LUZ ESPÍRITA
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 3 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2020 8:01 pm

Mais tranquilo após as ponderações de minha mãe, continuei cavalgando a seu lado.
De modo geral, viajávamos numa carroça junto com outras mulheres e crianças;
porém, vez por outra, gostávamos de fazer um trajecto a cavalo, vendo as paisagens e aproveitando o momento para conversar.
Em períodos regulares, sempre que possível, parávamos para descansar, comer e tratar dos animais.
Viajávamos lentamente, pois agora não havia apenas os soldados do exército, mas famílias com crianças, mulheres, anciãos, o gado, os cavalos, os camelos e toda a equipagem.
Nesse trajecto, tanto quanto possível, Ciro procurava contornar as aldeias pelas quais teríamos que passar, conservando distância para não alertar a população para o seu retorno.
Desejava contar com o elemento surpresa na sua chegada à capital, para destruir qualquer oposição que porventura pudesse encontrar.
Tinha certeza, no entanto, de que ninguém se atreveria a enfrentar o seu imenso e vitorioso exército.
Dez dias depois, aproximamo-nos da grande cidade.
Percebi que todos os nossos estavam eufóricos, mas também tensos e preocupados.
Ao ver as torres da cidade ao longe, meu coração se encheu de emoção, batendo forte e acelerado, quase saindo pela boca.
O que iríamos encontrar?
A uma distância de dois mil passos dos muros da capital, paramos.
Apenas o chefe do conselho sabia que estávamos chegando, pois ele e Ciro se correspondiam amiúde.
O rei mandou um portador com a ordem, ao chefe da guarda, para abrir os portões.
Ficamos aguardando em grande expectativa a resposta.
Para nossa surpresa, pouco tempo depois os portões foram abertos de par em par, e uma delegação de nobres do reino, seguida de uma multidão de pessoas, veio ao nosso encontro.
À frente da delegação estava Ciaxares, chefe do conselho e responsável pela gestão do governo na ausência de Ciro.
Ambos desceram dos cavalos e ele aproximou-se do rei numa reverência amistosa:
- Sê bem-vindo, meu rei e senhor!
Que os deuses te concedam glória e vida longa!
- Obrigado, meu amigo e conselheiro.
Como está a situação?
- Em paz, senhor.
Nosso povo te aguarda com ansiedade.
Conquanto procurasses manter segredo, transpirou a notícia de tua chegada.
Vê! Muitos não puderam esperar para te apresentar as boas-vindas! - disse, mostrando o povo que o seguira.
Soubemos de tuas vitórias e todos estamos felizes e orgulhosos dos teus feitos.
- Muito bem. Então, prossigamos.
Desfilando agora lado a lado, ambos passaram pelos portões.
Ao som das trombetas e dos tambores, entramos lentamente na cidade, prosseguindo pelas ruas que nos levariam ao palácio real, sob os aplausos da multidão que se aglomerava por todo o trajecto.
Realmente era um espectáculo digno de se ver.
Com toda a pompa, desfilamos diante da população alegre e irrequieta.
Primeiro, os soldados conduzindo os estandartes com as armas e insígnias reais.
Depois, Ciro e o chefe do conselho;
um pouco mais atrás, minha mãe e eu, montando magníficos corcéis, e a escolta pessoal do rei;
logo após, os soldados em formação, orgulhosos de seus feitos; em seguida, as carroças com as famílias e os carroções que transportavam as riquezas, resultado da guerra, bem como os presentes em cavalos, gado, camelos e cabras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2020 8:01 pm

Para encerrar o desfile, o resto do exército, que permanecia à retaguarda fazendo a segurança de todos.
Ao passar pelo povo, em lento e cadenciado passo, experimentei uma profunda emoção.
Os aplausos, as honrarias, as homenagens que nos prestavam a cada instante, tocaram-me o coração.
"Onde já teria visto algo semelhante?"
As lágrimas humedeceram meus olhos, mas, orgulhosamente, não permiti que vertessem.
Afinal, tudo aquilo nos era devido.
Após horas de desfile, a certo momento minha mãe alertou-me:
- Vê, meu filho! Estamos nos aproximando do palácio real.
Olhei à minha frente e fiquei fascinado.
Jamais vira algo tão belo em toda a minha vida.
Aliás, tudo aquilo era absolutamente novo para mim, uma criança que até então vivera em local isolado.
Logo, um punhado de nobres e dignitários se aproximou para nos receber.
Depois, tiveram início as cerimónias de praxe, que eu não acompanhei como deveria pelo extremo cansaço.
Minhas forças chegavam ao fim.
Quando o rei penetrou no palácio com sua escolta pessoal, além de nós, seus familiares, a imensa caravana se desfez aos poucos.
Os guerreiros ficaram livres para festejar o retorno com suas famílias.
Iniciou-se uma grande comemoração com bebida e comida para todos.
Incansável, Ciro dirigiu-se para a sala do trono.
Desejava informar-se sobre a situação política do reino.
Cada um dos ministros e conselheiros apresentou relatório das actividades nos diferentes sectores em que se dividia a administração pública.
O chefe do conselho contou ao rei como conseguira acabar com o levante, prendendo todos os envolvidos, e, em alguns casos, dependendo do grau de responsabilidade, condenando-os à morte.
Em seguida, finalizou:
- Quanto à tua concubina, meu rei e senhor, está encarcerada desde aquela época.
Não me julguei com o direito de decidir sobre sua vida - em vista dos laços que a unem a ti -, preferindo deixar que faças justiça, dando a melhor solução para o caso.
Ciro concordou com o chefe do conselho:
- Sábia decisão, meu amigo.
Saberei puni-la como merece, já que não respeitou sua condição de concubina real.
A reunião está encerrada.
Amanhã, logo cedo, trataremos de outros assuntos pendentes.
Sob a reverência dos presentes, Ciro deixou a sala, encaminhando-se para a galeria onde estavam localizados seus aposentos particulares.
Diante da simplicidade em que vivera, os novos alojamentos me pareceram muito sumptuosos, razão pela qual adormeci quase que de imediato.
Afinal, as emoções daquele dia tinham sido muito fortes para mim, que jamais saíra do aconchego daquele oásis de paz no deserto para conhecer outros lugares.
A viagem fora-me exaustiva e precisava de repouso.
Só despertei no dia seguinte com o sol a pino.
Assim que abri os olhos, três jovens se aproximaram escondendo o rosto, entre risinhos e olhares curiosos.
Uma delas aproximou-se reverente e, antes que ela pudesse dizer algo, perguntei irritado:
- O que fazeis aqui?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2020 8:01 pm

- Senhor, estamos aqui para servir-te.
Ajudar-te na higiene, no banho e na escolha das tuas vestes.
Mais irritado ainda, resmunguei:
- Não é preciso.
Sou um rapaz e estou acostumado a cuidar de mim mesmo.
Sei banhar-me e vestir-me perfeitamente bem, sozinho.
As jovens trocaram olhares aflitos, enquanto torciam as mãos, presas de grande nervosismo.
- Príncipe, nós três fomos designadas para servir-te.
Se não ficares satisfeito connosco, julgarão que te desagradamos e pagaremos por essa insolência.
Receberemos o castigo da chibata, e podemos até ser mortas!
Piedade, Senhor! Poupa-nos!
- Mas... Por quê?
- Porque somos escravas e tu és o príncipe herdeiro!
Este é o costume na corte.
Boquiaberto, pois não imaginava que os costumes na Pérsia chegassem a tais extremos, contemporizei ao ver o desespero das belas jovens:
- Está bem. Não desejo ser a causa da desdita de ninguém.
- Não te arrependerás, meu senhor.
Seremos tuas mais fiéis servidoras e aliadas.
Vivazes e risonhas, elas passaram a cuidar de suas tarefas.
Enquanto uma me preparava o banho, jogando pétalas de rosas odorantes na água, a outra escolhia um traje completo para me vestir.
A terceira tomou de um alaúde e se pôs a cantar uma linda melodia.
Entretido a contemplá-las em suas actividades, acompanhava-lhes os movimentos delicados e suaves.
As três eram extremamente belas e possuíam uma graça natural que as tornava encantadoras.
Permiti que me servissem à vontade, só não deixei que me banhassem.
Preferi fazê-lo eu mesmo, coberto de vergonha.
Depois que me vestiram e enfeitaram, sentei-me em almofadas de cetim e brocado, como sugeriram.
Não demorou muito, trouxeram-me uma refeição:
carnes assadas acompanhadas de frutas.
Para beber, um copo de vinho, que recusei.
- Não. Trazei-me água, apenas! - ordenei.
Terminado o repasto, sai dos meus aposentos para distrair-me um pouco.
Queria conhecer o palácio, suas dependências, visto que ali seria minha residência de ora em diante.
Elas desejavam me acompanhar, o que não permiti.
Parecia-me ridículo desfilar pelo palácio com três lindas jovens ao meu redor, como se fôssemos um cacho de uvas.
Escolhi uma delas, aquela que fora porta-voz das demais, e que me parecia mais viva, inteligente e sagaz, e ordenei que as outras duas permanecessem nos aposentos.
- Como é teu nome?
- Míria, senhor.
- Pois bem, Míria.
Quero que me leves a conhecer o palácio; desejo ver as coisas mais interessantes.
O que sugeres?
- Sim, meu senhor. Vem comigo!
Creio que devas conhecer em primeiro lugar a sala do trono, de onde despacharás um dia, quando tu fores o rei.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2020 8:01 pm

- Excelente!
Míria levou-me por entre galerias com infinitas portas, salas e corredores, até uma grande sala onde se achavam reunidas umas cinquenta pessoas.
Ao fundo do salão, no centro, vi Ciro, meu pai, que recebia seus súbditos, ouvindo-lhes as reclamações, suas pendências e fazendo-lhes justiça.
- Desde cedo nosso rei aqui se encontra reunido com essa gente.
Eram centenas; porém, à medida que os casos vão se resolvendo, Ciro os dispensa e a sala vai-se esvaziando - esclareceu Míria, em voz baixa.
Depois fomos para outros lugares.
Assim, visitei minha mãe, instalada em aposentos luxuosíssimos.
Extremamente bem vestida e bem penteada, cheia de jóias, o que lhe acentuava a beleza.
Eu nunca a tinha visto tão bela.
Ficou feliz com minha visita e conversamos durante algum tempo.
Em seguida, desejei visitar o harém do rei.
Míria levou-me através de enormes galerias, atravessamos salas e corredores, até chegar a uma grande porta rendilhada, no final de uma galeria, guardada por dois possantes eunucos que, de braços cruzados ao peito, cabeças rapadas, infundiam pavor.
Míria dirigiu-se a eles, afirmando que o príncipe herdeiro desejava conhecer o harém.
Ao ver-me, eles inclinaram-se com respeito e apressaram-se a abrir a porta rendilhada.
Penetramos naquele local sagrado onde homem nenhum tinha acesso, a não ser os eunucos; eu pude entrar porque era uma criança ainda.
Caminhamos por imensas salas, com grandes janelas cobertas com cortinas esvoaçantes, que davam para um jardim interno, belíssimo, cercado por altos muros cobertos de musgo.
Vi caminhos entre os arbustos odorantes e belas flores que se abriam ao sol, entremeados de bancos e pérgulas graciosas, encantadores refúgios onde algumas mulheres brincavam com crianças.
Os risos alegres e espontâneos ecoavam no ar.
Vez por outra, víamos uma dessas mulheres passando apressada de um lado para outro, sem nos prestar maior atenção.
Até que chegamos a uma das salas, onde muitas delas se encontravam reunidas, conversando alegremente, bordando, penteando-se ou cuidando da beleza.
Ao nos verem, ficaram surpresas.
Uma delas adiantou-se e perguntou-me, curiosa:
- Imagino que sejas o príncipe herdeiro.
Aquele que chegou junto com o nosso rei e senhor...
- Sim. Sou Kambújiya - respondi com altivez.
Logo, um bando de mulheres nos cercou, fazendo perguntas e mostrando interesse em saber como havíamos sobrevivido.
Respondi na medida do possível.
Precavido, nada esclareci sobre o lugar onde passara minha infância, ciente de que deveria ser um segredo bem guardado, pois poderia nos ser útil em outras circunstâncias.
O futuro era uma incógnita e quem sabe seria necessário valermo-nos dele novamente.
Uma das mulheres, mais velha e de fisionomia carrancuda e severa, aproximou-se, evidenciando incontida raiva:
- Foi por causa dele que nossa querida companheira foi afastada de nós e encarcerada.
Sabe-se lá se já não está morta!
- Não digas tal coisa do nosso principezinho.
Ela foi presa por ter-se sublevado, tentando colocar o filho no trono.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2020 8:02 pm

Teve o que mereceu.
Afinal, todas nós temos o mesmo direito e ela queria nos passar para trás - considerou uma outra, de semblante mais afável.
Como elas começassem a brigar entre si, decidimos deixar o harém, aproveitando a confusão reinante.
Logo, os eunucos de guarda chegaram para apaziguar as esposas briguentas.
Resolvi retornar aos meus aposentos.
Estava cansado.
Mais tarde, Ciro mandou-me chamar.
Míria levou-me à presença dele.
Enquanto ela permanecia fora, eu entrei.
O rei fazia um ligeiro repasto e convidou-me a acompanhá-lo.
Sentei-me entre as almofadas e servi-me de tâmaras maduras e suculentas.
Observando-me discretamente, ele perguntou:
- O que fizeste hoje, Kambújiya?
Narrei-lhe nosso passeio, falei-lhe sobre tudo o que tinha visto, do que mais gostara, inclusive da visita ao harém.
Ciro levantou os olhos, fitando-me com argúcia.
- Não foste muito previdente entrando no meu harém desacompanhado de seguranças.
A discussão entre as mulheres deve ter-te mostrado que ali não há harmonia perfeita.
Existem aquelas que ainda defendem a companheira traidora, tomando-lhe as dores.
A propósito, foste prudente nada revelando sobre o local onde cresceste e que foi teu refúgio durante todos esses anos.
Percebi naquele momento que a Ciro nada escapava.
Era informado de tudo o que acontecia perto ou mesmo longe dele.
Certamente alguém já o cientificara do acontecido no harém.
Aquilo teve o condão de irritar-me.
Se meu pai estava ciente de todos os meus passos, por que me perguntar?
Saber-me observado nas menores coisas desagradou-me bastante.
Porém, sábia e humildemente, inclinei-me:
- Peço-te perdão, senhor meu pai.
Compreendo agora que não deveria ter entrado lá.
Todavia, julguei que tudo estivesse bem, o conselheiro afirmou que todos os envolvidos já tinham sido julgados, e estavam mortos ou presos.
- Sim, é verdade.
Mas não podemos cerrar os dois olhos.
Mesmo quando adormecemos, um olho deve sempre permanecer aberto.
É assim que sobrevivi até esta data.
Entendeste, Kambújiya?
- Sim, meu rei.
Ciro acabou de comer e depois, limpando as mãos, notificou-me:
- Muito bem, meu filho.
A partir de amanhã, iniciarás tua instrução e treinamento.
Estás dispensado. Podes ir agora.
Levantei-me e, inclinando-me reverente, deixei os aposentos reais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2020 8:02 pm

11 - Uma grande perda
A partir desse dia, minha vida mudou completamente.
Deixei de ser a criança despreocupada e passei a ser tratado como o príncipe herdeiro.
Alguns dias depois, minha mãe foi buscar-me, por ordem de meu pai, para assistir a uma cerimónia.
Com toda a pompa, dirigimo-nos para o local onde, segundo meu modo de entender, haveria uma festa.
Todo o povo já se achava reunido numa praça e a multidão impaciente e curiosa aguardava.
A uma ordem do Imperador, deu entrada no lugar uma mulher com as mãos amarradas, sendo conduzida por dois guardas.
Somente nesse momento notei um poste, no centro da praça, onde ela foi amarrada.
Ciro levantou o braço e falou à multidão:
- A penalidade imposta a esta mulher é para que ninguém se julgue com o direito de trair Ciro 2º, o Imperador da Pérsia.
Que se inicie a execução!
A essas palavras, ouviu-se uma ovação vinda do povo.
Logo em seguida, várias pessoas passaram a atirar pedras na condenada.
Dentro em pouco, seu rosto acusava feridas sangrentas, bem como seus braços, peito e pernas.
Quando ela tombou inconsciente, seu corpo era uma chaga só.
Um dos guardas fez sinal para que parassem de atirar pedras e foi verificar o estado dela, constatando que estava morta.
Retiraram-na do poste, e seu corpo foi levado para ser queimado.
Esta foi a primeira execução a que assisti, e fiquei muitíssimo impressionado.
Eu sabia que aquela mulher era uma das concubinas de meu pai, exactamente a que o tinha traído, obrigando minha mãe a exilar-se comigo no ventre.
Ainda assim, o espectáculo foi muito forte para uma criança, embora em momento algum eu tivesse dado sinal de fraqueza, portando-me realmente como um príncipe herdeiro, conforme afirmou Ciro depois, cumprimentando-me.
Ciro resolveu mudar a sede do reino da Pérsia para Ecbátana, capital da Média, o que foi feito, não sem muito trabalho e esforços exaustivos.
Afinal, mudar com toda a corte, as famílias e todos os órgãos da administração do reino, não era tarefa fácil.
Em Susa permaneceriam os responsáveis pela administração local.
E assim foi feito.
Após as adaptações necessárias para acomodar a todos, contando com a cooperação e a boa vontade dos ministros, conselheiros, dignitários, súbditos, ocupantes de cargos públicos e suas famílias, conseguimos concluir a mudança da capital.
Adaptei-me com facilidade.
Minha rotina continuou a ser a mesma.
Os dias ocupados com treinamento nos jogos, prática de armas e montaria.
Levantava-me muito cedo e, durante toda a manhã, exercitava-me nas mais diversas artes da guerra e de jogos.
Após a refeição, dirigia-me para uma espécie de sala de aula, onde me dedicava a estudos diversos.
Não que eu fosse totalmente ignorante, isso não.
Aziz, durante aqueles anos no deserto, sempre se esmerara em passar-me conhecimentos e informações que me seriam úteis no futuro.
Todavia, agora era diferente.
Recebia orientações de como governar, do funcionamento da administração do país, de estratégias de guerra e de combate, como manter o exército estimulado e fiel, como manter boas relações com os países tributários.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2020 8:02 pm

Estudava as normas do país, nas mais diferentes áreas, e como aplicar a justiça.
Normalmente, a justiça estava a cargo de juízes que pertenciam às famílias mais nobres;
porém, nos casos mais graves, recorriam as partes litigantes ao soberano.
Em virtude disso, eu fazia estudo de casos em que era obrigado a encontrar a solução para o problema.
Não raro, o rei exigia minha presença na sala do trono, quando eram julgadas pessoas que haviam sido acusadas de crimes, e, discretamente, em voz baixa, procurava saber meu parecer e qual seria minha decisão, caso estivesse no seu lugar.
No começo, isso me incomodou bastante. Sabia que estava sendo testado, e tremia de medo de não conseguir me sair bem perante o todo-poderoso Ciro.
Com o passar do tempo, fui-me acostumando e até gostando do desafio.
Algumas vezes acertei, sendo elogiado por Ciro, o que me enchia de orgulho e de vaidade; de outras, mostrou-me ele qual deveria ser a decisão, segundo as leis vigentes, alertando-me para que as estudasse bem de modo a não cometer injustiças.
Enfim, eu estava sendo preparado para suceder a Ciro, em caso de necessidade.
Não apenas em caso de morte, mas também nas ocasiões em que o soberano se afastasse da capital, em suas campanhas de conquista.
Deveria assumir o trono e os deveres que lhe eram correlatos.
Com certeza, não faria isso sozinho, visto que ainda era muito jovem e sem experiência.
Teria a assessorar-me os conselheiros e ministros da Pérsia, o que me deixava mais tranquilo.
Também me dedicava aos estudos da religião.
Ao soberano - afirmava Ciro - competia conhecer devidamente todas as regras religiosas para não errar e desagradar aos deuses.
Durante determinado período, passei longo tempo no templo de Mitra, preparando-me para ser um iniciado.
Ciro, porém, após conquistar a Média, convertera-se à doutrina de Zaratustra (Zoroastro, para os gregos), que pregava não mais a existência de muitos deuses sob a regência de Mitra, deus do Sol, de Anaita, deusa da terra e da fertilidade; de Haoma, o deus-touro, que, após a morte, teria voltado para dar ao povo seu sangue, em forma de bebida que lhe conferiria a vida eterna, a graça da imortalidade.
E desde muito tempo os iranianos, raça da qual descendiam os primitivos medos e persas, adoravam-no, ingerindo o suco de haoma, uma erva típica das encostas montanhosas.
Embriagavam-se com ela, julgando dessa forma serem dotados de muitos poderes.
Indignando-se contra essas primitivas práticas e os deuses que as incentivavam, Zaratustra rebelou-se e, com infinita coragem e firmeza, anunciou ao mundo a existência de um só Deus, o princípio do bem, Ahura-Mazda (ou Ormuz), senhor da luz e do céu, do qual os outros deuses não passavam de manifestações e qualidades;
e um princípio do mal, Ahriman (ou Angra Mainyu), ambos emanações do eterno, ou ser supremo.
Colocando-se frontalmente contra os antigos deuses, iniciou uma reforma religiosa com carácter monoteísta, à qual aderiu Ciro, sem jamais obrigar seus súbditos a segui-la, convivendo a velha doutrina politeísta com a nova doutrina monoteísta em igualdade de condições.
E eu, como herdeiro do trono, tinha o dever de estudá-la.
Era uma religião diferente de tudo o que eu já vira, não aceitando templos, não adorando ídolos.
Seus altares ficavam em meio à natureza, no alto dos montes, numa praça no centro da cidade, sempre com uma pira de fogo acesa em honra a Ahura-Mazda.
Nos lares e palácios também fazia parte da fé deixar sempre um fogo aceso, a ter a bênção da divindade.
Mas eu não dedicava o tempo todo aos treinamentos e estudos.
Parte do dia, conquanto pequena, era-me deixada livre para estar com as outras crianças do palácio.
Ciro era um soberano que possuía dezenas de mulheres e um número proporcional de filhos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2020 8:03 pm

Então, eu confraternizava com meus irmãos, por parte de pai, e brincava com eles, sendo que muitos se tornaram meus amigos.
Tinha lindas irmãs e sabia que uma delas seria minha esposa.
Ciro raramente permanecia muito tempo em Ecbátana;
estava sempre em guerras de conquista.
Lançou-se depois contra a Lídia, reino que havia décadas os medos combatiam sem sucesso, conquistando-a em 546 a.C., quando eu tinha por volta de nove anos.
Retornou cheio de glória, trazendo o derrotado rei Creso, sua família e seus nobres súbditos com honras reais.
Aquilo me deixou extremamente indignado.
Logo que tive oportunidade de estar com meu pai, a sós, eu o questionei sobre essa atitude, que julgava absurda.
Com delicadeza, Ciro contou-me que, ao tomar Sárdis, a capital da Lídia, dominando o povo vencido, Creso, o soberano derrotado, incapaz de aceitar tal humilhação, preparou uma grande pira funerária para morrer queimado junto com sua família e seus mais nobres súbditos, sobreviventes do combate.
Após posicionar-se com todos na pira, ordenou aos servos, horrorizados, que botassem fogo.
Havia tamanha dignidade em sua atitude, que Ciro condoeu-se da situação do antigo soberano.
Mandou apagar a pira e trouxe Creso com sua família para Ecbátana.
Posteriormente, ao confirmar-lhe os dotes de espírito, fez dele um dos seus conselheiros mais leais.
Quando completei doze anos, o rei escolheu uma de suas filhas para ser minha esposa.
Roxana, minha irmã, contava dez anos nessa época, portanto ainda mais jovem do que eu.
Fiquei orgulhoso da escolha de meu pai, pois ela era a mais bela entre todas.
Percebi, porém, que essa decisão de Ciro desgostou e desiludiu a vários irmãos meus que, no fundo, sonhavam com tal esposa, bela entre as belas, o que me deixou intimamente satisfeito.
O melhor teria que ser meu, sempre, em tudo, já que estava fadado a suceder o rei.
Assim, passeava com ela pelos jardins, de cabeça erguida e peito inflado de orgulho.
Todavia, embora comprometido, minha existência prosseguiu como sempre fora, não sendo modificada pelo facto de ter contratado matrimónio, visto que a cerimónia ainda estava longe da sua realização.
Como éramos duas crianças ainda, brincávamos juntos e nos divertíamos com pureza, sem saber, na verdade, o que significava realmente esse compromisso de matrimónio.
No ano seguinte, quando completei treze anos, minha irmã e eu nos casamos.
A cerimónia aconteceu entre grandes festejos, que se estenderam por vários dias.
Toda a população festejou connosco o casamento do príncipe herdeiro e sua noiva.
Foram feitas fartas distribuições de alimentos e bebida para os súbditos, que dançaram nas ruas e nas praças da capital, augurando saúde, felicidade e vida longa ao jovem casal.
Minha esposa e eu nos divertimos bastante com os festejos.
Após esse dia, passamos a ocupar aposentos contíguos, divididos apenas por reposteiros, o que nos encantou.
Passávamos de um lado para o outro, sem motivo, apenas para brincar, e ríamos muito, achando tudo imensamente engraçado.
Como minha esposa sentia medo de ficar sozinha no quarto que lhe fora destinado, uma vez que sempre tivera a companhia das irmãs, e tanto o leito dela quanto o meu fossem extremamente grandes, passamos a dividir o mesmo leito.
Especialmente em noites de tempestade, quando os raios e trovões cortavam os céus, ela corria ao meu encontro e abraçava-me com força, gelada e trémula, e partilhávamos o leito, aquecendo-nos mutuamente, o que nos dava imenso prazer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2020 8:03 pm

Com o passar do tempo, cresci, meu corpo se desenvolveu, a voz se modificou, os músculos se enrijeceram, fiquei mais flexível e destro no manejo das armas, especialmente na machadinha e no arco-e-flecha.
Era respeitado por todos, que me reverenciavam pela condição física e pela posição de futuro Imperador da Pérsia.
Contudo, através dos anos eu me modificara sensivelmente.
Aquele menino simples e humilde, que passara a primeira parte da vida no deserto, não mais existia.
No lugar dele, surgira uma criatura orgulhosa e prepotente, ciente de suas condições físicas e de seu poderio.
Agora já um adolescente, com os harmónios em ebulição, passava as noites em orgias, bebia mais do que o razoável, entregue a todo tipo de depravação.
Quanto a Ciro, mantinha o respeito que lhe era devido apenas por ser o Imperador todo-poderoso da Pérsia.
Distanciara-me dele, porém, em relação à maneira de pensar e de agir;
não aceitava sua generosidade e complacência para com os povos tributários, ironizando suas atitudes, quando reunido em festas e banquetes com os meus amigos mais leais, e quando a bebida já falava pela minha boca.
Aos poucos, fui-me modificando a ponto de não ser mais reconhecido.
Enquanto minha mãe viveu, ainda consegui manter-me mais dentro do equilíbrio, visto que sua influência era profundamente benéfica ao meu espírito, pela evolução moral que já conquistara.
Diante dela, eu não conseguia agir de maneira errada, respeitava-a e acatava-lhe os conselhos.
Todavia, longe dela, praticava tais desvarios, que a faziam sofrer terrivelmente.
Acho até que morreu por ver-me escorregar, inapelavelmente, a caminho do abismo.
Foi ficando triste, cada vez mais quieta, sempre entregue às suas orações, e, quando eu ia até seus aposentos, ela evitava falar muito, olhando-me apenas, sem repreender-me a conduta, sem aconselhar-me como tantas vezes fizera.
Em determinados momentos, parecia-me até que tinha medo de mim, seu filho!
Ao vê-la tão abatida, eu fazia propósitos de melhorar minhas atitudes, sabendo que a magoava profundamente.
Mesmo sem repreender-me, eu sentia em seu olhar uma imensa piedade por mim, tristeza por não ser o filho que ela desejara e dor pela incapacidade de não conseguir modificar-me.
Nessas ocasiões, eu ajoelhava-me diante dela, beijava-lhe as mãos e caía em prantos, compreendendo-lhe os sentimentos.
Um dia, um escravo veio avisar-me de que minha mãe não estava bem.
Passara mal à noite e agora desejava ver-me.
Dirigi-me a seus aposentos com o coração nas mãos.
Encontrei-a enfraquecida;
palidez marmórea cobria-lhe o semblante ainda belo e manchas arroxeadas circundavam-lhe os olhos, sempre fechados, como se estivesse dormindo.
Ao vê-la, notei como tinha emagrecido;
sua pele, antes cheia de vida, agora se mostrava cor de cera, e os ossos saltavam-lhe sob a roupa; seus bastos cabelos, antes escuros e anelados, estavam grisalhos.
Tinha a aparência de uma velha.
Aproximei-me mais do leito, temeroso, e ela pareceu ter-me percebido a presença.
Abriu os olhos lentamente e, ao ver-me inclinado sobre ela, ensaiou um leve sorriso.
- Minha mãe!
Como estás? O que sentes?
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 3 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 21, 2020 8:03 pm

Moa tentou levantar a destra, e entendendo-lhe o desejo, tomei sua mão gelada na minha.
Depois, com esforço, ela sussurrou:
- Meu... filho! Meu... querido... filho!
É chegada... minha hora.
Os deuses... me chamam... e devo ir.
Não... chores.
Desesperado, inundei sua mão de lágrimas.
- Não, minha mãe, não me deixes.
Que será da minha vida sem ti?
Respirando fundo, ela meneou a cabeça e balbuciou:
- Tem... coragem, meu filho.
Não te... esqueças de mim... e de tudo o que... aprendeste.
Transforma-te num... homem bom... para seres feliz.
Lembra-te... daqueles anos... que passamos no deserto.
Foram... os mais felizes... de toda... a minha vida...
Abraçando-a, tentava segurar-lhe o fio da existência, que parecia tão ténue.
- Pois, se assim desejas, minha mãe, eu te levarei até lá para reveres o local onde passei os dias da minha infância e onde eu também era tão feliz.
Ela sorriu, com o olhar perdido ao longe, como se estivesse contemplando aquelas plagas que tanto amava.
- É impossível... meu... filho.
Agora... não... posso... mais.
Velarei por ti... de onde estiver.
Estarei... sempre contigo.
Após essas palavras, Moa cerrou os olhos para não mais abri-los neste mundo.
Debrucei-me sobre seu corpo a chorar convulsivamente;
logo após, Aziz me retirou de perto do leito.
- Kambújiya, tua mãe se foi. Sê forte.
Olhei para minha mãe e percebi que a chama que a mantinha com vida desaparecera.
Ali só estava um corpo inanimado.
Enlouquecido, repassei o olhar em torno e deparei-me com Ciro, que acabava de entrar no aposento.
Tentou dirigir-me algumas palavras de consolo, conquanto também estivesse abalado, mas não permiti.
Roxana, minha esposa, que também chegava, tentou em vão consolar-me.
Corri pela porta afora, desatinado, sem saber para onde ir.
Desci as escadarias do palácio, onde o povo, que acabara de receber a notícia, aglomerava-se, e procurei o grande jardim, buscando um local deserto onde pudesse estar a sós com minha dor.
Não queria ver ninguém.
E agora, o que seria de mim?
Como sobreviver ao caos que a falta de minha mãe geraria em minha vida?
A quem procurar nos momentos de tristeza, de dúvida, de sofrimento?
Para quem pedir conselhos, contar as novidades da corte, falar de coisas triviais, para mim tão importantes?
A quem recorrer em meus terrores nocturnos, e em minhas crises?
Somente ela conseguia expulsar meus demónios, acalmar-me e fazer-me voltar à tranquilidade.
O que fazer agora?
Por longas horas, ali permaneci, solitário, entregue à minha dor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2020 7:37 pm

Até que a realidade me chamou, na pessoa de Aziz:
- Meu príncipe, dentro de alguns minutos irão se iniciar as primeiras cerimónias fúnebres em honra de nossa rainha, tua querida mãe.
Os sacerdotes já chegaram.
Tua presença é imprescindível.
Levantei-me com dificuldade, entendendo a importância da observação de Aziz.
Sim, eu era o príncipe herdeiro e o protocolo estabelecia que eu precisava estar na cerimónia, marcando presença ao lado do rei e demonstrando fortaleza de ânimo diante do infausto acontecimento.
Limpei as lágrimas e, ajeitando as vestes, respirei fundo; acompanhei Aziz até o salão, onde os restos mortais de minha mãe estavam abertos à visitação pública.
A minha esposa esperava-me do lado de fora, para entrarmos juntos.
Ciro chegou logo após, com seu séquito.
Imediatamente os sacerdotes iniciaram a cerimónia.
Embora a aparência estivesse impassível sentia-me demasiadamente desesperado para prestar atenção nas palavras dos religiosos.
Quando dei por mim, tudo tinha acabado e os sacerdotes se afastavam, para voltar mais tarde, quando prosseguiriam as cerimónias religiosas.
Junto da esposa, encaminhei-me para nossos aposentos, onde desejava repousar um pouco.
Estava exausto.
Minha mulher começou a falar sem parar, comentando o comportamento das pessoas da corte, o que me incomodou.
Enquanto ela falava, encaminhei-me para nosso jardim particular.
Deixei-me cair num banco e ali permaneci recostado, tentando relaxar a mente.
Contudo era difícil.
As lembranças assomavam-me em torrente e, na tela da memória, revia as imagens do passado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2020 7:38 pm

12 - Mergulho no erro
Recordei-me da existência tranquila, dos primeiros anos passados no deserto, o momento da partida da região de Anshan para Susa, e que, mesmo quando nos transferimos para Ecbátana, até certo ponto prosseguiu serena e feliz.
Quando tudo teria se modificado?
O que teria gerado essas transformações?
Por meio de uma catarse íntima, rebusquei a memória tentando encontrar as razões ou os factos que me tivessem levado à actual situação.
E lembrei-me, então, dos primeiros tempos em que gozava a nova condição de príncipe herdeiro, das actividades desenvolvidas, dos amigos e companheiros de folguedos.
As cenas desfilavam em minha tela mental como se estivessem acontecendo naquele instante.
Como um espectador, notei que, com o passar dos anos, aos poucos deixei-me impregnar pelo ambiente do palácio, envolver-me pela bajulação das pessoas, que elogiavam minha destreza nos jogos e no manejo das armas, minha força física, o que desenvolveu dentro de mim imperfeições graves, como o orgulho e o egoísmo, e, como consequência das duas primeiras, das quais são irmãs, a vaidade e a ambição.
Entrando na puberdade, à medida que o corpo se desenvolvia, com que imenso orgulho notava os primeiros fios de barba a surgir-me na face!
Minha aparência parecia modificar-se, ganhando contornos novos, enquanto eu, inflado de soberba e vaidade, desfilava pelos salões do palácio.
Pela via intuitiva, percebi que, ao deixar brotar em mim esses sentimentos, imperfeições que já existiam no íntimo, latentes, esperando época propícia para germinar, tornei-me mais frágil moralmente, conquanto mais forte em vigor físico.
Afastei-me dos amigos da infância, aqueles mesmos com quem dividia a vida simples e despojada do exílio em Anshan; companheiros que se ligavam a mim pelos laços do afecto e não do interesse, visto que, tanto quanto eu, também eles ignoravam nossa condição de foragidos.
E foi por essa época que comecei a ter pesadelos, não conseguindo dormir à noite.
Sentia-me envolvido por seres maléficos que tentavam perturbar-me, destruindo-me a paz e a tranquilidade.
Vezes sem conta, altas horas da noite, dirigi-me aos aposentos de minha mãe, suplicando-lhe auxílio.
Ela agasalhava-me em seus braços, orava a Ahura-Mazda, o senhor da luz, a meu benefício, e logo eu me sentia melhor.
As sombras ameaçadoras se afastavam e eu voltava a adormecer.
Por intermédio dessa catarse, comecei a notar que - quanto mais eu me mostrava duro e cruel com as pessoas, áspero no trato e agia com maneiras desagradáveis; quanto mais mergulhava nos vícios, com o despertar da sexualidade, agora passando noites e noites em orgias mais se acentuava o problema.
Os pesadelos tornavam-se mais intensos, e Ahriman e os seres demoníacos tornavam-se mais presentes e mais fortes.
Torturavam-me barbaramente, queimavam-me a pele, asfixiavam-me, espancavam-me a ponto de deixar-me fraco, entregue, sem ânimo para nada.
Despertava no dia seguinte alquebrado, com o corpo todo dolorido, pálido e desfeito.
Somente a presença de minha mãe conseguia acalmar meus íntimos padecimentos.
Com o passar do tempo, ganhando mais força, meus inimigos passaram a dominar-me os dias também.
Eu os via chegar e enchiam-me de terror.
Eram mulheres de aspecto apavorante, pálidas e com negras roupas esvoaçantes, que surgiam em bando.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2020 7:38 pm

Com supremo horror, contemplava-lhes os peitos abertos, de onde os corações tinham sido arrancados e de onde o sangue gotejava ainda pelas feridas sangrentas; algumas delas traziam uma rosa rubra nas mãos.
Ou eram jovens, meninas mesmo, que me apareciam como se tivessem tido seus corpos totalmente queimados, exalando um cheiro nauseabundo proveniente das carnes que se despegavam dos ossos.
Mostravam cabeças nuas e fisionomias horripilantes, queimadas e cheias de bolhas.
De outras vezes, eram homens descabelados, de olhos vermelhos e terríficos, que apenas grunhiam, mostrando bocarras abertas de onde as línguas tinham sido barbaramente extirpadas.
E, conquanto não falassem, eu "ouvia" as suas vozes.
Todos, os demónios masculinos e femininos, ameaçavam-me, torturavam-me, num vozerio infernal, levando-me às raias da loucura.
Sem poder resistir mais, eu caía no chão, a tremer e a estrebuchar, enquanto a língua se me enrolava e uma baba grossa e viscosa escorria-me pelos cantos da boca.
A princípio, ninguém sabia o que estava acontecendo, qual seria meu problema.
Como figura de grande projecção na corte de Ciro, fazendo parte da família imperial, esconderam minhas "crises", de modo que poucas pessoas souberam que eu não estava bem.
Eu era o príncipe herdeiro, sucessor de Ciro, e os mais íntimos procuraram evitar que o povo, supersticioso, tomasse conhecimento do meu estado.
Somente minha mãe conseguia sempre ajudar-me, fazendo com que eu retornasse à normalidade.
Ao readquirir a consciência, voltando dessas crises, sentia-me exausto e dormia por longas horas, assistido amorosamente por minha mãe e por minha esposa.
Ao acordar, não me lembrava de nada.
Consultados vários herboristas, magos, entendidos em moléstias e religiosos do templo de Mitra, que estudavam medicina, nenhum deles conseguiu diagnosticar a enfermidade insidiosa que me consumia as forças e me tornava um ser inseguro.
Apenas um deles, sacerdote de Ahura-Mazda, atreveu-se a sugerir que eu sofria da "doença maldita", isto é, era dominado por demónios.
Este foi rechaçado pelos demais, e até humilhado pelos adversários, servidores do deus Mitra, por não poderem admitir que um príncipe real, descendente dos deuses, pudesse ser atingido por moléstia tão humilhante.
A par disso, meu coração se encheu de revolta.
Por que comigo?
Eu, que tinha tudo para ser feliz, que era belo e amado por todos, especialmente pelas mulheres que borboleteavam a meu redor, disputando-me as atenções e as honrarias?
Eu, que seria o maior soberano que o mundo já tinha visto?
As ideias megalomaníacas só faziam aumentar a incidência das crises.
A cada dia, tornava-me mais áspero, cruel e arrogante;
os ataques de cólera faziam-me, não raro, mandar matar aqueles que me serviam, por motivos fúteis ou sem motivo algum, simplesmente por ter-me desagradado, escolhido o traje errado ou servir-me uma iguaria que não julgava boa o suficiente.
A falta de minha mãe, aquela que me fora um anjo tutelar na existência, gerava-me as maiores dificuldades.
Agora que ela se fora não tinha a quem recorrer a não ser aos escravos.
Minha esposa, sem o apoio e a presença de minha progenitora, que lhe dava forças afastara-se de mim, temendo minhas crises, supersticiosa e infantil.
Contudo, tal reacção, natural e comum num povo ignorante e atrasado, decepcionara-me mais do que gostaria de admitir.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2020 7:38 pm

No fundo, inseguros, não era só minha esposa que fugia, mas todos os que temiam minha presença, por desconhecer qual seria minha atitude diante de alguma situação nova, mesmo a mais corriqueira.
Passei a demonstrar desconfiança e rancor diante daqueles com quem convivia.
Notava perigos por todos os lados e tinha reacções estranhas.
Certa feita, reunido numa sala a conversar com amigos, ao olhar para um escravo que me trouxera bebida, senti-me envolver por uma intensa onda de ódio.
Sem pensar, num impulso agarrei-o, encolerizado, gritando em altos brados:
- Como ousas entrar em meu palácio, traidor infame?
Arrepender-te do que me fizeste.
Guardas, prendei-o!
Meus amigos, e o próprio escravo, ficaram estupefactos.
- Não, meu senhor. Jamais te trai.
Por que o faria? Piedade!
Os demais, apesar do medo que tinham de mim, tentaram ajudar o infeliz.
Naquele exacto momento, Aziz entrou na sala e, notando o ambiente estranho, discretamente indagou a alguém o que estava acontecendo.
Informado, rapidamente dirigiu-se a mim, afirmando:
- Meu príncipe, este homem é Botijo, que sempre te foi fiel.
Irritado, como sempre acontecia ao ser contrariado, reagi:
- Pensas que me enganas?
Este é o vil Hartatef, que me traiu e me aprisionou no Egipto.
Aziz aproximou-se mais de mim e, com olhar terno e cheio de compaixão, murmurou ao meu ouvido:
- Meu senhor, nunca estiveste na terra dos faraós.
Deve haver alguma outra explicação.
Torna a ti e reage contra essas ideias estranhas.
Assim falando, colocou a mão em meu braço.
Naquele momento, notei que algo se desprendeu de sua mão e correu pelo meu corpo como fagulha, envolvendo-me em inusitado bem-estar.
Respirei fundo, sentindo-me melhor e tentando expulsar da mente aqueles pensamentos, embora não fosse fácil.
Em breve voltei ao normal, continuando a conversar com os companheiros, como se nada tivesse acontecido.
O escravo, mais calmo e profundamente agradecido, olhou para o sábio Aziz e curvou-se diante dele, murmurando palavras de gratidão.
O ancião sorriu e, discretamente, fez-lhe leve sinal para sair, ao que ele obedeceu incontinenti.
Fatos como esse passaram a acontecer com certa frequência.
Os mais chegados procuravam uma desculpa para minhas atitudes, e tudo era abafado.
Em outras ocasiões, porém, eu ficava de tal modo violento que ninguém me podia impedir os actos de barbárie.
Estava sempre a ver inimigos em toda parte, personagens que conhecera em outros tempos, dos quais guardava lembranças desagradáveis e nocivas, transferindo para a vida actual o ódio que ainda sentia deles.
Em relação à figura materna, sentia que era alguém muito querido, que reencontrara nesta existência e que viera para me amparar.
Ao pensar nela, agora que não mais habitava o corpo físico, as imagens se misturavam.
Ora eu a via com a aparência de minha mãe, ora como uma jovem magra e de olhos grandes e aveludados, que me servia água e comida num tipo de caverna rochosa, cheia de pó, onde havia muitas outras pessoas, que me pareciam escravas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2020 7:38 pm

De repente, eu caía no solo, meus olhos se cerravam e eu nunca mais a via, afastamento que me deixava desesperado, entregue a um profundo sofrimento e solidão, os mesmos sentimentos que experimentei ao perder minha mãe.
Assim, em minha mente doente, as imagens desta vida se misturavam com as de vidas anteriores, levando-me pouco a pouco à loucura.
No mais, levava vida até certo ponto normal.
Somente fui entender o que aconteceu comigo muito tempo depois, no Além-túmulo.
Em virtude dos crimes praticados, gerara extensas e nocivas vibrações de ódio e rancor que se perpetuavam no tempo e no espaço.
Na mente doentia, passado e presente se misturavam, pela sintonia com as fontes do mal e os seres que, sendo minhas vítimas, não me perdoaram pelas dores e sofrimentos que lhes causei.
Mantivera-me ileso aos ataques das sombras enquanto pautara a vida pela boa conduta, sem causar e nem
desejar o mal a outrem.
Ao modificar-me para pior, minhas defesas foram por água abaixo, pelas brechas morais que me permitira, ligando-me novamente aos seres vingativos que só desejavam destruir-me.
Enquanto minha mãe esteve junto comigo, era meu refúgio e minha segurança, pela superioridade moral já conquistada, e que me mantinha sob sua tutela.
Por isso, ao lado dela não sentia nada, todas as dores eram amenizadas e todas as sombras afastadas.
De outras vezes, deixava-me conduzir docilmente por pessoas que tinham ascendência sobre mim, nas quais confiava e das quais acatava as ideias com singular obediência, para perplexidade de todos os que conviviam comigo, incapazes de entender-me as reacções.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2020 7:38 pm

13 - Em busca de emoções
Certo dia, decidi sair a passeio pelas ruas da nossa capital; no fundo, desejava novas emoções, encontrar mulheres diferentes que me excitassem os sentidos.
Já experimentara de tudo a que tinha acesso e sentia-me sedento de prazeres novos.
Tudo começara certa ocasião, numa tarde extraordinariamente quente, quando passava perto de um grupo de pessoas que conversavam, numa das salas do palácio, e ouvi alguém comentar que, em um dos bairros mais pobres da cidade, havia uma jovem de extraordinária beleza e que, não obstante pudesse escolher qualquer homem, jamais se interessara por ninguém.
Até então, rejeitara sumariamente a todos os candidatos que haviam tentado aproximar-se dela.
Essas informações estimularam-me a curiosidade
e despertaram-me o interesse.
Ordenei a dois homens da minha guarda pessoal, Rafiti e Malec, que fizessem averiguações e, depois, confiante em meu poder de sedução, para lá me dirigi com eles.
Vagando pelas ruas pobres, acabamos por nos perder.
As vias públicas estavam desertas, sem viva alma.
As pessoas do povo tinham medo de desconhecidos, especialmente cavaleiros, e se escondiam.
Estava para bater numa das miseráveis taperas e obter a informação que desejava, mesmo que precisasse usar a força, quando vi uma porta aberta, meio escondida entre a vegetação.
Parei, desci do cavalo e entrei.
O ambiente era escuro e, num primeiro momento, tive dificuldade de enxergar, uma vez que viera da claridade do dia onde um sol forte e quente resplandecia no céu.
Aos poucos, acostumando-me à penumbra, comecei a divisar o ambiente.
A princípio, atingiu-me um cheiro forte de ervas, que dominava tudo.
As paredes estavam cobertas por prateleiras onde se viam grande quantidade de potes de barro de tamanhos diversos, enfileirados;
tufos de ervas amarradas com fibra de vegetal;
corpos de animais que haviam passado por algum processo de conservação estavam expostos, secos, como se tivessem vida;
no chão de terra batida, havia imensas ânforas de óleos aromáticos e tonéis de substâncias desconhecidas para mim; numa mesa, montes de rolos de papiros se aglomeravam.
Muitas outras coisas havia naquele lugar, fazendo-me esquecer o que me levara até ali.
Estava assim, entretido a examinar o local, quando alguém pigarreou às minhas costas.
Voltei-me. Contemplei o recém-chegado, surpreso.
Ali estava o ser mais repulsivo que já tinha visto em toda a minha vida.
Era quase um anão; baixo, corpo rotundo, pernas curtas e tortas e braços semelhantes a garras.
A cabeleira, desgrenhada e suja, formava uma moldura condizente com o rosto pálido, o nariz adunco e os lábios finos na boca grande, que mais parecia uma fenda.
Os pequenos olhos amarelados e perscrutadores de serpente me encheram de pavor.
Parecia-me conhecê-lo, embora nunca o tivesse visto.
Entrara pela porta dos fundos, vindo do interior, e ensaiou um sorriso, tentando ser gentil, enquanto se inclinava numa reverência ligeira, ao mesmo tempo que, com voz rouquenha e sem expressão, dirigiu-se a mim:
- Desejas algo, senhor?
Estou aqui para servir-te.
Seu tom de voz soou desagradável aos meus ouvidos.
Como eu permanecesse calado, estupefacto, ele levantou a cabeça, e, ao fazê-lo, sua expressão mudou de repente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2020 7:39 pm

Os pequenos olhos amarelados de serpente se arregalaram ao ver-me, lançando chispas, e a enorme boca em fenda se abriu ainda mais naquilo que pretendia fosse um sorriso, levemente irónico.
Notei que estava surpreso, como se me tivesse reconhecido, o que me causou desagradável estranheza.
No entanto, isso seria difícil, senão impossível, pois eu tivera o cuidado de vir trajado com vestes simples do povo, o mesmo acontecendo com meus homens.
A menos que ele me tivesse visto desfilando junto com o exército, ao retornar de alguma campanha guerreira vitoriosa.
Porém, nessa circunstância, eu estaria vestindo uniforme e não seria fácil reconhecer-me.
Percebendo que o silêncio se fizera longo demais e que ele aguardava, fitei o obsequioso herborista que me observava com ar interrogativo, esfregando as mãos nervosas, e expliquei-lhe a razão da minha presença:
- Estou à procura de certo endereço...
Sem deixar-me concluir a frase, ele zombou, sorrindo novamente, um riso que mais parecia uma careta.
- Sei o que desejas, meu senhor.
Procuras encontrar certa jovem de peregrina beleza e invulgar encanto.
Fiquei um tanto irritado e, ao mesmo tempo, intrigado com sua atitude.
Como ele soubera das minhas intenções?
- Tranquiliza-te, senhor.
Não tenho poderes de adivinho.
É que grande parte dos cavaleiros que passam por aqui desejam a mesma coisa:
encontrar a linda donzela - respondeu ele, parecendo ler-me o pensamento.
Ainda mais irritado do que já estava com a expressão do homenzinho, retruquei:
- Pois muito bem.
Então, se sabes o que desejo, dá-me o que procuro.
Pagar-te-ei regiamente.
Sem se preocupar com a pressa que eu demonstrava nem tampouco com minha irritação, ele prosseguiu com a mesma calma:
- Meu senhor, para obteres o que desejas necessitarás muito mais do que um endereço.
Tenho aqui, em minha loja, tudo o que te poderá ser útil para conseguires o amor da bela jovem.
Minha exasperação chegava ao auge diante da petulância daquele feiticeiro. Indignado e soberbo, rosnei:
- Nada quero de ti a não ser o endereço solicitado.
Após fitar-me de maneira perscrutadora, ele afivelou novo sorriso na face e inclinou-se delicadamente.
Depois, indicou-me o lugar que eu tanto desejava:
- Pois muito bem, senhor. Segue por esta rua.
Na segunda travessa, vira à direita.
É a terceira casa do lado esquerdo.
Sem agradecer, joguei-lhe com desprezo uma moeda aos pés e sai daquele pardieiro.
Todavia, antes que tivesse tempo de montar em meu cavalo, os sons de uma flauta, que vinham de dentro da loja, atingiram-me os ouvidos.
A melodia mexeu com minhas fibras mais profundas.
Os sons pareciam entrar em minha cabeça, acordando emoções antigas e desconhecidas.
Senti-me inebriado, e ligeiro mal me acometeu.
Contudo, lutei para readquirir meu equilíbrio, e, saindo daquele entorpecimento, montei, esporeando o cavalo, e afastamo-nos do lugar estranho e lúgubre.
Chegando ao endereço indicado, a casa estava fechada, vazia.
Esperamos algum tempo, mas, como os moradores demorassem voltar, decepcionado, resolvi retornar ao palácio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2020 7:39 pm

Resignei-me pensando que, agora que já sabia como e onde encontrá-la, poderia voltar em outra ocasião, ou mesmo mandar meus guardas buscá-la.
No palácio, demandei meus aposentos, inquieto e angustiado.
O que estava acontecendo?
Por que aquele homenzinho tivera o poder de me deixar tão desequilibrado e ansioso?
E que música era aquela que me entrara pela cabeça e que mexera com meus nervos?
Onde já ouvira aquela melodia?
Joguei-me no leito imerso em íntimas cogitações.
Não conseguia parar de pensar no estranho anão.
Desejava afastar o pensamento, para livrar-me do mal-estar, porém não conseguia.
A imagem dele prosseguia em minha mente, e seus olhos de serpente como que me enfeitiçavam.
Acabei por adormecer.
Imagens estranhas desfilaram-me na cabeça como lembranças de um outro lugar, de uma outra época.
Vi um soberbo palácio, onde muitos escravos andavam de um lado para outro, calados.
Um imenso jardim, escuro e cheio de plantas e árvores, circundava-o.
De súbito, começou a soar uma melodia, tocada por mãos invisíveis, semelhante à que ouvira na loja, agitando-me o íntimo;
ao mesmo tempo, odor delicioso de perfume se espalhava por todos os lugares.
Conquanto inebriado, um grande peso atingia-me o peito;
penosa sensação de esmagamento causava-me imensa dor.
A respiração tornara-se difícil, asfixiando-me.
Comecei a ver sangue, muito sangue, tudo estava mergulhado em sangue;
no meio desse sangue que cobria tudo, divisei a figura do horrendo anão.
Gritei apavorado.
Acordei, gelado de medo, trémulo, coberto por abundante suor, enquanto o coração batia descompassado, parecendo querer saltar do peito.
Relanceei em torno os olhos arregalados, temendo estar no malfadado palácio.
Ao perceber o ambiente familiar de meu quarto, ao reconhecer-me em meu leito, respirei mais aliviado.
Tinha sido apenas um sonho.
Aos poucos, serenei, voltando à normalidade.
Todavia, o sonho fora tão real que eu sentia que já estivera lá.
Tinha a convicção de que já vivera naquele belo palácio, onde crimes inauditos haviam ocorrido.
Ao mesmo tempo, senti branda aragem refrescar-me a mente cansada, enquanto alguém murmurava em meus ouvidos:
- Não te comprometas mais.
Estás numa posição em que podes fazer muito bem.
Evita mergulhar em novos crimes, pois só aumentarás teus sofrimentos.
Aproveita a oportunidade que te foi concedida e planta o amor ajudando aqueles a quem prejudicaste um dia.
O momento é crucial em tua existência.
Dependerá apenas de ti mesmo a ventura ou a infelicidade que recair sobre tua vida.
Esfreguei os olhos e balancei a cabeça, expulsando as ideias incómodas que faziam questão de se aboletar em meu cérebro.
- Bah! Foi apenas um sonho.
Nada mais do que isso.
Levantei-me de um pulo e deixei meus aposentos.
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 3 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2020 7:39 pm

Precisava resolver alguns assuntos que eram da minha competência.
Ao mesmo tempo, lembrando-me da jovem que desejava conhecer, dei ordem aos dois guardas que me tinham acompanhado para buscá-la.
- Meu senhor, e se não a encontrarmos? - perguntou Rafiti, um deles.
-Trazei essa mulher. É uma ordem.
Podeis gastar o tempo que for preciso, mas não retorneis sem ela, ou respondereis com a própria vida.
Rafiti e Malec saíram imediatamente para cumprir a ordem.
Procurei Ciro na sala do trono.
Precisava falar com ele.
Como estivesse ocupado atendendo delegações de outros países, fiquei aguardando.
Mas a paciência nunca foi meu forte.
Cansei-me de esperar e fui procurar meus amigos.
Ao passar por um dos jardins do palácio, encontrei minha esposa.
Desejava falar-me.
Feliz, contou-me que estava grávida.
A princípio, também me alegrei.
Um novo príncipe ia nascer e era motivo de regozijo.
Conversamos um pouco.
Quase não tínhamos oportunidade de ficar juntos, porque eu estava sempre ocupado, ora guerreando em terras distantes, ora na companhia dos amigos, em farras, caçadas e jogos.
Nisso, um de meus irmãos, Esmérdis, aproximou-se.
Minha esposa já se levantava do banco para ir embora, quando tropeçou em pequena pedra.
Meu irmão, que chegava, segurou-a a tempo, impedindo que caísse.
Aquele simples gesto gerou ideias negativas em minha cabeça.
Esmérdis pareceu-me gentil demais e delicado em excesso com minha esposa.
Roxana levantou a cabeça e agradeceu-lhe, sorridente, uma atitude que seria normal em outras circunstâncias.
Essa troca de olhares, no entanto, foi o suficiente para que me pusesse a pensar que havia alguma coisa entre ambos.
Certamente seriam amantes e estariam me traindo.
Possessivo, deixei-me dominar pela ira.
O ciúme passou a corroer-me as entranhas.
Mente em desequilíbrio, dai foi um passo para inventar uma história.
Remoendo os pensamentos, criava quadros mentais em que os via juntos no leito, entregues à paixão, trocando olhares lascivos, apaixonados, ou rindo de mim pelas costas.
Sim, era isso!
Por que, em todos aqueles anos ela nunca ficara grávida, e agora iria dar-me um herdeiro?
Com o coração tumultuado pelo ódio e pelo ciúme, fitei o irmão e perguntei:
- Afinal, a que vieste, irmão?
- Nosso pai te chama.
Demandei o interior do palácio com o peito e a mente em brasas;
não me sentia em condições de falar com Ciro, porém um chamado do Imperador era uma ordem e precisava ser cumprida, mesmo que esse soberano fosse meu pai.
Encaminhando-me para a sala do trono, procurei acalmar o íntimo.
Entrei. Ciro estava cercado apenas de seus assessores mais directos, entre eles, Creso.
Ao ver-me, fez sinal para que me aproximasse.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 22, 2020 7:39 pm

- Desejas falar comigo, senhor?
- Sim, meu filho.
Viste as várias delegações que aqui se fizeram presentes hoje.
Concordei com um gesto de cabeça.
Ele prosseguiu:
- Pois bem.
Uma delas, a delegação da Média, trouxe-me inquietantes informações a respeito do que está acontecendo em uma região do seu país, ameaçado de ser invadido por tribos nómadas da Ásia Central.
É um povo pacato, sem poder e sem exército.
Está sob nossa protecção, uma vez que a Média pertence aos nossos domínios.
Isto significa que teremos de iniciar uma nova guerra.
O que pensas disso?
- Penso que não podemos deixar de agir, socorrendo esse território.
Estaremos confirmando nosso poderio, demonstrando que ninguém pode invadir nossos domínios impunemente.
Estou à disposição, meu rei.
- Pois muito bem. Penso como tu.
Aliás, precisamos mesmo colocar um ponto final às invasões que desafiam nosso poderio.
Fui informado de que uma dessas tribos atacou um povoado na fronteira da Pérsia.
Dirigindo-se a Creso, seu conselheiro mais próximo, ordenou:
- Manda uma convocação aos nossos generais.
Teremos uma reunião amanhã, ao nascer do Sol.
- Sim, majestade.
Ciro colocou a mão em meu ombro e deixamos a sala a palestrar sobre o problema que surgia exigindo solução.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2020 8:23 pm

14 - Nova guerra se anuncia
A Pérsia agora era um imenso império sob o comando do grande Ciro.
Muitas vezes acompanhei meu Imperador em suas campanhas guerreiras.
Ciro fazia questão de que eu participasse de seu séquito nas expedições de conquista, para que pudesse praticar tudo o que aprendera na teoria sobre a arte da guerra.
Sentia-me feliz ao lado dele, e mergulhava com paixão nos combates, sentindo verdadeira volúpia à frente do sangue que se derramava aos borbotões, caindo de um peito aberto pela minha machadinha.
De tal maneira me ligava às acções guerreiras que não sentia o mal-estar costumeiro, não era atacado pelas crises que tanto me afligiam e nem visitado pelos seres maléficos que temia.
Talvez porque, como fosse um período de muita actividade, a mente estivesse ocupada com coisas diferentes.
Conquanto me sentisse satisfeito por um lado, por outro isso não me impedia de discordar de Ciro.
Reconhecia-lhe o espírito guerreiro, o tino nas estratégias de combate, o grande líder da diplomacia nos acordos com os povos dominados, o carisma para lidar com todos.
Todavia, analisando as atitudes do Imperador, não concordava com muitas das suas acções.
Achava-o extremamente benevolente e generoso para com os povos vencidos;
concedia-lhes muito poder de decisão, permitindo que continuassem a gerir sua própria administração, não interferia em suas crenças, quaisquer que fossem, respeitando-as;
não admitia saques de guerra, o que sempre fora prática usual entre os povos, após a vitória, segundo eu havia estudado com Aziz, meu mestre, durante nosso exílio em Anshan.
Ao ver-me mal-humorado, descontente, Ciro encontrava sempre uma oportunidade de dialogar comigo após a luta.
Acendiam-se as fogueiras, cuidava-se dos feridos, recolhiam-se os mortos colocando-os em uma vala comum.
Depois, enquanto eram preparadas as carnes para a comemoração e as bebidas corriam soltas, ele procurava-me.
Nesse momento, a respiração mais tranquila, relaxando as tensões, eu e ele nos sentávamos para descansar recuperando as energias gastas, aproveitando para conversar sobre o combate, as estratégias utilizadas, o que fora positivo ou o que poderia ser modificado, o comportamento dos soldados durante o combate, enfim, o clima que redundara na vitória.
Era o momento que eu utilizava para expor minhas ideias, entendendo ser essa sua intenção; desejava conhecer-me os pensamentos mais íntimos, verificar-me o aproveitamento.
Em uma dessas ocasiões, o Imperador deixou-me falar sem interromper, anotando tudo mentalmente.
Depois, argumentou à sua maneira:
- Meu filho Kambújiya, louvo tua acuidade e inteligência.
Algum dia, tu serás meu sucessor e um grande rei.
Todavia, não posso deixar de expor-te meu ponto de vista.
Desagrada-te a maneira como me comporto em relação ao povo vencido.
Acreditas que deveria permitir aos guerreiros fazer o saque nas cidades, enriquecendo-nos com o espólio de guerra.
Entretanto, agindo com generosidade, percebo que ganhamos muito mais.
Agradecidos, os povos vencidos nos cobrem de presentes e dádivas.
Tornam-se nossos tributários e pagam uma parcela de tudo o que produzem, sentindo-se satisfeitos porque não se sentem humilhados;
mantêm sua própria administração, com líderes locais;
continuam a ter o direito de viver conforme desejam, sem interferência nossa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2020 8:24 pm

Asseguro-te, meu filho, que se sentem mais seguros e estão em melhor situação sob o controle de um governo forte, do que se fossem independentes, obrigados a lutar contra seus inimigos.
Ao que retruquei, impaciente:
- Compreendo-te o pensamento, meu Imperador e pai.
Porém, ouso discordar, pois julgo que tanta liberalidade pode ser-nos nociva, se não temerária.
Ao mostrar-lhes excessiva condescendência, poderão acreditar-nos fracos, o que acabará por despertar-lhes o desejo de serem livres.
- Ao contrário, Kambújiya.
Somos fortes, invencíveis, e eles sabem disso.
Não ignoram que podemos esmagá-los com nossas tropas, ao menor indício de levante.
Entendem perfeitamente que essa condescendência de nossa parte não representa fraqueza, mas desejo de viver em harmonia com eles, numa relação em que o respeito recíproco é fundamental.
Compreendendo que seria incapaz de alterar-lhe o ponto de vista, procurei modificar o enfoque, prosseguindo em minhas observações:
- E quanto à liberdade de crença, meu senhor?
Percebo que a generosidade do teu coração - jamais desmentida - faz com que ajas com serenidade, acatando-lhes o modo de pensar, em detrimento da nossa fé.
Se nossa religião é a melhor, por que não obrigá-los a segui-la?
Não te parece que estaríamos sendo mais coerentes com nossas crenças e que Ahura-Mazda ficaria satisfeito connosco, beneficiando-nos de maneira especial, com colheitas mais fartas, mais paz e prosperidade?
Ciro respirou fundo, alisou a barba bem-tratada e respondeu com firmeza e seriedade:
- Julgas realmente que obrigar um povo a modificar suas crenças, abandonando a fé de seus ancestrais para aderir à nossa, seria o melhor, filho meu?
Acreditas mesmo que tal atitude iria funcionar e que teríamos novos e fiéis adoradores de nossos deuses?
Acredito que, pelo menos, eles teriam a oportunidade de conhecê-los!
- Não te enganes, meu querido filho.
Poderíamos fazer adoradores de superfície, mas nunca de coração.
Obrigados a seguir nossa fé religiosa, sentiriam rancor pelos nossos deuses e por nós, que os submetemos.
Nunca, porém, no íntimo e em consciência, de onde origina toda a fé.
E, em última análise, não é exactamente desse modo que trato o nosso povo, permitindo que continue a adorar a Mitr deus do Sol, Anaita, a deusa da terra e da fertilidade, e Haoma, deus-touro?
Impeço que o povo se embriague com a Haoma?
Não Porque as pessoas têm que perceber, por si mesmas, a verdadeira fé.
Não prega Zaratustra que o dever do homem se resume em "fazer inimigo, amigo;
fazer do injusto, justo; fazer do ignorante, instruído.
É o que tenho tentado colocar em prática.
Ciro fez uma pausa, analisando minha reacção, depois de pensar um pouco, e prosseguiu:
- Kambújiya, filho meu, em minhas andanças pelo mundo, tenho observado que cada povo tem um pensamento próprio, coerente com o seu progresso alcançado.
Percebo que, se os deuses são violentos e sanguinários, assim será o povo que os adora.
Quando os deuses são sábios e benevolentes, também o povo é mais pacífico e ponderado.
Eu me calei.
Não adiantava tentar expor-lhe minhas ideias, ele não aceitaria.
Respirei fundo, fitando-o, e concordei com ligeiro sorriso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2020 8:24 pm

- Tens razão, meu pai.
Além de poderoso, és um homem sábio.
Tenho orgulho de ser teu filho.
Glória e saúde ao Imperador!
Ele bateu em minhas costas, carinhoso e sorridente, sem imaginar os pensamentos que me passavam pela mente:
"Algum dia, tu morrerás, meu pai, e chegará minha hora.
Serei Imperador e, então, ninguém poderá impedir-me de agir como desejo"
E nossas conversas se repetiam ano após ano.
Ciro raramente ficava na cidade, concedendo-se alguns períodos de descanso entre uma campanha e outra.
Algumas vezes eu o acompanhava, outras, não.
Sempre que nos reuníamos, porém, nossas conversas versavam sobre os mesmos assuntos, modificando-se apenas o enfoque dos temas.
Nesse mesmo dia, em que o Imperador recebera as delegações estrangeiras, dialogava com meu pai, assim como sempre fazíamos, sem conseguir convencê-lo das minhas ideias, quando um assessor veio avisá-lo de que tudo estava pronto para o banquete. Levantamo-nos e Ciro sorriu bem-humorado.
- Vem, meu filho. Vamos comer e beber, que bem o merecemos.
Entramos no imenso salão onde seria realizado o banquete.
À luz das tochas, colocadas a espaços regulares em nichos nas paredes, podíamos abarcar com os olhos a decoração do salão, as pinturas no teto e nas paredes, os convidados que se espalhavam pelo amplo recinto.
Os membros das delegações já estavam presentes e acomodados.
Quando Ciro entrou, todos se ergueram, como mandava o protocolo.
Dirigimo-nos para o lugar que nos estava reservado, e, com um sinal, o Imperador deu por iniciada a festa.
Os escravos entraram trazendo ânforas de bebida e rapidamente enchiam os copos dos convivas.
Quantidade enorme de iguarias fora colocada em bandejas em imensa mesa baixa, em torno da qual se acomodaram os convidados, recostados em macias almofadas.
Eram carnes de caça e aves, assadas no braseiro; cereais preparados ao gosto persa; cozidos de legumes e frutas variadas.
Ao centro, um grupo de belas bailarinas executava uma dança ao som de melodia tocada por escravos em seus instrumentos musicais.
Após o repasto, Ciro apresentou-me os membros das delegações ali presentes.
Conversamos cordialmente, trocando ideias sobre assuntos de interesse dos países ali representados e estudando as possibilidades de comércio.
Dediquei atenção especial ao grupo dos medos, que solicitava nossa ajuda, procurando mais informações sobre a situação existente.
Jeovus, o chefe da delegação, mostrou sua inquietude quanto à segurança do seu país e dos seus habitantes, visto que havia perigo real de um ataque de tribos vizinhas, conforme mostravam as notícias colhidas por informantes leais, que ouviram comentários a esse respeito, misturados no anonimato da multidão.
- Como nosso povo ocupa uma faixa de fronteira nas montanhas, que interessa a essas tribos, facilmente nos destruirão.
Por tradição, nosso povo é pacífico e ordeiro, ligado ao cultivo da terra e à criação de cabras - explicou Jeovus.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2020 8:24 pm

Outro membro da delegação comentou assustado:
- Exactamente porque nossos costumes e tradições são de um povo fraterno e hospitaleiro, observadores dos massagetas têm sido vistos em nosso território;
entram na cidade, anotam tudo o que vêem e tecem comentários não raro sob os vapores da bebida.
- Em razão disso - prosseguiu Jeovus - nossa preocupação com a segurança do povo.
Não temos exércitos nem armas em quantidade para reprimir um ataque.
Confiamos que Ciro, o Imperador persa, sempre magnânimo e abençoado pelos deuses, possa nos proteger, uma vez que fazemos parte do seu império.
Alisando minha barba, ouvia suas palavras com atenção, ao mesmo tempo que, intimamente, tentava descobrir as vantagens da operação.
Afinal, externei meu pensamento:
- Serenai vossos corações, valentes varões.
Está marcada uma reunião para amanhã cedo com o alto-comando das forças persas.
Somente depois poderemos ajuizar a melhor atitude a ser tomada.
Estai certos, porém, de que Ciro tudo fará para proteger-vos.
Alegando cansaço, levantei-me, apresentando-lhes minhas despedidas e encaminhando-me para meus aposentos particulares.
O dia seguinte prenunciava grandes expectativas e eu precisava estar presente à reunião.
Recolhi-me. Confesso que me ative mais em pensar na donzela que centralizava meus desejos na ocasião.
Chamei Míria, a escrava que aguardava meu retorno.
- Rafiti e Malec já voltaram?
- Ainda não, meu senhor - respondeu delicadamente com uma reverência.
- Quando voltarem, eu quero ser informado.
Seja a hora que for. Ouviste?
- Sim, meu senhor.
Após ajudar-me nos preparativos para dormir, ela saiu.
Deitei-me. Nessa noite tive sonhos agitados, despertando perturbado e exausto.
Ao chegar ao local da reunião, todos ali já estavam.
Acomodei-me e me pus a acompanhar as opiniões dos diversos chefes guerreiros e conselheiros do rei.
Afinal, decidiram-se pela guerra contra as tribos que ameaçavam a Pérsia e a Média, especialmente os massagetas.
Em seguida, passaram a estudar o melhor trajecto a ser utilizado e tudo o mais que fosse necessário para o empreendimento.
Eu, porém, não estava preocupado com a operação guerreira.
Relanceando os olhos pela sala, em dado momento vi, atrás de uma colunata, um homem que me fazia sinais.
Reconheci Rafiti.
Disfarçadamente, aproximei-me dele, que me confidenciou:
- Senhor, trago-te novidades.
Ela está aqui no palácio.
- Onde?
- Presa, senhor. Naquele lugar que sabes.
Recusou-se terminantemente a nos acompanhar e não tivemos opção a não ser trazê-la amarrada.
- Óptimo. Mantende-a sob vigilância.
Não quero que ninguém se aproxime dela.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 23, 2020 8:24 pm

Assim que puder, irei vê-la.
Meu coração batia descompassado.
Como um adolescente que tem seu primeiro amor, eu tremia de ansiedade.
Mal acabou a reunião, os presentes se dispersaram e Ciro me chamou.
- Kambújiya, irás comigo.
Senti como se um tremendo golpe me atingisse a cabeça.
Não eu não poderia deixar a cidade naquele momento.
O imperador percebeu minha hesitação.
- O que houve?
Parece-me que não ficaste contente por acompanhar-me nessa campanha, filho meu.
Coloquei meu melhor sorriso no rosto, ao mesmo tempo que febrilmente, procurava pensar numa desculpa, e afinal respondi:
- Senhor meu rei!
Louvo-te e agradeço-te a glória e a honra de te acompanhar em mais essa campanha que está para se iniciar.
Sabes quanto me apraz seguir-te e aprender contigo.
Todavia... Não sei se seria o momento de nos afastarmos ambos da capital, deixando-a em outras mãos.
Sinto algo no ar, como que um perigo que se aproxima.
Talvez seja uma premonição, não sei.
Ciro, que sempre fora um tanto supersticioso, indagou preocupado:
- Mas... O que sentes de concreto?
Tiveste um aviso dos nossos deuses?
Intimamente, sorri satisfeito.
Ele mordera a isca.
- Não chega a tanto, meu pai.
É apenas uma estranha sensação de inquietude que me domina o coração.
Além disso, minha esposa Roxana está prenha e logo nosso filho irá nascer.
Gostaria de permanecer aqui, se concordares e puderes dispensar-me.
Ciro respirou fundo, batendo em minhas costas cordialmente:
- Tens razão, meu filho. Bem pensado.
Permanecerás na capital, enquanto comando nossos exércitos.
Fico mais tranquilo contigo aqui no trono, que será teu um dia.
De qualquer modo, sanado o problema aqui ou numa eventualidade que surja, sempre poderás te reunir a mim, onde estivermos.
De resto, é também uma bela oportunidade de exercício administrativo, como aquela em que foste governador da Babilónia, e na qual te saíste muito bem, provando que és realmente meu filho!
- Além disso, senhor meu pai, as obras da nova capital não prescindem de olhares atentos e de alguém que verifique os progressos realizados.
Sabes bem como são indolentes esses trabalhadores.
- Muito bem lembrado, meu filho.
As obras de Pasárgada precisam de alguém que lhes imprima maior rapidez.
Desejo que nossa futura capital seja concluída quanto antes.
Mais uma razão para permaneceres aqui.
Ah! Certifica-te de que os construtores tenham acrescentado, em meu mausoléu, as modificações sobre as quais já conversamos.
- Sim, meu pai.
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