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De Volta ao Éden - Célia Xavier Camargo

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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 24, 2022 8:52 pm

De Volta ao Éden
Célia Xavier Camargo

ÍNDICE
Introdução

Capítulo I
- Adão, Eva e algo mais...
Um mundo além do bem e do mal

Capítulo II - O conto das duas árvores
As árvores se contradizem?
O Jardim do Éden e o Princípio da Incerteza de Heisenberg
Querubins com a espada flamejante

Capítulo III - O lado escuro do Paraíso
O que nós sabemos sobre a serpente?
Uma “tentação” curiosa
Ser como Deus

Capítulo IV - A verdade nua
A estranha proeminência da nudez
Uma nudez oculta
Um engano “inocente”

Capítulo V - Os motivos da serpente
A árvore dos desejos
A serpente “nua”
A bela e a fera

Capítulo VI - Um mundo de brócolos e pizza
Do que é feito o verdadeiro conhecimento?
Certo e errado de fora para dentro
Escolhendo entre o brócolos e a pizza
Todos os dilemas morais são idênticos?

Capítulo VII - Um boxeador chamado 'Desejo'
Uma luta contra o irreal
Os jogos mentais do desejo
Os princípios do desejo

Capítulo VIII - O olho daquele que contempla
Há um modelo aqui?
As peças que faltam no quebra-cabeça

Capítulo IX - Friedrich Nietzsche e o D.J.
Torá e o tempero da vida
O advento do desequilíbrio
Um medo recém-descoberto
O preço do poder

Capítulo X - “Onde estás?”
A primeira pergunta da História
Dons gémeos
As roupas de Adão e a sepultura de Moisés
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 24, 2022 8:52 pm

INTRODUÇÃO
- De Volta ao Éden -
Adão, Eva e a serpente são familiares para nós desde a tenra infância, entretanto o sentido dessa história parece por demais elusivo. Por exemplo, por que será que Deus proibiu comer da árvore do conhecimento do bem e do mal? Será que Ele não queria mesmo que a humanidade estivesse apta a distinguir o certo do errado?
Começamos nesta semana uma nova série de estudos que nos levará de volta à história do Éden, revelando progressivamente novas camadas de sentido.
Paradoxalmente, um grande problema quando estudamos as histórias bíblicas é que elas são muito familiares para nós. Não importa onde você tenha crescido ou que nível de educação tenha, você certamente já se deparou com a história de Adão e Eva dezenas, senão centenas de vezes.
Ouvimos a história na escola, aprendemos a mesma em casa, e alguns até talvez já tenham assistido filmes sobre o relato do Éden. Nós conhecemos aquela história, asseguramos para nós mesmos. Será que de fato a conhecemos?
Quando conhecemos uma história muito bem, nós nos tornamos presa fácil do que gosto de chamar de “efeito canção de ninar”. O “efeito canção de ninar” retarda nossa habilidade de perguntar – e até mesmo de ver – as questões realmente importantes que a Bíblia está pedindo que investiguemos.
O “efeito canção de ninar” nos anestesia através da impressão da familiaridade.
Veja só como funciona: Quando foi a última vez que você parou para pensar sobre a letra das canções de ninar que muitas mães cantam para que seus filhos durmam? Pare por um só momento e pense... mas pense bastante! Pense na letra e no sentido da mesma.
Para quem não consegue lembrar-se de nenhuma dessas canções de ninar, lá vai uma das mais conhecidas: “Boi da cara preta, pega esta criança que tem medo de careta”, ou ainda, “Dorme menino que a cuca vem pegar”. Imagine só se a criança estivesse mesmo prestando atenção ou se pudesse entender de facto o que tais letras querem dizer. A criança pode até dormir com essas canções, mas se ela de fato estivesse entendendo a “mensagem” que a letra transmite, permaneceria acordada com certeza! Muitas perguntas poderiam surgir em sua mente, tais como: Quem me deixaria ficar aqui bem em frente a esse boi perigoso? Será que meus pais estão tentando se livrar de mim? Será que só por eu ter medo de careta isso seria motivo suficiente para me deixar sozinho em frente a esse animal furioso?
Poucos, porém, mesmo remotamente se incomodam com a violência implícita em tais letras de inocentes canções de ninar. E por que não nos preocupamos com isso?
Simples: Porque nós paramos de “ouvir” essas letras. Repetimos as mesmas quase que mecanicamente e não nos damos conta do seu impacto; Nós mesmos as ouvimos muitas e muitas vezes desde criança, e mesmo antes de sabermos exactamente o que suas letras queriam dizer. E agora, mesmo como adultos tais letras não nos podem chocar.
As histórias bíblicas são como canções de ninar nesse sentido. Quase todas as histórias bíblicas têm o seu “elefante na sala”, ou seja, um grande problema ou uma série deles que estão aí pedindo para serem investigados. “Por que Deus pediria que Abraão tomasse seu filho e o sacrificasse somente para se retratar no último momento e dizer que Ele não queria isso de facto?”. O que exactamente Deus tinha contra a construção da Torre de Babel? Por que Deus se daria o trabalho de mandar Moisés barganhar com o faraó a fim de libertar o povo hebreu sabendo que Ele mesmo (o próprio Deus) é que estava “endurecendo” o coração do rei egípcio?
Mas, aí é que está o problema. Essas histórias são muito familiares para nós; nós as ouvimos por muitas e muitas vezes. Elas já se tornaram parte de nossa formação cultural. Nós mergulhamos nessas histórias através de osmose, o modo como inconscientemente desenvolvemos tendências que reflectem o lugar onde crescemos. Nós já não conseguimos ver todos os problemas que existem nesses relatos bíblicos e perdemos a sensibilidade e a curiosidade para investigá-los.
Eu gostaria de convidá-los a mudar esta realidade. Quero pedir que você embarque connosco numa jornada, uma aventura pelo texto bíblico na qual nós faremos uma releitura dessas histórias que pensávamos conhecer tão bem; só que dessa vez, veremos as mesmas com outros olhos e faremos as perguntas que qualquer leitor inteligente faria.
Se esta ideia te deixa nervoso, relaxe. Não precisamos temer estas perguntas, porque na verdade elas não são problemas mas sim, oportunidades. Elas são janelas que o texto bíblico nos entreabre para que percebamos os sentidos mais profundos do relato sagrado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 24, 2022 8:53 pm

Na verdade, você pode manter as janelas fechadas e fingir que elas não estão ali.
Mas se você não abri-las, o tesouro que se encontra mais adiante, um rico e tridimensional entendimento da Torá¹ sem mencionar ainda um mundo inteiro de Chazal² e Midrash³ permanecerá eternamente selado para você.
Eis aqui então o que propomos. A cada ano, os judeus lêem toda a Torá em seu ciclo de estudos; todavia, com muita frequência não damos à primeira parashá4 (que inclui Gên. 1-3) a devida importância e atenção merecidas.
Vamos então inspirar profundamente e dar uma olhada mais de perto no texto da primeira parashá, na história de Adão e Eva, mas só que desta vez, prestaremos muito mais atenção ao texto em si. Abra agora a sua Bíblia na história de Adão, Eva e a serpente no Jardim do Éden. Sim, eu sei que você conhece bem a história. Você tem a imagem da serpente enrolada na árvore oferecendo uma maçã para Eva. Mas, aí é que está. Você deve ESQUECER tudo isso e também essa imagem. Você precisa apagar essas imagens e ler a história de novo. Você precisa quebrar a síndrome da canção de ninar.
Leia a história devagar e com cuidado. Só o texto, esqueça os comentários. E enquanto faz isso, faça as seguintes perguntas para si mesmo: Se eu estivesse lendo esta história pela primeira vez, o que me chamaria à atenção e quais elementos nela me parecem estranhos? Quais são as grandes perguntas que a Torá deseja que eu faça sobre esta história?
Anote tudo o que achar importante e as perguntas que você tem sobre o texto e nos veremos no próximo capítulo de nossa saga de investigação do sentido mais profundo do texto bíblico. Até lá.
Rabino David Fohrman

Referências:
1.Torá = os cinco primeiros livros de Moisés (Gên./Ex/Lev/Num/Deut). Tradicionalmente inclui-se também a Mishná, cerne e coluna vertebral do Talmud.
2.Chazal = abreviatura hebraica de Chachameinu Zichronam Liv'rachá (Nossos Sábios de Abençoada Memória). Trata-se de uma referência às interpretações bíblicas dos sábios do judaísmo.
3.Midrash = comentários e interpretações (geralmente escritas) de certas passagens da Torá, elaboradas por sábios antigos.
4.Parashá = porção da Torá lida e estudada a cada sábado na sinagoga.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 24, 2022 8:53 pm

CAPÍTULO I - Adão, Eva e algo mais...
Já na introdução nós pedimos que o leitor fizesse uma releitura da história de Adão, Eva e da serpente, desta vez, prestando muita atenção e com uma nova abordagem, fazendo a cada etapa da leitura aquela perguntinha básica: “O que há de estranho nessa história?”. Vamos juntos revisitar resumidamente nosso relato – assim:
Após ter criado o mundo, Deus cria dois seres humanos e os coloca num paraíso, no Jardim do Éden. Ele lhes concede domínio e livre soberania sobre todo o território e a criação. Há apenas uma restrição: Certa árvore da qual eles não deveriam comer --- é a “árvore do conhecimento do bem e do mal”. O fruto dessa árvore não deveria ser comido sob nenhuma circunstância!
Entretanto, para resumir, os dois seres humanos conseguem de alguma forma transgredir a única ordem proibitiva que lhes fora dada. Seduzida por uma misteriosa serpente, Eva come da árvore e também faz com que Adão partilhe do fruto. O Eterno parece ter ficado decepcionado e dita várias punições: A serpente? Não andaria mais, apenas rastejaria. A mulher? Suas descendentes sofreriam uma multiplicação de dores na concepção e no parto.
E o homem? Ele e sua descendência deveriam tirar da terra o sustento de cada dia à custo de suor do rosto. E para piorar, a morte passa a ser o destino final de todos os envolvidos. Ninguém mais poderia viver para sempre. O Éden fora colocado fora do alcance; a partir de então, o ser humano deveria buscar outro lugar para servir de habitação.
Mas, espere um momento! Há ainda um detalhe sobre nosso texto que parece ter escapado: há outra árvore no jardim, uma árvore misteriosa, a chamada “árvore da vida”, e a última coisa que Deus quer agora é que alguém tome e coma do fruto da mesma.
Bem, que problemas temos aqui? A história te cai bem ou você sente-se desconfortável com ela? Se você sente-se desconfortável, será que poderia justificar e dizer o por quê dessa sensação?
Como mencionamos na introdução, todas as histórias têm o seu “elefante na sala”: uma pergunta óbvia que é tão básica e tão profundamente perturbadora que até que você ache um meio de lidar com ela não pode afirmar honestamente que entende o que está lendo. Será que temos aqui em nosso relato sobre Adão, Eva e a serpente uma pergunta deste tipo ou desta magnitude?
Eu pessoalmente acredito que sim.
Vamos conversar um pouco sobre aquela nossa primeira árvore misteriosa, a “árvore do conhecimento do bem e do mal”. Com certeza este é um nome muito estranho, mesmo para uma árvore; entretanto, é exactamente esse o nome que a Bíblia lhe dá, então presumivelmente é isso mesmo o que ela é: um meio que transmite conhecimento sobre o bem e o mal, ou a habilidade de distinguir o certo do errado àqueles que participam do seu fruto.
Mas, há um grave problema com tudo isto. Poderíamos resumir este problema numa pergunta:
Por que Deus desejaria que tal conhecimento sobre o bem e o mal fosse negado às pessoas?
Pense nisso. Será que os seres humanos estão em melhores ou piores condições pelo conhecimento do bem e do mal? Distinguir o certo do errado está mais para um património ou uma grande responsabilidade para os seres humanos?
Imagine um mundo no qual as pessoas fossem exactamente como são agora: inteligentes, seres que podiam falar, andar, dirigir carros, fazer investimentos etc. Entretanto, faltava algo nessas pessoas. Elas não sabiam distinguir o certo do errado.
Nós temos uma palavra para definir esse tipo de pessoa. Nós os chamamos de sociopatas.
Alguém que possua todas as faculdades humanas mas que não saiba distinguir o certo do errado é alguém que pode assassinar outra pessoa com uma machadinha da mesa forma que eu e você cortamos a grama. Será que Deus teria prazer em criar um mundo cheio desse tipo de gente? Certamente as pessoas estão muito melhor conhecendo e distinguindo o certo do errado.
Então por que será que Deus parece insinuar que tal conhecimento é indesejável, visto ter proibido o homem de comer do fruto da tal árvore?
Uma saída tentadora para este problema seria por exemplo, sugerir que tudo não passou de uma “armação”, um mero “teatro”: Deus na verdade queria que as pessoas pudessem usufruir do conhecimento que a árvore podia transmitir e ficou feliz com o fato de que os humanos partilharam do seu fruto.
Mas isso pode não ser tão simples assim pois tal abordagem é extremamente problemática. Pelo que percebemos do relato da Torá (Bíblia), Deus parece profundamente desapontado com Adão e Eva após terem comido da árvore; Ele chega até a puni-los de forma severa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 24, 2022 8:53 pm

Como devemos entender tal desapontamento? Não parece um tanto perverso imaginar o Altíssimo em segredo deleitando-se com o fato de que ambos comeram finalmente do fruto para logo em seguida puni-los com rigor exemplar? Será que Ele ocultaria sua alegria e prazer por trás de uma 'máscara' de decepção e descontentamento?
Deus claramente queria que Adão e Eva evitassem aquela árvore. Mas isso nos leva à outra questão crucial: Por que desejaria Deus privar o homem de uma compreensão plena do bem e do mal?
A verdade é que a pergunta é um tanto mais profunda do que isto. Não é estranho simplesmente o fato de que Deus tenha imposto limites com relação àquela árvore: Na verdade, a própria existência de tal árvore no jardim parece criar uma contradição básica na história como um todo. Veja por que:
O que acontece imediatamente após Adão e Eva comerem da árvore cujos misteriosos frutos conferem conhecimento do “bem e do mal”? O Eterno Deus zanga-se com eles e pune-os com rigor. Mas se Adão e Eva foram punidos pelo que fizeram, isto pressupõe que eles sabiam que tinham feito algo ruim, tanto é que na sequência buscam justificar o ato. O homem afirma que a mulher deu-lhe de comer o fruto e a mulher por sua vez, afirma ter sido enganada pela serpente. Não punimos alguém que não esteja ciente de que fez algo errado. Assim, tanto Adão como Eva tinham um conhecimento prévio do que era certo ou errado, e isso antes mesmo de terem comido do fruto proibido. Bem, poderíamos no mínimo dizer que basicamente eles sabiam de antemão que era “certo” obedecer a Deus e “errado” desobedecê-Lo.
Mas agora nos deparamos com outro dilema, pois se Adão e Eva já entendiam a distinção entre o certo e o errado, o bem e o mal, então de certa forma eles já possuíam aquilo que a tal árvore poderia dar-lhes! E isso então poderia significar que a árvore era algo inútil, que não passava de uma farsa.
Temos aqui um sério problema. Não é algo como se perguntar por que aqui ou ali a Torá incluiu uma palavra extra num verso ou por que o comentarista Rashi citou um Midrash após o outro na interpretação de uma passagem. Estas são perguntas interessantes mas se você não tiver respostas ainda assim poderá dormir tranquilo à noite. Todavia, a pergunta que nos acabamos de fazer, ou seja, “Será que Adão e Eva já possuíam o conhecimento que a árvore poderia transmitir-lhes?” - é fundamental. É básica. É o tipo de pergunta que se você não encontrar resposta pode até fazer com que perca o sono, pois enquanto você estiver “no escuro” e com falta de respostas, a história de Adão e Eva não fará para você sentido algum. Então como será que poderemos lidar com este problema? Eu gostaria agora de delinear um esquema de nova abordagem que acredito possa vir a ser de utilidade e talvez represente uma forma de solução para nosso pequeno grande dilema.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 24, 2022 8:53 pm

UM MUNDO ALÉM DO BEM E DO MAL
Talvez tenhamos sido vítimas de falsas premissas. Nós presumimos que conhecemos que tipo de conhecimento a árvore deu a Adão e Eva: um conhecimento do 'bem' e do 'mal', do 'certo' e do 'errado'. Mas numa segunda reflexão poderemos notar que só pelo fato da árvore ser chamada de “árvore do conhecimento do bem e do mal” isso não significa absolutamente que Adão e Eva não tinham nenhum tipo de conhecimento ético ou moral e que não sabiam distinguir o certo do errado antes mesmo de terem experimentado o fruto proibido por Deus. Significa simplesmente que eles não chamavam isso de “bem” ou “mal”, “certo” ou “errado”; eles chamavam isso por outra nomenclatura.
Dois factos bíblicos aludem a esse fato que expomos. O primeiro: o homem (ser humano) foi criado à imagem e semelhança de Deus – e isto antes mesmo de ter experimentado do fruto, naturalmente. A “imagem” a que a Torá faz referência é obviamente a imagem moral, uma vez que de acordo com um dos treze princípios do judaísmo, Deus não tem corpo ou forma.
Maimônides (Rabi Moshe Ben Maimon, Espanha 1135-1204) em sua obra Moreh Hanevukhim (“O Guia dos Perplexos”) distingue dois conceitos: tselem (forma) e demut (semelhança), de toar (aparência) e tavnit (configuração).
Toar e tavnit dizem respeito à forma material, enquanto tselem e demut à forma espiritual. A Torá ao relatar a criação do homem faz uso dos termos tselem e demut (Gên. 1:26), definindo a imagem espiritual do Criador em seu carácter afirmando assim um dos princípios básicos do judaísmo: Não podemos elevar a Deus através da matéria, mas sim, através do espírito (vide Is44:13), daí a rejeição formal do judaísmo pela idolatria, pois o ídolo é apenas “aparência material” ou uma “configuração da matéria”.
Tendo sido criado dessa forma, com a imago dei (imagem divina) impressa em seu ser, é mais do que óbvio esperar que o homem já tivesse ciência moral e ética antes mesmo de ter comido da árvore do conhecimento do bem e do mal.
O segundo fato diz respeito à própria consciência do homem. Ele entendeu muito bem a ordem divina de manter-se longe da árvore e sabia assim que obedecer era o 'certo' e 'desobedecer' era errado. Entendeu também que a penalidade para a transgressão seria a 'morte'. Assim, entendia a relação crime x castigo, em suma, mesmo no mundo antes da queda ele tinha consciência moral.
A abordagem que estamos sugerindo não é de minha autoria. É na verdade a abordagem usada por Maimônides em seu Guia dos Perplexos. O Rambam1 considera a mesma pergunta que nós estamos nos fazendo agora:
Por que Deus negaria ao homem o conhecimento do 'bem' e do 'mal'? E a resposta que ele nos dá é essa: A árvore não nos deu um entendimento do que era certo e errado pelo fato de não termos isso antes; a bem da verdade, o comer do fruto da árvore transformou este entendimento primitivo de uma coisa para outra. Transformou isso em algo que passou a ser chamado de “conhecimento do bem e do mal”.
Se isto te parece um tanto obscuro, tente pensar nisto desta forma: Hoje em dia quando fazemos algo certo pensamos nisso como algo “bom”. Se por outro lado fazemos algo errado, pensamos nisso como “mau”. Mas o Rambam contende, esses não são os termos mais naturais que poderíamos possivelmente usar. Esses termos passaram a ser relevantes em nosso inconsciente colectivo tornando-se parte de nosso vocabulário somente após termos experimentado do fruto proibido. No mundo do Éden, naquele mundo anterior à árvore do conhecimento do bem e do mal, as palavras “bem” e “mal” pareceriam estranhas e não apropriadas. Sim, nós até poderíamos estar cientes do certo e do errado, mas certamente não teríamos chamado isto de “bem” e “mal”, Nós teríamos pensado nisso de forma diferente. Nós teríamos chamado isso por um nome diferente.
Mas, de que forma então teríamos chamado o “bem” e o “mal” naquela época? Como seria pensar em conceitos de “bem” e “mal” no mundo edénico, no mundo antes da árvore do conhecimento do bem e do mal? Essa é na verdade uma intrigante pergunta. Para sermos honestos, estamos indo muito além da capacidade humana normal, para simplesmente formular a pergunta; fazer tal pergunta é inquirir, investigar um mundo que não mais conhecemos; um mundo no qual o “certo” e o “errado”, o “bem” e o “mal” pareciam vastamente diferentes dos nossos conceitos atuais. Mas é exactamente para isso que estamos aqui. A Torá sugere que esse era o mundo ideal, o mundo genuíno e é para aquele mundo perdido que nós lutamos para retornar.
Revelar a natureza do bem e do mal no mundo autêntico do Éden será uma de nossas tarefas mais importantes nos capítulos a seguir. Mas antes de darmos início a essa aventura nós precisamos nos munir de mais dados. Por enquanto devemos voltar ao texto de nosso relato e nos perguntar: Quais são os outros problemas que a história de Adão e Eva nos apresenta?
Releia mais uma vez a narrativa do Éden e tente encontrar os outros problemas que temos ali. Anote tudo e até o próximo capítulo.

Referências:
1.Rambam = acrónimo de Rabi Moshe Ben Maimon.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 24, 2022 8:54 pm

CAPÍTULO II - O conto das duas árvores
No capítulo anterior nos concentramos basicamente no tema da misteriosa “árvore do conhecimento do bem e do mal”. Mas sabemos que havia no jardim outra árvore, igualmente misteriosa, chamada de “árvore da vida”.
Diz Génesis 2:9,
“E Deus fez crescer da terra todo tipo de árvore agradável à vista e boa de se comer, [incluindo] a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal”
Por todo o relato podemos perceber que a árvore da vida permanece sempre em segundo plano. Ela é criada e logo em seguida sai de cena, desaparecendo da discussão. Que papel essa árvore misteriosa desempenha na história, e como devemos entender o seu sentido?
Embora a árvore da vida permaneça fora de vista, ainda assim não permanece ausente no desfecho de nossa história, pois após terem Adão e Eva comido do fruto proibido, ouvimos falar da árvore da vida mais uma vez:
“E Deus disse: Eis que o homem tornou-se como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Agora deve-se evitar que ele estenda a mão e tome do fruto da árvore da vida e coma e viva para sempre” (Génesis 3:22).

Temos aqui a razão de Deus ter exilado Adão e Eva do Éden. Eles são expulsos dali para que se assegure que jamais voltariam a comer da árvore da vida. Mas há algo extremamente estranho nisso tudo. Pois ao lermos a história percebemos que Adão não recebeu ordem alguma para ficar longe da árvore da vida. Se Deus achasse uma má ideia que o homem dela comesse, por que Ele não os instruiu para que a evitassem, como fez com a outra árvore, a do conhecimento do bem e do mal?
Agora para deixar as coisas um pouquinho piores, vamos relembrar onde exactamente localizava-se a árvore da vida:
“...a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal” (Génesis 2:9)

Vamos somar isso tudo. A árvore da vida estava no meio do jardim, e Adão e Eva não receberam ordem alguma para que a evitassem. Pela percepção lógica, Deus até desejava que o homem comesse daquela árvore eventualmente. Na verdade, nem sabemos se eles tinham consciência de que se tratava de uma árvore especial. O que então aconteceria eventualmente?
Ora, era só questão de tempo para que alguém comesse de seu fruto.
Perceba então que o enredo de nossa história fica ainda mais complexo.
Evidentemente Deus não se importava se Adão e Eva comessem da árvore da vida. Ele aparentemente até desejava que eles comessem daquele fruto; mas isso foi antes de eles terem comido da outra árvore, a do conhecimento do bem e do mal. Após terem partilhado do fruto proibido, de alguma forma tudo muda: agora a árvore da vida ficaria for a do seu alcance. Todos os esforços para que se evite que a humanidade jamais outra vez tome do seu fruto e coma devem ser feitos.
Por que? O que será que há por trás desta curiosa relação entre as duas árvores? Por que o fruto da árvore da vida pode ser comido antes de se experimentar do fruto do conhecimento do bem e do mal mas não depois disso?
Este é um ponto que certamente revisitaremos mais tarde. Mas ainda não acabamos de explorar os mistérios das relações entre as duas árvores.
Para dizer a verdade, estamos só no começo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 24, 2022 8:54 pm

AS ÁRVORES SE CONTRADIZEM?
Tente esta pergunta: Como eram Adão e Eva antes de comerem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal? Eram mortais ou imortais?
Vejamos o que cada um tem a dizer sobre isto. Comecemos pela árvore do conhecimento. Nós sabemos que o homem foi advertido a não comer daquele fruto, por que no dia em que dele comesse, certamente morreria (Génesis 2:17).
Como afirmou Nachmânides, isso não significa que o fruto os mataria imediatamente tendo em vista que sabemos que os dois não morreram “no dia” em que comeram daquela referida árvore. Bem, você talvez possa pensar:
Talvez o texto queira dizer algo como: “No dia em que vocês comerem desse fruto, vocês se tornarão mortais”; esta, poderia você pensar, é a 'mensagem' por trás dessas palavras de advertência da parte de Deus.
Então a árvore do conhecimento do bem e do mal parece responder a pergunta que fizemos anteriormente. Ela prova que Adão e Eva eram originalmente imortais, certo?
Errado! Porque agora já é hora de vermos o que a árvore da vida tem a dizer sobre esta questão.
A Torá diz que Deus baniu Adão e Eva do jardim para que eles não mais estendessem a mão e comessem do fruto da árvore da vida, vivendo assim “para sempre”. Bem, o verso parece muito claro à respeito de uma coisa: o fruto da árvore da vida confere imortalidade – se você comê-lo, jamais morrerá. Ora, se a árvore da vida tinha o poder de tornar o homem imortal isso significaria que ele antes era mortal, ou que mortal fora criado, pois caso contrário, que lógica haveria em se plantar uma “árvore da vida” cujos frutos transmitiam a condição de imortalidade se o homem era desde sua criação um ser imortal?
Mas, espere! Há algo de estranho aí, pois a árvore do conhecimento do bem e do mal parece nos dizer que o homem teria vivido originalmente para sempre caso não tivesse dela comido. Todavia, a outra, a árvore da vida parece sugerir que o homem era mortal pois deveria comer dela para viver para sempre.
À primeira vista, as árvores parecem ser contraditórias.
Mas isso a primeira vista. Uma surpreendente verdade vai nos demonstrar qual era a natureza do homem antes de ele ter experimentado do fruto proibido. Pare de ler por enquanto e pense se você pode encontrar a solução.

O JARDIM DO ÉDEN E O 'PRINCÍPIO DA INCERTEZA' DE HEISENBERG
Eis aqui nossa sugestão para resolver este dilema: As duas árvores estão corretas e não se contradizem. O ser humano antes de comer das árvores não era nem mortal, nem imortal. Se comessem do fruto da árvore da vida, tornar-se-iam imortais. Se por outro lado comessem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, eles se tornariam em seres que experimentariam a morte. Enquanto não provaram de nenhum desses frutos, o ser humano estava na chamada “zona crepuscular”, um estado de suspensão, uma condição precária de realidade, entre a mortalidade e a imortalidade. Sua natureza era indeterminada.
Se um estado assim de indeterminação te parece estranho, não se preocupe. Vá a qualquer biblioteca e apanhe algum livro sobre Física Quântica.
De acordo com este ramo da ciência, é uma característica padrão da realidade que as coisas sejam indeterminadas. Em dado momento, um eléctron pode estar aqui ou ali afirma Heisenberg, mas neste exacto momento, ele não se encontra nem aqui e nem ali. Sua posição ou determinação só torna-se real quando um observador entra em cena e fixa-se nele. Bem, se os eléctrons podem ser indeterminados, as pessoas também.
Ora, valendo-se deste princípio, o Éden era um lugar onde o homem foi precariamente colocado num estado indeterminado, entre a vida e a morte, dependendo de sua escolha. Se prestarmos bem atenção, o Éden e este estado de indeterminação do ser humano lembram um marcante episódio na história judaica. Isto nos faz lembrar de um tempo em que o povo judeu não encontrava-se nem aqui nem ali, quando o Eterno Deus ofereceu-lhes uma escolha similar entre a 'vida' e a 'morte':
“Vede que hoje tenho proposto perante vós uma escolha entre a vida e o bem [por um lado] e a morte e o mal [por outro]... Escolhei pois a vida...” (Deuteronómio 30:14-19)
Quando Moisés pronunciou estas palavras, o povo judeu encontrava-se no limiar de um deserto, não possuindo ainda nem a 'vida' e nem a 'morte'.
Uma vez mais, eles deveriam fazer uma escolha. Neste caso, a 'vida' era para eles a aceitação da Torá e seus princípios, enquanto a 'morte' significava a rejeição dela.
É de fato surpreendente que a escolha de abraçar a Torá e apegar-se aos seus princípios seja retratada da exacta forma como foi no caso da árvore da vida. Alguns poderiam afirmar que se trata de mera coincidência ou uma meticulosa escolha de metáforas – pode, mas também pode ser que o episódio queira nos dizer algo mais profundo, e veremos que isto é facto!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 24, 2022 8:54 pm

QUERUBINS COM A ESPADA FLAMEJANTE
Considere isso por um momento: Os anjos que Deus colocou na entrada do jardim para guardar o caminho [de volta] para a árvore da vida (Génesis 3:24) pertencem à uma ordem angélica muito particular. Eles são querubins.
(Para aqueles que apreciam arte renascentista, eles são aqueles tipos de anjos que Rubens gostava de retratar em seus quadros, apesar de eu particularmente não saber por que ele pensava que sabia qual era a sua aparência!) Assim, percebemos que querubins são anjos relativamente raros nas Escrituras. Por todos os cinco livros de Moisés encontramos apenas duas referências a eles; Além da referência no Génesis, guardando o jardim e o caminho para a árvore da vida, eles são mencionados só mais uma vez. Postos sobre a kapporet (propiciatório¹)da aron hakodesh (arca sagrada), dois querubins de ouro:
“E farás dois querubins de ouro; batidos e feitos de uma só peça os farão das duas extremidades do tampo...e os querubins estenderão suas asas cobrindo com elas o tampo...” (Êxodo 25:18-20)
Vamos agora um passo adiante. Que 'tesouro' guardavam estes dois querubins sobre a arca sagrada da aliança?
Eles guardavam as tábuas das Dez Sentenças (chamadas também de “Dez Mandamentos”), em resumo, guardavam a Lei Divina, a Torá.
Para aqueles que frequentam a sinagoga no shabbat (sábado) o que vou dizer agora é bastante familiar. Uma passagem de Provérbios é recitada enquanto o leitor ergue o rolo da Torá para que todos possam contemplá-la:
“Etz chayim hi, lamachazikim bah”
“Ela é árvore da vida para os que a ela se apegam” (Provérbios 3:18)
Fascinante, não é mesmo? A outra passagem onde encontramos os querubins eles estão guardando o caminho para a árvore da vida, e lá em Êxodo, encontramos mais uma (e única) vez os querubins guardando desta vez a Torá, também chamada de “árvore da vida” para aqueles que se apegam a ela.
Só que desta vez, os querubins não estão nos afastando da “árvore da vida”, muito pelo contrário: eles estão nos guiando até ela, protegendo ao mesmo tempo nós e a Sagrada Torá debaixo de suas asas.
Bem, e agora? Que faremos nós com todas estas informações? Por que será que a escolha no Éden entre a vida e a morte é mais uma vez repetida como a escolha entre aceitar ou rejeitar a Lei Divina (a Torá)? Por que os querubins que antes vigiavam o caminho de volta à árvore da vida desta vez parecem nos incentivar a que possamos ter acesso àquela segunda “árvore da vida” que se encontrava dentro da arca da aliança, a saber, a Sagrada Torá? O que queremos dizer exactamente quando chamamos a Torá de “árvore da vida”? Quais são as semelhanças entre a árvore do jardim e esta segunda?
Nós certamente temos um longo caminho pela frente, mas já demos um grande passo chegando até aqui, a fim de desvendarmos os mistérios que envolvem aquelas árvores e o relato do Éden. No próximo capítulo estaremos estabelecendo outras peças deste grande quebra-cabeça da saga de Adão e Eva no Éden perdido. E quando finalmente tivermos em mãos todas as peças, começaremos a montar este quadro a fim de desvendarmos a figura que ele pretende nos mostrar. Até lá.

Referências:
1. kapporet (propiciatório) = tampa que cobria a arca da aliança.
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De Volta ao Éden - Célia Xavier Camargo Empty Re: De Volta ao Éden - Célia Xavier Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 24, 2022 8:55 pm

CAPÍTULO III - O lado escuro do Paraíso
A Bíblia está repleta de personagens que exemplificam o bem e o mal, e embora possamos simpatizar com os personagens que se aliam ao “bem”, nem sempre eles são os protagonistas da história. Considere por exemplo a narrativa sobre Caim e Abel. A história não é na verdade sobre Abel. Nós não sabemos quase nada sobre ele. Ele é assassinado pelo irmão e desaparece naturalmente da narrativa. Quer gostemos ou não da ideia, a história é sobre Caim: o que o teria levado a matar seu irmão, como era o seu universo interior, o que Deus quis dizer-lhe logo após ter cometido o seu crime e se ele alcançou perdão.
Quem são os personagens principais do nosso relato? Nosso primeiro impulso é apontar Adão ou Eva. Mas talvez a história seja sobre alguém mais, também: a serpente. Naturalmente ela não é um personagem muito popular, não é certamente um herói – mas talvez a história seja tanto sobre ela quanto e sobre nós. Vamos tentar entender como ela se incorpora à nossa história e que papel ela representa.

O QUE NÓS SABEMOS SOBRE A SERPENTE?
Quando fizemos esta pergunta pela primeira vez em nossas palestras, recebemos várias respostas, mas e maioria delas afirmava que a serpente era o “diabo”, um anjo caído, um poderoso inimigo de Deus que busca perverter Seus desígnios a todo instante. Sendo judeu, eu confesso que tenho sérias dificuldades de entender e aceitar a noção de uma fonte independente de mal no universo que sirva como “inimigo” de Deus, o Todo Poderoso. O pensamento judaico tende a ver Satã de outra forma, não como opositor dos planos divinos, mas como um tipo de “promotor celeste” que é parte importante nos planos de Deus. Assim como nenhuma corte terrestre é completa sem um promotor, assim também a “corte celestial”. Sendo assim para o judaísmo, Satã é o promotor celeste que insiste na aplicação da divina justiça com todo o seu rigor.
Será então que a serpente era uma manifestação de Satã? Vejamos.
Génesis 3:1 poderá nos ajudar: “Ora a serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que Deus tinha feito”. A questão que podemos levantar aqui é: Será que a “serpente” era astuta por natureza ou porque Satã estaria “incorporado” nela? Sabemos que para perguntas óbvias não são necessárias respostas. A serpente era astuta porque Deus assim a tinha feito e não porque algum “ser sinistro e maligno” estava no “controle” dela. Aliás, acreditar que um suposto “diabo” estaria controlando a serpente não passa de mera conjectura, uma especulação que não pode ser comprovada e pior ainda:
trata-se de uma adição à Palavra Divina.
Entretanto, o que sabemos sobre a serpente é um tanto estranho. Que serpente é essa que “fala” e que parece “andar” (visto que “rastejaria” mais tarde como punição divina)? Que serpente é essa que passa a comer pó após o episódio da árvore? (ora, isto é uma nítida evidência de que deveria comer alguma outra coisa antes!) Enfim, que serpente é essa que é o mais astuto dentre todos os animais que Deus tinha feito?
É exactamente aqui que o texto deixa de ser simples, ingénuo e directo para tomar uma nova e surpreendente direcção. Não estamos mais falando de coisas tangíveis, físicas. Tudo toma outra direcção: o que temos aqui é um “mapa” da consciência humana.
Adão não é mais um homem.
Eva não é simplesmente sua mulher.
A serpente se reveste de outro sentido.
As árvores e até o próprio jardim assumem papéis diferentes.
O que muitos deixam de perceber é que temos dois relatos no Génesis sobre a criação do homem. O primeiro, mais curto, reduz-se basicamente a três versos (1:26-28). O segundo relato estende-se de Gên. 2:7-25.
Isto é notável, pois normalmente não se dá muita importância para o primeiro relato, aliás ele às vezes passa por despercebido da grande maioria dos leitores.
A ênfase de quase todos os leitores e estudiosos dos temas bíblicos concentra-se geralmente no segundo relato. Entretanto, ao contrário do que muitos poderiam pensar e também ao contrário do que geralmente se expõe por aí, os dois relatos são distintos, e contém diferenças notáveis.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 11:21 am

Existem sete diferenças cruciais entre os dois relatos:
• No primeiro relato, o ser humano (macho e fêmea) são ambos criados no mesmo momento (1:27). Já no segundo, o homem (2:7) surge ANTES da mulher (2:22).
• No segundo relato, eles não são mais chamados de “macho” e “fêmea”, mas sim, de “homem” e “mulher” (2:23).
• No primeiro relato, não vemos Deus “soprando em suas narinas” o “fôlego vital”, só no segundo (2:7).
• No primeiro relato, Deus não impõe nenhuma restrição alimentar sobre o que a terra produz (1:29); no segundo, há uma restrição clara quanto à chamada “árvore do conhecimento do bem e do mal”: Dessa árvore eles NÃO poderiam comer (2:16-17).
• No primeiro relato, a ordem dada é apenas quanto à reprodução da espécie (1:29). No segundo, entretanto, há uma clara alusão ao sentimento e ao envolvimento emocional, pois o homem deverá deixar seus pais e unir-se à sua esposa, tornando-se com ela “uma só carne” (2:24). Curiosamente não encontramos no segundo relato uma ordem quanto à reprodução da espécie, a qual já está implícita em 2:24 quando da união plena entre o marido e sua esposa.
• No primeiro relato (1:27) o homem é “criado”; no segundo, ele é “formado” (2:7). A mulher por sua vez, no segundo relato é “construída” ou “edificada” de acordo com o texto hebraico (2:22)
• No primeiro relato, o ser humano (macho e fêmea) recebem uma bênção para sua multiplicação e o domínio sobre os outros seres vivos (1:28) e o verso 29 demonstra que o ser humano naquela época não era produtor, mas sim, colector – pois apenas colectava da terra o alimento já existente. Não existia agricultura. Já no segundo relato, uma das funções do homem era cultivar o jardim (2:15).
O leitor atento descobrirá que ocorre uma nítida evolução de um relato para o outro: Antes chamado simplesmente de macho e fêmea, o ser humano passa a ser chamado de homem e mulher; O homem do primeiro relato não recebe o sopro divino, ao contrário do segundo; O homem do primeiro relato parece apenas comprometido com a preservação da espécie, mas o segundo percebe a necessidade de envolvimento emocional nas relações homem e mulher e conhece o conceito de maternidade e paternidade; No primeiro relato, o ser humano é criado – algo denso. No segundo, ele é formado – uma ideia mais subtil, mais evoluída.
Mas, o que isso tudo parece querer dizer?
Mais uma vez, a Bíblia já antecipa o que a ciência vem descobrir séculos, milénios depois. As Escrituras judaicas, conhecidas como Antigo Testamento especificamente no livro de Génesis demonstram a “evolução” do ser humano, em linguagem naturalmente simples.
No primeiro relato, como simplesmente “macho” e “fêmea” o homem não conhecia as relações familiares e tão pouco a produção de alimentos, uma vez que andava aos bandos apenas colectando o que a natureza pródiga lhe oferecia. Não existia a ideia de família, mas a espécie preocupava-se apenas com a preservação de sua espécie. O “sopro divino” que lhe faltava era simplesmente a evolução do intelecto, a consciência de si mesmo e o marco evolutivo da espécie humana.
Mas, e o segundo relato? O que o faz parecer tão diferente do primeiro?
Em primeiro lugar, o segundo relato é seguramente uma parábola, uma alegoria que pretende nos transmitir a verdade da evolução humana e finalmente a prova ou o teste oferecido aos nossos “ancestrais edénicos”. De acordo com a exegese judaica, nós poderíamos interpretar a passagem na forma literal, mas deixaríamos de perceber várias nuances de significado, ocultas no texto superficial do relato do Éden. Há várias “camadas” de sentido em cada passagem das Escrituras e o relato que estamos estudando não é certamente uma excepção.
Explicando: Adão, do hebraico Adam não é exactamente um nome próprio. Seu significado é “humanidade”; Eva, do hebraico Chava não é também um nome próprio: significa “vida”. Assim, quando Deus “construiu” Eva, Ele trouxe “vida” (Chava) para a “humanidade” (Adam). Se isto parece confuso, talvez fique ainda mais se questionarmos: Mas Adão não tinha vida antes de Eva? Naturalmente que sim! Logo, a “vida” que Eva trouxe para Adão deve ter outro sentido.
No texto aberto¹ da Torá, Adão busca encontrar uma adutora, alguém que lhe sirva de parceira. Deus lhe apresenta assim os animais que criara e ele dá nomes a todos mas, segundo Génesis 2:20, “para o homem não se achou ajudadora idónea”.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 11:22 am

O texto aberto sugere que Adão procurou entre os animais uma parceira, mas sua busca foi infrutífera e sem sucesso: era evidente que tal busca seria inócua e destituída de sentido; Deus naturalmente sabia disso, e desta forma, nosso relato deve estar querendo dizer algo mais.
Você deve lembrar que ao criar Adão, Deus soprou-lhe nas narinas o fôlego de vida (Génesis 2:7). Será que Deus fez o mesmo ao criar os outros animais? A resposta é naturalmente NÃO. Isso por si só já coloca o homem, a humanidade (Adam) num patamar mais elevado do que seus pares do reino animal. É de se estranhar entretanto que Deus tenha criado todos os outros seres como casais, macho e fêmea --- e só com o “homem” isso tenha sido diferente! Bem, talvez tenha sido diferente aqui neste segundo relato sobre a criação do “homem”, mas certamente não foi no primeiro (Génesis 1:26-28).
Nessa passagem vemos Deus criando o ser humano, macho e fêmea.
Aliás é importante observar que no primeiro relato o homem é “criado” (o verbo hebraico bara' implica criação à partir do nada). No segundo, o homem é “formado”, “plasmado” ou ainda, “moldado”; o verbo usado aqui da raiz yatsar implica em transformação de algo já existente.
E o que aprendemos disso?
No primeiro relato, o ser humano primitivo é “criado” na forma densa, na crueza da matéria, no sentido exacto da palavra. No segundo, ele é “formado”, o que denota subtileza, avanço psíquico e espiritual, evolução intelectual.


UMA “TENTAÇÃO” CURIOSA
Voltemos agora ao tema da serpente, a fim de que possamos revelar sua verdadeira identidade. Só para lembrar após esse longo parêntesis: Tudo o que sabemos sobre a serpente é deveras inimaginável caso estivéssemos falando de um animal de verdade: Ela fala, anda, e é astuta (inteligente). Em certo sentido, a serpente assemelha-se muito a um ser humano. Não se surpreenda, é isto mesmo – a serpente lembra o que nós somos.
Bem, vamos falar um pouco sobre o que a serpente diz em sua conversa com Eva. Lembre-se: a Torá descreve a serpente como um ser inteligente.
Pense então por um momento: Faça de conta que você é a serpente e que deseja fazer com que Eva coma um tipo de fruto que ela não deveria comer.
Como você agiria nesse caso? Para o que apelaria?
Bem, talvez você colocasse ênfase na beleza da fruta, fazendo com que Eva percebesse como ela era deliciosa. Talvez você inventasse alguma estória acerca dos supostos poderes 'mágicos' daquele fruto; talvez como a rainha má do conto da Branca de Neve você aparecesse diante de Eva com uma bela maçã brilhante e vermelha...
Mas, vejamos qual foi a estratégia da serpente. Ela se aproxima de Eva e diz no original hebraico: “Af ki amar elokim lo tochlu mikol etz hagan”. A maioria das traduções verte esta frase assim:
“É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?” (Génesis 3:1)
Mas, essa não é a tradução mais precisa do hebraico. Uma tradução literal, mais precisa, ficaria assim:
“Mesmo que Deus tenha dito, não comereis de alguma árvore do jardim....”
Não é muito de se admirar que os tradutores tenham tomado certa liberdade com o texto hebraico original, uma vez que a frase soa um tanto diferente do que esperaríamos de um bom “estrategista” como pensamos que a serpente fosse. Em primeiro lugar, a frase no original não parece ter um final, uma conclusão. De algum modo, parece que a serpente foi interrompida antes de terminar sua colocação; sua frase se perde de repente no meio do nada. Não podemos chegar à nenhuma conclusão se não tentarmos deduzir o que ela queria dizer à partir das informações de que dispomos.
Sabemos que a intenção da serpente era fazer com que Eva comesse do fruto daquela árvore proibida, então se talvez usarmos de nosso poder de dedução, poderíamos afirmar que a serpente queria dizer:
“Mesmo que Deus tenha dito, não comereis de alguma árvore do jardim... e daí? Vá em frente e coma dessa árvore”.
Mas, espere um segundo. O melhor argumento que a serpente pode arranjar foi esse? Isso não parece lá muito digno da “astúcia” com que a Torá a descreve. Além do mais, para mim soaria bem mais astuto se a serpente não lembrasse Eva da ordem divina de não comer daquela árvore. Por que a serpente insinuaria que Eva deliberadamente desrespeitasse a ordem de seu Criador?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 11:22 am

SER COMO DEUS
Basta lermos alguns versos a mais e o argumento da serpente toma um rumo diferente. Em Génesis 3:5 a serpente sugere que ela sabe a razão de Deus ter proibido a eles o acesso ao fruto do conhecimento do bem e do mal:
“Por que Deus sabe que no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e sereis como Deus conhecedores do bem e do mal”
Pondere por um momento nas palavras da serpente. Será que ela está mentindo ou dizendo a verdade? Eu não sei quanto a vocês, mas para mim, à primeira vista me parece que ela está mentindo descaradamente. Que tipo de bobagem é essa que a serpente esta dizendo ao sugerir que Deus guarda com ciúmes o fruto do conhecimento do bem e do mal porque ele é a chave para que nos tornemos semelhantes a Ele?
Será que Deus é tão “territorial” assim ao ponto de temer que meros humanos, por virtude de ingerir algum tipo de fruto com propriedades “mágicas” se tornassem como Ele e se infiltrassem em seus domínios? Por favor!
A serpente deve estar mentindo.
Mas não há razão para filosofar. O próprio texto nos revela se a serpente estava mentindo ou dizendo a verdade. O verso que passou agora pela minha mente aparece pouco depois de Adão e Eva terem experimentado do fruto proibido. Reflectindo sobre o fracasso do homem, Deus decreta que agora ele deve ser banido, exilado do Éden. E eis aqui a razão:
“Deus disse: Eis que o homem tornou-se como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Agora, deve-se evitar que ele estenda sua mão e tome da árvore da vida, e coma e viva para sempre” (Génesis 3:22).
Pode parecer impossível, mas a serpente estava dizendo a verdade quanto a isto. Deus claramente afirma que de alguma forma, aquele fruto elevou o ser humano, fazendo com que o mesmo se tornasse “semelhante” a Ele, visto que eles se tornaram conhecedores do bem e do mal. Mas, pense:
como pode ser isso? Se a árvore de fato tinha poderes para que fôssemos como Deus, por que então Ele decidiu que era melhor que a evitássemos?
Parece bastante blasfema a ideia de que Deus estava com medo de competição, principalmente competição com Suas próprias criaturas.
Finalmente, como se isso não fosse bastante, leia como o próprio Altíssimo define o que é “ser como Deus”:
“O homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal”
Peça para que as pessoas definam Deus para você. Você vai provavelmente ouvir dizer que Deus é omnisciente, que é todo poderoso, que é um, que é nosso Criador, etc. Mas, será que alguém vai dizer que ser Deus é conhecer o bem e o mal? Mas é exactamente dessa forma que Deus descreve o que é ser Deus.
A serpente aquele ser que falava, que andava e que era astuto (como nós) estava certa. O próprio Deus confirma suas palavras. Ser como Deus significa “conhecer o bem e o mal”. Agora compete a nós entender o que tudo isto quer dizer. Pense nisso e até o próximo capítulo.

Referências:
1. Texto aberto = Diz respeito à leitura natural, literal e óbvia das Escrituras, em contraste com o chamado “texto oculto”, uma camada de sentido mais profunda do texto sagrado, interpretada ou deduzida por meio das regras da hermenêutica judaica.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 11:22 am

APÍTULO IV - A Verdade Nua
Todo o relato sobre o Éden não passa de vinte e cinco versículos. É aparentemente muito pouco para relatar eventos que mudaram o curso da história humana. A Enciclopédia Britânica teria devotado a eventos de tamanha magnitude dezenas de páginas. Nós poderíamos nos questionar: Como pode a Torá comunicar algo tão profundo num trecho tão curto?
Uma das formas mais comuns aparentes no texto bíblico para que se transmita verdades mais profundas é através das “camadas de sentido” que se encontram “embutidas” no chamado texto aberto.
Vinte e cinco versos podem não parecer muita coisa, mas certamente torna-se abundante em sentido se os mesmos estiverem “codificados”. A tradição judaica ensina que a Torá emprega várias técnicas para “codificar” o texto a fim de transmitir outros “níveis” da mesma verdade. Uma dessas técnicas é a da “palavra- chave”.
Às vezes, ao ler o texto bíblico da Torá você pode perceber que a narrativa parece sair do seu contexto para usar certa palavra, frase ou ideia de forma insistente, repetitiva até. Quando isto acontece, é uma indicação frequente de que aquela palavra, frase ou ideia é a chave para a “decodificação” do texto, desdobrando-o em diversas “camadas” de interpretação e sentido, levando o leitor a um entendimento mais rico e profundo do texto que está estudando.
Acontece que nossa história do Éden contém uma palavra que se repete algumas vezes. Se você tomar algum tempo para “escanear” a história, é bem provável que você a ache por si mesmo.
Bem, quer queira você tenha achado ou não, lá vai: nossa palavra é “nu” ou, a ideia de “nudez”.


A ESTRANHA PROEMINÊNCIA DA NUDEZ
A nudez aparece por toda nossa história. Aparece no início, pouco antes da serpente falar com Eva: “E eis que estavam nus...e não se envergonhavam”. Aparece de novo no final quando Deus faz roupas para Adão e Eva para esconder sua nudez; aparece ainda no meio da narrativa, no exacto ponto onde atingimos o clímax da mesma: “E abriram-se os olhos de ambos e viram que estavam nus”.
Estranho, não é mesmo? Se alguém te pedisse para imaginar como o acto de comer um fruto que concedesse conhecimento do bem e do mal afectaria a humanidade, o que você teria dito? Talvez Adão e Eva tenham ficado imediatamente conscientes de um mundo completamente novo de dilemas que se desdobrava perante seus olhos: por exemplo, o direito de viver vs. o direito de escolher morrer; ou então, dez pessoas num barco que vai afundar a menos que alguém seja lançado fora; o que você faria? Todos os tipos de dilemas e questões éticas e morais devem ter passado pela cabeça deles. Suas cabeças deveriam estar girando com tantas possibilidades...
Mas, espere aí. Nada disso! Nenhuma das alternativas acima. Nada disso parece ter preocupado Adão e Eva. Após terem comido do fruto proibido, a reacção imediata foi perceber que estavam nus. Mas, que coisa esquisita! Por que conhecer o bem e o mal afecta nossa percepção de nudez? E há “nudez” também tanto no início quanto no final de nossa história, não esqueça.
Mas, vamos continuar a leitura do texto. Adão come da árvore e imediatamente se esconde de Deus. Agora, vamos nos perguntar, “por que ele está se escondendo?”
Pense por um instante. A quem foi dada a ordem de não comer daquele fruto: ao homem apenas, somente para a mulher ou a ambos? Quem de acordo com o texto se escondeu após ter comido o fruto: só o homem, a mulher apenas ou ambos? Não se apresse. Leia bem o texto antes de aventurar uma resposta.
Pronto? Bem, lá vai a resposta: a ordem for a dada apenas a Adão. Eva nem sequer havia sido “construída” ainda ( Génesis 2:15-17).
E após comer do fruto, Adão e Eva se escondem de Deus (Génesis 3:8), mas curiosamente o texto hebraico usa o verbo hitchabe' [escondeu-se] no singular, em vez de hitchab'u [esconderam-se], o que seria o normal em se tratando de duas pessoas.
Mas agora as coisas parecem estar ainda mais complicadas, ou não?
Você deve estar lembrado de que dissemos que o primeiro relato sobre a criação do homem é evidentemente literal, mas o segundo é uma alegoria, uma parábola que explica temas complexos sobre nossas origens como seres plenamente conscientes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 11:23 am

Retomando nosso tema, vamos nos perguntar agora sobre a razão de Adão para ter se escondido. Leia a passagem e tente entender o motivo pelo qual ele achou melhor esconder-se de Deus quando ouviu Sua voz no jardim.
Curiosamente, Adão não diz que estava envergonhado pelo que fez, isto é, pela desobediência e pelo fato de ter comido do fruto proibido. A razão que ele dá para se esconder é outra, bem diferente da que esperaríamos:
“Ouvi sua voz no jardim e temi porque estava nu e me escondi” (Génesis 3:10)
De alguma forma, a consciência de que estava nu era tão profunda em Adão, tão perturbadora, que até mesmo obscureceu seu sentimento de vergonha pelo facto de ter desobedecido a ordem de seu Criador. Ao ser chamado por Deus no Éden, Adão não ofereceu como justificativa para se esconder o fato de ter desobedecido ao Eterno; antes, afirmou que sua principal preocupação era o fato de estar nu.
Por que a nudez é tão importante nesta história? Por que será que a percepção de nudez da humanidade é a consequência natural de comer do fruto da árvore do conhecimento? E por que esta percepção de nudez é tão perturbadora ao ponto de ser a única justificativa oferecida pelo homem ao fato de ter se escondido da face do seu Criador?
Para responder isto, nós deveremos entender que surpreendentemente, nós ainda não vimos o desfecho da condição de nudez nesse relato. A “nudez” aparece mais uma vez em nossa narrativa, só que desta vez, ela vem “oculta” para os leitores da Bíblia em seus próprios idiomas. Assim, há alguém mais no jardim que também está “nu”. Você é capaz de determinar quem é?


UMA NUDEZ OCULTA
Se você teve dificuldades para identificar quem mais estava nu no jardim, acredite: Isto só ocorreu porque você deve estar lendo a Bíblia em sua própria língua mãe (no caso do Brasil, o português). Na maioria das vezes, isto acontece porque as versões de que dispomos não conseguem transmitir a riqueza de significados de uma palavra em hebraico.
Veja, por exemplo, as seguintes passagens:
E ambos estavam nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam...E a serpente era o mais astuto dentre todos os animais do campo... (Génesis 2:25 e 3:1)
Muito bem. Ao ler estes versos, você percebe claramente que tanto Adão quanto Eva são descritos como que estando sem roupas. Mas, no verso seguinte, há alguém que também é descrito da mesma forma. Não percebeu?
Bem, uma pequena “aula” de hebraico bíblico.

- Va-yihiu shneihem ARUMim, ha-adam ve-ishto, vê-lo yitboshashu.
E estavam ambos nus, o homem e sua mulher e não se envergonhavam. -

- Ve-ha-nachash hayah ARUM mikol chayat ha-sadeh...
E a serpente era o mais astuto de todos os animais do campo... -

Note as palavras em destaque. É interessante que um verso siga imediatamente após o outro e tenham ambos uma palavra de uma raiz comum: ARUM. Esta palavra hebraica pode significar tanto “astuto” quanto “nu”. Adão e Eva são chamados de “arumim” (plural de arum), isto é, “nus”. A serpente é chamada de arum, isto é, astuta. Mas, num espectro mais amplo de sentido e significado, a serpente também estaria “nua”, se aceitarmos o sentido da raiz da nossa palavra-chave, arum.
Assim, logo após descrever Adão e Eva como estando nus, a Torá não por acaso ou mera coincidência, usa o mesmíssimo termo hebraico para descrever a serpente!
Mas, o que será que tudo isso quer dizer? Bem, no sentido óbvio do texto, a Torá nos informa que a serpente era “astuta', enganosa, perspicaz; este é certamente o pshat (sentido evidente) da passagem. Mas, não parece ser coincidência o fato de a Torá ter usado esta palavra em particular para descrever as intenções duvidosas da serpente. A Torá parece sair do seu contexto ao tomar esta palavra em particular (arum) e aplicá-la também àquele réptil “astuto”.
O que a Torá parece querer nos transmitir com isso tudo?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 11:23 am

O mistério fica ainda maior quando nos fazemos a seguinte pergunta:
Será que os dois sentidos da palavra arum (“nu” e “astuto”) estão relacionados de alguma forma conceitual ou será que são palavras totalmente não relacionadas, sem a menor ligação entre uma e outra?
Bem, eu não sei quanto a vocês, mas para mim não me parece muito “astuto” estar “nu”... À primeira vista, eu não consigo perceber ligação entre os sentidos do termo. Mas, espere. Vamos interpor os dois sentidos: nu e astuto; astuto e nu...de alguma forma, os dois sentidos parecem ter alguma coisa em comum, pois numa segunda reflexão eles são opostos um ao outro.
Eu explico.
Quando alguém está “nu”, não há como ou do que se esconder. O íntimo do ser está exposto, para que todos vejam. Entretanto, quando se é “astuto”, age-se maliciosa e falsamente; encobrem-se as verdadeiras intenções por trás de uma “fachada”, uma “máscara”. O íntimo do ser está encoberto para que não se exponha e venha a ser visto por todos.
Fascinante, não é mesmo? Os dois sentidos da palavra hebraica arum são como imagens em espelho de si mesmos, reflexos opostos de uma mesma realidade.
Agora isto faz com que nossa pergunta tome outra dimensão: Por que a Torá tomaria a mesma palavra que usa várias vezes para expressar “nudez” e então ao descrever a serpente inverte seu sentido para nos transmitir uma ideia incrivelmente oposta, para descrever a serpente como “astuta”?
Será que a Sagrada Torá estaria sugerindo que a serpente era “astuta” mas que de alguma forma ela também estava “nua”? O que isto poderia significar?

UM ENGANO “INOCENTE”
Se nos ativermos ao mero sentido literal do texto poderemos facilmente verificar que a serpente é um ser biologicamente “nu”, pois como réptil, ela não possui uma cobertura de pêlos para cobri-la como ocorre com os mamíferos. Mas, reflectindo com mais profundidade, o que será que a Torá quer dizer quando afirma que a serpente era “astuta” mas que num sentido mais amplo estava ela também “nua”?
Se “nu” é realmente o oposto de “astuto”, então isso significaria que a serpente possuía as duas qualidades: ela era ao mesmo tempo simples, ingénua, pura mas também podia agir com astúcia e sagacidade. Vê-la com essas qualidades só dependeria do ponto de vista do leitor. Por um lado, a serpente é astuta porque suas palavras não funcionam para Adão e Eva (eles de fato “morreriam” caso comessem do fruto); mas, por outro lado, ao comer daquela árvore os olhos de ambos se abririam e eles finalmente se tornariam como Deus, conhecedores do bem e do mal – e nesse ponto, a serpente não mentiu e foi honestíssima – qualidade de quem está “nu”, com o ser a descoberto, sem máscaras ou fachadas. Vejamos a que conclusões isto tudo nos levará no próximo capítulo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 11:23 am

CAPÍTULO V - Os Motivos da Serpente
Até agora nós estivemos mais interessados em focar as questões relacionadas à interpretação da passagem bíblica do Éden e sua ampla simbologia e estávamos deixando de lado talvez o mais importante personagem da nossa história: a serpente. Quem é ela e quais os motivos que a levaram a agir daquela forma?
Você já pôde perceber que toda a nossa história não deve ser tomada literalmente, “ao pé da letra”. Já discutimos isso no capítulo III, “O Lado Escuro do Paraíso”. O que propomos agora é que nos aprofundemos na simbologia da serpente e dos demais personagens, até que de alguma forma possamos entender cabalmente a que tudo isso se refere.
Serpentes não falam, não andam e tão pouco são inteligentes ou tão astutas assim. O texto da Torá deve estar dizendo alguma outra coisa. Por outro lado, a serpente do Éden não é astuta porque algum ser do mal está no controle dela: a Torá deixa claro que ela é astuta porque Deus assim a fez! Logo, não existe um “diabo” por trás da serpente. A Torá deve estar dizendo outra coisa aqui também.
Veja ao que a “serpente” apelou, perceba os expedientes empregados por ela na tentativa de seduzir “Eva”. Já analisamos a frase da serpente no capítulo III:
A frase usada pela “serpente”: Af ki amar Elokim lo tochlu mikol etz hagan...
[Mesmo que Deus tenha dito: não comereis de alguma árvore do jardim...] termina no vazio, sem uma conclusão, mas ela sugere algo para quem a ouviu, ou seja, “Eva”. Trata-se de uma clara indução, uma tentativa de persuadir a mulher para que ela tome e coma do fruto proibido. Como sabemos disso?
O uso da expressão af ki [“mesmo que”, “ainda que”] deixa claro que se trata de uma forma de indução. Só que a conclusão da frase é deixada para a mulher, que responde à frase sedutora afirmando que Deus deu ordem para que eles não comessem do fruto da árvore que estava no meio do jardim (Génesis 3:2-3).
Note agora que após a sedutora frase da “serpente”, a mulher percebeu que a árvore era “boa para se comer, agradável aos olhos e era uma árvore boa para dar entendimento” (Génesis 3:6). Vemos vários “níveis de apelação” aqui. Eva foi seduzida pelo apetite, pela cobiça e pela vontade de aventurar-se no desconhecido. Em resumo, ela foi dominada pela mais poderosa força existente em nós: o desejo.
O desejo é a nossa força motriz, é aquilo que nos impele em todos os sentidos; é como se fosse o vento para um barco à vela, ou o combustível para a máquina. Não “funcionamos” sem o desejo.


A ÁRVORE DOS DESEJOS
Eu gostaria de compartilhar com todos vocês uma abordagem desenvolvida pelo Rabino Shimshom Raphael Hirsch, um gigante da exegese bíblica contemporânea. O Rabino Hirsch sugere que a motivação da atitude da “serpente” encontra-se em algo tão simples quanto a ênfase da frase usada por ela. Isto é, dependendo do ponto enfatizado na frase empregada por ela, poderemos perceber com clareza quais os motivos para que a serpente agisse como agiu. Hirsch pergunta: O que levou a serpente a tentar seduzir Eva para que ela comesse daquele fruto?
Hirsch sugere que coloquemos a ênfase na expressão tenha dito:
“Mesmo que Deus tenha dito: Não comereis de alguma árvore do jardim...” --- Caso leiamos a frase dessa forma, podemos perceber que a serpente não está realmente desafiando a autoridade de Deus em si. O argumento empregado por ela é muito mais estreito: ela está afirmando que as palavras ditas por Deus não deveriam ser o foco da atenção de Eva. O Rabino Hirsch elabora assim o raciocínio da serpente:
“Deus pode ter dito para que vocês evitassem a árvore. Mas, a grande questão é: Você quer comer dela? Você a deseja? E digamos que você deseja comer dessa árvore; de onde você acredita que tal desejo vem? Qual a sua origem? Quem colocou esse desejo em você? Não foi o próprio Deus? Não foi Ele por acaso quem te criou?”
Em suma, a serpente está de forma indirecta apontando para uma terrível contradição: Por um lado, a voz de Deus te instruiu para não comer do fruto mas por outro, outra forma da mesma voz, a voz de Deus dentro de você --- seu desejo, sua vontade, insiste para que você tome do fruto e experimente-o. Assim sendo, qual das duas vozes divinas você irá ouvir? A voz de Deus que vem para você em forma de palavras ou aquela voz divina interior, que pulsa em você e que anima todo o seu ser? Qual das duas vozes divinas é a primária, a mais importante?
Da forma como a serpente coloca seu argumento, podemos deduzir que de acordo com o seu ponto de vista, não é exactamente a voz divina em forma de palavras a mais importante, mas sim aquela outra que fala dentro de você, através dos desejos, das paixões, da vontade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 11:23 am

A SERPENTE 'NUA'
Ao insinuar isso, a serpente não está necessariamente sendo maliciosa ou mesmo falsa. Pelo contrário, ela pode ser vista como inocente e honesta!
Ou seja, ela está totalmente “nua”, totalmente exposta. Mas, como pode ser isso? Nós sempre aprendemos que a serpente era uma espécie de ser dominado por um demónio ou coisa parecida e isso se apegou muito ao inconsciente colectivo. É certamente por esta razão que é difícil vê-la como inocente ou honesta em sua afirmação. Mas, entenda: Ela estava simplesmente afirmando o que era natural do seu ponto de vista.
Eu explico. A Torá usa a figura de uma serpente (um animal) para transmitir uma ideia bastante profunda.
Considere isso: De que forma Deus faz com que Sua vontade seja conhecida das serpentes? Como será que a vontade divina se mostra e se faz conhecida para qualquer animal? Naturalmente o Altíssimo não instrui os animais intelectualmente. Ele não fala para eles por meio de palavras. Não há Bíblia ou Torá revelada sobre um monte para serpentes, pássaros, lagartos etc.! Mas o fato das serpentes, pássaros e lagartos não possuírem um livro de leis não significa que eles não possuem “lei” alguma. Muito pelo contrário: os animais seguem a Lei Divina de modo muito fiel. A “voz” de Deus pulsa intensamente dentro deles, pois o Ser Divino “fala” aos animais através de seus instintos, paixões e desejos.
Toda vez que um urso pesca salmões num dos rios do Alasca, toda vez que as abelhas operárias retiram o néctar das flores – toda vez que um animal age “naturalmente” obedecendo a voz do seu instinto dentro dele, ele está nada mais nada menos do que “ouvindo a voz” do seu Criador que palpita em seu ser.
Assim, do ponto de vista da serpente edénica, a saída para a contradição entre a voz divina transmitida por palavras e a outra voz divina instintiva (das paixões, da vontade e do desejo) é bastante clara e simples: “Mesmo que Deus tenha dito: não comereis de alguma árvore do jardim, e daí? A voz real de Deus não fala com você por meio de palavras vindas do exterior do seu ser; a voz verdadeira de Deus vem do interior, ao âmago da nossa existência, é aquela voz que palpita dentro de nós”. De acordo com a serpente, é essa voz que devemos atender.
Em resumo então, esse é o subtil argumento da serpente, entendido por muitos como uma espécie de “tentação”. É na verdade uma “tentação” que atinge a raiz de nossa condição humana, e que estabelece os limites entre nós e os outros animais.
Qual é a base de nossa condição humana? Qual é o factor que nos distingue dos outros animais? Será que a fala é o factor que nos distingue dos animais? Mas, caso encontrássemos por aí um animal que pudesse falar, será que concederíamos a ele todos os direitos humanos? Há alguns anos, certos cientistas ensinaram a base da linguagem de sinais a alguns chimpanzés; será que esses chimpanzés poderiam ser qualificados como “humanos” pelo facto de poderem comunicar-se ainda que de forma primitiva?
Bem, talvez nossa inteligência avançada seja o que nos faz humanos.
Mas será que caso encontrássemos um animal muito inteligente por aí, ele poderia receber todos os direitos civis como por exemplo, o direito ao voto?
Bem, então se a base de nossa condição humana não está na fala, nem em nossa capacidade de andar, e nem mesmo em nossa inteligência (qualidades essas também possuídas pela lendária serpente do Éden) --- no que então está a base de nossa condição como seres humanos de verdade? Eu argumentaria que a resposta para esta pergunta encontra-se na seguinte questão:
Como Deus “fala” com você? Qual das duas vozes divinas que apresentamos é a primária, a mais importante para você?
Se Deus fala com você primariamente através das paixões, dos desejos e dos instintos, se tudo o que você precisa fazer é examinar seus desejos e descobrir o que Deus quer de você – bem, então você é um “animal”.
Se Deus tem expectativas a seu respeito, para que você aja além dos seus instintos, além dos desejos e paixões, se Ele dirige-se à sua mente e consciência pedindo que você se eleve acima de seus desejos e que canalize-os construtivamente – bem, então você é “humano”.
O que a serpente está tentando é na verdade confrontar Adão e Eva quanto à sua condição, qual o sentido de ser humano e não um animal. No fim das contas, a serpente é realmente arum – em todos os sentidos da palavra, “nua” e “astuta”.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 11:24 am

Quando ela fala, “Mesmo que Deus tenha dito: não coma – e daí?” - ela está sendo honesta, “nua” como explicamos anteriormente, ela está simplesmente agindo em conformidade com o que se espera de um animal.
Por outro lado, quando atentamos para o argumento da serpente pela nossa perspectiva, pela perspectiva de Adão e Eva – então o argumento passa a ser enganoso e astuto, que é o outro sentido da palavra hebraica arum.
O que é certo para a serpente não é de forma alguma certo para nós. A serpente alegórica do Éden fala, anda e é inteligente --- mas nós somos diferentes dela. Nós ouvimos uma voz que não é relevante para ela, dentro da sua realidade. No fim das contas, não somos “serpentes”, mas sim, humanos.


A BELA E A FERA
O desafio da serpente toma a forma de uma proposta para que o ser humano comesse do fruto proibido. Se observarmos atentamente, notaremos que esta proposta surge naturalmente da sugestão da serpente que a voz do desejo, a voz íntima do nosso ser é a forma primária, básica pela qual Deus nos transmite sua vontade.
Momentos antes de decidir tomar o fruto, Eva contempla a escolha
diante de si. De acordo com o texto, eis o que aconteceu:
“E a mulher viu que a árvore era boa para se comer, e que era um deleite para os olhos, e que a árvore era desejável para dar conhecimento” (Génesis 3:6)
Esta é a forma como a maioria das versões nos transmitem aquela passagem. No entanto, cabe salientar que a palavra deleite como temos aqui tem o sentido de concupiscência, cobiça.
Na passagem que estamos estudando poderemos encontrar três níveis de apelação:
O apetite ou o paladar – a árvore era boa para se comer.
A visão – a árvore era um deleite para os olhos.
A mente – a árvore era desejável para dar conhecimento.
Preste bem atenção à segunda frase. Que tipo de coisa pode ser um “deleite para os olhos”? De que forma esta frase se ajusta às outras duas?
Será que as três proposições estão relacionadas?
Eu acho que estão intimamente relacionadas. Todas estas frases descrevem como a árvore era um apelativo para Eva esteticamente --- no nível da beleza, mais precisamente, no nível do desejo, e cada descrição é mais sofisticada e mais subtil do que a outra.
Explicando:
Um doce pode ser “bom para se comer” - até uma criança de dois anos sabe disso e aprecia a guloseima. Mas, a beleza de uma rosa é algo que exige algo mais; tal beleza só pode ser realmente apreciada bem mais tarde, com mais anos de vida. A beleza é um “deleite para os olhos”, não para o paladar.
E o que dizer daquilo que é “desejável para dar conhecimento”? Esse é o tipo de coisa que não apela para os sentidos mas sim para a mente. É um nível de desejo ou de beleza que afecta o mais íntimo de nosso ser. Os poemas de Emily Dickenson, as sinfonias de Beethoven, um debate elegante e bem articulado -- tudo isso são coisas que apelam para nossa mente, mas não necessariamente porque elas são verdadeiras mas porque são belas. De facto, um belo poema pode ou não expressar verdades, um brilhante discurso feito por um grande orador pode conter muitas mentiras mas isso é irrelevante. A mente aprecia tais coisas – e as deseja.
A árvore proibida apela para nós em todos os níveis de estética. Do mais óbvio ao mais subtil e refinado. O fruto da árvore estava transbordante de desejo.
Mesmo que Deus tenha dito, não coma – e daí?
Assim, a serpente queria dizer: “O desejo e o instinto são melhores indicadores da vontade de Deus do que Suas palavras. Coma da árvore, faça com que o desejo se torne mais forte em vocês e verdadeiramente vocês serão como Deus.”
Mas o que você poderia dizer, isso tudo tem a ver com o conhecimento do bem e do mal? Vejamos isso no próximo capítulo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 11:24 am

CAPÍTULO VI - Um Mundo de Brócolos e Pizza
A serpente sugeriu a Adão e Eva como vimos no capítulo anterior que a forma de se conhecer a vontade de Deus é olhar para dentro de si mesmo e seguir a voz do desejo. Se você quer comer da árvore, vá em frente – e mesmo que Deus tenha dito para não comer daquela árvore, e daí? Deus não nos fala de verdade por meio de palavras [de acordo com o argumento da serpente]; Ele nos fala por meio dos nossos instintos naturais, aqueles que Ele mesmo criou em nós. Obedeça a voz dentro de você, seus instintos, suas paixões e você estará obedecendo a voz primária de Deus.
Mas, o que isso pode ter a ver com o conhecimento do bem e do mal? - Você poderá perguntar. Por que travaríamos uma batalha sobre o papel adequado do desejo na psique humana em relação à uma “árvore” que teria o poder de nos fazer conhecer o “bem e o mal”?
Bem, então está na hora de examinarmos mais de perto essa árvore do conhecimento do bem e do mal. Aliás, essa não vai ser uma tarefa fácil. Não temos mais a tal “árvore” por perto (ainda bem que se trata de uma alegoria!).
Se não temos uma árvore literal por perto para examinarmos suas condições temos então o texto da Torá que pode nos conduzir ao correto entendimento dessa alegoria. Os termos hebraicos que descrevem as características da árvore são perfeitamente inteligíveis e podem deter as chaves para aquilo que estamos procurando.
A árvore proibida é conhecida em hebraico como etz daat tov va-rá. A tradução convencional seria “árvore do conhecimento do bem e do mal”. Mas será que é só isso mesmo ou há algo mais além do que nossos olhos podem ver?


DO QUE É FEITO O VERDADEIRO CONHECIMENTO?
Vamos começar com a palavra daat – normalmente vertida como “conhecimento”. É interessante notar que essa palavra não se limita apenas ao “conhecimento” no sentido convencional. Na verdade, numa das primeiras vezes que a raiz verbal que origina a palavra daat é usada no Génesis, ela aparece num sentido que poucos de nós chamaria de “conhecimento”:
Ve-ha-adam yadá et Chavah ishto...
E o homem conheceu Eva sua mulher...
Na Torá a palavra “conhecimento” tem também o sentido de intimidade sexual. O uso dessa raiz em especial pela Torá significando tanto “conhecimento” como “união sexual” deve ser significativa. Mais do que possa parecer há um entendimento profundo do termo daat que dá origem a ambos os sentidos. Mas, qual seria esse entendimento?
Vamos tentar colocar dessa maneira: quando um homem “conhece” sua esposa, o que ele está procurando? Os cínicos talvez possam dizer que ele não busca outra coisa senão prazer físico. Mas além do mero prazer físico e além do próprio instinto de procriação, não há algo mais, algo mais profundo que ele esteja buscando? Talvez em algum nível ele esteja de fato atrás de “conhecimento” - conhecimento do misterioso universo feminino, tão diferente do dele, mas que parece ser algo que faz tanta falta para ele ao mesmo tempo.
Para reforçar: não é conhecimento intelectual que ele busca. Ele busca na verdade conhecimento cru, de primeira mão, uma experiência do feminino de uma forma directa, não filtrada.
No ramo da filosofia chamado de epistemologia corre há muito tempo um debate sobre do que consiste o verdadeiro “conhecimento”. Os racionalistas argumentam que o verdadeiro conhecimento é aquele que pode ser demonstrado pela lógica e pela análise. Outros pensadores entretanto, argumentam que o conhecimento verdadeiro é obtido pela experiência. É muito proveitoso podermos racionalizar um conceito ou uma ideia em nossas mentes – afirmam eles – mas você só pode saber se isto é verdadeiro quando tal conceito ou ideia acontece no mundo real, quando se demonstra tal conceito digamos, num laboratório. Se você vê, se pode tocar e experimentar, então você saberá que é real.
O termo hebraico daat (conhecimento) parece denotar este último conceito, ou seja, conhece-se algo quando se experimenta ou quando se vivencia. Um cientista que faz uma experiência em laboratório consegue daat, mesmo que ainda ele não consiga racionalizar ou entender bem aquilo que experimentou.
O homem por sua vez, atinge daat em relação à sua mulher unindo-se à ela, experimentando-a, mesmo que não consiga expressar por meio de palavras sua essência misteriosa. A humanidade nesse mesmo princípio, atinge daat do bem e do mal não intelectualizando conceitos de moralidade e do que ela se compõe, mas sim, ao experimentar o bem e o mal cruamente de uma forma directa e objectiva.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 8:22 pm

Para resumir então: ao obter conhecimento do bem e do mal, nós não obtemos uma melhor compreensão intelectual do que é certo ou errado. Nós conseguimos obter um entendimento experimental dessas coisas. Nós começamos a conhecer o certo e o errado de fora para dentro.
Mas o que tudo isso quer dizer? Isto soa tão abstracto! O que queremos dizer com “conhecer o bem e o mal” de uma forma crua, experimental?
Eu sei o que significa conhecer sorvete na forma experimental. Dirijo-me até a sorveteria da esquina e peço um passas ao rum, e assim que acabo de tomar aquela casquinha, pronto! --- Já obtive meu daat (conhecimento experimental) de sorvete. Mas e quanto ao bem e ao mal? Como podemos obter conhecimento do bem e do mal dessa forma? Como pode o ser humano “ interiorizar “ o bem e o mal?
Uma olhada nas palavras “bem” e “mal” em hebraico (tov e rá) fornecem as chaves para aquilo que estamos procurando.


CERTO E ERRADO DE FORA PARA DENTRO
Em capítulos anteriores, aludimos à visão de Maimonides sobre nossa narrativa em sua obra Guia dos Perplexos. Nela, o Rambam sugere que Adão e Eva já tinham ciência do certo e do errado de alguma forma meio primitiva, isso antes mesmo de comerem do fruto proibido. De acordo com Maimon, a arvore não deu ao ser humano “consciência moral” quando ele não tinha nenhuma. Na verdade, o homem já possuía essa “consciência moral”, mas o fato de ter comido do fruto proibido transformou essa consciência de uma coisa para outra.
Em resumo: antes de comer do fruto, nós não chamaríamos as escolhas virtuosas de “bem” e tampouco chamaríamos as escolhas vis de “mal”; nós tínhamos então outra forma de pensar sobre estas coisas; nós usávamos outros termos para definir isto.
Mas que termos seriam esses, essa forma mais “precisa” de encarar as coisas? Bem, de acordo com Maimônides, no mundo antes da árvore, naquele mundo primitivo, as escolhas virtuosas seriam chamadas de “verdadeiras” e as escolhas repreensíveis seriam chamadas de “falsas”. Resumindo, fazer a coisa certa seria “verdadeiro”, e fazer a coisa errada seria “falso”.
Mas o que será que o Rambam queria dizer com isso? À primeira vista parece bizarro. A palavra “falso” parece ser bem melhor para descrever que 2+2=5 do que para descrever o ato de se roubar um banco!
O que será que realmente significa ver a moralidade como um conjunto de escolhas entre o “verdadeiro” e o “falso”? E qual é a diferença no mundo posterior à árvore no qual chamamos tais escolhas de “boas” ou “más”?
Bem, fica difícil determinar com precisão todas essas coisas e Maimônides não elabora muito o seu argumento; entretanto há uma maneira pela qual poderemos entender melhor o ponto aonde ele quer chegar. Vamos pensar: De que maneira as coisas “verdadeiras” diferem das coisas “boas”?
Quando eu digo que algo é “verdadeiro” eu estou descrevendo a realidade objectiva. Estou dizendo que algo está lá – é real quer eu queira ou não, quer eu goste ou não: trata-se de algo “verdadeiro”. Se estivermos falando de moralidade como questões que envolvem o verdadeiro e o falso então isso significa que fazer escolhas morais envolve o discernimento de algo objectivo; envolve determinar qual é a coisa certa a se fazer – o que o meu Criador espera de mim e tentar dessa forma alinhar meu comportamento àquela “verdade”.
Como então vemos a virtude de forma diferente quando nós a chamamos de “boa” em vez de “verdadeira”? Enquanto a palavra “verdade” tem o sentido central de “real”, as palavras “bom/bem” não têm um sentido tão objectivo assim. Por exemplo: qual o outro sentido da palavra “bom” além daquilo que é eticamente correto? Muito simples: Aquilo que é agradável, desejável ou prazeroso. Quando eu digo que algo é “bom” o que eu estou realmente afirmando ainda que de forma subtil seja que eu aprovo tal coisa, que ela é desejável.
Talvez então o que Maimônides propõe seja que a mudança de um mundo do verdadeiro e do falso para um mundo do bem e do mal tenha sido uma mudança entre um mundo primevo onde minha escolha essencial era objectiva para um mundo mais subjectivo, um mundo no qual meu desejo se intromete, tornando-se parte inescapável do cálculo moral.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 8:22 pm

Como já sugerimos no capítulo anterior, a “árvore do conhecimento”
estava profundamente associada ao desejo – ela apelava para nós em todos os níveis estéticos concebíveis, do mais básico (paladar) ao mais profundo (a mente). Assim, talvez a misteriosa árvore do conhecimento fosse realmente uma árvore do desejo. E talvez a consequência mais fundamental de nossa decisão de comer dela seja simplesmente essa: O papel que o desejo passaria a desempenhar em nossas vidas mudaria para sempre.
Explicando: No mundo anterior à árvore, o desejo era mais facilmente controlado, era parte natural do homem – mas uma parte que estava em equilíbrio com o resto de nosso ser. O desejo não podia obliterar, obscurecer nossa visão das coisas. Mas, no mundo posterior à árvore, isso não pode ser mais tomado como certo. O desejo passou a desempenhar um papel mais crucial no perfil da psique humana. Ele está sempre presente, nos “bastidores”, sempre uma força com a qual temos que lutar. O desejo passou a ser uma forma de “lente” pela qual vemos as coisas. Eu não vejo mais um mundo claro de “verdadeiro” e “falso”; eu vejo um mundo novo do “bem” e do “mal”.


ESCOLHENDO ENTRE O BRÓCOLOS E A PIZZA
Se isso ainda parece abstracto, vamos exemplificar esses conceitos.
Vejamos como usamos hoje em dia os conceitos de “verdadeiro” e “falso” --- e “bem” e “mal”. Se prestarmos bastante atenção poderemos até perceber o eco do entendimento de Maimônides quanto a essas ideias.
Na prática de arco e flecha o objectivo é atingir o alvo. O alvo está ali bem à sua frente e ele é o seu objectivo, ele é real e quer queira quer não, se você não acertá-lo de forma visível a todos ao redor, você terá falhado e perdido de vista seu objectivo. O interessante é notar que no hebraico bíblico, a palavra chet que significa “pecado” tem o mesmo sentido de “errar o alvo” como no exemplo que demos do arco e flecha (veja Juízes 20:16). Na verdade quando eu vejo as decisões morais como escolhas entre o “verdadeiro' e o “falso”, isto significa que estou tentando acertar um alvo – estou tentando discernir as expectativas do meu Criador em relação a mim para agir em conformidade com elas. Pecar não tem muito a ver primariamente com penalidade e culpa – tem muito mais a ver com “errar o alvo”, uma falha na tentativa de me alinhar com a realidade chamada 'vontade do meu Criador'.
Vamos falar agora um pouco sobre o outro lado da moeda. Quando uma criança empurra um prato de brócolos porque diz que o legume é “ruim” e prefere pizza porque é “bom”, ela não está na verdade criticando as qualidades e os benefícios nutricionais da comida. Ela está te dizendo algo sobre o que ela gosta e o que não gosta. De certa forma a criança está falando mais sobre ela mesma do que sobre a comida.
Assim, quando a Torá fala sobre “conhecer o bem e o mal” é uma forma simples de demonstrar uma nova maneira de encarar as escolhas morais. Sim, eu ainda estou tentando entender o que Deus quer de mim, só que agora há um novo factor presente que pode obscurecer minha visão: não é só mais sobre aquilo que Deus deseja; agora é também sobre o que eu desejo. A minha vontade própria é agora parte constante e inescapável de todo o quadro. Eu passei a ver o bem e o mal de fora para dentro. Eu certamente posso me elevar acima desses desejos, mas a questão é que isso não é tão simples quanto parece e mais: será que eu realmente quero me elevar acima deles?
A razão pela qual isso não é tão simples assim é que neste mundo novo e ainda não desbravado do bem e do mal o quadro que eu tenho do que é certo e que vale a pena não representa necessariamente as coisas do jeito que elas realmente são. Aquilo que é meramente “bom”, desejável do meu ponto de vista pode ser astuciosa e subtilmente mascarado como “verdadeiro”.
Quando eu encaro a vida através do filtro de minha própria subjectividade, eu posso pensar que “x” é a vontade do Criador... entretanto na maioria das vezes trata-se isso sim da minha própria vontade!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 8:22 pm

TODOS OS DILEMAS MORAIS SÃO IDÊNTICOS?
Para que realmente possamos sair do domínio da teoria e aplicar essas ideias no sentido prático, vamos falar do “verdadeiro X falso” e do “bem X mal” dentro do contexto de alguns dilemas morais que tanto eu quanto você
enfrentamos no curso de nossas vidas.
Tente pensar um pouco pois abaixo você encontra uma lista de diversos dilemas morais hipotéticos. Sua tarefa será dividi-los em duas listagens – assim, tome uma folha de papel, trace uma linha de cima para baixo (fazendo duas colunas) e nomeie a primeira “coluna A – dilemas reais” e a outra, “coluna B – dilemas ilusórios”. Como você dividiria essa lista? Eis abaixo os exemplos:
1. Desligar os aparelhos que mantém viva uma pessoa que está em coma e desenganada pelos médicos.
2. Minha mãe já está com idade avançada e precisa de ajuda para organizar a casa; mas meu filho também precisa de ajuda nos estudos para o teste final da escola. Com quem devo passar a tarde?
3. Carlos é meu melhor amigo e precisa trabalhar para ajudar sua mãe doente. Ontem percebi que ele estava “colando” no teste que fez em minha empresa. Devo omitir aquilo que vi ao meu chefe?
4. É uma noite escura e chuvosa no centro da cidade. Você engata a ré no seu modesto carro popular para sair do estacionamento quando ouve o som de uma batida de metal contra metal. Você sai do seu carro e vê que atrás há um luxuoso carro importado – com um para-choque amassado! E agora? Você olha para todos os lados e não há ninguém na rua. Você deixa um recado com o seu número para combinar o conserto?
Os dilemas se dividem naturalmente em dois grupos. Três dos dilemas acima são reais. Um deles, porém, é fundamentalmente ilusório. Três desses dilemas existem de fato, não importando se você vive num mundo de “verdadeiro e falso” ou do “bem e do mal”. Um deles, todavia existe apenas num mundo misto de bem e mal, pois no mundo do “verdadeiro e falso” ele se dissipa como fumaça. Mãos à obra a até o próximo capítulo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 8:23 pm

CAPÍTULO VII - Um boxeador chamado 'Desejo'
No capítulo anterior, discutimos sobre dilemas morais e eu propus uma lista de deles que você deveria classificar como “reais” ou “ilusórios”. Dos quatro dilemas propostos um deles eu argumentei que era puramente ilusório, inexistente. Vamos rever a lista logo abaixo:
1. Desligar os aparelhos que mantém viva uma pessoa que está em coma e desenganada pelos médicos.
2. Minha mãe já está com idade avançada e precisa de ajuda para organizar a casa; mas meu filho também precisa de ajuda nos estudos para o teste final da escola. Com quem devo passar a tarde?
3. Carlos é meu melhor amigo e precisa trabalhar para ajudar sua mãe doente. Ontem percebi que ele estava “colando” no teste que fez em minha empresa. Devo omitir aquilo que vi ao meu chefe?
4. É uma noite escura e chuvosa no centro da cidade. Você engata a ré no seu modesto carro popular para sair do estacionamento quando ouve o som de uma batida de metal contra metal. Você sai do seu carro e vê que atrás há um luxuoso carro importado – com um para-choque amassado! E agora? Você olha para todos os lados e não há ninguém na rua. Você deixa um recado com o seu número para combinar o conserto?
E daí? Você conseguiu identificar o impostor?
Se você chegou à conclusão que o último dilema é o ilusório, ou seja, o de número 4 então estamos obtendo bastante progresso; caso contrário, ainda assim poderemos ser amigos.
Se você se encaixa nesse último perfil, e não entendeu muito bem o que eu digo, vamos detalhar. Note que os três primeiros dilemas compartilham certa qualidade básica. Há escolhas entre ideais que competem um com o outro. Cada ideal é nobre e válido de sua própria forma, e o dilema surge apenas porque os dois ideais são forçados a competir um contra o outro.
Tome como exemplo o primeiro dilema. Todo mundo concorda que prolongar a vida é algo nobre e todos também concordam que melhorar a qualidade de vida é também um nobre ideal. Mas, o que ocorre quando você se vê obrigado a escolher entre um e outro?
Considere agora o terceiro caso: a honestidade é realmente algo válido e que todos devemos buscar; por outro lado, a lealdade (isso em relação aos amigos e nas relações de trabalho) também é um ideal nobre a ser buscado.
Mas o que fazer quando cada um desses nobres valores nos levam à uma direcção diferente? Considere o segundo caso agora: eu tenho obrigações morais tanto com minha mãe idosa quanto com meu filho que mal começa a viver – como saio dessa? Quais critérios poderei usar para pesar minhas obrigações tanto com um para com o outro?
O fato é que todas essas escolhas são genuínas. Há na verdade dois boxeadores no ringue, dois valores competindo entre si. A pergunta é: quem vencerá? Qual será o valor que deve prevalecer? Como meu Criador espera que eu aja?
Agora, vamos pensar sobre o último caso. Está escuro e a noite muito chuvosa; ninguém está me vendo e eu fico pensando se devo ou não deixar um bilhete com meu número para que mais tarde o proprietário do carro luxuoso possa me contactar a fim de que eu pague pelo conserto --- afinal de contas, eu fui o “autor' daquela façanha! Vamos tentar identificar os dois ideais que competem aqui. Bem, em primeiro lugar, há a questão da honestidade. A honestidade pede que eu deixe o recado com meu número. Ok, mas e quanto ao contra-argumento? Pense cuidadosamente...
Não existe nenhum contra-argumento!
Um minuto! Se não há um segundo ideal, um contra-argumento, então por que é tão difícil saber o que fazer? Uma questão desse tipo não é algo com o que deveríamos nos preocupar, pois a honestidade reivindica uma acção positiva e imediata. Há apenas um “boxeador no ringue”, logo ele deveria vencer por w/o.
Mas, as coisas não são tão simples quanto parecem. Há sim outro “boxeador” no ringue, mas não se trata de um ideal --- o nome desse “boxeador” é desejo.
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De Volta ao Éden - Célia Xavier Camargo Empty Re: De Volta ao Éden - Célia Xavier Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Nov 25, 2022 8:23 pm

UMA LUTA CONTRA O IRREAL
Nesse último dilema, a “batalha” está sendo travada entre um ideal (a honestidade) e o que você prefere fazer. Os dois “boxeadores” chamam-se simplesmente: Honestidade versus O facto de que você não quer deixar o recado.
É claro que não é bem assim que o seu cérebro apresenta diante de você essas questões. Vamos ouvir o nosso “diálogo interior” enquanto você examina o pára-choques amassado do carro importado, lutando para tomar a decisão:
“Sabe, eu até entendo que eu tenho que deixar aquele recado, mas...
espere! Será que fui eu mesmo que fiz este estrago? Quer dizer, eu ouvi mesmo um barulho ao dar a ré, mas talvez eu tenha passado por cima de uma lata de refrigerante junto ao meio-fio, ou sei lá. E para dizer a verdade eu mal toquei nesse carrão... será que isso seria suficiente para que eu deixasse um recado com meu número de telefone para depois pagar o conserto? E além disso, o que esse sujeito estaria fazendo bem aqui a essa hora com o seu brinquedinho caro estacionado logo atrás do meu carro? Sinceramente eu acredito que me sentiria um perfeito idiota se o pára-choques já estivesse amassado e sem saber disso, eu deixasse o recado. E ainda que eu tivesse feito este estrago, não significa que o dono deste carrão perderia dinheiro, afinal, é para isso que existe o seguro: a poderosa companhia de seguros pode muito bem arcar com o prejuízo”.
E assim, você se “convence” de que é muito virtuoso sair sem olhar para trás. É Robin Hood contra as grandes empresas de seguro... é o coitadinho contra os ricos e arrogantes; é você contra a sua própria ingenuidade – você pensa: Será que se ele estivesse em meu lugar deixaria um recado para mim a fim de pagar o conserto do meu carro?
Mas todo esse raciocínio que você desenvolve não passa de falácia. É você mesmo que cria esses “boxeadores” para que lutem contra a honestidade – eles de fato não existem, nunca estiveram lá. Trata-se de uma luta contra o irreal, os “boxeadores” são todos eles, meros “fantasmas”.
O nome do “boxeador” que você criou para lutar contra o outro (a honestidade) é simplesmente desejo.
Seja bem-vindo ao mundo do bem e do mal.


OS JOGOS MENTAIS DO DESEJO
Um fascinante midrash faz eco a essa ideia. Note porém, que os midrashim não devem ser tomados literalmente. Os comentaristas tradicionais desde Luzzato até ao Maharal de Praga raramente tomavam suas palavras ao pé da letra. A ideia do Midrash é que você leia as “entrelinhas”, e investigue o que está sob o manto da narrativa. Os segredos e as grandes verdades contidas ali somente são reveladas àqueles de espírito aberto que ousam olhar sob o manto da narrativa a fim de entender a mensagem e o ponto abordado pelos sábios.
Dizem os sábios que ao morrer a pessoa ascende ao céu e ali dá-se-lhe o direito de contemplar a sua yetzer hará (inclinação para o mal); se a pessoa era justa aqui na Terra, a usa inclinação aparece como uma grande montanha.
Entretanto, se era ímpio ela lhe aparece como um pequeno monte. Ambas as pessoas ficam perplexas: o justo por ter conseguido superar a montanha, enquanto que o ímpio, por perceber que um pequeno monte pôde detê-lo.
Um amigo uma vez me sugeriu uma explicação interessante. Talvez a diferença entre o justo e o ímpio não esteja em quem tem a maior ou a mais intensa inclinação para o mal. Acredito que a diferença esteja no fato de que a pessoa ímpia sucumbiu à inclinação para o mal, enquanto que o justo, não --- e isso muda radicalmente o que a pessoa vê quando olha para trás; O justo vê o desejo ainda não satisfeito enquanto que o ímpio vê a aparência do desejos após ter se entregado a ele. Quando o desejo ainda está por ser saciado, ele parece uma montanha. Pouco antes de você comer uma torta de chocolate, você não pode imaginar coisa mais deliciosa; Mas através do “espelho retrovisor”, o desejo aparece de forma bem diferente. Após ter comido o último pedaço, a “montanha” desaparece, e você agora vê a realidade como ela é. A torta estava deliciosa pelos poucos minutos que durou, e agora você tem a sua frente várias horas na academia para dar um fim a todas aquelas calorias que você acumulou ao se deliciar com aquela fina iguaria.
Estas são as armadilhas da subjectividade. No mundo posterior à árvore do conhecimento do “bem e do mal”, um dilema nasce no centro da cidade numa noite escura e chuvosa. O desejo, com toda a sua grandeza e poder habita imperceptível dentro de nós mesmos, se escondendo facilmente atrás de “boxeadores fantasmas”. Neste mundo subjectivo, o mal pode aparecer para nós envolto em belas roupagens – e quando isso ocorre, é difícil saber a diferença entre aquilo que realmente é verdadeiro e virtuoso e aquilo que é meramente sedutor.
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