um erro de sua parte? Afinal, era um convidado, não era um visitante...
Sua mente esfervilhava entre todas as hipóteses quando, repentinamente, ouviu uma voz firme e grave que, em altos brados, pronunciava:
— O nobre príncipe Nekhefre Segenenre, da cidade de Tebas.
O silêncio forte tomou conta do recinto, já que todas as demais delegações já se haviam admirado da presença solitária daquele jovem, desacompanhado de séquito, de oferendas e de quaisquer atavios, mas que era ali colocado como uma autoridade muito elevada, a ponto de ter sido distinguido com a exibição pública no carro militar momentos antes, por solicitação do próprio povo que assistia à cerimónia pública.
Não sabiam que Nekhefre era apenas um abastado comensal da coroa egípcia, que nada fizera para ostentar o título que, incansavelmente, repetiam os seus anfitriões e que faziam dele um príncipe sem principado, apenas por ter sucedido a linhagem de seus antecessores, estes sim, valentes lutadores pela libertação do reino da invasão estrangeira.
Por isso, Nekhefre se via obrigado a assumir uma postura de quem devia demonstrar intimidade com tais cerimónias para não cair no ridículo de se apresentar tremendo ou gaguejando diante de tão vasta plateia, o que ainda mais piorava a sua condição emocional.
Aproximando-se do faraó, como de hábito em todas as ocasiões em que se via diante do próprio soberano divino, prostrou-se respeitosamente, aguardando que alguma referência fosse feita e que o autorizasse a deixar a postura de submissão e reverência.
— Ergue-te, nobre príncipe, pois Aton te deseja entre aqueles que lhe são fiéis e que se encontram de pé, erectos, na defesa de suas tradições de único deus dos egípcios — falou Akhenaton, quebrando o silêncio tumular e deixando sua voz ecoar por todas as paredes.
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Fora essa a primeira vez que o rei falara mais do que alguns monossílabos durante toda aquela reunião.
Nekhefre, surpreso por tais referências, deveria dirigir-se ao soberano para colocar-se diante dele na condição esperada de fiel defensor da nova ordem religiosa.
Titubeante e desacostumado a uma rapidez de raciocínio que o momento exigia, buscava as palavras corretas para se fazer claro e agradável ao mesmo tempo.
— Nobre divindade — finalmente respondeu o convidado — somente a magnanimidade de vossa alma poderia ser capaz de ver neste súbdito a importância que não possuo e oferecer-me tão honrosa oportunidade de estar em vossa presença. Aqui estou pronto para obedecer, acima de minha própria vontade ou escolha.
A resposta, dificilmente elaborada por seu raciocínio confundido por tudo aquilo que tinha visto até então, bem como pelo tratamento que vinha recebendo, visava enaltecer a grandeza do rei e, ao mesmo tempo, não se manifestar efectivamente sobre a questão religiosa que já havia sido mencionada pelo faraó, dando-se por desentendido.
— Conheço a longa tradição de obediência que teus ancestrais tão nobremente colocaram a serviço do reino nas horas difíceis do passado. Por isso, príncipe, não tenho dúvidas acerca dessa virtude que, com certeza, deve estar contida na tua alma tanto quanto na deles. Aqui, no entanto, estamos diante de um momento de escolhas livres e, sem que ocorram quaisquer imposições, teu rei necessita saber da tua fidelidade ante a única verdade que se apresenta aos olhos dos homens.
Mais do que tua obediência, Nekhefre, aqui estás para informar-me de tuas opções pessoais, já que todos os que me são próximos, assim o estão sendo consultados em face da importância que lhes atribuo em meu reinado.
Um nó mais agudo em sua garganta, fez Nekhefre ter saudade de Hatsek que, em algum lugar por perto, escutava as referências de Akhenaton e orava em silêncio buscando auxiliar o amigo imaturo diante das armadilhas do destino.
Novamente o silêncio se apresentara e todos os rostos se voltavam, agora, para o príncipe que se via directamente convocado a manifestar-se sem rodeios.
— Nobre faraó, quando falo em obediência, não me refiro a uma conduta mecânica de uma criatura sem vontade. Sigo os passos do meu rei e tenho aceitado a nova crença sem reservas nem traições, desde a sua implantação em todo o reino, obedecendo as ordens e os desejos que brotam de vossa divina orientação. Aqui estou para dar testemunho público de que Aton segue sendo a única verdade e que dele não me afastarei nem deixarei de defender com as forças da própria vida.
Com essas expressões entusiásticas, pretendia o príncipe deixar claro a sua mentirosa aceitação e livrar-se, o mais depressa possível, daquela entrevista que já estava lhe comprometendo o equilíbrio nervoso.
— Tuas palavras são claras e teus sentimentos de fidelidade igualmente são aceitos. Contudo, nobre príncipe, diante de tão importante momento para o reino do Egipto e para que na mente de todos os súbditos não existam dúvidas, espero não existir qualquer constrangimento de tua parte em proferir juramento público neste recinto e diante do trono, que será anotado oficialmente pelo escriba real para torná-lo documento importante do arquivo.
Aquilo não era um convite, era quase uma execução pública que colocava Nekhefre entre uma opção de dizer sim e a outra, de aceitar.
Colocado, desse modo cerimonioso, diante do rei e repetindo as palavras do juramento, através do qual renegava as velhas divindades, especialmente Amon-Rá, Nekhefre se ia violentando em todos os seus antigos sentimentos, proferindo em voz alta e procurando parecer natural e confiante a cada palavra da fórmula, cujo sentido era, exactamente, dar demonstração pública de que o juramentista abdicava de tudo o que consistia sua antiga fé e abraçava a nova divindade como quem se liga para o resto da vida a uma nova força, a quem oferece tudo o que tem e o que era para defendê-la.
Era um texto muito bem preparado para não deixar qualquer margem à dúvida e cuja repetição incluía a ciência e a aceitação de que, se ocorresse qualquer desvirtuamento por parte do referido súbdito que lhe indicasse o retorno ao culto dos antigos deuses, tal defecção seria interpretada como crime de lesa-pátria, de alta traição, e permitiria todo e qualquer tipo de punição, inclusive a execução, sem direito de defesa, a critério do representante de Aton.
No momento do juramento, Nekhefre passou a tremer ainda mais e as palavras que proferia exigiam um tal esforço que ele pensou que perderia o equilíbrio ou seria vítima de uma vertigem.
Jamais havia pensado que se lhe cobrariam uma tal demonstração de aceitação.
Não sabia ele, entretanto, que o pior ainda não tinha acontecido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 8:55 pm

Proferindo juramento solene diante de todos os presentes que foram tomados como testemunhas e que, ao seu término, emitiram uma grande salva de palmas, silvos, gestos congratulatórios, o escriba real apresentou o documento em papiro para que o nobre príncipe nele apusesse seu assentimento oficial, à guisa de assinatura, dando oficialidade à sua existência.
Retomada a ordem no recinto, Nekhefre se preparava para deixar a frente do faraó, quando Mudinar se aproximou do rei e lhe segredou algo em seu ouvido, no que foi imediatamente seguido pela retomada da conversação.
— Nobre príncipe Nekhefre, o reino do Egipto é muito grato por esse gesto de pública demonstração de fidelidade da parte de tão importante representante de nossas tradições. E se tal gesto corresponde à verdade de tua alma, doravante, quaisquer testemunhos de obediência contarão com a tua aceitação interior... — prosseguia o faraó para desespero de Nekhefre.
— Sim, divino Aton, não existe quaisquer testemunhos que meu juramento se recuse a cumprir com o assentimento de meu espírito. Em regressando a Tebas, a vossa magnanimidade poderá encontrar neste servo o fiel e obediente súbdito que tudo fará para estar à altura da grande consideração com que foi distinguido no dia de hoje.
Nekhefre começava a se trair com as próprias palavras. Envolto pela pressão psicológica daquele momento, que desejava encerrar o mais rápido possível, já fazia menção de seu regresso à sua terra, como quem deseja, o mais rápido possível, deixar aquele local e voltar ao seu antigo modo de viver, distante das vistas dos que, agora, passavam a ser os quase proprietários de sua alma e de seu corpo.
Esquecia-se, assim, das advertências de Hatsek, que em boa hora o havia preparado para que não se deixasse trair com revelações ou demonstrações que lhe apontassem o desejo íntimo para que isso não fosse usado contra ele mesmo.
Observando a referência indirecta à sua volta para Tebas, Akhenaton percebeu que Mudinar estava certo ao adverti-lo de que seria importante manter o príncipe por perto para que não se visse liberado com muita
facilidade do juramento proferido tão solenemente naquele local.
Por isso, tinha em Mudinar o servo confiável e experiente que tudo sabia prever e prover, pelo que voltou-se para o funcionário e o consultou sobre o assunto em tom de sussurro que Nekhefre não pôde escutar claramente.
Depois de se ter entendido com o chefe da guarda real, fez-se soar um instrumento que indicava que o rei iria dar a conhecer ao público do salão do trono um novo decreto que passaria a valer dali para diante como lei entre todos.
Novamente, cessou o ruído natural das conversas ao pé do ouvido entre os convidados e a voz de Mudinar elevou-se no ambiente:
— Por vontade divina de Aton e atendendo às demonstrações públicas de fidelidade e respeito às mais nobres tradições deste reino oferecidas espontaneamente pelo príncipe e distinguido súbdito, decreta o grande Akhenaton — rei de todo o Egipto e do estrangeiro — que, a partir desta data, fica ele, Nekhefre Segenenre, investido no cargo de fiscal do tesouro real. Para conhecimento de todos e observância da generosidade de Aton diante dos que se apresentam sinceros e devotados, testemunhem todos os egípcios a generosidade do deus único em favor dos que lhe seguem os ditames.
Nekhefre, surpreso com tal “honraria”, não sabia o que dizer nem o que fazer. Todos lhe dirigiam um olhar de inveja e admiração, mas, lá dentro, sentia que só teria do que se arrepender por aquele momento que se lhe apresentava como um enaltecimento, mas que, em verdade, era mais um dos componentes da armadilha.
Na mente de Nekhefre, isso não era favorecimento de Aton. Já era punição dos velhos deuses pelo abandono e público repúdio de sua velha fé. A desgraça começava a rondar-lhe os passos, bem antes do que imaginava.
— Diante de tal honraria, — interrompeu Mudinar o silêncio do ambiente — o nobre príncipe passará a ocupar os aposentos do palácio destinados aos funcionários graduados e aqui permanecerá até a próxima cheia do Nilo.
Aquilo soara em sua alma como uma punhalada fria e agoniante.
Estava preso na ratoeira. Afinal, a próxima cheia do Nilo iria demorar quase seis meses para acontecer e isso o deixaria ali, retido, por muito mais tempo do que já pudera imaginar. Desejou protestar e recusar tal dádiva real. Todavia, fazê-lo seria uma grande ingratidão e uma verdadeira ofensa à “generosidade de Aton”, o que agravaria ainda mais a sua delicada situação.
Procurando controlar-se e manter as aparências, Nekhefre curvou-se reverente, demonstrando estar submisso a tal decreto, numa primeira experiência do juramento que fizera e da renúncia que necessitaria demonstrar diante da vontade de seu rei que, segundo ele mesmo dissera minutos antes, seria sempre a sua própria vontade.
Mudinar, perspicaz e sádico, sorria por dentro diante da situação difícil e inesperada por que passava aquele que fora levado até ali por sua astúcia e se via envolto na trama do destino para a qual o chefe da guarda surgia como um hábil costureiro.
Nekhefre queria chorar, mas não podia. Tinha de sorrir agradecidamente.
Ah! Se pudesse voltar no tempo e desdizer o que havia falado... - “sigo os passos do meu rei e aceito sem reservas...”
Não sabia ele que o seu drama ainda não lhe cobrara o pior preço.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 8:55 pm

12 — Opções difíceis
O salão real estava dominado por uma vibração de absoluto silêncio e o tempo que era destinado à entrevista de Nekhefre era indicativo da importância de que se revestia aquela audiência.
Essa situação causava em todos, com excepção do rei e de Mudinar, um estado de ansiedade muito forte, capaz de atingir o equilíbrio até mesmo do corpo físico dos que ali se colocavam esperando a sua oportunidade de ser recebidos pelo faraó dos egípcios.
Pelo contrário, o chefe da guarda e Akhenaton desfrutavam até com certa satisfação desse estado quase desesperado ou desconcertado da maioria dos que ali se postavam, entre o respeito absoluto e a submissão mais inconsciente e, nas pessoas, tal conduta era motivo para a sua própria desconsideração, uma vez que indicava, de certa maneira, a postura servil e despersonalizada daquele que ali, mais do que reverenciar o seu rei, se perdia de si mesmo, entre a tentativa de agradar o poder e obter certos favores desse mesmo poder.
Nekhefre se achava sob a observação dos dois que, experientes, sabiam descortinar nele o estado de íntimo desespero, já que o mesmo não sabia esconder com muita eficiência na máscara facial os sentimentos profundos que lhe iam na alma.
Dando tempo para que todos os ditames da sua nomeação pudessem ser ultimados e para que o novo fiscal do tesouro real se investisse da sua nova função, Akhenaton seguia com os seus olhares todos os que se colocavam à espera da entrevista, observando-lhes a monótona postura reverente e a enfadonha ritualística que os aguardava.
Foi aí que seu olhar divisou, à distância, o semblante de um homem que o impressionara, não tanto pelo porte físico, mas sobretudo pela postura de serena nobreza com que se postava no local para onde fora encaminhado quando do início da cerimónia na sala do trono.
Sua cabeça mantinha-se erecta, olhando para todos os detalhes do ambiente com uma percusciência não observada nos demais visitantes, amedrontados pelas sombras das colunas, pelos entalhes nas pedras, pelo maravilhoso e místico daquele encontro.
Seu olhar não fugia dos demais olhares dos funcionários do palácio e, conquanto não os desafiasse, sabia ser brilhante e tranquilo, guardando esboço de sorriso discreto para todos os que a ele se dirigissem.
Pouco falava, pouco se movia. Apenas observava e, muitas vezes, mantinha-se de olhos cerrados, como que em meditação profunda.
Suas vestes eram singelas, conquanto estivessem indicando se tratar de uma pessoa diferenciada das demais que compunham o povo ou os representantes das delegações que ali estavam, sempre ataviados de suas melhores vestes, com suas melhores jóias, tudo para impressionar favoravelmente naquele que seria o mais importante evento de suas vidas.
Não passou desapercebido de Akhenaton aqueles modos diferentes dos demais e isso foi o suficiente para intrigar-lhe o pensamento causando-lhe, ao mesmo tempo, admiração e temor, uma vez que os servis não representavam qualquer ameaça à sua forma de pensar e governar o país. Todavia, qualquer dissidência seria fatalmente nociva à causa e a atitude não servil de qualquer pessoa representava uma força interior, uma opinião pessoal, uma personalidade não domesticável que causava no rei uma apreensão.
Isso, entretanto, não impedia que o faraó se impressionasse pelos modos daquele homem.
A um gesto seu, o fiel funcionário do reino acercou-se do trono e ouviu o rei perguntar:
— Mudinar, vejo próximo do local destinado aos convidados, a figura de um homem solitário que está trajado diferentemente de todos os outros... — afirmou Akhenaton, como quem deseja perguntar de quem se trata.
— Sim, nobre divindade, sei a quem se refere. Trata-se do acompanhante de Nekhefre, de quem já lhe falei anteriormente. É o sacerdote de Amon-Rá, de nome Hatsekenká.
— Sim, recordo-me agora. Pretendo que ele seja trazido para a frente do trono, pois desejo inteirar-me desse personagem e, assim, dar destino aos dois, igualmente.
Tudo isso era dito em tom de voz que ninguém, além de ambos os interlocutores, seria capaz de entender, ainda que lhes ouvisse o sussurrar das palavras.
Mudinar não se fez esperar. Tratou de ordenar aos seus subalternos que buscassem no local onde se encontrava e trouxessem Hatsek à presença do rei.
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Lá, onde se achava, o sacerdote buscava interpretar todas as intuições que vinha recebendo desde algum tempo e, desde que ingressara naquele recinto, presenciando os acontecimentos que envolviam o seu amigo, o sacerdote entendera que Mudinar era aquele ser que representava todos os perigos de que houvera sido alertado pelo espírito de Khufu. Divisava a sua vibração escura, seus pensamentos ágeis, assessorado por uma divisão de entidades trevosas que se ligavam a ele por uma rede de fios magnéticos adequadamente atados à sua estrutura cerebral e emocional que lhe causavam um estado de quase simbiose.
Tal envolvimento ocorria em função de suas tendências para o mal, fruto de muitas mágoas íntimas, de ódios acumulados, de desejos de impor-se sobre os demais, de uma ambição sem limites, de fraqueza de carácter, de apego à matéria, enfim, de todos os sentimentos ainda tão comuns na maioria dos seres humanos.
Importante aqui que o leitor possa entender que, aproveitando-se das fraquezas das pessoas, os irmãos invisíveis se aproximam daqueles que comunguem com suas tendências e com os quais possam estabelecer uma “sociedade” através da qual compartilham as antigas paixões e os desejos de se manterem no mesmo padrão negativo.
Tal identidade entre encarnado e desencarnado se dá através da sintonia natural entre o que emite os sinais vibratórios que lhe são característicos e os que, no invisível, recebem essa mensagem e observam se ela se apresenta favorável aos seus interesses.
Daí, tal senha energética possibilitar, da mesma maneira, a aproximação de entidades enobrecidas que se conectam com o pensamento elevado, com o sentimento de bondade sincera para, através dos canais intuitivos, encaminhar a pessoa para caminhos que lhe possam solucionar determinados problemas que a afligem, sem violentarem a sua vontade pessoal.
São amigos invisíveis que, informados de nossos estados interiores abalados, mas que, ao mesmo tempo, identificando em nós a fé em Deus, a confiança no bem, o desejo de lutar e de vencer pelo caminho da resignação e da paciência, usam de tais portas positivas de nossa personalidade para plantar em nossos pensamentos, reflexões e ideias subtis que o ser humano capta como se fosse uma brilhante ideia sua, pessoal, para que, em desdobrando-a dentro de sua capacidade de assimilação, possa dar-lhe contornos pessoais e, assim, passar a ser o agente de seu próprio, resgate e da solução de suas dúvidas.
No entanto, com Mudinar, pelo padrão de seus próprios pensamentos e sentimentos, o sinal ou a senha energética que emitia era o convite para que uma grande malta de Espíritos imperfeitos se transformasse nos seus conselheiros e produzissem em sua mente, por si só, bem desenvolvida e astuciosa, maior vigor para criar situações delicadas e atingir seus intentos com maior objectividade e rapidez.
Hatsek identificara nele, mesmo à distância, pelo teor das energias que emitia e que eram perfeitamente claras à sua vista adestrada nas coisas da alma, tratar-se da pessoa que, sob o manto do servilismo buscava ser aquele que mandava por detrás dos bastidores, na influência que impunha sobre o rei, igualmente ligado ao seu cérebro por ténues fios de energia escura.
Sim, Akhenaton se achava igualmente envolvido no processo de interferência espiritual que, através de Mudinar, buscava atingir os destinos dos mandatários do reino, sempre visados na função importante de guiar e de escolher caminhos.
Por isso, além das ligações fluídicas que existiam entre Akhenaton e um grupo de entidades que actuavam sobre o chefe de sua guarda, entre ambos havia ligações vibratórias que faziam com que as relações entre os dois fosse a mais próxima e sintonizada possível.
Akhenaton, todavia, por estar envolvido em um culto religioso de teor elevado, ainda que na tentativa errónea de impô-lo pela força à mente dos outros, trazia nessa conduta mental positiva, um reservatório de energias que lhe permitiriam, com muito mais facilidade, interromper tais perniciosas imantações. Além disso, pelo esforço na edificação de uma crença mais avançada para os padrões de sua época, o faraó estava igualmente assistido por emissários do bem que se postavam ao seu lado como quem aguardava oportunidade adequada para interferir positivamente sobre suas ideias, o que ocorria poucas vezes em face do constante assédio das forças negativas e da presença nociva de Mudinar.
Levado à presença do faraó, Hatsek sabia que, a partir dali precisaria de maior concentração para que não fizesse nem falasse nada que viesse a ser interpretado como algo que ferisse Nekhefre ou o comprometesse, já que era de seu conhecimento que os sacerdotes de Amon-Rá eram os mais perseguidos pela nova crença oficial.
Uma vez postado diante do trono real, bem ao lado do príncipe que, ali, já estava dando sinais de muita fadiga emocional pelas inúmeras lutas interiores que tinha de travar e dos interesses contrariados que se via obrigado a suportar, Hatsek procurou compartilhar com este as vibrações de coragem e de equilíbrio que estavam escasseando dentro de seu amigo.
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Não poderia tomar-lhe o lugar físico, mas de maneira generosa e fraterna, buscava envolvê-lo com as forças vitalizantes de seu coração, que até ali chegara pelo fato de dedicar a Nekhefre a amorosa solicitude que um irmão mais velho tem pelo outro, ainda que ambos possuíssem pouca diferença de idade.
Diante do faraó, figura que pela primeira vez tinha a oportunidade de defrontar, observando-lhe os traços diferentes de qualquer outro egípcio comum, mesmo da estirpe da nobreza, Hatsek se punha reverente e respeitoso, sem qualquer laivo de subalternidade vil que lhe denunciasse fraqueza de carácter.
Sua reverência tinha, ao mesmo tempo, respeito e independência, coragem e humildade, atai ponto que o rei deu-se por satisfeito com seu gesto diante de sua pessoa.
Silencioso, esperava que lhe fosse dirigida a palavra primeiramente.
Envolvendo-o em um halo de energias luminosas, Khufu lhe sustentava o raciocínio procurando intuir-lhe as respostas para que nada ficasse a prejudicar o jovem Nekhefre.
— O nobre Hatsekenká — sacerdote tebano do templo de Amon-Rá — falou a voz tonitruante que se incumbia de apresentar as delegações ao soberano.
Tal apresentação era um sério indicador dos problemas que teriam pela frente. Isso porque esperavam ambos que, na condição de mero acompanhante, sua situação específica de sacerdote do culto banido não fosse de conhecimento de mais ninguém, além de seu amigo.
Todavia, pelo que seu pensamento rápido pôde divisar, acelerado pelo pensamento luminoso de Khufu, de nada adiantaria negar a sua condição diante daquela assembleia, ainda que o fizesse para proteger Nekhefre, uma vez que, para saberem de sua posição, já deveriam ter funcionado os espiões do rei espalhados por todo o reino, especialmente localizados na velha capital Tebas, de onde se retirara a corte quando da instalação da nova crença.
Tudo isso correu célere pelo seu pensamento. Ao mesmo tempo, Nekhefre se via surpreendido do mesmo modo, observando que a condição de seu acompanhante, que ali estava atendendo a um pedido seu, pessoal, poderia desaguar em sérios problemas.
Olhando-o indagadoramente, Akhenaton acenou com a cabeça indicando que estava a par da sua condição.
— Vejo, nobre sacerdote, que não te causara receio acercar-se do trono de Aton. Tal conduta se deve à tua sabedoria ou à tua arrogância? - falou ríspido Mudinar, dando início à conversa com a qual pretendia intimidar Hatsek.
— Igualmente, nobre servidor de Aton, aqui me aproximo nem por sabedoria nem por altivez. Aqui venho como convidado que, em função da elevação de quem o convida, arrogante seria se não atendesse à convocação que, reconheço, imerecida. Naquela resposta, estava o desenho de sua personalidade. Começara por tratar com respeito aquele homem vil que lhe dirigira a palavra para, logo a seguir, designá-lo como “servidor de Aton”, numa referência pouco enaltecedora para quem não gostava de ser lembrado de sua condição inferior ou submissa. Logo a seguir, sem aceitar as duas alternativas que, ambas, denunciar-lhe-iam a arrogância de se considerar ou sábio ou temerariamente arrojado, aponta como causa de sua presença a de estar atendendo a um convite.
Houvera, sim, sido convidado por Nekhefre e, depois, incluído pelo próprio faraó no documento de boas-vindas e que os convidava ao palácio. Da mesma maneira fora convidado para acercar-se do trono, de tal forma que sua resposta, em nenhum momento, fugiu da verdade dos factos.
Sem esperar por esse controle, Mudinar, enrubescido, voltou-se para o faraó como a lhe dizer que o sacerdote ali estava como lhe fora determinado pela ordem velada partida do rei.
Akhenaton não deixara de perceber os modos seguros de Hatsek e, para deixá-lo um pouco fora dos focos da atenção daquele momento, voltou-se para Nekhefre e perguntou:
— Agora, nobre funcionário do meu reino, príncipe Nekhefre, que já se encontra compromissado diante da renúncia a qualquer sentimento incompatível com o culto a Aton, muito me lastima dizer-te que teu passado denuncia ao meu conhecimento que, mesmo depois de todas as mudanças a que te dizes fiel, ainda te fazes íntimo de Amon-Rá.
Se tivesse sido fulminado por um relâmpago, o susto não teria sido maior.
Diante de todo o reino em uma cerimónia pública na qual já não lhe bastava ter repudiado toda a sua crença anterior, firmado juramento, agora era acusado de possuir ligações com o antigo deus Amon.
Sabendo que não poderia negar tal afirmação que lhe era imputada pelo próprio faraó, encarnando na figura de Aton, Nekhefre baixou a cabeça, sem saber o que significava aquela expressão genérica que dizia de sua intimidade com a antiga crença, mantendo os olhos voltados para o chão.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 2 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 8:56 pm

— Teu silêncio é uma resposta afirmativa e é um indicativo sincero, ainda que envergonhado de tua conversão, nobre príncipe— respondeu-lhe o rei. — Todavia, incompatível contigo, daqui por diante, qualquer ligação com o passado que poderá te levar até mesmo à morte. Impõe-se, pois, que renegues todos os laços que te prendiam ao mundo que abjuraste.
— Não entendo, ó Grande Senhor dos egípcios. Que devo eu fazer que ainda não tenha feito por amor e aceitação da vossa vontade?
Aquela era uma pergunta dolorida e angustiada, que Nekhefre precisava fazer como que a pedir clemência ao soberano para que não lhe exigisse maior cota de sacrifícios.
— Se pertences mesmo a Aton, este sacerdote não mais é digno de permanecer em contacto contigo — respondeu Akhenaton.
Nekhefre, então, percebeu a que intimidade com Amon-Rá se referia o soberano, o que lhe representou um alívio, pois não fizera nenhuma referência aos cultos clandestinos a que ele continuava observando.
Hatsek, por sua vez, sabia aonde pretendiam chegar aqueles dois homens, instrumentos da escura influenciação espiritual invisível. Permanecia em silêncio e sofria pelo sofrimento de seu amigo, imaturo e despreparado para suportar as difíceis escolhas que a vida impõe e para pagar o preço por elas.
Nekhefre tremia por fora e por dentro.
Sim. Era o castigo dos deuses abandonados pela sua conduta irreflectida, através da qual pretendia manter-se bem com todas as coisas — pensava o príncipe consigo mesmo.
Já estava sendo punido com sucessivas desgraças desde o momento nefasto em que aceitou, sem convicção e por mera conveniência material, ajuntar-se ao poder terreno, esquecendo a sinceridade de suas tradições.
Para dificultar-lhe ainda mais a decisão e para testar-lhe a profundidade da fidelidade declarada momentos antes, Mudinar providenciou para que o príncipe fosse colocado de frente para o sacerdote que, serenamente, olhava em seus olhos como o amigo sábio que sabe aceitar as fraquezas do companheiro.
Nekhefre estava em ponto de desmaiar, quase sem estrutura emocional que lhe pudesse preservar o raciocínio, agora tomado pelo medo de se denunciar como um impostor perante o próprio rei e a corte que nele estava vendo o príncipe importante que o soberano distinguira com toda a deferência e com um cargo no próprio tesouro do país.
Akhenaton levantara-se do trono e se posicionara entre os dois homens, esperando que o seu agora protegido se manifestasse dentro dos padrões que esperava, os únicos que aceitaria e que permitiriam a Nekhefre seguir vivo e livre, já que outra opção significaria o imediato encarceramento e o confisco de todos os seus bens, a prisão de suas filhas, a destituição de todos os títulos recebidos de seus ancestrais.
Havia entrado no palácio como um herói reconhecido pelo rei e distinguido com todas as reverências públicas.
Sairia dali como um prisioneiro, pobre, rebaixado ao nada perante a sociedade de seu tempo?
Era essa a opção que teria que fazer naquele momento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 8:56 pm

13 — O primeiro encontro de Hatsek e Nekhefre
Na cidade de Tebas desenrolaram-se muitos fatos importantes na vida das personagens desta história.
Tebas, como já se pôde dizer, havia sido o centro do poder egípcio até o advento das novas ideias religiosas implementadas por Akhenaton e, por causa disso, estava perdendo o esplendor que detivera durante o tempo em que fora o núcleo administrativo. Deixavam de buscar-lhe a atmosfera um sem número de homens e mulheres, sempre atraídos pelas seduções do poder e desejosos de encontrar as vantagens materiais imediatas que a riqueza favorece.
Com isso, Tebas deixava de ser o centro do mundo faraónico para transformar-se, apenas, em mais uma cidade grande às margens do Nilo.
Sem os atractivos anteriores, tornara-se sem o brilho e a euforia dos antigos tempos e o comércio deixara de ser agitado e próspero como antes. Além disso, todos os que trabalhavam em função das necessidades reais viram-se obrigados a transferirem-se para Amarna, o que tirou da antiga capital muitos artistas, artesãos, escribas, contadores, escultores, todos eles seguindo as pegadas do rei de onde, em última análise, retiravam o sustento para suas vidas.
Essa situação atirou os habitantes de Tebas em um sentimento de frustração e de rebaixamento social que produzia um sem número de problemas. A começar pela diminuição da actividade comercial e da circulação dos valores que, ao tempo do faraó eram em fluxo intenso, mas que, agora, ficara reduzida a níveis muito modestos, impondo um clima de medo, de recessão ou encolhimento em todas as actividades.
Do mesmo modo, os moradores se viam compelidos a seguir os ditames de Aton, como o único deus imposto pelo rei à crença popular.
Tal imposição representava outro atentado à segurança íntima das pessoas, já que estas se viram privadas dos cultos de seus deuses antigos, nos quais depositavam confiança e encontravam respostas para suas angústias, ainda que, do ponto de vista da realidade espiritual, o sistema experimentado por Akhenaton representasse significativo avanço em se considerando a balbúrdia religiosa daqueles tempos.
Todavia, isso só poderia ser avaliado a longo prazo. Naquele momento, tal imposição unilateral que pretendia transformar a tradição e a fé por decretos produzia um efeito devastador nos habitantes. Os templos fechados, os sacerdotes destituídos de suas prerrogativas espirituais, muitos dos quais se sentiam forçados, para manter os antigos privilégios, a tornarem-se celebrantes clandestinos, ocultos dos olhares suspeitos dos espiões de Mudinar, tudo isto alterava muito o estado emocional e o equilíbrio social dos moradores daquela cidade que perdera o rumo seguro.
Durante os períodos do antigo reinado que antecedera Akhenaton, os tebanos gozavam de regalias e o estilo de vida permeado de inúmeras motivações religiosas e rituais que impressionavam, enchiam o imaginário popular que, agora, via-se destituído de apoio. Nesse período, a família de Nekhefre viu-se rodeada de muito favores e pôde aproveitar-se muito bem de todas as regalias que sua tradição e os seus bens lhe permitiam. Assim, seja como jovem sem maiores compromissos ou como posterior chefe de família, Nekhefre não conhecera dificuldades e acreditava que isso representava dádiva divina por sua condição especial de ser da estirpe de príncipes que defenderam o território do país.
Olhando o mundo à sua volta pelo padrão distorcido de privilégios de casta, ele e sua família foram modelados por uma visão estrábica da realidade, estando sempre esperando usurpar mais riquezas sob a desculpa de que pertenciam aos escolhidos e protegidos do deus Amon.
Desde essa época, dedicara-se ao culto da divindade sob cuja protecção se acreditava favorecido, o que o levou, desde os tempos de juventude invigilante a aproximar-se do santuário de Amon-Rá, acompanhando seus ancestrais nas inúmeras vezes em que se dedicavam ao culto, às oferendas, às consultas e aconselhamento.
Desse contacto directo, aprendera a depender dos deuses ao mesmo tempo em que parecia que os deuses também dele dependiam, por causa das oferendas materiais que deveria entregar, quase como que pagando por tudo o que eles lhe ofereciam. Naturalmente, quanto mais doasse, mais se sentia no direito de esperar receber.
Não se tratava, entretanto, de exigência clara feita pelos sacerdotes do templo que elegera como o de sua devoção pessoal. As exigências vinham veladas, como menções indirectas acerca das dificuldades económicas que o templo enfrentava, da necessidade de os devotos se compenetrarem de que os que mais agradavam aos seus deuses predilectos deles receberiam maior atenção, de que para pedidos maiores haveria mais dificuldade em se conseguir o que se desejava, de que os que pretendiam ser atendidos pelos sacerdotes de maior realce deveriam disputar as poucas oportunidades que eram disponíveis, o que faziam a peso de ouro, etc.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 8:56 pm

Eram modos ocultos, mas claros, de informar aos seus frequentadores de que as riquezas tinham a sua importância no tráfico dos recursos dos deuses na direcção dos homens. Na realidade, isso era uma degeneração da maneira de acreditar dos egípcios antigos que não embasavam sua fé no comércio. Entretanto, com o crescimento das crendices e dos interesse materiais em prejuízo do bom senso e da fé sincera, as práticas místicas foram sendo introduzidas lentamente e, com elas, todas as mazelas que decorrem da ignorância das leis do universo, como, aliás, ocorre actualmente na avalanche de videntes, ledores de sorte, realizadores de proezas, fazedores e desfazedores de trabalhos de magia, sempre regados pelo interesse vil e mercantilista, deturpando as coisas elevadas em nome de sua conta bancária ou pela necessidade de sua barriga roncante.
Tal estado na alma das pessoas se tornara comum e era natural imaginar-se que para maiores bênçãos seriam necessários maiores presentes. Não se davam ao trabalho de reflectir sobre a impossibilidade de existir sabedoria que levasse em conta apenas o tamanho das riquezas do interessado, o que interditaria todo o amparo aos que, destituídos de bens, não poderiam ter acesso à bondade dos deuses.
Isso ocorria por causa da grande quantidade de cultos particulares, ao lado dos cultos aos deuses mais importantes. Todos acabavam se dirigindo a este ou àquele deus no qual depositavam suas esperanças e que, por isso, propiciava a ideia de que havia deuses mais fortes ou poderosos do que outros. Sempre que se obtinha alguma resposta favorável que apontasse a concessão feita pelo deus que se buscava, a ele se atribuía uma força especial em detrimento dos outros dos quais nenhuma resposta positiva se obtivera.
Era também nesse sentido que a nova crença no único deus que Akhenaton impusera se apresentava superior às anteriores, uma vez que interditava a disputa entre as castas religiosas que pretendiam ver os deuses que representavam elevados à categoria de mais fortes ou poderosos e, por isso, mais rentáveis e influentes no culto popular.
Todavia, na prática, a determinação revolucionária do faraó criou maiores problemas na alma das pessoas e só pôde garantir algum sucesso por questões de apoio militar e do medo que as pessoas tinham dos espiões esparramados pelo reino e que poderiam, para desgraça daquele que fosse flagrado, surpreender qualquer cidadão em atitude suspeita.
A amizade entre Nekhefre e Hatsek datava de antes da modificação dos padrões da crença, quando se aproximaram em função do culto de Amon-Rá, a quem Hatsek se dedicava com afinco e profundidade, procurando extrair todos os ensinamentos, desenvolvendo todas as potencialidades de sua alma.
Por ocasião do nascimento de Hatsena a vida da família de Nekhefre sofreu um forte abalo.
Kimnut se achava grávida da segunda filha e, não se sabe por que motivo, a gravidez era agitada e suas reacções emocionais se alternavam entre a euforia e o abatimento. Estranhos sonhos lhe invadiam as preocupações, tornando os momentos de descanso verdadeiras disputas entre a paz que desejava e a angústia que ia sentindo.
Sem uma explicação clara que justificasse tal procedimento, Kimnut se viu tomada de uma aversão inexplicável a seu marido, o qual evitava a todo o custo e a quem só se submetia depois de tudo ter feito para evitar-lhe a companhia. Alegava sempre o seu estado de cansaço físico, de enjoo constante e, mais de uma vez, diante da insistência do marido em encontrar-se com ela para vislumbrar o seu estado físico no período adiantado da gravidez, valia-se de quaisquer objectos que atirava em direcção a ele como a lhe informar que não era lá muito bem-vindo.
Tal conduta era inusitada e sem precedentes, já que na gravidez anterior de Marnahan isso não acontecera, bem ao contrário. Kimnut se portara como valorosa mulher, sem reclamar, sem recusar os carinhos que o marido lhe dedicava, sem alterar o seu estado de espírito, sonhando com a pequenina criança que, em seu ventre poderia ser o sucessor da casa principesca e próspera.
Mesmo com o nascimento de Marnahan, a esposa e, agora, mãe, seguiu sendo dócil e serena, sem modificações dignas de nota.
Todavia, durante o período gestatório daquela que viria a ser Hatsena, transformara-se a mulher em uma fera, atacando o marido sempre que lhe fosse possível.
Nekhefre, no início, atribuía essas reacções ao estado alterado de seu organismo e, procurando compreendê-la, não estabelecia para ela qualquer tipo de castigo que lhe seria permitido empregar no âmbito daqueles que tinha sob sua dependência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 8:56 pm

No entanto, todo esse período estava sendo muito complicado em sua vida, já que desejava aproximar-se daquela que poderia trazer-lhe a ventura de um filho homem, a continuar-lhe as glórias familiares, mas não podia desfrutar dessa expectativa.
Chegara mesmo a pensar em tirar a vida de Kimnut, por todos os desaforos e humilhações a que o submetera, inclusive na frente dos empregados mais íntimos que, constrangidos, eram obrigados a abaixar os olhos ou virar as costas para os amos, a fim de não serem testemunhas da sua vergonha ou escárnio. Aquilo estava perdendo o controlo e, sem maiores conhecimentos do assunto, começava a acreditar que Kimnut o estivesse desprezando por motivos pessoais, por não lhe guardar mais o respeito de que se sentia credor.
Certo dia, viu-se procurando informar-se onde poderia adquirir um veneno que viesse a causar morte indolor.
Sobre ele estavam fazendo efeito certas tendências de sua alma que o passado trazia à superfície por causa do contacto com as vibrações daquele Espírito que viria ao mundo por intermédio de Kimnut. No entanto, nem ele nem sua mulher tinham conhecimento dessas coisas.
Ela nutria uma aversão pelo marido e este, por causa da conduta humilhante de que era vítima, passara a imaginar um meio de livrar-se dela sem, sequer, pensar no fruto que era carregado em seu ventre.
Quando se viu nesse estado de ânimo desequilibrado, achou por bem ir até o santuário de Amon-Rá solicitar ajuda de alguém mais capacitado para lhe solucionar o caso e, quem sabe, dependendo do pagamento, até mesmo conseguir ali um remédio que fizesse o efeito desejado. Tudo dependeria sempre de quanto dinheiro estaria disposto a oferecer ao templo ou ao sacerdote.
Quando chegou ao local procurando o mais graduado dos mestres de Amon, foi informado de que o mesmo não se encontrava disponível, mas que um outro lhe seria indicado para que pudesse apresentar suas necessidades.
Fora esse o primeiro contacto que tivera com Hatsekenká, jovem na aparência física, mas já dotado de uma visão transcendente muito justa que lhe permitia conhecer em profundidade todas as coisas não reveladas ou desconhecidas dos demais.
À primeira vista, Nekhefre não valorizou-lhe a capacidade, eis que pretendia falar com homem mais experiente e detentor de certos segredos no conhecimento de algumas fórmulas que pudessem, em último caso, favorecer a morte da mulher, caso ele não mais suportasse sua conduta.
Diante da figura serena e firme daquele jovem, não se deixou intimidar nos seus intentos mais secretos, coisa que talvez ocorresse diante da venerável figura de um sacerdote mais ancião, cuja presença por si só lhe poderia causar um súbito arrependimento.
Mas diante daquele sacerdotezinho, cuja juventude seria um atestado de despreparo interior, nenhum sentimento de respeito ou veneração lhe causara a contenção íntima.
Daí, sem preâmbulos, foi logo contando o que desejava e o que viera fazer ali.
— Quero um remédio para matar minha mulher — disse ele sem rebuços — e pago qualquer preço para obtê-lo, isentando quem me fornecer de qualquer responsabilidade — completou arrogantemente.
Surpreendido pela postura afoita daquele homem à beira do desequilíbrio, o jovem sacerdote viu-se diante de uma situação muito difícil. Não poderia censurá-lo para não fechar as portas do entendimento que surgiria ali na forma de desabafo.
No entanto, também não lhe poderia fornecer qualquer indicador favorável à petição que fazia, mesmo com a possibilidade de pagamento.
Diante de seu silêncio, Nekhefre continuou:
— Eu sei que vocês são conhecedores de inúmeros remédios que poderão me vender para que eu possa me livrar do desespero que me corrói, já que sou vítima de escárnio dentro de minha própria casa.
Os escravos riem de mim e, nas conversas ao pé do ouvido, noticiam que sou um frouxo sem qualquer valor viril, eis que vêem minha mulher se portar de forma indigna para comigo e não observam em mim a reacção que seria de se esperar de qualquer varão de nossa época. Por isso, vítima de minha mulher, vítima dos comentários jocosos dos próprios serviçais e para que não acabe sendo conhecido por toda a Tebas como o príncipe poltrão, pretendo pôr um basta nessa situação e desejo obter aqui o veículo que propiciará a morte indolor daquela ingrata que passou a hostilizar-me não se importando que eu seja, sequer, o pai do filho que ela carrega no ventre.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Dez 23, 2022 8:57 pm

Ainda mais surpreso ficou o sacerdote diante do desdobramento daquela história pessoal, trágica e indicadora do temperamento frágil daquele jovem abastado, desacostumado a ser contrariado.
Agora, Hatsek sabia que, além de se tratar de um envenenamento da própria esposa, o rapaz pretendia matar também o ser que ela trazia no ventre, já que, no íntimo, Nekhefre começara a desconfiar de que aquela gravidez seria fruto de uma conduta infiel de sua esposa, o que bem justificaria sua mudança de proceder.
Esses eram, efectivamente, os pensamentos mais secretos do jovem príncipe. À beira do desespero e sem ter a quem recorrer, não aceitaria a ideia de ter que presenciar sua mulher trazer à luz um filho de outro dentro de sua própria casa. Isso porque o pensamento desavisado e invigilante do marido passara a atribuir a mudança do comportamento da mulher a uma mudança de sentimentos pessoais, por opções afectivas renovadas ao contacto com algum outro homem mais interessante do que ele.
Na sua ignorância das coisas do mundo e das realidades do ser humano, somente essa explicação fazia sentido aos seus olhos. Por isso, mesmo sabendo que mataria um ser inocente, o estado de desequilíbrio que se foi apossando de seu sentimento levava-o a pensar em acabar com ambos, como sendo agente e fruto da traição.
Graças à explosão de seus sentimentos que não foram contidos sequer pela vergonha de se expor assim, Nekhefre foi tomado de uma avalanche de lágrimas amargas e desesperadas ali mesmo diante de Hatsek que, compassivamente, procurava compreender-lhe o desequilíbrio como uma enfermidade grave no coração de um bom homem, ainda que imaturo e despreparado para as surpresas da vida.
O sacerdote conduziu-o a um local onde poderiam ter uma conversação esclarecedora, mais isolado e adequado aos processos de desabafo, sem que ouvidos estranhos se imiscuíssem nos assuntos que não lhes interessassem.
Por sorte de todos e pela acção directa de Khufu, o jovem príncipe não encontrara naquele dia o antigo sacerdote que, por força do hábito de aceitar pagamentos por favores espirituais ou outros não tão elevados, com certeza ter-lhe-ia entregue o remédio depois de ter recebido o preço combinado. Já era a sabedoria espiritual que permitia que na vida daquele jovem inconstante e temperamental, o bem estivesse esperando por ele sempre antes do mal, mal este que era o fruto das escolhas irreflectidas que buscava fazer para resolver o seu problema de uma hora para outra.
Khufu colocara Hatsek em seu caminho para ser-lhe o guardião da imaturidade e, de uma forma mais directa, o protector dos seus passos, a fim de que não enveredasse pelos espinheirais da própria insensatez.
Inspirado pela presença amiga daquele Espírito elevado e conhecedor das fraquezas de seus irmãos de humanidade, Hatsek se dispôs a ser o amigo e confidente daquele que não tinha noções do mal que estaria desencadeando sobre si mesmo, caso levasse até o final as disposições homicidas e infanticidas que vinha demonstrando com as suas próprias palavras.
Depois de colocá-lo mais à vontade, mandou servir-lhe pequena caneca de vinho adocicado, usado pelos sacerdotes para atenuar o estado de nervosismo interior e que produzia na pessoa leve arrefecimento dos ânimos violentos, relaxando as tensões acumuladas e permitindo que a pessoa se visse mais desarmada nos desejos de destruição, fosse de si mesma, fosse dos demais.
Vendo o estado do jovem ir se acalmando, o sacerdote sentou-se à sua frente demonstrando calma e compreensão de seu estado, sem pretender ferir-lhe os sentimentos, já por si só tão feridos, com qualquer postura de crítica ou julgamento.
Pelas suas crenças pessoais, Hatsek sabia que Rá seguia iluminando a todos, sem qualquer laivo de censura. Deitava seus raios os justos e sobre os desalmados e testemunhava, com a sua luz, tanto os actos de nobreza do bem quanto os nefandos crimes que a maldade cometia. Paciente, o astro rei dava a todos os que viviam sob seu império, uma nova chance a cada dia, ao ressurgir no horizonte e voltar a iluminá-los. — Não seria isso o mais seguro indicador de que a Soberana Sabedoria dava redobradas oportunidades para que os justos seguissem fazendo a justiça e para que os maldosos corrigissem seus erros? Hatsek que, compassivamente, procurava compreender-lhe o desequilíbrio como uma enfermidade grave no coração de um bom homem, ainda que imaturo e despreparado para as surpresas da vida.
O sacerdote conduziu-o a um local onde poderiam ter uma conversação esclarecedora, mais isolado e adequado aos processos de desabafo, sem que ouvidos estranhos se imiscuíssem nos assuntos que não lhes interessassem.
Por sorte de todos e pela acção directa de Khufu, o jovem príncipe não encontrara naquele dia o antigo sacerdote que, por força do hábito de aceitar pagamentos por favores espirituais ou outros não tão elevados, com certeza ter-lhe-ia entregue o remédio depois de ter recebido o preço combinado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:38 am

Já era a sabedoria espiritual que permitia que na vida daquele jovem inconstante e temperamental, o bem estivesse esperando por ele sempre antes do mal, mal este que era o fruto das escolhas irreflectidas que buscava fazer para resolver o seu problema de uma hora para outra.
Khufu colocara Hatsek em seu caminho para ser-lhe o guardião da imaturidade e, de uma forma mais directa, o protector dos seus passos, a fim de que não enveredasse pelos espinheirais da própria insensatez.
Inspirado pela presença amiga daquele Espírito elevado e conhecedor das fraquezas de seus irmãos de humanidade, Hatsek se dispôs a ser o amigo e confidente daquele que não tinha noções do mal que estaria desencadeando sobre si mesmo, caso levasse até o final as disposições homicidas e infanticidas que vinha demonstrando com as suas próprias palavras.
Depois de colocá-lo mais à vontade, mandou servir-lhe pequena caneca de vinho adocicado, usado pelos sacerdotes para atenuar o estado de nervosismo interior e que produzia na pessoa leve arrefecimento dos ânimos violentos, relaxando as tensões acumuladas e permitindo que a pessoa se visse mais desarmada nos desejos de destruição, fosse de si mesma, fosse dos demais.
Vendo o estado do jovem ir se acalmando, o sacerdote sentou-se à sua frente demonstrando calma e compreensão de seu estado, sem pretender ferir-lhe os sentimentos, já por si só tão feridos, com qualquer postura de crítica ou julgamento.
Pelas suas crenças pessoais, Hatsek sabia que Rá seguia iluminando a todos, sem qualquer laivo de censura. Deitava seus raios sobre os justos e sobre os desalmados e testemunhava, com a sua luz, tanto os actos de nobreza do bem quanto os nefandos crimes que a maldade cometia. Paciente, o astro rei dava a todos os que viviam sob seu império, uma nova chance a cada dia, ao ressurgir no horizonte e voltar a iluminá-los. — Não seria isso o mais seguro indicador de que a Soberana Sabedoria dava redobradas oportunidades para que os justos seguissem fazendo a justiça e para que os maldosos corrigissem seus erros?— pensava o sacerdote em suas meditações diárias. A luz se espalha e sabe esperar. Presencia o sucesso dos bons e a queda dos maus nos buracos que eles mesmos construíram.
Era assim que o sacerdote encaminhava-se na vida, diante dos sofrimentos de seus semelhantes. Olhava-os como seres iguais, fracos pensando-se fortes, crianças imaginando-se adultos, escravos acreditando-se senhores. Procurava iluminá-los sem censura, deixando-os livres para escolherem subir as montanhas ou projectarem-se nos abismos que eles mesmos escavassem. Mesmo assim, se necessário, desceria ao fundo do abismo para ajudá-los a voltar ao topo.
— Pois bem, nobre príncipe, vamos conversar diante do olhar generoso de Amon-Rá— falou-lhe Hatsek que, a partir daquele dia, entraria na vida de toda aquela família como uma bênção de Deus à ignorância dos homens.

() Estátua de Akhenaton na qual são notadas suas estranhas formas físicas, pouco usuais para os egípcios de sua época.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:38 am

14 — Os problemas na gravidez
Observado com atenção pelo jovem príncipe, Hatsek iniciou a conversa através da qual pretendia esclarecer a mente perturbada de um homem sem maiores recursos para compreender a atitude da esposa e que, em face de tal comportamento inusitado, julgava-se traído e pretendia levar sua vingança às últimas consequências.
— Toda a nossa realidade, Nekhefre, se baseia nas coisas que somos capazes de ver e que nos permitem avaliar a verdade. No entanto, nem sempre a verdade pode ser vista com os olhos físicos e, por isso, muitas vezes somos iludidos pelas aparências da verdade ou por falsas interpretações que nos levam a atitudes descabidas e incompatíveis com o nosso nível de civilidade.
Quando observamos os comportamentos das pessoas em geral, podemos perceber que elas são, muitas vezes, sujeitas a oscilações no comportamento e nas reacções. Há pessoas que, sendo normalmente alegres por natureza, em determinado momento se vêem tomadas de uma melancolia sem explicação e vice-versa. Outros se deixam levar por ondas de ira, de ódio incontido, para mais adiante arrependerem-se de tudo o que fizeram. Muitos são tomados por condutas incompatíveis com o conceito que se tem deles a ponto de se permitirem enveredar por vícios que os levam ao desajuste emocional mais profundo.
Se é realidade que há motivos exteriores que possam levar alguém a tal estado de desequilíbrio por ausência de autocontrolo ou de freios outros que o impeçam, não é menos verdadeiro que todos têm à sua disposição canais de ligação com as forças superiores que lhes permitiram acessar esses recursos na própria defesa.
A maioria dessas pessoas têm suas crenças pessoais, fazem oferendas, procuram nossos templos e os de outros deuses para se defenderem dessas oscilações.
Ouvindo as explicações do sacerdote, Nekhefre não tinha ideia de onde ele iria chegar. Por isso, permitiu-se ficar em silêncio para não perder o fio da meada e tentar compreender o sentido dos ensinamentos.— Posso lhe garantir — continuou Hatsek — que grande parte das pessoas que nos procuram neste santuário, estão sofrendo de problemas visíveis, mas que têm uma causa invisível que, por isso, não é levada em conta no momento da sua solução.
Sim. Acreditam que as depressões por que estão passando têm como causa alguma frustração íntima originada no comportamento de um ente querido ou decorrente de uma perda, seja ela de um parente, de um amigo ou de algum bem ou posição material. Imaginam que as condutas incompatíveis e inexplicáveis foram causadas por algum agente mórbido, alguma doença invasora de sua alma e que qualquer remédio possa combater. Desprezam todo e qualquer conselho que se lhes ofereça no sentido de melhorar seus comportamentos internos e seus pensamentos como se isso fosse aconselhamento destituído de eficácia prática. Acreditam na antiga tolice de que Amon gosta dos bonzinhos e pune os maus. E não percebem que ainda carregam dentro de si mesmo uma quantidade de maldades suficientemente grande para autorizar que todas as piores punições, em forma de desgraças, lhes visite o horizonte pessoal.
Pensam-se com direitos à protecção absoluta porque comparecem aos templos, porque fazem oferendas, porque se prostram diante do seu deus de preferência em atitudes exteriores que estão longe de significar sua adesão íntima e sincera.
Acham-se já suficientemente bonzinhos porque distribuem alguma parte do trigo que lhes sobra e que já começou a embolorar e ser corroído pelos ratos no interior de suas despensas.
Pensam que são boas pessoas por realizarem coisas que, à vista dos outros, podem ser consideradas como actos generosos. E quando as coisas começam a dar errado em suas vidas, julgam-se injustiçados por essa Força Suprema que eles procuram insensatamente, como a dizer: Fui bonzinho e estou sofrendo. Como é que isso ocorre comigo?
Em realidade, sofrem porque vêem apenas a realidade pelo lado da matéria, desconhecendo, em absoluto, a verdade integral à qual se precisa chegar pela interiorização e pelo pensamento elevado e sincero. Enquanto o homem viver olhando deus pelos olhos dos interesses pessoais, não o compreenderá nem compreenderá os seus desafios pessoais.
E isso não muda quando nosso corpo morre. Longe de destruir a alma, a morte limita-se a devolver o ser inteligente à sua realidade imortal, onde poderá encontrar todas as explicações que não quis procurar, por preguiça ou desinteresse, enquanto estava na Terra.
Desse modo, transformado em ser invisível, a alma dos mortos, antes de ser levada ao julgamento conforme nossas crenças ancestrais, procura valer-se de sua invisibilidade para aproximar-se daqueles que, estando do nosso lado da vida, estão vulneráveis por só acreditarem nas coisas que enxergam, desprezando o auto-conhecimento, a análise de suas sensações, de suas crenças, o teor de suas intuições e ideias espontâneas, de suas tendências naturais e seus defeitos mais fortes, etc.
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Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz - Página 2 Empty Re: Série Lúcius - Os Rochedos são de Areia/André Luiz de Andrade Ruiz

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:39 am

Desse modo, o homem de carne e osso que pensa que sua essência é ser carne e osso, não se protege das investidas do invisível, aqui representadas pela presença de Espíritos que lhes acompanham o pensamento e o comportamento como se fossem os agentes secretos, com acesso às mais íntimas cogitações pessoais.
Daí saberem em que ponto fraco eles podem atacar os que se pensam apenas um amontoado de carnes.
Nekhefre ia começando a ter uma noção das verdades que aquele sacerdote começava a desfraldar à sua visão, sem que de tudo isso fizesse uma avaliação mais aprofundada, já que se encontrava entre aqueles que se consideravam mais como um monte de carne do que como um ser imortal. Jamais havia pensado na possibilidade de um contacto com coisas invisíveis que não fossem os deuses de suas crenças, sempre presos nos templos em cujo recinto poderiam se aproximar dos homens.
Já ouvira falar nas magias e nas entidades que, invocadas e pagas com oferendas, poderiam agir sobre outros, mas além de não levar essas coisas muito a sério, tinha medo de pensar sobre elas, pois nada sabia a respeito disso e sua vida sempre fora um oásis sem problemas que o forçassem a buscar maiores explicações.
— Quer dizer, então, sacerdote, que quando nossos comportamentos ficam assim alterados, isso pode estar sendo causado por essa coisa invisível que nos atrapalha e tira a paz? — perguntou o jovem, no seu raciocínio imaturo. — E nesse caso — continuou ele — não dá para se ter um amuleto, um objecto poderoso que afaste essa interferência?
— Bem, meu amigo, a sua primeira pergunta pode ser respondida com uma afirmação. Muitos dos comportamentos estranhos e desequilibrados podem estar sendo gerados, estimulados ou aumentados por uma companhia invisível que se aproxima dos vivos e, valendo-se das aberturas no pensamento, no sentimento abatido, nas intenções negativas que a maioria guarda no seu íntimo, atuam no sentido de piorar as condições originais.
Sabendo que os homens, mesmo os que se acham muito bons, têm dentro de si muitas fraquezas, estes Espíritos, com muita paciência, esperam que elas se apresentem e sobre elas edificam a sua influência, levando o indivíduo aos extremos que aquela mesma fraqueza propiciaria. Desse modo, eles estimulam o homem a fazer aquilo cuja tendência já lhe é uma inclinação negativa para retirar dela todas as possibilidades e causar nas suas vítimas toda a sorte de dissabores. Fazem isso por ódio daquele que ficou na Terra, por desejo de atrapalhar-lhe o caminho, por inveja de sua felicidade, por simples desejo de fazer o mal e, até mesmo, por ter sido pago para fazer tais coisas por algum outro ser interessado em prejudicar. E aí que se encontram os problemas ligados à magia que você já deve ter escutado.
Por isso que, respondendo à sua segunda pergunta, não existe nenhum amuleto físico que se possa usar que o imunize dessas influências. Nem símbolos, nem escaravelhos, nem orações guardadas no interior de adereços pendurados no pescoço tão ao gosto de nossa gente impedem que isso aconteça. O único amuleto, se é que podemos chamá-lo assim, é o pensamento elevado, a boa conduta, o sentimento nobre voltado para a prática do bem, a modéstia, a oração sincera de dentro do próprio coração.
Lembre-se, Nekhefre, de que no momento do julgamento no reino da morte, o homem que se vê levado diante do juiz tem de apresentar o seu próprio coração para ser pesado o conteúdo de bondade ou de maldade que existe dentro dele.
Esse pode ser considerado o verdadeiro amuleto, mas não é algo físico, exterior, material que, por óbvios motivos, não teria nenhum valor nem nenhum poder de protecção.
Um arrepio foi subindo pela espinha do jovem que, a estas alturas, já estava ficando com certo medo daquela conversa por não saber como se comportar diante daquelas novas realidades que, na palavra do sacerdote, pareciam, efectivamente, muito verdadeiras.
— Mas desse jeito, sacerdote, nós estamos perdidos. De que adianta rezar, fazer oferendas, vir aos templos, se isso não impede que sejamos atacados por esses que não vemos? Isso é quase uma covardia e uma maldade de Amon que permite que tal perseguição injusta aconteça — atalhou Nekhefre, já preocupado com o estilo de vida que levava e com as consequências de seus comportamentos pessoais.
— Isso não é verdade, meu amigo, pois essa regra também é válida para aqueles que gostam de nós e que, no invisível procuram nos ajudar também. Valendo-se de nossos bons pensamentos, nossas boas acções e nossa sincera devoção que não depende dos bens que tenhamos oferecido nos altares, esse invisíveis que nos amam também se acercam de nós para nos dar bons conselhos e nos sugerir pensamentos de esperança, de amizade, de afecto, de amor ao próximo.
Muitas vezes, em nossas perturbações mesmo, eles se aproximam e procuram nos acalmar, encaminhando-nos para uma roteiro menos desafortunado e que nos possibilite uma solução adequada para os conflitos íntimos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:39 am

Assim, a bondade dessa Força Superior mantém à disposição dos homens que estão na vida da carne essa possibilidade de eles mesmos escolherem de que tipo de companhia querem se servir para seguirem na jornada da vida para que recebam de acordo com as suas próprias escolhas. Não é Amon quem escolhe. Somos nós mesmos, Nekhefre, que fazemos as escolhas boas para nosso futuro ou que seguimos fazendo as bobagens por causa dos nossos caprichos.
— Quer dizer, então, sábio mestre, que o que está ocorrendo com Kimnut está sendo produzido por alguém invisível que está querendo perturbar nossa vida e acabar com minha felicidade? Como é que eu faço para descobrir quem é esse maldito invejoso que tem raiva de minha alegria? — continuou Nekhefre sem maior profundidade.
— Veja, príncipe, o que estou lhe revelando não pode ser compreendido pela maioria das pessoas que, frágeis e ignorantes, precisam de toda a fantasia destas práticas ritualísticas, de todas estas estruturas exteriores para se apoiarem na fé pequenina que possuem e que lhes dá algum sustento íntimo. Mas para que possa entender o que se passa, me é permitido contar-lhe tais coisas, que deverão ficar entre nós e que precisarão ser pensadas por suas ideias a fim de que você possa extrair todos os ensinamentos e desdobramentos de tais revelações.
Todavia, se você pensar em vingar-se de alguém que sua imaginação supõe ter sido o causador de tais alterações, estará se abrindo mais ainda para que tudo piore. Ao invés disso, precisará repensar todas as suas condutas, todos os seus sentimentos e pensamentos, para que encontre as portas de entrada de qualquer perturbação, ao mesmo tempo em que, elevando-se em novos patamares de sentimentos os amigos invisíveis se incumbam de ajudar a você e aos demais Espíritos invisíveis que o perturbavam, levando-os para outras paragens. O seu ódio ou desejo de resolver as coisas com os velhos métodos só farão com que tudo piore ainda mais, pois você estará alimentando o mal ou a ignorância deles com mais combustível do mal e da ignorância.
Além do mais, no caso específico de sua família, acredito que o que lhe revelei ainda não é o principal. Creio que há um factor muito importante que deve ser levado em consideração nos fatos que estão acontecendo com sua mulher. Esse factor é representado pelo seu estado físico, propiciado pela gravidez que, por si só, altera muito o ânimo das mulheres e faz com que muitos comportamentos estranhos aconteçam.
— Eu também já pensei nisso, mas não encontro explicação clara para o fato de essa alteração não ter acontecido na primeira gravidez de Kimnut, quando nasceu Marnahan. Foi isso que me levou a acreditar que na actual, minha mulher tinha algum motivo oculto para me tratar desse modo tão odiento e indigno, me evitando, me atirando coisas, me humilhando como já lhe revelei — respondeu Nekhefre.
— Isso não significa que ela o tenha traído e que mereça morrer.
Se lhe falta conhecimento para entender o que está se passando com ela, por que condená-la à morte sem direito à defesa? Por que fazer de seu orgulho e de sua ignorância os juízes despóticos para satisfazerem seu sentimento ferido nesse processo que, por conveniência, o coloca na condição de vítima?
Na verdade, meu amigo, pelo que se me está sendo permitido entender, você não é a vítima nesse assunto. E se você tivesse realmente tirado a vida das duas criaturas como era de seu desejo, teria se comprometido tanto com a Justiça que não haveria balança suficientemente forte para aguentar o peso dos seus erros na hora do julgamento no reino dos mortos.
Todas as mulheres são portais da vida que, de forma heróica e nobre, se candidatam a trazer a vida à vida. Cedem seu corpo como um grande rio cede suas águas para que os homens transitem sobre elas, para que os peixes nelas habitem, para que as sementes cresçam até a hora da colheita.
Assim, durante o período de gravidez, toda mulher sofre a interferência de um outro ser invisível que está mergulhado no vertedouro de forças que se organizam para fabricarem-lhe um novo corpo. Essa presença vai sendo assimilada com o passar dos meses até que, no final do período preparatório, ambas já se assimilaram uma à outra e, por isso, há uma melhoria geral do estado físico e emocional da futura mãe.
No entanto, até que isso ocorra ou enquanto não se deu, a mulher passa a sofrer das interferências de uma outra personalidade junto à sua, influência esta que irá produzir-lhe muitas oscilações inexplicáveis por causa do desconhecimento dessas leis pela maioria das pessoas.
Enquanto se está dando o processo de aproximação do Espírito que vai nascer, ou melhor, voltar a nascer, há uma mistura das vibrações da mãe com as do futuro filho e ambos se interpenetram com as sensações múltiplas e com as impressões que essa experiência, difícil para o Espírito, causa em sua alma e na daquela que lhe será a doadora dos recursos físicos para a modelagem de seu novo corpo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Dez 24, 2022 10:39 am

Ao ocorrer essa interpenetração, o Espírito recebe as sensações maternais daquela que lhe aceita a presença, mas, igualmente, passa para ela as suas mais íntimas vibrações, as suas carências, os seus medos, as suas angústias ou ainda, a sua alegria de estar de volta, a sua bondade natural, o seu equilíbrio como um Espírito mais elevado que ressurge no meio dos homens de carne. Tudo isso dependerá da natureza das emoções que o ser que regressa traga dentro de si e que, passando pela futura mãe, se exteriorizará em comportamentos alterados desta, nas reacções inexplicáveis, nas modificações bruscas de humor, nos desejos tão comuns na mulher desse período, nos vómitos e enjoos, nos sonhos agitados, repletos de visões e de mensagens ocultas.
O mecanismo é o mesmo que eu já lhe expliquei antes, com a diferença que, nos casos anteriores, tratava-se de Espíritos invisíveis que estavam do outro lado da vida e que influenciavam o homem de carne por um período mais ou menos longo, para o bem ou para o mal.
Aqui, estamos diante de um ser invisível que se aproxima de outro visível para preparar o novo corpo que usará e que, por essa proximidade, transfere parte de suas sensações à alma da mulher e a influencia pela simples presença ao seu lado, nas ligações de energia que se estabelecem entre eles e que se vão fortalecendo com o passar do tempo, o que produz um alívio nesse fenómeno na medida em que progride a gravidez.
— Está entendendo a diferença? — perguntou Hatsek ao seu interlocutor que, pelo ar de embasbacado, parecia ter visto um dos invisíveis diante de seus olhos.
— Você está conseguindo dar um nó na minha cabeça com tudo isto que me contou. Quer dizer que Kimnut está assim porque um desses invisíveis está fazendo mal a ela para me prejudicar? E que eu vou ser o pai dessa coisa? Por Amon, que desgraça maior está me esperando, sacerdote? — esse era o Nekhefre despreparado para pensar mais alto e mais profundamente e que pretendia uma solução rápida para todos os seus problemas, fosse à custa de venenos, fosse à custa de algum amuleto ou de algum remédio que fizesse as coisas voltarem ao que eram antes.
— Não, Nekhefre, não se trata de um invisível que quer lhe fazer o mal e que voltou para isso e irá aumentar o seu estado de sofrimento futuro. O ventre da mulher não deve ser visto jamais como uma passagem maldita por onde o mal volte ao seio dos homens. Deverá ser encarado sempre como porta luminosa através da qual um raio de Sol vença as nuvens e chegue à superfície da Terra, como acontece quando o céu ameaça com os seus temporais, mas por uma passagem, um facho de Rá desce do alto e risca uma estrada de luz suspensa no ar até tocar o reino dos homens.
Na verdade, é bem possível que o Espírito que esteja regressando seja de alguém que lhe quer muito e que guarda consigo um sentimento muito amoroso por você. E por causa dessa proximidade, dessa afinidade entre ambos, Kimnut se sente enciumada ao ponto de tratá-lo mal como costuma acontecer com nossas mulheres mais normais. Talvez esteja se sentindo ameaçada no afecto que nutre por você e, inexplicavelmente, sem perceber que está gerando um ser pequenino que não poderá tomar-lhe o lugar de mulher dentro de seu coração, se comporte com o medo de toda pessoa ameaçada de perder algo precioso para um intruso que chegue repentinamente e venha a perturbar a paz antiga.
Com toda a certeza, Nekhefre, você deve se preparar para ser pai de outra criança do mesmo sexo da anterior, eis que, pelo que me está sendo revelado, esta é a causa do comportamento estranho de Kimnut. Está identificando a chegada de alguém que o ama muito e que, por isso, na sua concepção de mulher, poderia representar alguma ameaça ao sentimento que ela, Kimnut tem por você e ao tratamento carinhoso que você, Nekhefre lhe dedica. Havia sido uma conversa muito complexa para a tola maneira de compreender a vida que o jovem príncipe tinha vivido até ali. Hatsek sabia que seria necessário deixar as informações recebidas trabalharem no silêncio dos pensamentos daquele jovem e que, por isso, em um primeiro encontro, tal conjunto de informes seria mais do que suficiente, principalmente para tirar da cabeça dele a ideia de matar a mulher e a criança que trazia no ventre.
Dizendo que lhe iria fornecer um pouco mais daquele vinho adocicado para levar até sua casa e dar, também, à sua mulher, Hatsek se ausentou por alguns minutos em busca daquilo que seria uma medicação calmante para todos os envolvidos naquele problema, não sem antes pedir a Nekhefre que voltasse ao Santuário de Amon e procurasse por ele para que retomassem a conversa sobre o assunto e que, se assim o desejasse, o sacerdote poderia acompanhar a gravidez de Kimnut com os seus conhecimentos específicos dos problemas humanos que envolviam rudimentos da ciência médica, auferidos nos templos de sua iniciação, o que garantiria um processo gestatório mais sereno, ao mesmo tempo em que poderia estudar pessoalmente o delicado processo de renascimento que aproximaria seres endividados do passado para os resgates através do amor maternal e paternal.
Assim ficou combinado e, naquela tarde, Nekhefre era um outro homem ao retornar à sua casa.

() Busto de Nefertite, esposa principal de Akhenaton.
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