LUZ ESPÍRITA
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 16, 2020 8:26 pm

Asas da Liberdade
Célia Xavier de Camargo

Romance do Espírito Jerónimo Mendonça

Sumário
Palavras do autor


1. Uma nova vida
2. O passado volta
3. Mudança de rumo
4. A cidade dos mortos
5. Suave luz nas sombras
6. Oportunidade perdida
7. Consequências
8. Novos débitos
9. Nova encarnação
10. Deixando o refúgio
11. Uma grande perda
12. Mergulho no erro
13. Em busca de emoções
14. Nova guerra se anuncia
15. Ligeiros dados históricos
16. Reencontro
17. Consciência culpada
18. Um velho conhecido
19. Ratan no palácio
20. A queda de Ciro 2º, o Grande
21. Morre o grande Imperador
22. O desafio egípcio
23. Senhores do Egipto
24. Aisha
25. Complicações políticas
26. Esperança de felicidade
27. Denúncia
28. Creso cai em desgraça
29. Preparativos para as bodas
30. Neila
31. Fazendo acordos
32. Atingido pela traição
33. Derrota na Núbia
34. O retorno
35. Epílogo

Sobre o autor espiritual
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 16, 2020 8:26 pm

Palavras do autor
Com a permissão de Jesus, entrego agora ao público uma pequena parte de minhas vivências através do tempo.
Muito errei e muito tenho sofrido para reparar os danos causados a outrem e a mim mesmo.
Todavia, a misericórdia do Altíssimo sempre foi pródiga em conceder-me oportunidades de aprendizado e amadurecimento, através de encarnações, para transformar-me num ser melhor.
Sempre me acompanhou o desejo de escrever sobre meu passado, de relatar minhas experiências.
Ansiava por poder afirmar aos meus irmãos ainda na carne:
se eu, que me considero o maior dos criminosos, consegui redimir-me, todos também conseguirão.
Então, finalmente, depois de muito esforço e grandes dificuldades, aqui está a minha história.
Espero que seja de alguma utilidade para todos aqueles que vierem a conhecê-la.
Se minha experiência puder ajudar a uma pessoa que seja, já me darei por satisfeito.
Assim, com amor e fé, trabalho e perseverança, não há o que não se possa vencer.
O tempo transforma as mais rudes criaturas, as mais perversas, em anjos de luz.
Não que este seja o meu caso, em absoluto, porém me considero profundamente grato pelas bênçãos que já conquistei com vontade e trabalho.
Muitos daqueles que conviveram comigo no passado, reencarnados no século 20, participaram da minha última encarnação.
Renovados, fazem parte do movimento espírita e, no exercício do bem, trabalham na construção de um mundo melhor.
Que, iluminados pelo sol da verdade eterna, um dia sejamos dignos de ser chamados trabalhadores da seara de Jesus.
A todos, familiares, amigos e companheiros de ideal espírita, a minha gratidão imorredoura.
Aos amigos da espiritualidade, que tanto nos ajudaram.
A Jesus, Amigo Maior, que nos dirigiu os passos.
E, finalmente, a Deus, Criador do universo e Pai Celeste, nosso reconhecimento perene.
Que o Senhor os ilumine sempre.

Do irmão menor,
Jerónimo Mendonça

ROLANDA (PR), 23 DE JUNHO DE 2008.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 16, 2020 8:26 pm

1 - Uma nova vida
Sentado à beira da fonte limpa e cristalina, aonde os viajantes e animais vinham matar a sede, inclinei-me, tocando a água fresca.
Imediatamente, ondas concêntricas surgiram pequenas a princípio, aumentando e espraiando-se cada vez mais.
Eu olhava o movimento das águas enquanto a mente, febril, trabalhava.
Ignorava a razão da minha vida, o que precisava fazer ou quais os vínculos que me prendiam ao mundo.
Confuso e de raciocínio difícil, levei as mãos à cabeça no impulso de apertar o cérebro para livrar-me da terrível dor que me atazanava.
Por que eu sempre fui tão sozinho? Por quê?
Deixei-me levar de volta às primeiras recordações da minha miserável existência.
Na tela da memória, revi a infância solitária e sem amor.
Jamais tive alguém que me amasse realmente.
A mãe que me deu a vida era alguém que vendia seu corpo para adquirir alguns trocados e não morrer de fome.
Nunca soube quem era meu pai.
Poderia ser qualquer um que tivesse passado pelo seu leito para breves momentos de prazer.
Assim, eu era considerado um estorvo, impedindo-a de viver plenamente como gostaria.
Ao perceber a gestação não desejada, tentou de tudo para livrar-se de mim, o intruso.
Pulava repetidas vezes;
jogava-se do alto de uma tamareira;
batia no ventre com uma pedra até perder os sentidos;
tomava tisanas e beberagens que, conforme lhe asseguravam as mulheres entendidas no assunto, iria expulsar o indesejado. Nada.
Ao compreender finalmente que tudo o que fizera fora inútil, e que, para sua desgraça, seu ventre não parava de crescer, resignou-se ao inevitável, exausta de lutar contra a vontade dos deuses.
Todavia, uma rejeição e um ódio surdo por mim se instalaram em seu íntimo.
Após o nascimento, não recebi os carinhos e cuidados normais vindos daquela que Deus escolhera para ser minha mãe.
Relegava-me à própria sorte, sem me alimentar ou proteger, talvez com a secreta esperança de que eu não resistisse aos maus-tratos.
Só não morri graças às suas companheiras de infortúnio, que, penalizadas da sorte do recém-nascido, cuidaram de mim.
Arrumaram uma cesta para servir-me de berço, vestiam-me com trapos e alimentavam-me com leite de cabra diluído em água.
Com o passar do tempo, sua aversão aumentava cada vez mais por notar que eu era uma criança diferente.
Talvez pelas tentativas de expulsar-me do seu ventre, nasci com problemas:
tinha a cabeça demasiado protuberante de um lado, e de outro uma reentrância que atingia o olho direito, deixando-o afundado;
o corpo, desengonçado, um ombro caído e uma perna mais curta do que a outra tornavam meu andar manco, ridículo.
Muitas vezes, notava que ela me observava de longe, e, nesses momentos, percebia em seu olhar o desejo de tirar-me a vida, talvez envergonhada da minha aparência.
Espancava-me com frequência e por qualquer motivo.
Houve ocasiões em que suas companheiras, ou mesmo seu acompanhante eventual, tiveram de tirar-me de suas mãos, machucado e ensanguentado, para que não acontecesse algo pior.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 16, 2020 8:26 pm

Era nessas horas que ela falava de seus sentimentos mais profundos, relatando com minúcias, sem qualquer piedade por mim, o que fora sua vida desde que comecei a existir dentro dela.
Era nesses momentos que ela contava tudo o que sei sobre minha vida, sem omitir nada, desnudando seu interior, até com certo orgulho de expor seu ódio por mim.
Chorei muito e infindáveis vezes na calada da noite, quando, já maiorzinho, era obrigado a deixar o nosso cubículo e defrontar a escuridão nocturna, para que ela pudesse receber seus fregueses.
Nessas ocasiões, olhando o céu recamado de estrelas no fundo azul-escuro, lembrava-me de tudo o que ela me contava nas horas de rancor insano, de como ela desejara livrar-se de mim, e imaginava-a batendo no ventre, pulando de árvores e tomando chás e poções indicadas por uma velha feiticeira.
Pensava, nesses momentos, em pranto convulsivo, se não seria preferível que ela tivesse conseguido realizar seu intento.
E, como diziam as mulheres entendidas, se funcionava com outras, por que não funcionou com ela?
Por que Amon quis que o menino permanecesse neste mundo de lágrimas?
Para enfrentar dores e sofrimentos acervos?
Por essa razão, ao crescer um pouco mais, humilhado diante da rejeição e do desamor que sentia na própria carne da única criatura que deveria me amar, da única pessoa que eu conhecia como "família", resolvi ganhar o mundo.
Precisava de tão pouco para viver que em qualquer lugar me arrumaria.
De nada nem de ninguém sentiria falta.
Assim, sai pelo mundo sem destino, ganhando a estrada.
Após algumas horas de caminhada, sentia-me exausto e sem condições de prosseguir.
Sentei-me à beira do caminho, desanimado.
Um mercador que passava apiedou-se de mim - certamente pelas minhas condições físicas - e permitiu-me um lugar na sua carroça, ou algo similar naquela época:
dois varões de madeira, presos de cada lado com fibras de palmeira trançada como um tapete formavam um fundo resistente;
na frente, esses varões eram amarrados com a mesma fibra a um cavalo e, atrás, se arrastavam pelo chão.
Ali, ele transportava sua bagagem.
Um outro animal lhe servia de montaria.
Perguntou qual meu destino.
Disse-lhe que não sabia.
Fitou-me de alto a baixo e resmungou:
- Irás comigo até a minha cidade de destino.
Depois, seguirás o rumo que quiseres.
Respirei aliviado, concordando com um gesto de cabeça, agradecido.
Exausto, não aguentaria ir mais longe.
Como eu estava com os pés machucados, sangrando, envolveu-os com umas tiras de pano e depois me permitiu ir deitado na esteira, até melhorar.
Viajamos calados sempre rumo leste.
Ele era um homem velho, de barba branca e expressão sisuda.
Vez por outra, olhava-me de soslaio, com curiosidade, avaliando minha aparência estranha.
Muitas horas depois, perguntou:
- Sofreste algum acidente?
Balancei a cabeça negativamente:
- Não. Nasci assim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 16, 2020 8:27 pm

- Estás com fome?
Acostumado a quase não comer, a me alimentar daquilo que as pessoas mais generosas me davam, ou de tâmaras que eu mesmo colhia, não tinha me dado conta do tempo decorrido desde a última vez que me alimentara.
Todavia, baixei a cabeça, envergonhado, sem responder.
Ele pigarreou, informando:
- Vamos parar para descansar.
Logo ali adiante tem um pequeno tanque onde encontraremos água.
Os animais também precisam de cuidados.
Não demorou muito e, um pouco abaixo da estrada, vimos algumas árvores e palmeiras.
O mercador soltou os cavalos para que pastassem à vontade.
Caminhamos até a água, que surgia de uma nascente e formava entre as pedras um tanque cercado de vegetação, e depois corria mansa num regato gracioso e murmurante.
Dobramos os joelhos e nos refrescamos satisfeitos, bebendo a água límpida.
Depois, sentamo-nos na relva.
Meu companheiro pegou uma bolsa de couro curtido de camelo e retirou de dentro um pão, azeitonas e tâmaras.
Generosamente, repartiu o pão e entregou-me um pedaço, o mesmo fazendo com as azeitonas e as tâmaras.
De vez em quando, o homem olhava-me, curioso.
Afinal, entre um bocado e outro, comentou:
- Ainda não me disseste teu nome.
Levantei a cabeça, surpreso.
Ninguém se interessava em saber se eu tinha um nome.
Com meu sorriso torto, respondi:
- Emil. Meu nome é Emil.
- Bonito nome. Eu sou Ahmim.
Calamo-nos. Ele não era de muito falar e eu menos ainda.
Depois de comer, satisfeitos, estendemo-nos na relva e dormimos um pouco, aproveitando a sombra fresca das palmeiras.
A tarde estava quente, e o sol, insuportável.
Uma hora depois, reiniciamos a jornada.
Ahmim não queria demorar-se muito, pois tínhamos um longo trajecto pela frente.
Mais tarde paramos, aproveitando a companhia de uma caravana que montara as tendas para pernoitar próximo da estrada.
Ahmim procurou o chefe da caravana, pedindo-lhe permissão para nós ali permanecermos.
O homem de tez morena, queimado pelo sol do deserto, assentiu sem problemas.
- Sede bem-vindos!
Esta região é infestada por salteadores.
É perigoso pessoas desacompanhadas pernoitarem ao relento.
Sois nossos convidados para a ceia.
- Agradeço-te a benevolência - disse Ahmim, reverente.
Naquela noite ceamos na companhia de Munir, o chefe da caravana.
Em sua tenda, maior e mais luxuosa que as demais, o movimento era grande.
Muitas pessoas ali se acomodavam em almofadas de cetim, brocado e púrpura.
Eu estava encantado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 16, 2020 8:27 pm

Jamais tivera ocasião de ver algo semelhante.
A um sinal de Munir, dois servos entraram com ânforas de bebida deslizando entre os convidados.
Após servirem o chefe, encheram os copos dos demais.
Ao mesmo tempo, uma música começou a tocar e, em seguida, três belas bailarinas surgiram coleando ao ritmo da melodia.
Vestidas sumariamente com tecidos coloridos, leves e vaporosos, que deixavam à mostra a pele morena, dançavam de forma encantadora, animando os homens.
Enquanto a bebida corria solta, destravando as línguas e entorpecendo as ideias, outros criados entraram portando grandes bandejas com as comidas:
carneiros, vitelas, frutas diversas, azeitonas e tâmaras.
Eu jamais participara de festim semelhante.
Fascinado, bebi e comi mais do que devia.
Despertei no dia seguinte ao chamado de Ahmim.
- Acorda homem! Precisamos prosseguir.
Abri os olhos, ainda sob o efeito da bebida, sem saber o que estava acontecendo.
"Onde estou?"
Fixando a imagem à minha frente, lembrei.
- Ahmim!
- Sim. Ahmim!
Ahmim que te arrastou para fora da tenda de Munir e que te trouxe para cá.
Temos que prosseguir.
Esfreguei os olhos, ainda confuso.
- Onde estão todos? - perguntei.
- Levantaram acampamento com a aurora.
Foram embora.
Avia-te! Não temos tempo a perder.
Levantei-me apressado e logo estávamos novamente a caminho.
Algumas horas depois, cansados e suarentos, com os olhos ardendo sob o sol intenso, chegamos a um vilarejo, onde fizemos nova parada.
Na aldeia muito pobre um bom homem nos acolheu.
Nesses tempos, pela dificuldade das viagens e falta de recursos, sempre se encontrava alguém disposto a ajudar os viandantes.
Como não podíamos pagar pela hospedagem, o dono da casa permitiu que nos sentássemos à sombra, ofereceu comida e um pouco de água para aplacar a sede, em troca de serviço.
Após a modesta refeição, carregamos água do poço para a casa, cuidamos dos animais e varremos o chão.
Quando terminamos, estávamos exaustos, mas satisfeitos.
O hospedeiro nos permitiu pernoitar no estábulo com os animais.
Ajeitamos um punhado de capim seco e nos deitamos, aliviados.
De onde estávamos, podíamos ver o céu de um azul profundo e as estrelas que pontilhavam o firmamento.
Com os olhos húmidos, comentei:
- Este céu faz-me lembrar o lugar onde vivi.
- Emil, que idade tens? - perguntou Ahmim.
Pensei um pouco e respondi:
- Não sei ao certo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 16, 2020 8:27 pm

Talvez uns quinze anos. Talvez mais.
- És muito jovem ainda.
O que te fez deixar o aconchego do lar para ganhar o mundo?
Fiquei calado, pensando.
Depois indaguei:
- O que é um lar?
Surpreso, Ahmim explicou:
- Pois é a casa onde moramos, a presença da família.
- Ah! ... Nunca tive família.
Só alguém que dizia ser minha mãe.
- Não tens pai?
- Não.
Ahmim virou-se devagar fitando-me, espantado.
Depois, disse suavemente:
- Deves ter tido vida difícil.
Queres falar sobre isso?
Era a primeira vez que alguém se interessava por mim e pela minha vida.
Um calorzinho gostoso inundou meu peito.
Seria bom desabafar, colocar para fora todo o sentimento represado, pensei.
E lentamente comecei a falar, abrindo meu coração ao mercador humilde que me recolhera, um desconhecido até o dia anterior, e que, no entanto, eu sentia tão perto de mim.
- Minha mãe é uma rameira que vende o corpo para não morrer de fome.
Assim, nasci de um encontro eventual com um homem qualquer do qual não sei sequer o nome.
Jamais recebi manifestações de amor e carinho...
À medida que eu contava minha existência, falando de minha mãe, de suas colegas de profissão, notei o interesse de Ahmim aumentar gradualmente.
Falei sobre a rejeição das pessoas por mim e até do dia em que, preocupado com a reacção delas, resolvi me olhar num poço.
Assustei-me com a própria aparência, julgando fosse um monstro.
Terminei, explicando:
- Então, tomei a decisão de sair pelo mundo, já que nada me prendia naquela aldeia.
Olhei para Ahmim e percebi que se emocionara com meu relato;
seus olhos estavam cheios de lágrimas, que ele tentava esconder, e um nó lhe fechou a garganta.
Quando conseguiu falar, disse simplesmente, com voz rouca:
- É tarde. Vamos dormir.
Precisamos levantar cedo amanhã.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 16, 2020 8:27 pm

2 - O passado volta
Viajamos muitos dias pelo deserto.
As dificuldades eram grandes e o cansaço imenso.
Houve um momento em que Ahmim foi obrigado a abandonar a carroça, por ser impossível continuar com ela.
Assim, dividimos a carga entre os animais e prosseguimos.
O grande calor, insuportável durante o dia, quando o Sol parece querer nos derreter os miolos, queima a pele e arde nos olhos, transforma-se em frio enregelante à noite, quando a temperatura cai drasticamente, quase nos congelando.
Tudo isso, porém, enfrentamos dia após dia na jornada longa e exaustiva.
Durante esse período, nosso relacionamento aumentava sempre.
Ahmim falava-me da família, que deixara na aldeia natal, próxima daquela onde eu tinha vívido durante toda a existência.
Tinha uma esposa e duas filhas, já casadas; era mercador e levava algumas dádivas para oferecer aos deuses no templo da grande cidade, onde morava um seu irmão, Cleofas, em cuja residência ficaria albergado.
Contou-me também que, em virtude de enfermidade de sua companheira, cuja gravidade levara-o a temer pela vida dela, fizera uma promessa a Amon-Rá, que agora se apressava em cumprir com satisfação, uma vez que ela estava curada.
Certo dia, quase ao final da tarde, depararam-se-nos ao longe as torres de uma cidade cercada por altos muros, suas edificações e seu casario envoltos em vegetação;
a imponência da grande cidade fez bater forte meu coração.
Ahmim, com radioso sorriso, levantou os braços, indicando:
- Vê Emil! Ali está Mênfis! 1
Embora quisesse me deixar contagiar pela alegria de Ahmim, meu sorriso torto deu lugar a uma careta desagradável.
Algo de estranho acontecia comigo.
Imenso mal-estar, uma angústia aterradora, um sentimento de medo e de agonia se assenhorearam do meu íntimo, dominando-me as emoções.
Levei as mãos à cabeça, a revolver os cabelos desgrenhados, como sempre fazia ao ficar nervoso, sendo acometido de vontade irrefreável de girar nos calcanhares e fugir, fugir para bem longe.
Ahmim, estranhando-me a atitude, perguntou:
- Não estás feliz?
Percorremos longo trajecto para alcançarmos nosso destino!
Com a fisionomia contrita e torturada, a reflectir sentimentos díspares e confusos, balancei a cabeça concordando, enquanto o olhar desesperado falava do meu tormento íntimo.
Notando-me a mudança, preocupado, Ahmim aproximou-se mais:
- O que se passa contigo, Emil?
Durante estes dias de convivência, aprendi a conhecer-te.
Jamais te vi assim, com o semblante tão torturado...
Colocou o braço em meu ombro e, ao sentir sua aproximação, eu, que jamais tivera o carinho de alguém, não suportei mais, deixando-me cair de joelhos na areia ardente.
Lágrimas copiosas lavavam-me o rosto e gritos estentóricos me saíam da garganta.
- Estás doente, amigo Emil? - perguntou-me aflito.
Mas eu não conseguia responder.
Pavor insano me dominava, como se na iminência de grande perigo, enquanto me acudiam à mente imagens estranhas que eu não entendia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 16, 2020 8:27 pm

Via um palácio luxuoso todo iluminado, entre belos jardins.
Via também algo desconhecido para mim:
uma casa toda iluminada que se movia sobre as águas de um rio, que eu nunca tinha visto;
mulheres lindas e bem-vestidas que surgiam como imagens sobrepostas.
De repente, uma música alucinante me fez tapar os ouvidos.
Apesar da beleza do palácio, das riquezas, da paisagem, das jovens, tudo aquilo me enchia de horror.
Ahmim não conseguiu respostas às suas perguntas, mas notou que eu estava banhado em álgido suor e que tremia da cabeça aos pés.
Ao ver meus olhos fixos e esgazeados, tocou-me a fronte e constatou que ardia em febre;
julgou então que eu tivesse enlouquecido ou adquirido alguma moléstia estranha.
Ajoelhou-se e pôs-se a recitar orações para Amon-Rá, o senhor de todas as coisas.
Aos poucos fui melhorando e saí daquele estado de ausência.
A febre baixou, tranquilizando Ahmim.
Grande torpor, todavia, me dominava os membros lassos; sentia-me extremamente cansado, enquanto invencível sonolência fez com que me acomodasse para dormir.
Ahmim, entendendo pelo meu estado que não conseguiríamos chegar a Mênfis antes do anoitecer, improvisou um lugar para passarmos a noite ao relento.
Na manhã seguinte, acordei e vi meu companheiro inclinado sobre mim.
Ao me ver abrir os olhos, respirou aliviado.
- Como estás?
Ainda sem lembrar-me do que havia acontecido no dia anterior, respondi:
- Estou bem.
Sinto, porém, o corpo todo dolorido, como se tivesse levado uma surra.
Mas... por que pernoitamos aqui, em plena natureza?
Ahmim olhou-me sério e intrigado.
- Não te recordas do que aconteceu?
Nisso, olhei e vi à distância os contornos da cidade recortados sob um céu muito azul.
Nesse momento, lembrei-me do mal-estar que senti ao vê-la.
Agitei-me desesperado.
- Ahmim! Não posso entrar naquela cidade.
E como ele me olhasse perplexo, sem entender, contei-lhe o que tinha acontecido comigo, o mal-estar e o medo que se apoderaram de mim, e o desejo de fugir dali para o mais longe possível.
- Por que, Emil?
Já estiveste em Mênfis? - indagou surpreso.
- Sabes que não. Narrei-te a história de toda a minha vida.
Esta é a primeira vez que deixo a aldeia onde nasci.
Contudo, vi imagens estranhas... um palácio, uma casa se movendo num rio...
- Chama-se barco.
- Isso e outras coisas que nunca vi.
Todavia, sei que conheço tudo isso, como se essas imagens tivessem feito parte da minha vida, numa outra época.
Sinto-me confuso.
Não sei explicar. 2
- Entendo. Falas das vidas sucessivas.
Acredita-se que podemos voltar a viver em outros corpos, inclusive de animais.
- Não sei.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 16, 2020 8:28 pm

Nunca pensei nisso e ninguém jamais me falou sobre esse assunto antes.
Contudo, afirmo-te:
já vivi naquele lugar e com aquelas pessoas.
Tudo isso me causa pavor infinito.
- Neste momento... como estás?
- Estou bem.
Não sei, porém, se terei coragem para prosseguir...
- Bobagem, Emil!
Não posso deixar-te aqui sozinho, neste estado.
Vamos nos aproximar da cidade.
Se passares mal de novo, veremos o que se pode fazer.
Creio que o melhor será procurarmos o Templo de Amon e orarmos pedindo a ajuda dos Imortais.
Vamos prosseguir.
Diante da atitude firme de Ahmim, embora não muito convencido, deixei-me conduzir por ele.
Aos poucos nos aproximamos da grande cidade.
Apesar da grande tensão, procurei controlar-me para não fugir.
Entrando na cidade, distraí-me observando o movimento de pessoas nas ruas, comerciantes que vendiam seus produtos, crianças que brincavam.
Odores diversos atingiram-me o olfacto:
peixes, frituras, bebidas, frutas, flores, óleos aromáticos, ervas medicinais e muitos outros que eu não conhecia.
O trânsito de animais e de pessoas era intenso.
Vi liteiras carregadas por homens fortes, com as cortinas fechadas, precedidas por contingente de soldados que afastavam os transeuntes para que a condução pudesse passar.
Olhei para Ahmim, surpreso.
Minha aldeia era muito pobre e jamais tinha visto algo semelhante.
Tudo para mim era novidade.
- Trata-se com certeza de algum nobre senhor que não deseja ser reconhecido - informou-me ele, notando-me a curiosidade.
- Ah!...
Saímos do comércio e percorremos ruas e vielas;
vimos grandes construções, templos imensos, soberbos palácios, monumentos sumptuosos, até que chegamos a uma rua mais tranquila onde deparamos com alto muro.
Demos a volta até nos determos diante de grande portão de madeira.
Nele havia uma cabeça de leão, em metal dourado, com uma argola na boca, Ahmim, sorridente, levando a mão à argola, bateu com ela três vezes, fazendo um som metálico que ressoou fortemente.
Logo, um criado abriu uma portinhola e perguntou o que desejávamos.
Ahmim identificou-se, afirmando ser irmão do dono da casa e desejar vê-lo.
O criado fechou a portinhola novamente e esperamos mais alguns minutos.
Em breve, ouvimos passos, o criado correu o ferrolho e o grande portão se abriu a gemer nos gonzos.
Entramos.
Um lindo e refrescante jardim surgiu diante de nós.
No meio, um tanque azul claro com bela estátua da deusa Ísis em tamanho natural, cujos braços sustinham um vaso coniforme, de onde jorrava água cristalina.
Ao fundo, surgiu uma construção baixa com grande terraço, pintada de cores fortes, tão ao gosto egípcio.
Acercamo-nos da casa e fomos recebidos pelo proprietário, Cleofas, irmão de Ahmim.
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 17, 2020 8:30 pm

Vestido luxuosamente com uma túnica clara, tendo na cintura uma faixa azul e dourada, ele nos recebeu com os braços abertos.
Inclinando-se, cumprimentou-o:
- Sê bem-vindo à minha humilde morada, irmão!
Ahmim curvou-se, respondendo à saudação:
- Agradeço-te, querido irmão Cleofas.
Trazemos paz a esta casa.
Como somente nesse momento o anfitrião tivesse dado pela minha presença, olhou intrigado para Ahmim, que explicou:
- Este é Emil. Viajamos juntos.
Cleofas, embora a contragosto, fez um gesto de acolhida:
- O amigo de meu irmão é também meu amigo.
Depois, mudou o rumo da conversa.
Ignorando-me, colocou a mão no ombro de Ahmim, levando-o para dentro.
- Vem, meu irmão.
Com certeza estás cansado depois da longa viagem.
Mandarei mostrar-te os aposentos.
Bateu palmas e, em seguida, dois criados surgiram.
A um gesto seu um dos servos conduziu Ahmim para o interior da casa.
A outro gesto, o segundo servo pediu-me que o acompanhasse, levando-me para outro lado.
Logo percebi que aquelas seriam as acomodações reservadas à criadagem.
Entrei em meu quarto, grato por ter onde descansar.
Ao ver o tapete de palha no chão, joguei-me sobre ele e, logo, estava entregue a pesado sono.
Ahmim, depois de repousar e refrescar-se em perfumado banho, foi levado para a sala de refeições, onde era aguardado pelo irmão.
Estavam acomodados em macias almofadas de cetim e damasco quando a família entrou:
Núbia, a esposa, acompanhada da filha Nahra e do filho Anótis.
Ahmim ergueu-se, reverente, cumprimentando a cunhada e os jovens sobrinhos.
Núbia, com traje transparente e esvoaçante, semblante pintado no rigor da moda, cabelos presos por bela tiara, tinha um ar meio afectado, próprio daqueles que se consideram superiores.
Nahra, jovem de quatorze anos, era o reflexo da mãe, vestindo-se e pintando-se da mesma maneira.
Anótis, aos dezasseis anos, era um rapaz forte e viril, orgulhoso da sua condição e dos seus feitos.
Acomodados todos, os servos entraram trazendo as iguarias, enquanto outro servia a bebida.
Cleofas, orgulhoso dos filhos, vangloriava-se:
- Vê, Ahmim, Nahra daqui a alguns meses vai-se casar com excelente partido da corte de nosso faraó.
Que Amon-Rá o cubra de glória e saúde!
Quanto a meu filho, Anótis, tem alcançado importante êxito nos jogos, ganhando medalhas valorosas.
Ahmim cumprimentou os jovens, louvando suas qualidades.
Depois, lembrando-se de mim, estranhou que eu não estivesse presente.
O irmão, vendo a curiosidade dos familiares,
que não sabiam que havia outra visita, explicou evasivo:
- Emil está repousando, cansado demais para comparecer.
Amanhã conversaremos.
Após o repasto, Ahmim pediu permissão para sair, alegando necessidade de descansar.
Despediu-se da família e retornou a seus aposentos, caindo em sono profundo.
No dia seguinte, após a refeição matinal, Cleofas levou Ahmim até um aprazível terraço, rodeado de plantas, onde se sentaram.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 17, 2020 8:30 pm

- Emil já se levantou? - perguntou Ahmim, estranhando minha ausência.
Cleofas agitou-se, pigarreou e disse, procurando as palavras:
- É exactamente sobre ele que gostaria de falar-te.
Tu o conheces há muito tempo, meu irmão?
Ahmim contou como nos encontramos, relatando nossa viagem e como nos tornamos amigos.
- Ah!... então, não tens grande conhecimento sobre ele.
- Explica-te melhor, caro mano.
Não entendi - retrucou Ahmim intrigado.
Escolhendo as palavras, Cleofas disse:
- Ahmim, meu irmão, teu amigo é muito estranho e de modo algum será bem-visto em nosso meio.
Parece mais um animal selvagem.
Sua aparência é profundamente desagradável e causa asco.
Não poderei permitir que fique connosco, que tome as refeições com minha família, porque não conseguirão sequer comer, enojados; além do medo que ele, sem dúvida, despertará nos demais.
Até no alojamento dos servos, onde ele dormiu, sua presença causou-lhes profundo impacto e todos estão temerosos.
- Não entendo. Emil é bom e gentil.
Jamais fará mal a alguém.
Sua aparência é estranha, concordo, e até eu, quando o conheci, fiquei assustado.
Porém, quando tu o conheceres melhor, verás que não há o que temer.
- Esse é o ponto.
Não haverá tempo para conhecê-lo melhor, Ahmim.
Emil não poderá permanecer nesta casa.
Assim que acordar, será mandado embora.
Não exporei minha família a tal monstruosidade, constrangendo-a perante toda a sociedade.
Ahmim fitou o irmão, perplexo.
Jamais o julgara tão radical e mesquinho.
Nesse ínterim, já desperto, fui procurar por Ahmim.
Encaminhei-me para o terraço, onde, informaram os servos, eles estariam palestrando.
Antes de entrar, estaquei na porta ao notar que falavam sobre mim.
Fiquei horrorizado diante das palavras de nosso anfitrião, das expressões que usou para referir-se à minha pessoa.
Baixei a cabeça humilhado e profundamente ferido, enquanto lágrimas copiosas banhavam meu rosto disforme.
Antes que eles me notassem a presença e eu fosse obrigado a passar por maiores e mais dolorosas humilhações, busquei a porta de saída, ganhando os jardins, onde um segurança abriu-me o grande portão.
Quando ele se fechou às minhas costas com som abafado e soturno, parei em plena rua sem saber para onde ir.
Estava novamente só.

1. Outrora capital do Egipto durante o Reino Antigo (2.575-2.134 a.C.) e o Reino Médio (2.040-1.640 a.C.). (Nota da Médium)
2. As lembranças do personagem se referem a factos ocorridos durante o reinado da rainha Hatshepsut, do Egipto, pertencente à 18ª dinastia, que exerceu o poder absoluto de 1505 a 1483 a.C., embora tivesse reinado conjuntamente com seu meio-irmão e esposo, Tutmés 2º de 1515 a 1505 a.C.
(Enciclopédia Delta Larousse, Tomo 2, pg. 694, Editora Delta S/A - Rio de Janeiro, 1962). (N.M.)
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 17, 2020 8:30 pm

3 - Mudança de rumo
Caminhei sem destino, procurando distanciar-me tanto quanto possível daquela casa que acabara de deixar.
Na pressa de sair, larguei para trás minha pequena bagagem.
Agora nada mais tinha que fosse realmente meu.
Contudo, isso não me incomodava.
As lágrimas corriam-me pelo rosto sem que me preocupasse em secá-las;
não esperei para ouvir a resposta de Ahmim ao comentário maldoso e humilhante do dono da casa, todavia confiava que ele me defendesse.
Foi melhor assim.
Não queria ser um peso para o único amigo que tive na vida.
Cansado de andar, com as sandálias rotas, parei para descansar.
Sentei-me numa pedra da rua, imerso em meus pensamentos, quando comecei a ouvir um barulho de vozes e música que se aproximava.
A princípio era um som quase inaudível, aumentando gradativamente até tornar-se bem forte.
Logo, um grupo de pessoas vestidas com roupas alegres e estranhas dobrou uma esquina, vindo na minha direcção.
Encolhi-me, esperando que não me vissem; desejava passar despercebido.
Era um bando de saltimbancos, desses que dão espectáculos nas ruas em troca de algumas moedas.
Na minha aldeia, certa ocasião, aparecera um grupo semelhante;
naquela época, encantado com a alegria dos recém-chegados, com suas roupas coloridas e com o espectáculo, abriguei o desejo de acompanhá-los, deixando minha aldeia.
No entanto, na hora da partida, faltou-me coragem para enfrentar o desconhecido.
Um deles, o que parecia o chefe, parou de falar ao ver-me e estacou a meu lado.
Virando-se para um companheiro, comentou com sorriso irónico, baixando a voz:
- Vê! Que aparência tem este infeliz!
Os deuses, por certo, quiseram marcá-lo para a desdita.
Julgo que será perfeito para nosso grupo, servindo de atracção.
Voltando-se para mim, examinou-me detidamente dos pés à cabeça, depois indagou:
- Como te chamas?
- Emil, senhor.
- Onde moras? - tornou a perguntar o desconhecido.
- Em lugar nenhum, senhor.
Cheguei ontem à cidade e ainda não arrumei abrigo - respondi, levantando-me.
- Ah! Tens família?
- Não, senhor. Sou sozinho no mundo.
O saltimbanco trocou um olhar de entendimento com o companheiro e voltou a indagar:
- Desejas trabalho?
Não podemos pagar, mas terás comida e abrigo.
O peito se me inflou de satisfação.
Trabalhar era tudo o que eu mais desejava, e ainda mais com um grupo bonito e alegre.
Afinal, ser saltimbanco era meu destino, já que a oportunidade surgia novamente.
Aceitei com entusiasmo:
- Sim, senhor. Para mim é o suficiente.
- Então, acompanha-nos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 17, 2020 8:31 pm

Fui atrás dos saltimbancos contente por ter conseguido, tão rápido e inacreditavelmente, tudo o de que precisava:
casa, comida e trabalho.
Com nova disposição, a imitar a atitude do bando, andava pelas ruas a sorrir e a cumprimentar as pessoas, transeuntes ou moradores que saíssem à porta para nos ver passar, sentindo-me parte daquele grupo alegre e divertido cuja intenção era levar felicidade ao povo.
Andamos bastante até chegar a um bairro distante e pobre.
Diante de uma casa miserável, paramos.
O chefe virou-se para mim e informou:
- Esta é nossa casa.
Entramos. A moradia era pequena e quase sem mobiliário.
Duas mulheres acenderam o fogo para fazer a refeição, que se restringiu a um caldo ralo.
Não estranhei, porque estava acostumado a comer pouco.
Não pude deixar de notar, porém, a reclamação geral.
Todos estavam descontentes e com fome.
Em altas vozes discutiam o que fazer, como agir, para onde ir, sem chegar a um acordo.
Como sempre fora sozinho, afastei-me do grupo.
Aquele vozerio incomodava-me.
Deixei que decidissem entre eles; além do mais, acabava de chegar e não me sentia com direito de opinar.
À noite, arranjei um canto e acomodei-me como pude.
Na manhã seguinte bem cedo, recebemos ordem de sair para trabalhar.
Os componentes do bando vestiram seus trajes coloridos, entregando-me também uma vestimenta, que enverguei satisfeito.
Por certo eu estava muito engraçado porque os demais, ao olharem para mim, caíam na risada.
Não gostei, senti-me humilhado, mas fui obrigado a aceitar.
Dirigimo-nos directamente ao mercado, àquela hora do dia apinhado de gente, onde eles já tinham feito alguns espectáculos.
Ao cabo da apresentação, Nefert, o chefe, estendia o chapéu, no qual as pessoas depositavam moedas;
outras colocavam aquilo que tinham, isto é, algum produto que estavam vendendo ou que haviam acabado de comprar, que podia ser uma fruta, legumes, um pedaço de carne ou um pequeno peixe.
Todavia, eram poucos os que colaboravam;
muitos, até, apreciavam o espectáculo, riam e batiam palmas;
porém, extremamente pobres, nada tinham para dar.
Nos dias seguintes, continuamos trabalhando do mesmo jeito.
Após a passagem pelo mercado, percorríamos outros lugares e ruas diferentes.
A dificuldade, contudo, era a mesma.
Ao final das actividades, não tínhamos angariado o suficiente para a manutenção do grupo.
A colecta do dia era dividida entre todos, causando descontentamento geral.
Em vista disso, a fome levava alguns componentes do bando a saírem à noite para conseguir comida.
Nunca fiquei sabendo ao certo o que faziam, mas julgo que traziam para casa o resultado de roubo, porque voltavam com moedas, pequenas jóias, roupas e comida.
Era assim que nos alimentávamos.
Sempre tentando melhorar nossa actuação, Nefert decidiu dar-me a incumbência de passar o chapéu, ao término da apresentação, julgando que a arrecadação fosse aumentar.
Foi o maior fiasco.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 17, 2020 8:31 pm

As pessoas fugiam de mim, embora me achassem engraçado com aquelas roupas.
A colecta minguou ainda mais.
Naquela noite, deitei-me preocupado.
Percebera os olhares endereçados a mim, como se estivesse trazendo azar para o grupo todo.
Notei que ficaram, à luz de uma fogueira, conversando em voz baixa por muito tempo.
Adormeci e eles ainda continuavam lá, em torno da fogueira.
No dia seguinte, levantei-me mais cedo, acendi o fogo e coloquei água para ferver.
Não demorou muito e vi Nefert chegar.
Estranhei que ele estivesse de pé àquela hora, depois de ficar a noite toda acordado.
Logo os demais despertaram e o movimento normal da casa começou.
Nefert sentou-se perto de mim e convidou-me para sair com ele.
A princípio, fiquei preocupado, sem saber suas intenções.
Tranquilizei-me quando ele afirmou que iríamos procurar serviço numa construção, e aceitei satisfeito.
Nefert era rude e raramente fazia gentilezas, especialmente comigo.
Saímos num grupo de cinco pessoas.
Os demais permaneceram na casa, com a recomendação de se exercitarem para um novo espectáculo.
Caminhamos muito até que chegamos à margem do rio Nilo, onde muitas embarcações se encontravam ancoradas.
Nefert conversou com um barqueiro, que lhe indicou um homem ali perto.
Depois de dialogar com esse homem, voltou até onde estávamos, explicando:
- Emil, este barco está de saída com pessoas contratadas para trabalhar numa grande construção.
Falei com o encarregado;
só há vaga para uma pessoa.
Como tu és o mais novo no nosso grupo e não tens uma actividade definida, o serviço é teu.
Este barco te levará até o local onde irás trabalhar.
Embarcarás nele, que está de partida.
Não te preocupes, já está tudo arranjado.
Concordei sem relutância, agradecido.
Afinal, era um trabalho que me estava sendo oferecido e eu ia viajar naquela casa que se movia no rio, que já vira em sonhos;
no fundo, estava emocionado por poder conhecer um barco, viajar nele.
Assim, despedi-me dos companheiros sem grande tristeza.
Não me afeiçoara a eles e algo me dizia que não eram dignos de confiança.
Eu não estava certo se era aquilo que desejava, não sabia nem para onde ia, porém, como não tivesse alternativa, resignei-me.
Antes que eu entrasse na embarcação, os saltimbancos já haviam desaparecido.
Logo partimos.
Meu coração batia apressado no peito.
Andar flutuando num rio era uma experiência nova para mim, e uma estranha sensação de mal-estar e angústia me tomou de assalto.
O Sol desaparecera lentamente no horizonte e as sombras da noite invadiram tudo, mas a embarcação não parou, prosseguindo sempre.
Cansado, recostei-me e adormeci.
Imagens de um grande barco, todo iluminado, deslizando pelo rio em noite de luar, surgiram-me dos refolhos da memória.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 17, 2020 8:31 pm

Sentimentos díspares e contraditórios vinham-me à mente; embora não soubesse, era saudade de um tempo de glórias, de poder, de luxo, ao mesmo tempo em que infinita dor e sofrimento me atingiam o coração.
Alguém falou ao meu lado.
Abri os olhos e vi que era dia.
Tudo desaparecera.
Aliviado, respirei profundamente e me atrevi a perguntar:
- Para onde vamos?
- Para Tebas.
- Tebas?!...
- Sim. Estás neste barco e não sabes para onde vais?
Não respondi.
A notícia havia caído sobre mim como um raio.
Tebas? Bem, agora não poderia fazer mais nada;
estávamos viajando há muitas horas.
Pensei no lado bom.
A vantagem é que eu iria conhecer Tebas, a grande capital.
Durante o trajecto eu olhava, admirado, as plantações à margem do rio e as pessoas ocupadas no labor da terra;
elas pareciam felizes, tranquilas e achei que também seria feliz trabalhando no amanho do solo.
Sempre viajando, passamos por várias cidades;
depois de alguns dias, Karnak surgiu, e, logo em seguida, começamos a avistar Tebas.
Não demorou muito, o barco deslizava atravessando a cidade, e, com perplexidade e admiração, eu contemplava os prédios, os palácios, os templos, os monumentos e os jardins às margens do Nilo.
Deixamos Tebas para trás e em breve aportamos do outro lado do rio.
Alguém informou que estávamos em Luxor.
Ali, grandes construções, pirâmides e monumentos mostravam a sumptuosidade das tumbas dos antigos faraós do Egipto, que permaneceriam como símbolos de uma era para a posteridade.
Em fila, caminhamos por algum tempo, até que percebi que nos dirigíamos para uma grande construção, onde milhares de operários trabalhavam.
Era a tumba de um faraó que estava sendo erigida.
O encarregado dirigiu-se a um homem de fisionomia fechada e rude, que parecia ser o responsável pelo grupo de operários que ali prestavam serviço.
Conversaram em voz baixa, e o chefe fez uma indicação com a mão.
Seguimos o encarregado no rumo indicado.
Logo apareceu, vindo do interior da imensa construção, um homem baixo e troncudo, de tez escura, semblante marcado por uma grande cicatriz do lado esquerdo;
seus olhos frios e indevassáveis nos fitaram.
O chefe fez sinal para que aguardássemos.
Depois, caminhou sozinho ao encontro daquele homem e trocou algumas palavras com ele.
Ruff - era esse o nome dele - separou os recém-chegados em quatro grupos.
Fez-me um sinal e o acompanhei, com mais seis companheiros, rumo ao interior da construção.
Eu olhava admirado as altas paredes, os imensos salões com grandes colunas enfileiradas, que se alternavam com extensos corredores; abruptamente, descemos largas escadarias, passando a outro nível da sumptuosa edificação.
Ruff seguia à nossa frente, apressado, e tentávamos acompanhá-lo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 17, 2020 8:31 pm

Afinal, chegamos a mais um outro nível da construção.
Os seis companheiros tomaram um rumo diferente.
Ruff impediu-me de acompanhá-los;
depois, ele e eu entramos numa sala pequena, cujo acesso era restrito, a julgar pela segurança existente no local.
Ruff, porém, não teve problema para entrar.
Mandou-me esperar. Fiquei só.
Sentei-me numa grande pedra rectangular, que se assemelhava a um leito, única coisa que existia na sala.
Sensação de medo começou a me dominar, enquanto estranho mal-estar se assenhoreava do meu íntimo.
"Bobagem!" - pensei.
"Estou sendo contratado para servir nesta grande construção, o que só me honra.
Tenho que ser grato."
Depois de algum tempo, surgiram quatro homens altos e fortes acompanhados de Ruff.
- Deita-te. Vamos examinar-te - ordenou-me o chefe.
Deitei-me. Meu coração começou a bater rápido quando percebi a intenção deles.
Um dos homens retirou uma corda que trazia presa à cintura;
outros dois, um de cada lado, me ataram os braços, enquanto o último me segurava as pernas.
Amarraram-me, mas eu me debatia tentando desesperadamente soltar-me.
Contudo, eu era impotente diante da força daqueles homens.
Eu gritava a plenos pulmões, suplicando que me soltassem.
Ruff, que só observava, tirou um pequeno chicote que trazia à cintura e açoitou-me sem piedade, ao mesmo tempo que ordenava com voz sibilina:
- Cala-te! Cala-te ou morres aqui mesmo, infeliz!
Calei-me, enquanto o pranto inundava-me o rosto de lágrimas pungentes.
Em seguida, Ruff segurou-me a cabeça com mãos de ferro;
dor insuportável fez-me sentir como se o crânio estivesse sendo esmagado.
Nesse instante, gritei a plenos pulmões, escancarei a boca e vi nas mãos do quarto homem um instrumento de ferro, ameaçador, vindo em minha direcção.
Com os olhos arregalados de terror, percebi a intenção dele.
Meu grito ecoou nas paredes, reverberando para fora da pequena sala, quando ele enfiou o instrumento pela minha boca causando-me infinita dor.
Perdi a noção de tudo.
Aos poucos, a consciência começou a voltar.
Despertei com dores em todo o corpo, especialmente na garganta.
Tremia de frio. A escuridão era completa.
Julguei estar enterrado.
Notei que não estava mais amarrado, porém era impossível mover-me.
Perdi novamente a consciência.
Delirei entre sonhos e imagens.
Uma procissão de homens passava por mim, mostrando-me a boca aberta e sem língua;
emitiam apenas grunhidos ameaçadores, que me causavam inaudito pavor.
Outras vezes eram nuvens de mulheres desgrenhadas, vestindo apenas leves véus escuros, permitindo-me ver seus peitos abertos e sangrentos, de onde o coração fora retirado.
Todas aquelas figuras, horrendas e ameaçadoras, desejavam vingar-se de mim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 17, 2020 8:32 pm

Sentia o ódio que suas presenças destilavam e sob o impacto da virulência de seus sentimentos, pensei que fosse enlouquecer.
Quanto tempo passei nessa tortura infernal? Ignoro.
Dormi e acordava, voltava a dormir, até que, certa ocasião, no meio desse tormento, pareceu-me ouvir uma voz branda.
Alguém falava comigo. Abri os olhos lentamente.
Um homem vestido de branco, com a cabeça raspada, tentava fazer-me ingerir um liquido esverdeado.
Ao ver-me abrir os olhos, sorriu:
- Os deuses te protegeram. Viverás.
Tentei falar e não consegui.
O desconhecido balançou a cabeça, pesaroso, e disse:
- Não tentes falar. Não o conseguirias.
Recupera-te para poderes trabalhar. Estás com fome?
Fiz um sinal afirmativo com a cabeça, olhando-o intrigado.
Ao notar minhas indagações mentais, ele explicou:
- Sou sacerdote e médico. Estou aqui para ajudar-te.
Lamento o que te sucedeu.
Infelizmente, por medida de segurança, conforme determina nosso faraó, Ramsés 1º - a quem os deuses concedam glória e saúde! -, tua língua foi extirpada.
Livra-te, porém, de te rebelares, pois, nesse caso, teu destino será a morte.
Resigna-te ao que não podes evitar e, como escravo que és, trabalha com afinco.
Pleno de revolta e de amargura, me desesperei, caindo em copioso pranto.
"Minha língua tinha sido arrancada?
Então não poderia falar nunca mais?"
Nesse momento ouvi claramente uma grande gargalhada.
E entendi que aqueles seres que eu via em sonhos estavam satisfeitos com o meu sofrimento.
Em meio a um ódio profundo por aqueles que me marcaram para a desdita, tentei dizer ao sacerdote que ele estava enganado, que eu não era um escravo, mas um homem livre.
Contudo, não consegui.
Vendo meus esforços para falar, ele consolou-me:
- Acalma-te e não permitas que eles percebam tua revolta.
Como já afirmei, te matariam.
Confia na divindade e espera com paciência.
Quem sabe, tu não obterás a liberdade algum dia, em virtude de teus bons serviços prestados ao soberano?
Nosso faraó é benevolente e, em datas festivas, não raro concede sua graça a algumas pessoas, criminosas ou escravas.
Fez uma pausa, depois informou:
- Vou mandar servir-te uma refeição leve.
Aguarda. Voltarei outras vezes.
Acalmei-me com dificuldade.
Algum tempo depois, entrou uma mulher com uma bandeja contendo uma caneca de caldo e um copo de bebida.
Enquanto me alimentava, olhei para ela e vi tanta tristeza em seu rosto, um desânimo tão profundo, que me apiedei.
Acabei a refeição e logo apareceu Ruff com seus asseclas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 17, 2020 8:32 pm

- Finalmente estás te recuperando.
Agora, evita a rebeldia, visto que és um escravo.
Levantei-me, tentando explicar que havia um engano, mas da minha boca só saiam grunhidos.
Então, por meio de gestos, tentei fazê-los entender que era um homem livre e não um escravo.
Trocaram um olhar cúmplice e soltaram uma gargalhada.
Depois, como se não tivesse entendido, o baixinho gordo e petulante afirmou:
- Escravo, amanhã tu irás trabalhar.
Chega de moleza.
Aproveita este dia para descansar, porque depois...
Olhou para os outros, jogou a cabeça para trás e deu nova gargalhada sarcástica.
- não terás tempo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 17, 2020 8:32 pm

4 - A cidade dos mortos
Desse dia em diante, minha saúde começou a melhorar rapidamente.
Talvez porque eu desejasse sarar para vingar-me daquelas criaturas que me prejudicaram.
O ódio concentrado mantinha-me de pé.
O ressentimento multiplicava-me as forças.
Eu, que nunca sentira raiva de ninguém, agora conservava o coração cheio de fel.
Amargurado, passava o dia trabalhando com as mãos, enquanto a mente buscava uma maneira de fazer com que todos eles pagassem pelo meu sofrimento.
Aquela criança que fora repudiada pela própria mãe, que sempre fora triste e sozinha, mas dócil e resignada;
aquele rapaz que abandonara sua aldeia natal, viajando em busca de outras plagas, e que encontrara Ahmim, único amigo que tivera, não existia mais.
Desaparecera na voragem de emoções nefastas.
Executava minha tarefa sem ligar-me a ninguém.
Nem poderia, pois éramos vigiados de perto pelos soldados do faraó, que não nos permitiam o menor descanso.
Se um dos escravos sentava-se, exausto, imediatamente o relho estalava em seu dorso nu.
Só parávamos para comer, hora em que aproveitávamos para descansar um pouco.
Soldados traziam até o local a minguada refeição em grandes tachos;
mulheres entregavam a cota de cada um em comida e água;
depois, desapareciam.
As condições de serviço eram péssimas.
Dormindo pouco, trabalhando muito, sem poder sair daqueles ambientes fechados, sem respirar ar puro e sem ver a luz do sol, o prazo de resistência era pequeno.
Em vista disso, as baixas eram constantes.
Muitos morriam e eram substituídos.
Outros, em virtude de contraírem alguma enfermidade, eram mortos.
Jamais alguém saia dali vivo.
Por isso, a desesperança campeava entre os escravos, tornando-os apáticos e indiferentes à própria sorte.
Aos poucos, ouvindo conversas aqui e ali dos responsáveis e dos soldados, entendi o porquê de tamanha preocupação com a segurança.
O coração da tumba, local onde ficaria guardado o sarcófago com a múmia do faraó, após sua morte, assim como tudo o que lhe pertencera em vida, era segredo inviolável, para que nada perturbasse a viagem do faraó Além-túmulo.
Depois das exéquias, selada a tumba, jamais deveria ser devassada, e o segredo da localização da múmia real era cercado de segurança extrema.
E nós estávamos trabalhando exactamente no local mais importante da tumba.
Em virtude disso, todos os que se envolviam com essas tarefas, tanto os operários que traziam de fora o material para a construção, como os que trabalhavam na construção propriamente dita, eram surdos-mudos ou mudos.
Quando o escravo não havia nascido com essa deficiência, eles arrancavam-lhe a língua, como no meu caso.
Assim, nenhum deles jamais poderia contar os segredos do túmulo do faraó.
Era com piedade que eu via chegar novos operários.
Tal qual eu mesmo, a aparência deles era pálida e sofrida, levavam vez por outra a mão à garganta e grunhiam, sinal de que sentiam dor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 18, 2020 8:39 pm

Mas, com o tempo, acostumavam-se ao ritmo do trabalho e adquiriam aquela aparência de mortos-vivos, indiferentes a tudo, que eu também deveria ter.
De vez em quando, Ramsés vinha com seu séquito visitar a construção, vistoriando as obras.
Esses eram dias especiais, porque saíamos da rotina, e tudo o que trouxesse alguma mudança aos nossos dias, sempre iguais, era recebido com satisfação.
Não raro, nessas ocasiões, recebíamos até uma ração extra, o que mitigava, a nossa fome perene.
E ali dentro daquele sarcófago, perdíamos a noção do dia e da noite.
Como o faraó tivesse pressa, o serviço era organizado por turnos.
Enquanto uma parte dormia, a outra trabalhava.
Esse sistema ainda mais confundia a nossa percepção do que era dia ou noite.
Simplesmente, para nós, noite era o período de descanso em que nos permitiam dormir algumas horas.
Para mim, esse período, conquanto imprescindível para a recuperação das forças físicas, era um tormento.
eu sono era sempre entremeado de imagens assustadoras, tão reais, que eu não tinha noção se estava dormindo ou acordado.
Voltavam a desfilar diante de mim uma procissão de mulheres em vestes negras e esvoaçantes, de cujos peitos abertos o coração havia sido arrancado;
acusavam-me de tê-las destruído, seus semblantes se contraíam em esgares de dor, ao mesmo tempo que riam da minha desgraça.
Juravam-me vingança e faziam vaticínios desejando-me as torturas do Amenti.
Via bandos de homens que me cercavam, irados e ameaçadores, cujos olhos vermelhos destilavam ódio feroz, com as bocas abertas, de onde as línguas tinham sido arrancadas.
Embora não pudessem falar, eu "ouvia" seus pensamentos.
Acusavam-me pelos males e sofrimentos a eles infligidos, pela perda da família, dos bens e da liberdade.
Agarravam-me e aplicavam-me torturas atrozes, enquanto, tais quais as mulheres, gargalhavam de satisfação diante do meu sofrimento.
Essas visões, que se iniciaram naquele dia em que Ahmim e eu avistamos Mênfis, nunca mais pararam, deixando-me desesperado.
Felizmente era um pesadelo, mas acordava banhado de gélido suor, lívido, com os pêlos eriçados, o coração batendo forte e uma sensação terrível de medo que raiava ao pânico.
Ao ver-me no meio dos companheiros de infortúnio, respirava aliviado.
Chorava amargamente no silêncio, enquanto os demais continuavam a dormir.
Não raro era um deles que me despertava, assustado, ao perceber que me debatia, agitado, grunhindo durante o sono.
Nessas ocasiões, fazia um gesto ao companheiro, mostrando-lhe a minha gratidão.
De outras vezes, sonhava com palácios e riquezas sem fim, jardins encantadores, lagos plácidos e música.
Uma música que, no começo, era suave e terna, trazendo-me bem-estar;
aos poucos, ela mudava, tornando-se mais acelerada, frenética, em sons selvagens e discrepantes.
Mas eu gostava disso, embora certa angústia e tristeza invadisse meu íntimo.
Nesses momentos, sentia-me forte, soberano, dono da minha vida e da minha vontade, capaz de todas as coisas.
Bem vestido e elegante, transitava pelos corredores, galerias e salões do palácio feericamente iluminado, onde os ambientes requintados, as obras-de-arte, compraziam-me a alma.
De outras vezes, via-me num barco grande e luxuoso, sentado numa cadeira, no qual passeava ao clarão da lua.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 18, 2020 8:40 pm

A visão da água tranquila do rio, que reflectia a luz lunar, claridade prateada que envolvia tudo, dominava-me a alma num sentimento, misto de saudade e tristeza.
Nesses momentos não desejava acordar, ansiando que aquelas imagens se perpetuassem para sempre.
A volta à realidade era dolorosa, e eu despertava com infinito desgosto.
A visão dos outros escravos, meus companheiros, mudos como eu, fazia-me lembrar o sonho.
Eles também eram mudos.
A mente divagava, reflectindo sobre as imagens dos meus sonhos e a minha realidade.
Por quê? Por que tinha sonhos com pessoas, lugares e situações que nunca tinham conhecido antes?
Como explicar as belezas e o luxo daquele palácio, que julgava real, mas que me mostrava coisas que eu desconhecia?
Sempre vivera em ambiente simples, tosco;
nunca tinha saído da minha aldeia.
Como podia ser?
Tudo me parecia tão real, inclusive os seres, homens e mulheres, que apareciam e me ameaçavam.
Sentia que os conhecia! Por quê? Por quê?
Recordava-me do dia em que, junto com Ahmim, vi pela primeira vez, ao longe, a cidade de Mênfis.
O mal-estar que me acometeu, o medo insano de entrar naquela cidade.
Foi quando também vi a imagem de uma "casa" sobre as águas, que Ahmim explicou-me ser um barco.
Como eu poderia ter visto algo que não conhecia, se nossa aldeia situava-se longe do rio?
E os sentimentos e sensações que me trazia a visão daquelas pessoas?
Do palácio, dos jardins, do barco?
E o luxo existente?
As obras-de-arte, os ricos tapetes, as pinturas nas paredes, os móveis sumptuosos?
Onde já teria visto tudo isso?
Esses e outros questionamentos atormentavam-me a alma, sem que pudesse encontrar uma solução.
Existiria uma outra vida?
Sim, porque sentia que era "eu" aquele homem jovem, alto, belo, elegante e rico!
Sentia que era o dono de todas aquelas riquezas!
Como isso era possível?...
Se Ahmim estivesse comigo, talvez pudesse me explicar essas coisas.
Era o único amigo que tivera e também a pessoa mais sábia e mais generosa que já tinha encontrado na vida.
Nessas horas, uma sensação de tristeza e de solidão abatia-se sobre minha alma, e um imenso desejo de chorar fazia com que derramasse lágrimas amargas que, escorrendo pelo rosto, misturavam-se ao pó grudado na pele.
Meus únicos momentos de alguma satisfação aconteciam quando via a jovem mulher, aquela que pela primeira vez me trouxe comida, assim que abri os olhos, depois de muitos dias de sofrimento, com a extirpação da língua.
Vez por outra, ela vinha servir-nos a refeição e trazer água durante o serviço.
Não era sempre que isso acontecia, porque também ela deveria mudar de turno.
Quando eu a via, porém, branda sensação de calor envolvia meu coração.
Não sabia seu nome.
Ali ninguém sabia o nome de ninguém.
De resto, que importava isso?
Estávamos impedidos de falar.
Não tínhamos como nos comunicar a não ser por gestos e olhares.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 18, 2020 8:40 pm

Ao vê-la outra vez, uma agradável sensação de prazer levou-me a olhar para ela, e a jovem retribuiu, fitando-me docemente com leve sorriso na face.
Desse dia em diante, minha expectativa resumia-se em vê-la; minha esperança era colher o seu sorriso suave e terno.
Naquela vida insípida que levávamos, de trabalho e mais trabalho, de repouso restrito e minguada alimentação, de nenhuma distracção, sem família, sem amizades, sem ninguém, a simples vista da jovem dava um colorido novo à minha existência, fazendo com que o tempo passasse mais rápido.
Dei-lhe mentalmente o nome de Nájia.
Aos poucos, esse sentimento foi aumentando, invadindo todo o meu ser, até que passei a pensar nela o tempo todo.
Ali dentro da tumba, não víamos o tempo passar.
Há quanto tempo estaríamos levando aquela vida?
Seriam semanas? Meses? Anos?
Certo dia, um dos escravos, perdendo o controle, tentou agarrá-la.
Imediatamente notei a situação, porque não a perdia de vista.
Deixei o que estava fazendo e corri como um louco em sua defesa.
Agarrei o homem e joguei-o para trás, libertando a jovem, que caiu sentada numa pedra.
Imediatamente, o escravo levantou-se, fitando-me com ódio e investiu contra mim, esmurrando-me com força.
Como eu nunca tinha lutado antes, e o homem fosse maior, acabei levando a pior.
Cai no chão poeirento, desacordado.
Os guardas, ao ver a confusão, correram para apartar, aplicando em meu opositor muitas chicotadas.
Ao abrir os olhos, vi a jovem inclinada sobre mim, jogando água em meu rosto.
Sentia-me todo dolorido, porém isso não importava.
Só em vê-la ao meu lado, tão perto como nunca tinha visto, era suficiente.
Fitou-me com leve sorriso, agradecendo-me por ter tomado sua defesa.
Em seguida, olhando dos lados, para ver se ninguém nos observava, inclinou-se rapidamente e deu-me um beijo no rosto.
Se o céu tivesse desabado sobre minha cabeça, a surpresa não teria sido maior.
Trocamos um longo olhar, logo interrompido por um dos guardas que se aproximava.
Ao ver-me acordado, ordenou-me que me levantasse.
O serviço tinha que continuar.
A lembrança do beijo e do sorriso de Nájia me acompanhou por longo tempo, aquecendo meus monótonos dias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 18, 2020 8:40 pm

5 - Suave luz nas sombras
O tempo, celeste amigo, continuava a escoar-se de forma lenta e monótona.
Eu anotava a chegada de novos escravos e percebia o desaparecimento dos mais antigos.
Nesse período me fizera rijo, duro e firme.
Enquanto outros que chegaram comigo na mesma leva não resistiram, sendo substituídos, eu continuava ali.
Pelas minhas dificuldades, pelo corpo disforme, parecia mais frágil, todavia acredito que o desejo de vingança dava-me forças para prosseguir;
a vontade inabalável, impulsionada pelo ódio, dilatava-me as defesas orgânicas.
Não obstante, comecei a sentir-me enfraquecido.
Tosse incómoda e persistente surgiu, reduzindo-me as forças.
Tentei disfarçar fazendo inauditos esforços para não fraquejar.
Não ignorava que estar doente, ali, equivalia a uma sentença de morte.
Chegou o momento, porém, em que não aguentei mais.
Sentia-me febril, faltava-me o ar e as crises de tosse, cada vez mais frequentes, dominavam-me.
O braço já não suportava o peso das pedras e da marreta.
Tremores constantes agitavam-me o corpo dolorido, e o coração batia forte e descompassado, certamente lutando para não parar.
Meus olhos se nublaram e escorreguei pela parede, caindo no chão.
Nesse instante, abri os olhos por momentos. Inclinada sobre mim, vi a doce Nájia;
lágrimas lhe corriam pelo rosto e ela demonstrava no olhar a preocupação e a tristeza de saber que havia chegado a minha hora.
Sorri. Ainda tive forças para levantar o braço e tocar seu rosto com a mão calejada e cheia de feridas.
Foi meu último gesto.
Perdi a consciência e nada mais vi.
Quando dei por mim, estava sendo carregado por dois guardas, que me retiravam do lugar onde caíra, fazendo pilhérias sobre a minha situação.
- Este não volta mais.
Menos um no trabalho e mais um para aumentar o monturo!
Tentei falar, atrair a atenção deles, explicar que estava bem, que eu tivera um mal-estar passageiro, mas não conseguia.
Grunhi, apenas.
O pensamento estava lúcido, mas a boca, sem língua, não articulava as palavras, deixando de corresponder à vitalidade do espírito.
Transportaram-me sem o menor cuidado.
O trajecto era o inverso daquele que eu fizera ao chegar.
Apesar da minha condição, senti intensa alegria ao sair da tumba e ver a luz do sol.
De pronto a claridade me cegou.
Acostumado às trevas, ou à chama bruxuleante de tochas, a luminosidade excessiva atingiu-me em cheio;
levei as mãos ao rosto protegendo os olhos e sorri.
Apesar do mal-estar, da falta de ar que me incomodava, estava satisfeito.
Jogaram-me numa vala junto com outros escravos.
Tentei reclamar. Eu estava vivo!
Mas a falta da língua me impedia.
Resignei-me ao que não podia evitar.
O mau cheiro era insuportável.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 18, 2020 8:40 pm

Teriam me deixado ali para que morresse de fome e de sede?
Aos poucos, novamente perdi a noção de mim mesmo e do lugar onde estava, mergulhando em sono profundo.
Quanto tempo teria dormido?
Mais uma vez o mau cheiro atingiu-me.
Ainda estava com falta de ar, e o peito doía-me.
Vermes passeavam pelo meu corpo.
Horrorizado, percebi que a dor no peito não era apenas causada pela enfermidade que me colhera, mas pelo peso de alguém que haviam jogado sobre meu corpo.
Enojado, num impulso, reuni forças afastando-o com os braços, e levantei-me, saindo da vala.
Foi um grande alívio reconhecer-me fora daquele lugar terrível.
Sentia-me melhor e mais fortalecido.
Olhei em torno: tudo continuava como antes.
O movimento na construção era intenso.
Desejei rever Nájia, mas me faltava coragem.
Por alguma razão, haviam-me esquecido naquela vala; provavelmente me julgavam morto.
Se percebessem que eu ainda estava vivo, e melhor de saúde, certamente seria levado à câmara mortuária de novo.
Também me repugnava entrar nos meandros da imensa construção, que eu desconhecia, por medo de não conseguir sair do labirinto.
Achei mais prudente afastar-me daquele lugar.
Procurando passar despercebido, caminhei como se fosse um escravo em serviço;
acompanhei uma fileira de homens que se dirigia para uma parte da construção, mais distante daquela em que eu tinha trabalhado e próxima à saída do canteiro de obras.
Ali, esgueirei-me por detrás de uma pequena elevação e, ao ver que ninguém me notara, comecei a correr em direcção ao Nilo.
Chegando à margem do rio, escondi-me, espreitando as embarcações, para ver se alguma estava de partida.
Logo percebi um barco que estavam terminando de descarregar.
Aproximei-me e, entrando no barco, imitei os carregadores: peguei um dos fardos e o depositei em terra firme, junto com os outros.
Curioso como ninguém olhava para ninguém!
Eu era apenas mais um.
Depois voltei para a embarcação e, examinando o local, coloquei-me num lugar em que passaria despercebido.
Não sabia para onde o barco iria, mas isso não tinha a menor importância.
Queria afastar-me o mais rápido possível da Cidade dos Mortos.
Cai novamente em sono profundo.
Ao acordar, pelo balanço do barco e o barulho das águas, percebi que estávamos navegando.
Respirei mais aliviado.
Para onde estaríamos indo?
Qual seria nosso destino?
Não tinha nenhuma importância.
Finalmente, conseguira deixar o Vale dos Túmulos dos Reis.
Outra vez adormeci, despertei com movimento de gente e barulho de vozes.
A embarcação estava parada e alguns escravos carregavam fardos.
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