LUZ ESPÍRITA
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 2 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 18, 2020 8:40 pm

Procurei esconder-me melhor.
Na verdade, eu queria desembarcar, mas percebi ser impossível.
Apressavam-se para a partida.
Recomeçamos a navegar.
Muitas horas depois aportamos de novo.
Precisava deixar o barco.
Quando os escravos vieram para descarregar, dei um jeito de me colocar no meio deles e, pegando um fardo, escondi-me atrás dele e desembarquei, ganhando terra firme.
Ninguém me notou.
Aliviado, depositei o fardo junto aos outros e, discretamente, afastei-me, caminhando às pressas para longe do rio.
Onde estaríamos? Olhei para os lados.
Pareceu-me reconhecer a cidade.
Mênfis! Estaria de retorno a Mênfis?!
Naquele momento, não pude deixar de lembrar-me do que sofrera naquela cidade e, com as lembranças, voltou-me um forte sentimento de vingança.
Repassei na memória as pessoas que me prejudicaram.
Recordei-me dos falsos amigos do grupo de saltimbancos, que me venderam como escravo.
Eles me pagariam.
Tudo o que sofrera fora por culpa deles.
Em Tebas, os responsáveis pela minha prisão, que me mutilaram, arrancando-me a língua, e que me roubaram anos de vida, o fizeram porque eram obrigados.
Eles também pagariam um dia, mas, no momento, não poderia voltar.
Entrar na tumba seria morte certa.
Mas os saltimbancos, esses eu encontraria.
Onde estariam eles?
Ao voltar o pensamento para o passado, meu coração tornou a encher-se de ódio.
Tinha uma vontade insana de fazer com eles o que fizeram comigo;
desejava que sofressem o que eu sofri.
De súbito, notei que o mal-estar voltava.
Senti-me novamente enfermo, febril; o peito doía-me intensamente e a asfixia tornou a atacar-me; o coração disparou e eu não conseguia respirar.
Meus olhos ardiam sob o sol a pino e a visão se me turvou.
Ao mesmo tempo, percebi uma nuvem escura que se aproximava, ameaçadora.
Quando dei por mim, estava envolvido por aquele bando de mulheres de véus escuros e esvoaçantes, sem coração.
Também notei a chegada dos homens sem língua que tentavam me agarrar.
Tentei gritar, mas não podia.
Parece que ninguém via o meu tormento.
Havia movimento intenso nas ruas, no entanto ninguém se preocupava comigo, ninguém se dispunha a me ajudar.
As mulheres e os homens me dominaram e me arrastaram para longe.
Desesperado, lutei para escapar, mas não consegui:
estava fraco e eles eram muitos.
Levaram-me para um local deserto, abandonado.
Eram ruínas de uma antiga propriedade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 18, 2020 8:41 pm

Lá me submeteram às maiores atrocidades, torturaram-me, chicotearam-me.
Não permitiam que eu dormisse, mantendo-me acordado dia e noite.
Passei fome e sede torturantes.
Não raro eu perdia os sentidos.
Então, davam-me uma trégua, afastando-se frustrados.
Todavia, ao notarem que me voltava a consciência, tornavam a me torturar.
Esses suplícios se estenderam por tempo que não sei precisar.
Até que um dia, cansado de sofrer e de chorar, pedi ajuda aos Imortais.
Tudo o que eu sofrera na Cidade dos Mortos era nada perante o que experimentava agora.
Em prantos, supliquei aos deuses que me socorressem, libertando-me dos meus algozes.
Quanto tempo eu permaneci assim, em oração?
Ignoro. Aos poucos, branda sensação de refrigério atingiu-me.
A falta de ar e a dor no peito haviam diminuído, proporcionando-me momentos de reconforto.
O coração, que batia forte e descontrolado, acalmou-se.
Há quanto tempo não me sentia assim melhor?
Nisso, vislumbrei uma figura que se aproximava.
Encolhi-me, suplicando piedade, a julgar que fosse um dos meus inimigos.
Era uma mulher.
Quando ela se aproximou, vi uma jovem bela e sorridente que me fitava com carinho.
Onde já a teria visto?
Seu rosto era suave, os olhos amendoados eram grandes e meigos, os longos cabelos negros e lisos desciam pelos ombros.
Suas vestes eram de tonalidade azul-clara e esvoaçantes.
Seria uma deusa? Ísis, talvez?
- Quem és tu? - indaguei maravilhado.
- Não me reconheces? - murmurou a doce imagem.
- Sinto que te conheço, mas não consigo identificar-te em minhas lembranças.
Serás uma deusa? - sugeri.
Estendendo os braços, ela esclareceu:
- Não. Sou apenas uma companheira de infortúnio.
Naquele momento, recordei-me da tumba do faraó e da jovem que conheci.
-Nájia?!...
Ela sorriu, achando graça.
- Sim. Sou aquela a quem deste o nome de Nájia.
- Mas..., mas... eu te via sempre coberta de poeira.
Como reconhecer-te?
Além disso, és muda. Não podes falar.
Novamente ela sorriu bem-humorada:
- É verdade. E tu também não.
No entanto, estás falando!
Só naquele instante, dei-me conta de que conversávamos normalmente.
Cheio de contentamento, não conseguia acreditar nesse milagre.
- Como pode ser?
Minha língua foi arrancada! - exclamei.
- Sim. Isso, porém, foi em outras circunstâncias.
Agora podes falar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 18, 2020 8:41 pm

Nossa linguagem é a do pensamento.
Perplexo, mentalmente passava em revista tudo o que tinha acontecido.
- Como me encontraste?
Fui considerado morto e levado para uma vala comum, de onde consegui fugir graças a Amon-Rá.
Mas tu, que continuavas presa, como chegaste até aqui?
Ninguém sabia onde eu estava.
Nájia fitou-me com seus belos olhos e questionou-me:
- Estamos agora numa outra realidade, Emil.
Tudo aquilo que sofremos ficou para trás.
Não percebeste ainda que as coisas mudaram?
Que ninguém te viu enquanto fugias?
Que ninguém nota tua presença, a não ser tuas vítimas do passado?
- Sim, mas...
Eu fui cuidadoso ao fugir escondendo-me de todos, e, como não posso falar com ninguém, julguei que fosse por isso.
- Não, meu amor.
A verdade é que ambos já não fazemos mais parte da sociedade terrena.
Cruzamos o Grande Portal, rumo à espiritualidade.
- Queres dizer que estamos mortos?!... indaguei perplexo.
- Ninguém morre, Emil.
Só mudamos de lugar.
Vendo-me pasmo, com dificuldade de acreditar em tudo o que me dizia, concluiu:
- Poderás confirmar a veracidade das minhas informações por ti mesmo.
Estou aqui para conduzir-te a um lugar onde poderás te recuperar ficando a salvo daqueles que te aprisionaram por tanto tempo.
Tremendo de medo, quis saber:
- Onde estão eles?
- Isso não importa agora.
Também serão socorridos por sua vez.
Teremos oportunidade de conversar mais sobre esse assunto e serás esclarecido.
Repousa. Estás cansado.
Eu cuidarei de tudo.
Quando acordares, terás uma bela surpresa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 18, 2020 8:41 pm

6 - Oportunidade perdida
Acordei num dia lindo e ensolarado.
Branda aragem refrescava-me a pele.
Abri os olhos sentindo agradável sensação de bem-estar.
Sob a sombra das tamareiras, encontrava-me reclinado em leito macio e limpo.
Olhei em torno:
no meio do deserto, o oásis era um refrigério de paz e tranquilidade.
Notei muitas pessoas que passavam, entregues às suas tarefas.
Onde eu estaria?
Respirei fundo.
As dores haviam diminuído e me sentia muito bem, conquanto um pouco enfraquecido.
Nesse momento, vi Nájia que se aproximava.
Sorridente, ajoelhou-se a meu lado.
- Sê bem-vindo, caro Emil.
Como te sentes?
Fitando-a com carinho, respondi:
- Grato por tudo o que tens feito por mim.
Jamais me senti tão bem quanto agora. Onde estamos?
Ela espraiou a vista pela paisagem encantadora que se lhe descortinava diante dos olhos:
- Este é um local utilizado na assistência daqueles que aportam ao Além-túmulo necessitados de recuperação.
Aqui temos tudo o que podemos desejar.
Surpreso, lentamente perpassei o olhar analisando melhor o lugar.
Atrás, em uma delicada e confortável construção, cercada por terraços aprazíveis, onde havia leitos reclináveis, notei algumas pessoas recostadas, débeis e pálidas, que me pareceram doentes em recuperação.
Logo à minha frente, mais para a esquerda, um tanque de águas límpidas, rodeado de palmeiras e plantas odoríferas, formava pequena cascata rumorejante.
Identifiquei naquele ruído manso da água o agente que me embalara o sono reparador, proporcionando-me sensação de harmonia e bem-estar.
Nájia acompanhou meu reconhecimento do terreno com olhar terno.
- Este lugar, Emil, tem sido reduto abençoado para quantos necessitam encontrar a paz e o equilíbrio.
Sob estas palmeiras, o ambiente fraterno e amigo opera verdadeiros milagres.
Fez uma pausa e perguntou:
- Estás com fome, Emil?
- Sinto-me bem, como se o próprio ambiente me saciasse.
- Exacto. As energias existentes no ar são vitalizadoras, colaborando para abastecer-nos dos nutrientes necessários.
Todavia, no seu caso não substituem a alimentação propriamente dita.
Vou buscar ligeira refeição para ti. Descansa.
Quando Nájia retornou, eu estava cochilando de novo.
Tocou em meu braço, e despertei.
Trazia uma bandeja onde havia uma tigela com caldo, uma caneca com refresco e algumas frutas:
tâmaras, damascos, uvas e outras que me eram desconhecidas.
Comi com gosto. Tudo era delicioso.
Depois, mergulhei no sono.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 18, 2020 8:41 pm

Por alguns dias assim permaneci, entre o sono e a vigília.
Aos poucos, mais fortalecido, já podia andar pelo oásis, que me parecia um acampamento.
As pessoas eram fraternas e gentis.
Todavia, com o passar do tempo, inevitavelmente as lembranças teriam que me assomar à memória, com vistas ao aprendizado, para que pudesse libertar-me do passado.
Na situação de espírito liberto do corpo físico, agora necessitava amadurecer e progredir, buscando o equilíbrio e a mudança interior.
No entanto, à medida que pensava em tudo o que me tinha acontecido, paulatinamente voltava o sentimento de rancor e de ódio contra os que me prejudicaram.
Nájia, preocupada, levou-me para o templo.
De estrutura leve e delicada, era um prédio alto e sem atavios que se diferenciava dos demais.
No seu interior, uma luz azulada se espraiava, vinda de cima, enquanto suave melodia, tocada por mãos invisíveis, soava agradavelmente a meus ouvidos convidando à meditação e à prece.
Os sábios anciãos daquele lugar sagrado, nossos benfeitores, alertaram-me para o perigo de me deixar levar pelos sentimentos negativos do passado, agora que estava em franca recuperação e em fase de aprendizado das verdades eternas do Criador; por isso, incentivavam-me ao perdão e à oração.
Nájia, que permanecia a meu lado e cujo semblante denotava certa tristeza, aconselhou-me:
- Emil, tudo o que sofreste tem raízes no pretérito, quando desperdiçaste divinas oportunidades de realização e crescimento espiritual, semeando sofrimento, morte e dor.
No momento oportuno, serás informado disso.
No entanto, vinculando-te agora às imagens do passado de erros, descerás ao nível daqueles que são teus desafectos e que pretendes atingir ficando à mercê de teus inimigos.
Repensa tuas atitudes, Emil.
Perdoa o mal que te fizeram, porque é o que gostarias que também fizessem por ti em idêntica circunstância.
Mantém o pensamento elevado por meio de orações, único recurso de que dispões para te livrares do mal que paira sobre tua cabeça, e que buscaste espontaneamente.
Naquele momento, sob as emanações do ambiente etéreo e dulcificante, concordei plenamente com meus amigos e benfeitores, desejando realmente mudar.
Contudo, era difícil.
Espírito inferior e endurecido, orgulhoso em excesso, eu sentia arrastamento quase irresistível para o lado pior das coisas.
Por algum tempo, mantive-me bem, aproveitando as bênçãos de estar sob o amparo dos deuses, procurando aprender sempre.
Certa ocasião, porém, por invigilância, apiedado de mim mesmo, julgando-me vítima das circunstâncias e das pessoas, mergulhei fundo nas recordações do passado, desenterrando o lixo acumulado no íntimo.
Lembrei-me daqueles que me prejudicaram na última existência e, remoendo aquelas recordações nefastas, deixei-me invadir pela auto piedade, o que me despertou novamente o ressentimento, enquanto imenso desejo de vingar-me deles aflorou do mais profundo do meu ser.
Revolvi as situações, os diálogos, os sentimentos então experimentados, a revolta de reconhecer-me escravo e prisioneiro.
Voltei a sentir-me dentro da tumba do faraó e a reviver a dor e o sofrimento pela perda da língua, a falta de ar, a poeira que dominava tudo e se entranhava em meu corpo, nos cabelos, na boca, no nariz, nos olhos.
Olhei em torno, desesperado, desejando libertar-me daquele lugar horrendo.
Nesse momento, intenso pensamento de ódio ligou-me a Nefert, que julgava o causador de todos os males que então me advieram.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2020 7:41 pm

- Sê maldito, Nefert!
Que tua alma permaneça no Amenti, sofrendo, e jamais encontres descanso e consolação onde estiveres!
Imediatamente senti-me arrebatado por imperiosa força que, qual vendaval, me arrastou pelo espaço.
Ao dar por mim, estava em lugar estranho, perto de algumas pessoas.
Olhei-as e, de repente, em uma delas reconheci Nefert, o chefe dos saltimbancos que me vendeu.
O ódio era tão forte que cai sobre ele aos socos e pontapés.
Notei que ele sentiu minha presença e titubeou sob os golpes que eu lhe aplicava.
Exultei, experimentando grande satisfação.
Embora ele ainda estivesse vestindo o corpo de carne, sabia agora como atingi-lo.
Ele me pagaria por tudo o que me fizera sofrer!
Eles me pagariam! Todos eles!
Sentia-me agora o mais forte.
Não demorou muito, começaram a voltar as dores, a falta de ar e o coração descompassado.
Apesar do mal-estar, não desistiria da luta.
De repente, me lembrei de Nájia, da doce Nájia, e dos meus benfeitores do oásis, porém não podia mais voltar.
Tentei elevar-me por meio da oração, mas se tornou impossível.
Como um visgo, só conseguia pensar nos meus inimigos.
Estava agora entregue a mim mesmo.
Um aperto no coração recordava-me a oportunidade que havia deixado para trás, a paz e o bem-estar que perdera.
Resignado diante da situação que criara por minha livre vontade, pensei:
"Algum dia, quando tiver atingido meus objectivos, retornarei aos meus amigos.
No momento, já que é a condição em que estou e que não posso evitar, tenho Outros interesses em mira".
Liguei-me àquelas pessoas, especialmente a Nefert, seguindo-o o tempo todo.
Observava-o detidamente, como uma serpente que ensaia o bote.
Analisava suas atitudes, ouvia suas conversas, procurando uma brecha para atacar.
Certa ocasião, ele se dirigiu para um lado mais nobre da cidade.
Parou diante de um grande portão de madeira, que reconheci de pronto.
Era a residência de Cleofas, que eu abandonara um dia ao ouvir-lhe as palavras insultuosas a meu respeito, em diálogo com meu amigo Ahmim.
Entre surpreso e curioso, eu vi Nefert puxar a argola da cabeça do leão dourado, que eu tão bem conhecia.
Um criado veio atender.
Ao ser informado de que o visitante desejava falar com Cleofas, o serviçal mandou que esperasse.
Alguns minutos depois, voltou e abriu o portão, que gemeu nos gonzos.
Notei que Nefert estava ansioso.
Entramos e deparei-me novamente com o lindo e refrescante jardim.
Duas adolescentes brincavam perto do tanque de águas cristalinas, acompanhadas por uma escrava.
Nefert foi encaminhado para uma sala reservada, com ordem de esperar.
Pouco depois, um velho de cabelos e barbas brancas abriu o reposteiro e entrou.
Estranhei. Quem seria aquele homem?
Ao ouvir-lhe a voz, lembrei-me de Cleofas.
Observei melhor o recém-chegado e, perplexo, reconheci-o.
Era ele! Bastante envelhecido, mas era ele!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2020 7:42 pm

Naquele momento, dei-me conta de que o tempo passara e eu não percebera.
Quantos anos transcorreram desde que estivera naquela casa?
Aquelas jovens que eu vira na entrada seriam provavelmente suas netas.
Apliquei-me a ouvir o que eles diziam.
Conversavam em voz baixa e não entendi direito o que falavam.
Combinaram determinada quantia que seria paga a Nefert por serviço a ser realizado.
Deduzi que tramavam contra alguém, cujo nome não foi pronunciado.
Tudo acertado, Nefert despediu-se, ganhando a rua.
Estava eufórico.
Recebera uma parte do dinheiro antecipadamente e, depois de concluído o serviço, receberia o restante.
Eu também exultei.
Finalmente poderia vingar-me.
E era ele mesmo que me proporcionaria os meios para isso.
Sem saber por qual processo isso se daria, comecei a notar que ele pensava e falava sempre num mesmo homem, que passou a seguir cuidadosamente.
As imagens desse desconhecido estavam sempre planando em torno dele.
Nefert ficava escondido nas imediações da casa desse homem, que certamente seria um nobre, pela esplêndida residência, de construção primorosa, verdadeiro palácio cercado por altos muros, dentro do qual se percebiam exuberantes jardins.
Dias depois, vi sair pelo grande portão da residência uma liteira transportando uma mulher de idade madura e duas jovens, nas quais reconheci as mesmas que estavam na casa de Cleofas e que julguei fossem suas netas.
Não demorou muito, outra liteira transpôs o portão.
Era nosso homem.
Nefert e eu o acompanhamos de perto.
Dirigiu-se ao templo de Amon para fazer oferendas.
Ali, após rezar e depositar suas dádivas, tomou o rumo de um grande corredor, deserto àquela hora do dia.
Era a ocasião que Nefert aguardava.
Oculto, aproveitando-se da penumbra, ficou à espreita detrás de uma coluna.
Ao ver sua vítima se aproximar, tirou o punhal da cintura e, agarrando o homem pelas costas, tapou-lhe a boca e cravou-lhe a lâmina no coração.
O infeliz, com uma rosa de sangue que lhe surgira no peito, resvalou para o chão, inerme, sem um grito.
Em seguida, o criminoso Nefert se pôs a correr para fora do templo, misturando-se aos transeuntes da rua.
Estava ofegante, mas satisfeito.
Parou numa barraca para tomar uma bebida.
Sentou-se num banco.
Precisava tranquilizar-se.
Após ingerir algumas canecas de bebida, estava rindo, mais alegre e confiante.
Tomou o caminho da residência de Cleofas, ao qual foi dar contas do serviço executado e receber o resto da importância combinada.
Acompanhei-o, e estávamos dentro do gabinete de Cleofas quando um portador chegou com a notícia.
Na casa, o alvoroço era geral.
Gritos e lamentos surgiram de todos os lados.
Cleofas saiu da sala para saber o que estava acontecendo e se deparou com os familiares consternados.
- O que houve?
Qual a razão desse tumulto? - perguntou.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2020 7:42 pm

- Um sacerdote, enviado pelo templo, veio trazer a notícia de que Satótis está morto! - respondeu em prantos uma senhora em quem reconheci Núbia.
Aparentando surpresa, Cleofas questionou:
- Mas como?
Onde aconteceu isso?
- O sacerdote afirmou que meu marido estava dentro do templo quando foi assassinado, meu pai! - respondeu a bela senhora que eu vira deixar a magnífica residência acompanhada pelas filhas. Era Nahra.
Nefert, que saíra da sala logo depois de Cleofas, permanecia parado atrás do dono da casa.
Ninguém prestou atenção nele.
As jovens choravam abraçadas, lamentando a morte do pai, que amavam.
- Mas como pôde acontecer isso?
Ainda mais num local sagrado, protegido pelos deuses?
Por quê? Por quê?
Meu pai não tinha inimigos! - dizia a mais velha.
A mãe, Nahra, aproximando-se das filhas, abraçou-as também, chorando junto com elas.
- O culpado pagará, minha filha!
Rá, senhor de todas as coisas, não deixará de atingir o criminoso, alcançando-o com sua justiça!
Vi Cleofas empalidecer, olhando de soslaio para Nefert.
Depois, fez um gesto quase imperceptível, ordenando-lhe que fosse embora, e indagou:
- E onde está o religioso?
- Deu a notícia e foi embora.
Alegou que precisava voltar correndo para o templo, onde a confusão era grande.
Informou também que o sumo-sacerdote estará à disposição para qualquer informação que se faça necessária.
- É justo. Vou recompor-me e, logo em seguida, irei ao templo.
Naquele momento, não acompanhei Nefert.
Sabia onde encontrá-lo.
Queria saber as razões pelas quais Cleofas planejou e executou a morte do próprio genro, esposo de sua filha Nahra e pai de suas netas.
Enquanto a família externava seu sofrimento, fiquei junto de Cleofas procurando analisá-lo.
Intimamente, percebi que estava satisfeito.
Ele queria ficar só para poder externar seus sentimentos, longe dos familiares.
Dirigiu-se para o escritório e eu o acompanhei qual uma sombra.
Ele sentou-se na cadeira e sorriu, murmurando para si - Consegui.
Agora toda a fortuna de Satótis será minha.
A seu lado, retruquei mentalmente:
"Mas a fortuna do morto será da família dele, da sua esposa e filhas!".
Como se tivesse "ouvido" meu comentário, ele esclareceu:
- A fortuna estará nas mãos de minha filha, mas nela mando eu.
Fará o que eu quiser. Os deuses me foram propícios.
Agora, o perigo de perder tudo está conjurado.
Pagarei as minhas dívidas e o património de nossa família estará salvo.
Felizmente Núbia não sabe de nada, muito menos que perdi no jogo sua herança e nossos bens de fortuna.
Fechou os olhos, aliviado, pensando:
"Nada pode dar errado agora. Estou salvo!".
Ao inteirar-me de seus pensamentos, passei a sentir ainda mais ódio por ele.
Cleofas era pior do que eu julgara.
Vingar-me-ia de ambos ao mesmo tempo.
Um sorriso malfazejo aflorou em meu rosto como prelúdio de novos desastres morais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2020 7:42 pm

7 - Consequências
Desse dia em diante, não me foi difícil estabelecer um plano de vingança contra meus inimigos.
Cleofas e Nefert estavam em minhas mãos.
Também não tive dificuldade para encontrar desafectos de ambos que se prontificassem a me ajudar de boa vontade.
Assim, unindo nossos esforços, fechamos o cerco ao abominável Cleofas e seu cúmplice.
Sempre perto deles, tornou-se-nos fácil dominá-los mentalmente.
Jogamos um contra o outro, sugerindo pensamentos de dúvida, desconfiança e deslealdade, a tal ponto que passaram a se olhar torto, julgando-se em perigo de traição e agasalhando ideias de destruição de parte a parte.
Devo acrescentar que, pela presença de nossos companheiros, adversários desencarnados que lhes faziam cerco constante, sem tréguas, eles, Cleofas e Nefert, não conseguiam mais dormir, comer ou pensar direito.
No plano material, os credores também não davam sossego, procurando Cleofas na própria residência, atemorizando-o, sob a ameaça de informar os familiares de seus deslizes.
Por outro lado, a filha, recuperando a lucidez e o equilíbrio, após o falecimento do marido, não se mostrava tão cordata nem tão maleável em relação à herança que, como património dela e das filhas, deveria zelar com vistas ao futuro.
Não contentes com isso, incentivamos Nefert - apavorado diante do crime que cometera e que estava sendo investigado - a fazer chantagem junto a Cleofas.
Exigindo determinada importância, verdadeira fortuna, de modo a poder fugir para longe, o cúmplice ameaçava contar à família e à justiça a verdade, isto é, que Cleofas fora o mandante do crime.
Todos esses problemas pressionavam o infeliz Cleofas, que não sabia o que fazer.
Fraco, sentia-se acovardado ao julgar que a realidade pudesse vir à tona comprometendo-o perante a sociedade e a família.
Diante da extorsão, decidiu que o melhor seria acabar com seu cúmplice, tapando-lhe a boca de uma vez por todas, visto que, se conseguisse a importância e atendesse à chantagem de Nefert, ficaria em suas mãos, tendo o desprazer de vê-lo retornar para exigir nova quantia, ainda maior do que a primeira, sempre que estivesse precisando de recursos.
Desse modo, resolveu cortar o mal pela raiz.
Quando Nefert se apresentasse para pegar a importância que exigira, daria cabo dele.
Oferecer-lhe-ia uma bebida envenenada e, com a ajuda de um escravo fiel e discreto, não lhe seria difícil resolver o problema.
Para tanto, precisava procurar determinada maga, residente nas imediações da cidade e que de outra feita já o servira a contento.
Tendo tomado a decisão, discretamente Cleofas procurou a mulher e explicou o que desejava.
A feiticeira tranquilizou-o, explicando-lhe que a poção só faria efeito
algum tempo depois, o suficiente para que o desafecto deixasse sua residência em paz e com saúde, vindo a falecer bem longe do local.
Após essas providências, satisfeito e mais tranquilo, Cleofa esperou ansiosamente que Nefert voltasse a procurá-lo.
Dois dias depois, o cúmplice apareceu e Cleofas deu ordem para que fosse introduzido em seu escritório, facto que não causou estranheza a ninguém, visto que ele costumava receber pessoas com as quais tinha negócios ou que trabalhavam para ele.
Procurando aparentar calma e descontracção, Cleofas estava atrás de sua mesa, entretido na leitura de umas tabuinhas, com uma taça de bebida ao lado, quando Nefert deu entrada na sala.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2020 7:42 pm

Após os cumprimentos, Cleofas entregou ao cúmplice uma pequena bolsa recheada de moedas e jóias, dizendo-lhe:
Ai está a importância que me pediste, Nefert.
Espero que faças bom uso dela.
Quando pretendes partir?
- O mais depressa possível, Cleofas.
Estou ultimando os preparativos.
Amanhã, o mais tardar, tomarei uma embarcação deixando Mênfis.
- E para onde pretendes ir? - voltou a perguntar o dono da casa.
- Meu destino é incerto.
Ainda não decidi - respondeu o outro com sorriso enigmático.
Cleofas fez um gesto, mostrando que compreendia a discrição do cúmplice.
- Tens razão em manter segredo sobre a direcção que pretendes tomar.
Se, porém, aceitas um conselho de amigo, julgo que Tebas é uma grande cidade, onde não encontrarás dificuldade em te esconder.
Pensa nisso. De resto, acho que não terás problemas, uma vez que ninguém conhece teu rumo.
Ele parou de falar, avaliando a reacção do outro.
"Pois sim! Este imbecil pensa que me engana!", pensou.
Depois, prosseguiu:
- Bem, creio que deveríamos festejar o bom termo de nossas negociações.
Cleofas fez nova pausa, pegou a taça e, levantando-a, ofereceu gentil:
- Aceitas uma taça de bebida?
Nefert concordou, satisfeito.
Não queria sair brigado com Cleofas, de quem poderia obter outras regalias no futuro.
Além disso, estava com a boca seca.
- Pois seja. Brindemos nossa aliança!
Pegou a taça que lhe era oferecida e bebeu o conteúdo de uma só vez.
Em seguida, limpando a boca com as costas da mão, despediu-se:
- Até um dia!
Cleofas sorriu e levou-o até a porta, dizendo:
- Que os deuses te sejam propícios!
Após ter certeza de que Nefert deixara a casa, chamou seu fiel escravo e ordenou:
- Vamos. Temos que segui-lo.
Preciso recuperar uma bolsa que esse miserável me roubou.
Discretamente, colocou um manto sobre a rica vestimenta e cobriu-se com o capuz.
Após seguirem Nefert por cerca de um quarto de hora e esperando a melhor oportunidade para abordá-lo, notaram que ele cambaleava, como se estivesse embriagado.
- Observa! Bebeu bastante da minha melhor bebida e se embriagou - justificou-se Cleofas para o escravo.
Dentro em pouco, Nefert encostou-se em um muro, como se estivesse com náuseas, e, depois, deixou-se escorregar para o chão sem sentidos.
Era a ocasião que aguardavam.
Cleofas e o escravo se aproximaram;
abriram-lhe a bolsa de couro de carneiro, de onde tiraram uma bolsa menor, pesada, onde as moedas tilintaram.
Nesse instante, Nefert abriu os olhos e viu Cleofas debruçado sobre ele.
Com imensa dificuldade, murmurou:
- Trai...dor. Tu me... traíste, Cleofas.
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 2 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2020 7:44 pm

Fui... envenenado... ti, mas... não... ficarás impune... por... mais este... crime.
Em seguida, seus olhos ficaram vítreos, fixados no inimigo, e deixou de respirar.
Apavorado, Cleofas fugiu do local, acompanhado do escravo que tudo ouvira.
Outras pessoas que se aproximaram também chegaram a ponto de ouvir a grave acusação que o morto fizera.
Quase a correr, Cleofas dirigiu-se à sua residência.
Fechou-se em seu quarto, trémulo e apavorado.
Quando a esposa, que saíra de visita a uma amiga, chegou, foi informada pelos escravos da atitude estranha do esposo, que entrara qual rajada de vento, como se perseguido por alguém, e se fechara em seus aposentos.
Núbia dirigiu-se para lá e o encontrou encolhido no leito, com os olhos esgazeados, a tremer de medo.
- O que tens, meu esposo?
Todos estranharam a maneira como chegaste à nossa casa.
Estás enfermo?
Cleofas permaneceu calado, entregue a si mesmo.
- Não me respondes?
Queres que chame o médico? - perguntou, colocando a mão em sua testa.
Pareces febril! Vou chamar o médico!
- Não! Estou bem.
Isso passa. Deixa-me só.
Por todo o dia, Cleofas não mais deixou o quarto.
Na manhã seguinte, alguns guardas bateram no portão.
Queriam falar com o dono da casa.
Introduzidos na residência, Núbia recebeu-os.
- Qual o motivo da vossa presença?
- Senhora, somos portadores de uma ordem de prisão para teu esposo.
Ele está?
Surpresa e altiva, Núbia questionou:
- Ordem de prisão?
Por qual motivo?
Meu marido nunca cometeu crime algum!
- Enganas-te, senhora.
Recebemos algumas tabuinhas com grave denúncia contra Cleofas, teu esposo.
- Com certeza há um engano.
Qual é a acusação?
- É acusado de ter mandado matar Satótis e de ter eliminado o cúmplice, Nefert, para ocultar o crime.
Nesse momento, ouviu-se uma bulha do lado de fora.
Os guardas correram e se depararam com outros dois guardas que traziam preso um homem.
- Capitão - disse um dos guardas -, nós prendemos o criminoso Cleofas, que, após pular a janela, pretendia fugir pelos fundos.
Ao ver o marido, preso e amarrado pelos homens da lei, Núbia correu a seu encontro, desesperada.
- Meu esposo!
Diz-me que é mentira, que eles nada têm contra ti!
Com os olhos postos no chão, Cleofas não respondeu.
Em poucos minutos, já tinham saído, deixando Núbia prostrada e perplexa.
Chamando Tenuref, um amigo versado em leis, ela pediu-lhe que fosse verificar o que realmente estava acontecendo.
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 2 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2020 7:44 pm

Voltando algumas horas depois, ele informou que a situação de Cleofas era extremamente grave, e contou a Núbia o que soubera da boca do próprio comandante do destacamento.
- Pelo jeito, Cleofas contratou Nefert para matar Satótis, marido de tua filha Narha.
- Mas por quê?
Eles se davam tão bem. Eram amigos!
- Sim. Contudo, Cleofas estava em situação financeira muito difícil em virtude de dívidas contraídas no jogo, que dilapidaram património da família.
Parece que pretendia, eliminando Satóti que era imensamente rico, ficar com o controle dos bens, já que a filha não fora preparada nem teria condições para gerir tão grande fortuna.
- Pelos deuses!
Não posso acreditar em tamanha sujeira.
Mas como podem saber se isso é verdade? - indagou Núbia.
- Ai é que as coisas se complicam, minha cara amiga Núbia.
Nefert estava com medo de que Cleofas quisesse matá-lo, já que era a única pessoa que poderia comprometê-lo.
Assim, falou com um escriba, seu amigo, que grafou sua confissão em algumas tabuinhas, ficando esse amigo de confiança de posse delas, com ordem para entregá-las directamente à justiça, caso lhe acontecesse algo.
Nelas, Nefert confessa que estava extorquindo dinheiro de Cleofas para fugir da cidade e temia que o outro o eliminasse, o que acabou acontecendo.
- Como isto se deu?
- Foi encontrado o corpo de Nefert caído numa rua, morto.
Provavelmente envenenado, visto que não tinha sinais de violência.
Os populares que estavam perto contaram que a vítima acusou um homem cuja aparência coincide com a de Cleofas, acompanhado de um escravo alto e forte.
Núbia puxou a sineta e logo um escravo surgiu.
- Manda Pamires vir até aqui.
Quando o escravo chegou, medroso e desconfiado, Núbia ordenou-lhe que contasse o que sabia dos factos.
- O senhor me chamou e me pediu para acompanhá-lo.
Deveríamos seguir um homem que acabara de deixar a casa e que o patrão acusou de ter-lhe roubado uma bolsa com grande soma.
- Prossegue. E o seguiram?
- Sim, senhora.
O homem caiu de bêbado.
Pelo menos, foi o que o senhor Cleofas disse.
- Não era verdade?
- Pelo jeito não, senhora.
O homem abriu os olhos e acusou o patrão de tê-lo envenenado para ocultar um crime.
- Só tu o ouviste?
- Não, senhora, infelizmente.
Pessoas do povo que se aproximaram também ouviram.
- E depois?
- Depois, ao notar que curiosos haviam-se aproximado, o patrão ficou apavorado e saiu quase correndo do local, vindo para cá, e eu o acompanhei.
Em seguida, fechou-se no quarto, como a senhora já sabe.
- Sei. Podes ir, Pamires,
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2020 7:44 pm

Núbia - pertencente a uma das melhores famílias da corte - fora educada para conter suas emoções;
porém, naquele momento não conseguiu impedir as lágrimas.
E agora? Como contar a verdade a meus filhos, especialmente a minha filha e a minhas netas?
Como reagirão elas diante da notícia de que o pai e o avô, que sempre amaram e respeitaram, agora é um criminoso que lhes roubou a vida de Satótis, esposo e pai adorado?
Tenuref, cuja cabeça estava mais lúcida, não obstante o choque que essas notícias lhe causaram, em virtude das relações de amizade que existiam de longa data entre as famílias, pensou por alguns momentos e ponderou, grave:
- Cara Núbia, por muito que estejamos abalados por esses trágicos acontecimentos, que culminaram com a prisão do nosso querido Cleofas, temos que manter a cabeça no lugar.
Terás que justificar a ausência de teu esposo perante a família.
Reúne os filhos e diz-lhes o mínimo possível, até termos melhores informações.
- Não sei o que dizer! - exclamou Núbia, olhos cheios de lágrimas, enquanto as mãos amassavam nervosamente um lencinho de linho perfumado.
- Diz, por exemplo, que Cleofas foi chamado para prestar esclarecimentos.
A todas as perguntas, responde que ignoras.
Enquanto isso, darei assistência a Cleofas na prisão.
Asseguro-te que farei tudo o que estiver a meu alcance.
- Está bem. Farei como dizes.
Com o coração sangrando, Núbia reuniu a família e agiu como sugerido por Tenuref, procurando tranquilizar os entes queridos quanto à situação do chefe da casa.
Todavia, com o passar dos dias, as coisas só se complicaram.
Cleofas sofreu um longo processo, sendo condenado à pena de morte. Resistiu quanto pôde para conservar a vida, sempre com a esperança de que pudesse receber a graça do faraó, transformando sua condenação à morte em prisão, o que estava sendo tentado por Tenuref, que possuía muitos relacionamentos no alto escalão do governo.
Quando Tenuref veio à prisão lhe dar a notícia de que todos os recursos tinham sido negados e que não havia mais esperança, Cleofas não disse uma palavra.
Após a saída de Tenuref, tomou uma decisão.
No dia em que dera a taça de veneno para Nefert, colocara o veneno num bolso da túnica, julgando mais seguro para que ninguém o visse.
Depois, perseguira o cúmplice pelas ruas até vê-lo cair, tirou-lhe a bolsa de moedas e retornou para casa, escondendo-se em seus aposentos.
Tão abalado estava, sentindo-se vigiado e perseguido, que tremendo de medo jogou-se no leito do jeito que estava.
Acabou adormecendo e despertou na manhã seguinte ouvindo barulho no jardim e na casa.
Percebeu que sua esposa falava com homens, cujas vozes não reconhecia.
Sentindo-se acuado, optou por pular a janela e sair por um pequeno portão existente nos fundos do grande jardim.
No entanto, dois soldados o viram e o prenderam, iniciando-se sua tragédia.
Na prisão, como não houvesse trocado de roupa desde o dia anterior, ele sentiu no bolso o minúsculo vidro de veneno e resolveu guardá-lo para qualquer eventualidade.
Escondeu-o numa fresta da parede, toda de pedras.
Agora, desanimado, desesperançado, longe da família e dos amigos, tendo perdido a liberdade e a honra, nome execrado em todo o país, resolveu fazer uso do veneno.
Quando lhe trouxeram a refeição e uma caneca com água, derramou o resto do perigoso líquido e o tomou até a última gota.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2020 7:45 pm

Nos dias seguintes, os carcereiros notaram que a ração de comida e água não tinha sido retirada.
Depois de uma semana, abriram a porta e o encontraram morto, já em adiantado estado de putrefacção.
O corpo de Cleofas foi queimado, facto que consistia na condenação eterna, visto não ter sido embalsamado, como de costume entre os egípcios, extremamente preocupados com o destino da alma após a morte.
As últimas notícias causaram terrível consternação entre todos os familiares.
No entanto, restou o consolo de que Cleofas não sofrera a penalidade máxima, que era a morte em praça pública, vergonha e humilhação supremas para ele e para a família.
Núbia e o filho Anótis deixaram a cidade, retirando-se para uma propriedade distante, única que a justiça lhes deixara, como meio de sobrevivência.
Quanto a Nahra, embora tenha herdado os bens de Satótis, resolveu mudar-se com as filhas para outra cidade, sem perdoar ao pai o mal que lhe fizera.
Para Cleofas, começava uma nova vida, plena de sofrimentos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 19, 2020 7:45 pm

8 - Novos débitos
A chegada de Cleofas ao Além-túmulo constituiu-se numa verdadeira festa, ocasião que comemoramos intensamente.
Ao desprender-se do corpo físico, ainda sob a perturbação da morte, aterrorizado, ele divisou nossos homens, que o aguardavam em semicírculo, a poucos metros, formando uma barreira intransponível;
e, à frente de todos, eu, de braços cruzados, com a expressão arrogante e cruel do vencedor.
- Sê bem-vindo, Cleofas!
Nós te aguardávamos ansiosamente! - saudei-o com ar sarcástico e galhofeiro.
De olhos arregalados, a fisionomia marmórea expressando terrível pavor, Cleofas tentou fugir, mas éramos muitos.
Avançamos sobre ele e o agarramos, sem que tivesse tempo para se defender.
A tremer de medo, sob os esgares do veneno ingerido, indagou:
- Quem és tu? Por que me odeias?
Joguei a cabeça para trás soltando uma gargalhada, no que fui acompanhado pelos demais. Depois, o desafiei:
- Pois não me reconheces?
Procura na memória!
Olhou-me com cuidado e respondeu:
- Sim, lembro-me vagamente de ti, mas não me recordo de onde.
- Pois vou aclarar-te as ideias.
Lembras-te de teu irmão Ahmim?
Sou Emil, aquele que Ahmim trouxe à tua casa e que foi escorraçado por ti.
É bem verdade que, naquela época, não tinhas atitude tão humilde! - completei com sarcasmo.
Às minhas palavras, todo o bando caiu novamente na risada, lançando chistes, palavrões e maldições sobre nosso inimigo.
Cleofas arregalou os olhos, assustado:
Reconheço-te agora e peço-te perdão, Emil.
Não foste, porém, escorraçado de minha casa.
Creio que te enganas.
Conversei com Ahmim na ocasião e ele me convenceu de que eras boa pessoa.
Quando te procuramos, já não te encontramos.
Tinhas desaparecido de minha residência, facto que causou grande consternação e pesar ao mano Ahinim.
Diante de suas explicações e da maneira sincera com que falava, titubeei por alguns instantes.
Pela tela da memória, revi o momento em que me aproximei da sala onde estavam Ahmim e Cleofas.
Ouvi que falavam de mim.
Ahmim defendia-me, dizendo "quando tu o conheceres melhor, verás que não há o que temer".
Ao que Cleofas retrucou categoricamente:
"Esse é o ponto. Não haverá tempo para conhecê-lo melhor, Ahmim.
Emil não poderá permanecer nesta casa.
Assim que acordar, será mandado embora.
Não exporei minha família a tal monstruosidade, constrangendo-a perante toda a sociedade".
A dor de ser rejeitado mais uma vez marcou-me a alma.
Ser considerado um monstro atingia-me o espírito orgulhoso.
Assim, sem que me notassem, deixei a propriedade, sem destino, a sofrer intensamente.
De súbito, voltando a mim, lembrei-me de onde estava.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2020 7:10 pm

Os companheiros me observavam com expressão indagadora, aguardando uma reacção.
Readquirindo o controle das emoções, retruquei colérico:
- Isso é o que afirmas agora, infame!
Porém, já não importa mais.
Serás condenado por crimes bem mais graves.
Cleofas jogou-se no chão, suplicando piedade, enquanto nossos comparsas o arrastavam, entre urros de vitória, com expressão cruel e zombeteira, a provar antecipadamente a satisfação da vingança.
Dai por diante, ele foi um joguete em nossas mãos.
Aprisionado e torturado à saciedade, diante da crueldade inominável de nossa falange, seu sofrimento tornou-se inconcebível.
Tudo era permitido aos nossos homens, que cevavam o desejo de vingança, a agressividade e o ódio acalentado por longo tempo.
O prisioneiro ficou ainda mais apavorado quando viu Nefert, seu cúmplice e uma de suas vítimas, também sob a "guarda" da nossa falange e que do mesmo modo sofria as consequências da nossa vingança.
Cleofas teve que suportar igualmente o ódio do ex-cúmplice, que o culpava pela sua morte.
Como todo excesso cansa, após longo tempo em que ambos ficaram entregues à nossa sanha, acabamos por conceder-lhes certa dose de paz.
Estávamos entediados e com novas diversões, por isso apenas vez por outra voltávamos a assediá-los.
Só que agora, como verdadeiros escravos, eram obrigados a fazer-nos a vontade, cumprindo nossas ordens.
Depois do ódio satisfeito, começaram a surgir outros assuntos que aguardavam solução.
Cada um dos companheiros possuía seus próprios projectos de vingança, e o acordo que havíamos firmado com eles era de uma troca de favores:
ajudariam no meu caso, e eu ficaria obrigado ao compromisso de ajudá-los também, quando fosse requisitado, o mesmo acontecendo com os demais.
Assim, minha vida virou um redemoinho de acções dedicadas ao mal.
Estávamos sempre metidos em processos de vingança, planejando a destruição deste ou daquele adversário.
E tudo parecia muito natural.
No início, sentia-me contrariado ao prejudicar criaturas que nunca me tinham feito mal, contra as quais não tinha nenhuma queixa.
Todavia, com o tempo acabei me acostumando e, coração endurecido e fechado, procurava não pensar, fazendo apenas o que me era ordenado.
Por longo período, permaneci nessa roda-viva.
Anestesiado, não tinha projectos de vida e, especialmente, procurava não lembrar do passado, das coisas boas que me aconteceram e das pessoas que amara.
Era como se nunca tivessem existido.
No entanto, tudo tem um fim.
Chegou o momento em que, desanimado, cansado daquela vida que não me dava mais satisfação, não sentia mais vontade de fazer nada.
Acomodei-me na inércia, entediado de tudo.
Foi nessa época que, um dia, sentindo o peito opresso e uma angústia e mal-estar como nunca tinha experimentado antes, deixei que as lágrimas, por longo tempo represadas, vertessem abundantemente.
Algo em mim estava mudando.
Aos poucos, imagens de uma vida diferente traziam-me à memória o que tivera de bom.
Desejei mudar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2020 7:10 pm

Amargurado, ao recordar as atrocidades que cometera, joguei-me ao chão e implorei a ajuda de Rá.
Quanto tempo eu assim permaneci? Ignoro.
Aos poucos o desespero amenizou e as lágrimas estancaram.
Mergulhei em sono benéfico e profundo.
Comprometera-me tanto com a justiça divina que os benfeitores espirituais julgaram por bem internar-me novamente na carne para que, por meio do esquecimento balsamizante, pudesse recomeçar.
Assim, mergulhei em novo corpo.
Quando abri os olhos, estava numa nova existência, cercado por pessoas boas e amorosas.
Não obstante a oportunidade que me era concedida, enfrentei muitas dificuldades, em virtude de imperfeições minhas e das ligações que fizera com as falanges do mal.
Novamente, coloquei tudo a perder, complicando-me ainda mais.
Depois dessa, vieram outras e mais outras existências, para que eu pudesse, aos poucos, amenizar as tendências negativas que trazia no íntimo da alma.
Não vale a pena lembrar tais experiências, pois se constituíram de erros sobre erros, maldades sobre maldades, num círculo vicioso que me mantinha amarrado e do qual ao mesmo tempo me nutria, perseguido e perseguidor, de acordo com as possibilidades do momento.
No tempo e no espaço, fui levado como pluma ao vento, planando por muitos lugares.
Misericordiosa, a divina providência trabalhava a meu favor, a favor da desventurada criatura que ainda não despertara para a necessidade de elevação, acumulando débitos clamorosos.
Como sempre, fazia-se presente a bondade celeste.
Ser imperfeito, ignorante e mau, ainda em fase inferior da consciência e da razão, tinha de passar pela fieira de encarnações, que me seriam importantes no futuro, como etapas úteis e necessárias ao progresso do espírito rebelde.
Paulatinamente, a consciência do bem e do mal passa a clarear a mente e alarga a percepção, ao mostrar que cada vez que se produz sofrimento a outrem experimenta-se sofrimento na própria pele, o que leva o espírito vagarosamente a modificar seu comportamento, para evitar as consequências negativas que virão de forma inexorável pela Lei de Causa e Efeito.
Aos poucos os instintos cedem lugar às sensações, e a evolução faz com que estas se transformem em sentimentos, conquanto embrionários, que gradualmente iluminam o íntimo do ser humano.
Como a noite, que cede lugar às primeiras luzes da aurora, também assim nossas conquistas espirituais aumentam à medida que o conhecimento e a moralidade ganham espaço dentro de nós.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2020 7:11 pm

9 - Nova encarnação
As primeiras lembranças que me acodem à memória falam de uma vida rude e trabalhosa.
A natureza era inóspita, quase sem vegetação.
Habitávamos um vale entre montanhas, e eu via a extensão da planície soprada pelo vento forte que me zunia nos ouvidos e que desenvolveu em mim o medo daquilo que não podia ver e que, segundo minha mãe, representava a divindade ou o poder supremo.
Abrigados em tendas, esperávamos o vento passar.
De outras vezes, quando a natureza se apresentava inclemente, buscávamos, sob tempestades ou frio congelante, lugares mais elevados, nas imediações, e nos abrigávamos nas grutas ali existentes.
De qualquer forma, aconchegado à minha mãe, na tenda ou na gruta rochosa, sentia-me seguro.
Perto dela sempre havia paz e calor.
Aziz, um sábio ancião, ensinava-me muitas coisas e contava-me histórias interessantes sobre outros povos que habitavam lugares longínquos.
Minha existência era alegre e tranquila.
Corria pelos campos brincando com outras crianças do acampamento e divertia-me no regato cujas águas límpidas serviam para nosso uso e permitiam que nosso povo ali permanecesse.
Minha mãe, uma bela mulher de olhos escuros, meigos e tristes, falava-me de meu pai, que eu ainda não conhecia.
Perguntei à minha mãe certo dia:
- Onde está meu pai, minha mãe?
Ela respirou profundamente, ajeitou o manto que lhe cobria a cabeça e, com os olhos perdidos ao longe, murmurou:
- Teu pai está guerreando, meu filho.
- Onde?
- Longe, muito longe.
- Sozinho? - indaguei, na ingenuidade que caracteriza os primeiros anos de vida.
Ela sorriu, deixando ver uma fieira de dentes alvos, o que raramente acontecia, e respondeu:
- Não, meu filho.
Está acompanhado de todo o nosso exército.
- Ah! E ele voltará logo?
Percebi que seus olhos se humedeceram e uma sombra de tristeza velou seu sorriso, enquanto ela me fitava com carinho.
- Peço aos deuses todas as noites para que isso aconteça, meu filho.
- E se ele não voltar? - indaguei novamente.
Ela passou suavemente a mão sobre minha cabeça e respondeu séria:
- Se teu pai não voltar, meu filho querido, tu serás o nosso rei.
Estás sendo preparado por Aziz, nosso sábio ancião, para poder, um dia, comandar nosso povo.
Fiquei pensativo por alguns instantes.
Minha mãe tornou, desviando-me a atenção infantil de assuntos tão sérios:
- Agora vamos entrar, que já se faz tarde.
Naquela noite, ao fazer minhas preces, juntei meu pedido ao de minha mãe para que meu pai retornasse o mais rápido possível.
Na manhã seguinte, no horário costumeiro, fui reunir-me ao sábio ancião.
Ele já me aguardava em sua tenda, sentado sobre um tapete, com as pernas cruzadas, à moda oriental, enquanto suave aroma se espalhava no ar.
Sentei-me à sua frente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2020 7:11 pm

De olhos fechados, ele não deu mostras de perceber minha presença; depois de alguns minutos, falou suavemente:
- Sinto que estás ansioso e inquieto, Cambises.
O que desejas saber, meu filho?
- O avô é realmente muito sábio.
Trago dentro de minha cabeça uma dúvida desde ontem à noite.
- Qual é a dúvida que faz franzir tua testa, Cambises?
- Avô, o que é comandar?
- Comandar é ter o poder maior e ser obedecido.
Ditar as regras e impor a todos a sua vontade, de modo que o povo viva contente e em segurança.
- Ah! Então é isso o que meu pai faz?
- Sim, meu filho.
E tu serás o rei da Pérsia algum dia e comandarás o nosso povo.
Balancei a cabeça, temeroso:
- Não sei fazer isso. Não posso ser rei.
- Saberás, quando chegar o momento.
Tu serás um grande guerreiro como teu pai, e estarei a teu lado para te orientar.
Dei um suspiro fundo, mais aliviado.
- Então, nada temerei.
- Sim, Kambújiya.
Um grande guerreiro não deve temer coisa alguma.
O ancião me dispensou, certamente julgando que, naquele dia, minha cabecinha já teria material suficiente para pensar.
Saindo da tenda, pus-me a caminhar pelo acampamento.
Logo encontrei Rufus, um homem carrancudo e de olhos ameaçadores, que me disse:
- A partir de hoje vamos começar a treinar.
- Por quê?
- Ordens de tua mãe.
Não queres ser um guerreiro?
- Sim.
Desse dia em diante, ocupávamos várias horas do dia para treinamento.
Todas as crianças do acampamento participavam do adestramento nas corridas, nas lutas corpo-a-corpo e no arremesso de flechas com arco.
O resto das horas, nós brincávamos.
Nossa vida tornou-se bem mais agradável e agitada. O tempo passava rápido.
Certo dia, despertei com um barulho diferente.
Bastante forte, assemelhava-se ao ruído de trovões à distância.
Levantei-me rápido e olhei para o céu esperando vê-lo coberto de nuvens.
No entanto estava limpo, azul, e o sol iniciava sua trajectória pelo espaço.
Muita gente já se encontrava fora das tendas, vibrando de satisfação e dando gritos de alegria, a olhar fixamente para um ponto ao longe.
Coloquei a mão na testa para proteger os olhos da luz e deparei-me com uma grande nuvem de poeira que enchia os ares.
À medida que ela se aproximava, o solo tremia sob meus pés.
No meio da poeira que se levantava, percebi o tropel de camelos e o clamor de guerreiros que ecoavam por toda a planície.
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 2 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2020 7:11 pm

Meu coraçãozinho batia forte diante da novidade.
Era um acontecimento inusitado!
Minha mãe tomou-me a mão com firmeza, e percebi que a dela, segurando a minha, tremia, e que seu peito arfava.
Seus olhos me fitaram e senti neles uma expressão de medo e ao mesmo tempo de esperança.
Teria meu pai voltado com o exército?
Não demorou muito, podíamos vê-los com clareza.
Aproximaram-se com um braço erguido, agitando as espadas, enquanto com as pernas e o outro braço continham os camelos que estacavam.
Aqueles que tinham família no acampamento, e que não eram muitos, chegavam numa nuvem de areia, ao mesmo tempo que tentavam divisar, no meio do povo, seus entes queridos.
Ao avistá-los, os guerreiros escorregavam rapidamente para o chão, correndo ao encontro deles.
Depois, abraçavam sorridentes, a esposa, filhos, mãe, pai ou irmãos.
Eu observava tudo com o coração aos saltos e uma grande dificuldade de respirar, em virtude da poeira que dominou tudo ao nosso redor.
Minha mãe apertou ainda mais minha mão e vi que fixava o olhar num ponto qualquer, mais distante.
Protegendo os olhos dos grãos de areia, no meio dos guerreiros que se aproximavam, vi surgir um homem imponente e forte que cavalgava em nossa direcção.
Ao acercar-se, esperou o camelo abaixar-se, desceu do animal suavemente e deu alguns passos com os olhos fixos em minha mãe, que se inclinou à sua chegada.
A multidão de ambos os lados se afastou, abrindo uma clareira bem no centro, e de forma respeitosa e reverente todos acompanharam a cena que se desenrolou.
Saúde!
Em seguida, aquele homem grande e imponente olhou para mim, curvando-se à minha frente.
Então pude ver bem seu belo rosto barbado, empoeirado, que denotava cansaço, mas em cujos olhos húmidos brilhava a chama da emoção.
Antes que ele perguntasse, minha mãe apresentou-me:
- Meu rei e senhor!
Este é Kambújiya, teu filho.
O guerreiro abraçou-me com extremo carinho e, depois, levantando-se, abraçou minha mãe.
- Moa, preferida dos deuses, agradeço-te o filho varão que me deste.
Este é um dia feliz para todos nós.
Alegrai-vos! Faço de Kambújiya o meu herdeiro!
Uma grande aclamação partiu de todas as bocas.
Olhei em torno e percebi que a multidão se colocava à nossa volta.
- Viva Ciro 2º, o nosso grande rei! - gritavam, levantando os braços para o alto.
Erguendo a mão, ele impôs silêncio ao povo.
Depois, em voz alta e pausada:
- Este é um momento de grande alegria.
Conquistamos o Reino da Média, que agora ficará sob o domínio da Pérsia!
Somos vencedores e trouxemos muita comida e riquezas.
Vamos festejar!
Logo uma música alegre tomou conta do acampamento, enquanto se aprestavam os preparativos para a comemoração do retorno das tropas.
Fogueiras foram acesas e carnes colocadas para assar nos tripés, enquanto as tendas eram levantadas e os soldados cantavam e embriagavam-se.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2020 7:11 pm

Eu estava fascinado com todo aquele movimento.
Tudo era novo para mim, pois, desde minhas lembranças mais recuadas, vivia num acampamento tranquilo e sem novidades.
Agora entendia por que em nossas tendas só havia mulheres, crianças e homens velhos ou com alguma deficiência.
Os varões válidos e fortes estavam no exército, acompanhando Ciro, meu pai.
Um sentimento de imenso orgulho tomou conta de mim.
Caminhando ao lado de meu pai, eu o observava a transitar no meio do acampamento, que agora se tornara imenso com tendas a perder de vista: ao parar para conversar com as pessoas, a brincar com outras crianças, risonho e satisfeito, em meu coração tomei a decisão de ser como ele - um grande guerreiro.
Vaguei pelo acampamento observando tudo:
as fogueiras, onde o fogo crepitava trazendo o cheiro das carnes que estavam assando;
os soldados, satisfeitos, reunidos em grupos, com cujas brincadeiras e jogos eu me divertia muito.
Comi com eles, e, pela primeira vez, deram-me vinho.
Como estavam todos festejando, aproveitei, pois ninguém se preocupava comigo.
Cansado, quando a noite chegou e as estrelas inundaram o céu com seu brilho, acabei por adormecer encostado num guerreiro que, de tão bêbado, caíra no chão, inconsciente.
Na manhã seguinte, quando acordei, o acampamento estava estranhamente silencioso.
O crepitar do fogo nas fogueiras, o ruído das vozes alegres, das risadas, o cheiro da carne assada, do vinho, o barulho das danças e das músicas, tudo desaparecera.
As fogueiras estavam apagadas;
havia restos de comida e canecas sujas de vinho abandonadas no chão.
O Sol surgira havia muitas horas e os guerreiros ainda dormiam, largados.
À medida que o Sol se fazia mais intenso e o calor aumentava, eles foram acordando.
As mulheres, acostumadas a despertar cedo, cuidavam de suas obrigações.
Procurei minha mãe em nossa tenda, e não a encontrei. Não dormira ali, como de hábito.
Uma das mulheres, amiga dela, ao ver-me, informou:
- Se procuras tua mãe, irás encontrá-la na tenda de Ciro.
Para lá me dirigi. Conhecia a localização da tenda do rei.
Tinha visto, entre surpreso e maravilhado, quando montaram a grande e majestosa tenda de Ciro, que se destacava entre as demais.
Ao chegar, envergonhado, levantei o reposteiro e parei à entrada da tenda, sem saber o que fazer.
Sem a armadura, o elmo e as armas de guerra, ele parecia outra pessoa, um homem mais comum, como tantos outros homens que ali estavam no acampamento.
Lavara-se, e em seus cabelos e a barba, que fora aparada, as gotículas de água punham reflexos de luz.
Ao ver-me, ele sorriu:
- Aproxima-te, meu filho.
Cheguei mais perto, ficando frente a frente com ele.
Minha mãe sorria e notei que seu belo rosto estava radiante de felicidade.
- Senta-te aqui a meu lado ordenou o rei.
Enquanto eu me acomodava entre as almofadas de brocado e cetim, ele me examinava discretamente.
Seus olhos me incomodavam, sentia-me devassado, como se ele pudesse conhecer meus menores pensamentos e desejos.
A mordiscar uma fruta seca, ele perguntou-me:
- Diz-me, Kambújiya, o que fazes da vida?
Quais são tuas ocupações?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2020 7:11 pm

- Estudo com o avô Aziz;
adestro-me em jogos com Rufus e, nas horas vagas, brinco com meus amigos, senhor.
- Muito bem. E em que se constitui teu treinamento?
- Participo de corridas, aprendo as artes de lidar com o arco e flechas, e da luta corpo-a-corpo, senhor.
- Só isso? redarguiu, ingerindo um gole de vinho.
- Não, senhor.
Também aprendo a escalar rochas, a reconhecer as pegadas e saber a quem elas pertencem, a desarmar um inimigo...
- Vejo que tu és um rapazinho com bastante actividade.
Depois pretendo confirmar o que me dizes.
Quero ver teus progressos.
Já te alimentaste hoje? Não? Então, come.
Levei à boca uma fruta seca, enquanto ele prosseguia:
- E em teus estudos com o sábio Aziz, o que aprendes?
- Ensinou-me o avô a ler e a escrever, geografia, história, a arte dos números, como ler nas estrelas, entre outras coisas.
- Ah, sim? Então sabes onde estávamos guerreando?
- Sim, senhor.
No território da Média, a quem a Pérsia deve tributos.
Ele concordou com um gesto de cabeça, fitando minha mãe, satisfeito, enquanto dizia:
- Agora não mais.
A Pérsia agora é senhora da Média.
- É verdade. Congratulações, senhor.
Por algum tempo continuamos a conversar, conhecendo-nos.
Depois, ele me levou pelo acampamento, onde todos já estavam de pé, cada qual em suas ocupações.
Uma parte dos guerreiros descansava, enquanto outros, incapazes de ficarem inertes, exercitavam-se em lutas.
Paramos para vê-los.
Dois homens lutavam; ambos eram grandes e fortes, embora um deles fosse menor e mais magro.
- Observa com cuidado, Cambises.
Acompanhei a luta sem perder um movimento.
Até que o mais forte derrubou o outro, prendendo-o ao solo com o joelho.
A luta terminara e ambos riam, satisfeitos.
Ciro perguntou-me:
- O que achaste da luta?
- Interessante. Ambos são hábeis.
- Venceu o mais forte - tornou o rei.
- Sim, meu senhor.
Contudo, o outro, conquanto em desvantagem, poderia ter vencido.
- Ah, sim? E o que farias no lugar dele?
- Bem, eu não teria me deixado pegar desprevenido.
Usaria a perna direita, colocando-a entre as do adversário, para fazê-lo perder o equilíbrio, o que facilmente seria conseguido.
Aziz me ensina que a força é importante, mas a agilidade é essencial.
Os guerreiros, atentos, ouviam-me falar.
Quando terminei, estavam de olhos arregalados, mudos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2020 7:12 pm

O rei levantou a cabeça, dando uma gargalhada.
Depois, virou-se para eles e disse:
- Um menino de menos de seis anos tem mais sabedoria do que guerreiros adultos e experimentados!
Que as palavras dele te sirvam de lição, Outir.
Os demais caíram na risada, batendo nas costas do perdedor e dizendo-lhe gracejos.
Algo constrangido, mas aceitando as brincadeiras dos companheiros, Outir disse-me:
- Agradeço-te pela lição, meu rapaz.
Quem sabe um dia, quando cresceres, possamos lutar juntos?
Estavam todos felizes e satisfeitos.
Muitos haviam retornado aos braços da família, os demais esperavam para encontrar os seus, mas estavam junto a seu povo e tinham conquistado grandes vitórias.
Quantidade enorme de riquezas, trazidas da guerra, seria dividida em parte com os guerreiros, o que lhes dava ânimo e coragem para continuar lutando.
Importante que se diga que, Ciro, soberano persa, era bastante generoso com os povos conquistados e agia de modo que todos o admirassem.
Ao submeter um povo, não destruía suas cidades nem se apropriava de suas riquezas, como espólio de guerra, como faziam os conquistadores.
Respeitava-lhes o modo de vida, suas religiões, suas crenças.
Por isso, onde estivesse era reverenciado.
As riquezas que trouxera eram dádivas que espontaneamente os vencidos lhe ofertaram, gratos por sua generosidade e sabedoria.
Mais tarde, o rei fez uma reunião com seus ajudantes mais directos, para analisar a campanha e fazer um balanço da situação.
Resolveu que descansariam mais alguns dias e no quinto partiriam todos para a capital.
Durante esse tempo, preparariam a arrumação das bagagens para a partida, visto que agora as famílias seguiriam junto.
Conforme determinado pelo rei, após aquele período levantamos acampamento.
Eu estava ansioso e preocupado.
Falava-se da cidade, nosso destino, mas eu nada conhecia além daquelas regiões inóspitas e devastadas pelo vento, onde, levando vida simples e tranquila, a meu modo fora feliz.
Era tudo o que eu conhecia! Por dentro, sentia o coração apertado.
Uma dor profunda instalara-se no peito.
Apesar da ânsia de conhecer lugares novos, de ver outras pessoas, conforme ouvira do avô Aziz, o medo do desconhecido deixava-me inseguro, tenso.
O que iria encontrar?
No entanto, todos estavam contentes, minha mãe mostrava-se como eu nunca vira, e isso me servia de consolo.
Um dia, logo pela manhã, acordei sabendo que teríamos de partir.
Era chegada a hora.
Colocamos todos os nossos pertences sobre os animais, apagamos as fogueiras e esperamos.
Os guerreiros aguardavam o comandante das tropas.
Ciro, meu pai, montou em seu cavalo e deu a ordem de partida, sendo aclamado entusiasticamente por todos os guerreiros.
Passou no meio das tropas, enfileiradas lado a lado com sua escolta pessoal, imponente e digno.
Seguimos logo atrás dele.
Depois, vinha uma parte do contingente e, para evitar surpresas, nosso povo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2020 7:12 pm

As mulheres, crianças e idosos seguiram em carroças, bem como as concubinas e os tesouros recebidos.
Para finalizar, fechava a grande caravana o gado, os camelos e o resto das tropas, atenta e vigilante.
Quando nos pusemos em movimento, olhei para trás despedindo-me daquele lugar que eu aprendera a amar e que me era tão caro ao coração.
Algumas lágrimas rolaram sem que eu pudesse evitá-las.
Em seguida, cheio de orgulho, endireitei meu corpo e esporeei o cavalo, considerando que não deveria mostrar-me indigno da posição que ocupava como herdeiro de Ciro, rei da Pérsia.
Naquele momento terminou minha infância, iniciando-se novo período de minha existência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 20, 2020 7:12 pm

10 - Deixando o refúgio
Durante o trajecto que fizemos de retorno àquela que seria doravante nossa cidade, aos poucos fui inteirando-me da nossa história.
Soube a razão de estarmos num acampamento, praticamente isolados de tudo e de todos.
Minha mãe contou-me que, quando Ciro resolveu invadir a Média, e partiu com seu exército, logo aconteceu um facto que mudaria nossa vida.
Aziz fora informado de que se tramava um levante, aproveitando a ausência do soberano, fomentado por uma das suas muitas concubinas, que havia gerado um filho dele e desejava colocá-lo no trono.
Essa mulher, auxiliada por alguns eunucos do harém e meia dúzia de nobres, tomaria o poder e mataria Moa, minha mãe, pois era a rainha, estava grávida de poucos meses e os revoltosos não poderiam permitir que o herdeiro nascesse.
Expedido um portador o rei foi devidamente informado dessas notícias.
Ficou feliz por saber que Moa, sua amada esposa, lhe daria um filho, mas num dilema cruel:
teria que decidir entre voltar para a Pérsia, proteger seu reino e a família, ou prosseguir com sua campanha de conquista.
Nessa altura dos acontecimentos, porém, ele e seu exército estavam muito distantes, e voltar seria difícil, senão impossível, mesmo porque gastos exorbitantes tinham sido feitos para preparar e equipar as tropas.
Então, depois de muito pensar e de consultar seus assessores mais directos, Ciro decidiu:
mandou de volta o mensageiro com suas determinações para o chefe do conselho, que lhe era leal.
Deveria este continuar no poder, encontrar os traidores e combatê-los, condenando-os à morte.
Aziz, conselheiro e amigo de sua inteira confiança, partiria com a rainha Moa e algumas famílias que lhe eram fiéis para um território que ele considerava seguro, lugar bastante isolado, em Anshan, onde seu filho poderia nascer em segurança.
Afirmava também que pretendia retornar o mais rápido possível da Média.
No entanto, a guerra alongou-se mais do que o previsto, e Ciro havia permanecido com seus homens em terras distantes por quase sete anos, combatendo sem cessar.
Somente agora retornavam, findo o impasse, e Ciro pôde rever, com imenso júbilo, sua amada esposa e conhecer seu herdeiro.
A mãe se calou, entregue aos próprios pensamentos.
- Jamais imaginei que meu nascimento estivesse envolvido em acontecimentos tão graves.
Eu notava certos cuidados, que julgava excessivos e ditados pelo teu amor materno, unicamente.
Depois dessas explicações, posso entender melhor a razão de vivermos isolados.
E agora? Sabes como está a situação na capital, minha mãe? - indaguei preocupado.
Moa suspirou e respondeu com um timbre melancólico na voz:
- Ignoro, meu filho.
Há tempos não recebemos notícias de Susa.
Preferimos evitar contacto por temor de que alguém descobrisse nosso paradeiro, somente o fazendo em casos extremos.
Eu temia especialmente por ti, meu filho, a quem desejavam matar.
Quedei-me, pensativo.
Durante aqueles anos mornos e plácidos da minha infância jamais pude imaginar que era o núcleo e a razão de uma história tão complicada e trágica.
- Não te inquietes, meu querido.
Ciro sabe o que faz.
Mesmo que o ambiente político não esteja calmo em Susa, o rei tem a força do exército com ele.
São invencíveis. Tudo acabará bem.
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