LUZ ESPÍRITA
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 7 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2020 7:42 pm

28 - Creso cai em desgraça
Aproximava-se o dia marcado para as bodas reais e aceleravam-se os preparativos.
Sentia-me cada vez mais próximo da felicidade que tanto desejara e que finalmente estava ao alcance de minhas mãos.
Com um bom humor inesgotável, eu atendia às actividades administrativas e governamentais, recebia os súbditos reclamantes resolvendo suas pendências, tomava decisões de ordem geral da população e tantos outros assuntos, que antes sempre me causavam profundo tédio.
E depois, corria ao encontro da doce Aisha, aproveitando as horas vagas para estar com a escolhida do meu coração.
Concomitantemente, Ratan continuava tramando nas sombras.
Por alguma razão, detestava o conselheiro e não descansaria enquanto não causasse a sua perda.
Talvez, no fundo, o anão tivesse inveja da posição de Creso na corte e ciúme das atenções que o faraó lhe prodigalizava.
O facto é que, certo dia, Ratan procurou-me em palácio trazendo as provas da traição do meu conselheiro.
Afirmou-me, peremptoriamente:
- Meu senhor! Creso - a quem tu dispensas respeito, consideração e amizade - trai-te miseravelmente e crava uma lâmina às tuas costas.
Tenho informação, de fonte segura, de que entre outras coisas, também seria o responsável pela sublevação da província rebelde.
- Será crível?!... Qual a finalidade dele? - indaguei incapaz de acreditar em tamanho absurdo.
- Majestade!
O miserável deseja teu trono, e aquela província marcaria o início das operações no sentido de atingir seus objectivos.
Tem contado com ajuda de algumas pessoas para conseguir o apoio do povo.
Conseguindo realizar seus intentos, ele lá se estabelecerá, fincando suas bases e passando a desafiar-te o poderio.
- Mas é um território tão pequeno!...
- O deserto é feito de pequenos grãos de areia, assim como o mar é composto de minúsculas gotas de água, majestade.
Não lhe será difícil, após ter-se apossado da província, conseguir a adesão de outras e outras, também descontentes.
- Achas mesmo isso?
- Tenho certeza, majestade. E não é só.
- Tem mais?
- Muito mais.
Não te esqueças, majestade, de que o reino da Lídia era antigo aliado do Egipto e que Creso sem dúvida tem saudade do seu tempo de glória, como soberano de um reino riquíssimo.
A verdade é que ele tem feito seguidores devotados, até mesmo dentro do palácio real.
Lembra-te que afirmei, em outra oportunidade, existir um grupo na corte que deseja a morte do faraó?
- Sim, Como poderia esquecer?
Mustaf e o próprio Creso.
- Entre outros.
Deixaste Hargon de informante na residência de Creso.
- Exacto. No entanto, até agora, Rafiti não me trouxe notícia alguma vinda de Hargon.
- E sabes a razão?
Creso desconfiou de Hargon e mandou encarcerá-lo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2020 7:42 pm

- Não é possível!
Mas, Rafiti não sabe disso?
Ratan deu um sorriso amarelo e revirou os pequenos olhos de serpente, como se não acreditasse na capacidade do meu fiel capitão da guarda.
Permaneci pensativo por alguns segundos, depois considerei lentamente:
- Ratan, tudo o que afirmaste é muito sério e precisa de provas.
Nesse exacto momento entra Rafiti, ofegante pela pressa em trazer a notícia ao faraó. Inclinou-se, aguardando.
- Fala, Rafiti.
- Meu senhor! Hargon foi preso.
- Ah!... E só agora me comunicas?
Isso eu já sei, graças a Ratan.
Qual a acusação?
- Traição, majestade.
- Traição?!
- Sim, majestade.
- E não pudeste impedir?
- Não, majestade.
Ordenaste apenas que eu ficasse em meu posto de observação.
Tomar uma atitude seria me expor, e expor à sua majestade.
- Tens razão.
Manda chamar Creso imediatamente.
Após a saída de Ratifi, joguei-me numa cadeira, estupefacto.
A situação estava piorando, o cerco se fechava.
Eu teria de tomar uma decisão.
Um quarto de hora depois, Creso deu entrada na sala onde eu o aguardava.
- Majestade! Chamaste-me?
Vim o mais rápido que pude.
Sem responder, questionei-o:
- Fui informado de que mandaste prender Hargon. Qual a razão?
Creso fitou-me surpreso e desconfiado:
- Perdão, mas...
Como sabes disso, majestade?
Porventura conheces Hargon, meu criado?!...
Diante de sua estranheza mantive-me firme e impenetrável, voltando a questionar:
- Qual a acusação?
- Mas, majestade!
Não entendo em quê meus problemas particulares podem interessar ao faraó!
Contendo a ira, autoritário, ordenei entre dentes:
- Responde-me apenas.
Ao perceber a gravidade da situação, pela minha expressão de desagrado, sua aparência de perplexidade foi mudando, como se ele procurasse mentalmente os motivos da inquirição real.
Depois, vendo que eu aguardava impassível, respondeu com serenidade:
- Hargon é acusado de traição, senhor.
Ele era meu criado, gozava de minha confiança, e descobri que estava tramando contra mim.
Peguei-o em flagrante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2020 7:42 pm

- Com quem ele tramava?
- Ainda não sei.
Porém, foi flagrado recebendo dinheiro de um homem que entrou sorrateiramente em minha propriedade.
Meu mordomo, Duzuh, informou-me haver surpreendido Hargon e esse homem conversando em voz baixa, chegando a tempo de vê-lo receber o dinheiro das mãos do estranho.
- Ah! E não sabes quem é esse... invasor?
- Não posso dizer com certeza, majestade, pois seria leviano de minha parte.
Todavia, Duzuh, criado de minha inteira confiança, afirmou ter reconhecido o "invasor" como um homem de Mustaf.
Absolutamente não entendi qual a ligação que existe entre eles, porém mandei prendê-lo para descobrir o que estão tramando.
Creso parou de falar e um silêncio inquietante se fez na sala.
De súbito, ele prosseguiu:
- Majestade, agora que prestei o esclarecimento que exigiste, poderia saber qual o interesse do meu faraó nesse assunto?
Olhei-o admirado da sua petulância.
- Aqui, meu caro Creso, "eu" faço as perguntas.
Qual tua relação com Mustaf?
- Estritamente de negócios.
Há alguns dias ele esteve em tua casa?
- Sim. Mustaf estava interessado num sítio de minha propriedade, situado pouco distante daqui, a oeste.
Concretizamos o negócio, onde ele me pagou a importância combinada, e foi só.
- Negócios? Esperas que eu acredite nisso?
Novamente Creso arregalou os olhos, incapaz de entender a situação.
- Majestade!
Não entendo por que não acreditarias na minha palavra, muito menos a razão de todas essas perguntas.
Sinto que existe algo no ar.
Durante todos esses anos, sempre te servi com lealdade, mostrando-me digno da tua confiança.
Dar-se-á o caso de que já não confies em mim?
Tua atitude é estranha, ages como se eu estivesse sendo julgado!
Se essa impressão é correcta, de que me acusam?
Irritado com sua serenidade e a ousadia em questionar-me, a mim, o faraó do Egipto, ergui a fronte altiva, ordenando:
- Exactamente. A acusação é de traição.
Prendei o traidor. Dentro de três dias será executado.
A essa ordem dita em voz que não admitia réplica, dois guardas se aproximaram e, ladeando o acusado, agarraram-no pelos braços para que não pudesse fugir.
Sob intenso terror, incapaz de acreditar no que ouvia, julgando um pesadelo cruel, com os olhos esbugalhados onde duas lágrimas estavam prestes a cair, diante daquela acusação que era sua sentença de morte, sem entender a reacção daquele que até o momento considerara não apenas como seu soberano, mas como amigo, Creso ainda gritou, apavorado:
- Traidor? Majestade!
Deve haver algum engano!
Não entendo o que está acontecendo!
Sempre fui teu mais fiel servidor.
Dá-me, pelo menos, a oportunidade de me explicar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2020 7:42 pm

Piedade, senhor! Piedade!
Dei-lhe as costas, fitando a paisagem que a janela aberta descortinava, sem atender seus apelos dramáticos, enquanto ele continuava gritando sua inocência.
Ouvi-lhe os passos que ressoavam no lajedo ao deixar a sala e que se afastavam cada vez mais;
seus gritos foram diminuindo, até que o silêncio se fez.
Joguei-me numa cadeira, incapaz de permanecer de pé por mais tempo.
Acometido de terrível mal-estar, uma angústia que me dominava por inteiro e me constringia o peito, fechei os olhos.
No fundo, lamentava a decisão, uma vez que realmente gostava daquele homem que sempre fora tão importante para meu pai e também para mim.
Não pude deixar de notar que o anão exultava.
A expressão do seu semblante incomodou-me.
Tinha um ar de vitória que me desagradou profundamente.
Notando meu olhar, e julgando que fosse um convite para que se aproximasse, Ratan deu alguns passos na minha direcção.
- Majestade...
- Não quero falar com ninguém.
Retira-te - respondi asperamente.
Com um gesto, ordenei que os demais saíssem.
Queria ficar só.
Permaneci ali, sem vontade de nada, incapaz até de me levantar.
A mente confusa, a cabeça atordoada.
Queria esquecer e não podia.
Não saberia dizer quanto tempo permaneci nesse estado.
Aos poucos, a claridade do dia foi sendo substituída pela sombra da noite, e eu continuava ali, sem sair do lugar.
De repente, notei que algo estranho acontecia.
Era como se o ambiente da sala se modificasse.
Uma fumaça leve e azulada foi-se formando à minha frente, e lentamente acabou por tomar contornos mais nítidos, adquirindo a forma de uma pessoa, um homem, na qual, perplexo, reconheci a imagem de meu pai:
o grande Imperador Ciro, que surgia, diante de meus olhos atónitos, vestido em todo o seu esplendor, exactamente como nos dias em que estava vivo!
Ele fitava-me, e, sem que o ilustre visitante pronunciasse palavra alguma, eu "ouvia-lhe" o pensamento.
Observando-o, maravilhado, notei que seus olhos estavam tristes e desejei saber o porquê de sua tristeza.
E entendi que ele me dizia com firmeza e carinho:
- Meu querido filho Kambújiya!
Lamento a decisão que tomaste.
Creso sempre foi nosso amigo agradecido e devotado.
Cometes um grave erro. Volta atrás na tua decisão, meu filho!
Podes fazer isso. Reconhecer os erros é próprio das grandes almas.
Não temas a opinião dos homens.
Os que te aplaudem hoje são os mesmos que te acusarão amanhã, e a injustiça de hoje recairá sobre ti mais tarde.
Reflecte bem, para agir com justiça.
Que os deuses te sejam benignos!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2020 7:42 pm

Ele levantou o braço, com a mão espalmada, como sempre fazia ao se despedir, e tentei impedi-lo.
Queria dizer-lhe: Não te vás, meu pai!
Preciso de ti! - mas não consegui falar.
Um nó constringia-me a garganta.
Sua imagem se diluiu lentamente diante de meus olhos até desaparecer de todo.
Passei as mãos pelo rosto, impressionado.
Teria realmente visto meu pai?
Teria a alma de Ciro voltado de entre os mortos para falar comigo?
Então os mortos voltam de verdade?
No fundo, eu não tinha dúvida alguma.
Durante toda a minha vida fora sujeito a visões terrificantes que me atormentavam, tornando-me a existência um verdadeiro inferno, e eu "sabia", tinha a convicção profunda de que conhecera aquelas pessoas de uma outra época.
Mas nunca imaginara que meu pai pudesse vir falar comigo!
Sim, meu pai estivera comigo, falara comigo, alertara-me para a decisão de prender Creso, condenando-o à morte.
Defendera o amigo e conselheiro, acusando-me de injustiça.
Esse facto deixou-me sumamente impressionado e disposto a mudar minha decisão.
Ao mesmo tempo, porém, assessorado pelos inimigos do invisível, eu pensava:
"Seria realmente uma injustiça?
E as provas que Ratan apresentara?
Poderia acreditar que Creso fosse inocente?"
Com a cabeça cheia de dúvidas, resolvi que mandaria fazer maiores averiguações sobre o caso, para que a justiça realmente fosse feita, sem que a mais leve réstia de dúvida pairasse em meu espírito.
Assim, levantei-me e, ao deixar a sala, com indignação notei um criado que, escondido entre os reposteiros da sala contígua, dormia a sono solto.
Este facto - que em outras circunstâncias o responsável seria condenado à morte - naquele momento, talvez mais brando pela presença de meu pai, fez com que me limitasse a aplicar-lhe um bom pontapé, o que o fez despertar, assustado.
O infeliz, ao ver-me, prostrou-se no chão, gaguejando:
- Perdão, majestade.
Não sei o que aconteceu comigo.
Ao reconhecer o pavor de que estava tomado, e sem disposição para nenhuma outra atitude, apenas alertei:
- Que isto não se repita!
- Obrigado, majestade! Obrigado!
Em seguida, diante do olhar assombrado do pobre homem, dirigi-me a meus aposentos.
Estava exausto.
Meu criado de quarto despiu-me, vestindo-me a camisa de dormir.
- Majestade, desejas um chá calmante? - sugeriu.
- Não é necessário. Estou com sono.
O criado cobriu-me e afastou-se sem fazer ruído, puxando as cortinas das janelas e apagando as tochas, deixando apenas uma pequena vela acesa para alumiar o aposento;
em seguida, saiu, fechando a porta atrás de si.
Com a cabeça no travesseiro, mergulhei em sono profundo, sem pensar em mais nada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2020 7:43 pm

29 - Preparativos para as bodas
Acordei na manhã seguinte com a sensação de ter dormido muito bem e de ter tido lindos sonhos.
Não me lembrava deles, mas sabia que eram importantes para minha vida.
Quando minha querida noiva se apresentou, eu a recebi com imenso carinho.
Após a toalete, sentamo-nos para uma refeição ligeira.
- Estás muito bem hoje, querido.
- Sinto-me óptimo.
Sei que os deuses brindaram-me com lindos sonhos esta noite, apesar de não me recordar deles.
- Não te preocupes, meu amor.
O importante é que tiveste uma boa noite de sono.
Fiquei pensativo, com a caneca de chá suspensa em minhas mãos.
- Interessante!
Parece que sonhei com meu pai.
- Viste? Aos poucos tudo ficará claro em tua mente.
Peguei um biscoito e ia levá-lo à boca, quando parei a meio do caminho.
- Na verdade, não foi um sonho.
Recordo-me que meu pai me apareceu e falou comigo!
- Sim?!... E o que te disse Ciro?
- Não consigo lembrar-me direito - afirmei corando.
Eu sabia perfeitamente o que ele me dissera, mas o orgulho impedia-me de relatar a alguém as palavras de meu pai.
Após a refeição, beijei Aisha, desculpando-me por não poder permanecer a seu lado em virtude de ter assuntos urgentes a tratar.
Ela sorriu compreensiva, alegando precisar também resolver questões atinentes ao nosso casamento.
Tomamos rumos diferentes.
Eu dirigi-me à sala onde costumava despachar com meus ministros e conselheiros.
Chamando Rafiti, que estava a postos, ordenei:
- Rafiti, exijo urgência nas averiguações sobre Creso e os demais envolvidos nesse caso.
- Sim, majestade.
Não pouparei esforços para descobrir o que há por trás desses factos.
Após a ordem, permaneci pensativo, com o olhar perdido ao longe.
- Mais alguma coisa, majestade?
- Rafiti, julgas que Creso seja culpado? - perguntei lentamente.
- Majestade!
Perdoa-me, não...
Notando-lhe o constrangimento, tranquilizei-o:
- Sê sincero.
Esquece por um momento que sou o faraó do Egipto e Imperador da Pérsia, e responde-me como se o fizesses a um homem de confiança.
E então, o que me dizes?
- Sim, majestade. já... que é esse o teu desejo, respondo.
Sempre considerei Creso como um servidor fiel.
Jamais notei em suas atitudes qualquer indício de que fosse falso ou desleal, e, muito menos, traidor.
Respirei fundo, mais aliviado.
- Agradeço-te, Rafiti. Agora vai.
Estás dispensado. Volta com notícias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2020 7:43 pm

- Sim, meu senhor.
Após as mesuras de estilo, afastou-se rapidamente.
A notícia já se espalhara e, por conta disso, uma grande agitação se estabelecera no meio da população.
Muitos lamentavam a condenação de Creso, pois sua figura era simpática e inspirava confiança;
inúmeros, na corte, dentro do próprio palácio, divertiam-se a comentar o facto, disfarçadamente, satisfeitos pela desgraça que atingira o conselheiro, por inveja ou ciúme da posição que ele ocupava junto ao faraó;
outros se regozijavam, vendo nisso uma oportunidade de assistir a uma execução.
A verdade é que pouca gente ficou neutra diante do facto.
Exactamente essa a informação que nos trouxe um conselheiro que, naquela manhã, tendo visto o movimento popular ao aproximar-se do palácio real, comentou:
- Majestade!
Ao chegar assustei-me diante da turba que se agita lá fora.
Temo que aconteçam arruaças ou coisas mais sérias.
Talvez seja bom que o faraó fale ao povo.
- E o que sugeres que eu diga, meu caro?
Sim, é verdade que ordenei a execução de Creso dentro de três dias!
Não posso mudar essa decisão.
A não ser que surjam provas da sua inocência.
No momento, nada posso fazer. Minha palavra é lei.
Prossigamos com a pauta do dia.
Continuei a reunião com os ministros até quase o Sol estar a pino.
Ao término das actividades, Ratan apresentou-se para falar comigo.
Após a saudação de uso, indaguei:
- O que desejas, Ratan?
Seja o que for, fala rápido. Estou cansado.
- Sim, majestade.
Porém, perdoa-me voltar ao assunto.
Ouso lembrar-te de que o momento é propício para pacificar a província rebelde.
Não deves mais retardar uma acção de modo a recolocá-la em seu devido lugar.
Temo que o exemplo dela sirva para a insurreição de outras...
Examinei-o com enigmático sorriso, e tornei:
- Pensaste bem, Ratan.
Todavia, teu rei não tem estado inactivo como pensas.
Já ordenei algumas providências, que por certo ignoras.
O anão fitou-me, entre surpreso e um tanto decepcionado.
Esperava trazer-me alguma novidade.
- Deveras, meu senhor?!...
E posso saber que providências são essas?
- No tempo devido saberás. Estás dispensado.
Ah! Antes de sair, pede ao meu secretário para procurar Dano;
tenho urgência em falar-lhe.
- Sim, majestade.
Ratan afastou-se como um cão com o rabo entre as pernas.
Era minha maneira de vingar-me pelas acusações que ele fizera contra Creso.
Não demorou muito, Dano apareceu, atendendo-me prontamente ao chamado.
Como terminara a reunião, fiz com que entrasse imediatamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2020 7:43 pm

Precisávamos resolver, com presteza, a pendência da província rebelde.
- Como estão os preparativos? - indaguei.
- Tudo em ordem, majestade.
Gostaria apenas de sugerir uma mudança importante.
- Sim, prossegue.
- Na situação actual, não creio que eu deva comandar a operação.
Temos tido alguns problemas com o contingente e sinto-me no dever de permanecer aqui em Mênfis.
- Contava contigo.
E quem poderia substituir-te no comando das tropas? - indaguei preocupado.
- Tenho um subordinado com todas as condições de ocupar essa posição.
É um jovem líder, ponderado, arguto, excelente no combate e bom estrategista, entre outras qualidades.
Sobretudo, é fiel e devotado ao seu faraó até a morte.
Chama-se Elmehr.
- Pois muito bem.
Se o julgas capaz de assumir essa responsabilidade, concordo.
Quando partem?
- Dentro de três dias, majestade.
- Óptimo. Mais alguma coisa?
- Sim, majestade.
Estive pensando e submeto à tua apreciação.
Com rapidez, Dano desenrolou um papiro sobre a mesa, e surgiu um mapa contendo as terras do Egipto e adjacências.
- Observa, majestade!
O oásis de Amon fica no meio do deserto da Líbia, rumo oeste, próximo da região para onde estamos mandando o exército.
Não seria difícil conquistar esse território, anexando-o ao Egipto.
Repleto de sonhos de grandeza, sonhando estender meus domínios por toda a África, meus olhos brilharam diante dessa possibilidade.
- Tens razão. Vamos conquistá-lo.
Desse modo ficaremos mais próximos da conquista de Cartago, cujo extraordinário porto marítimo interessa-me sobremaneira.
- Exacto, majestade.
Em seguida, podemos mandar um outro contingente rumo norte, navegando através do Nilo, para chegar até o Delta e atacar Cartago pelo Mediterrâneo.
Bati nas costas de Dano que, orgulhoso pela sua ideia, sorria satisfeito.
- Tu és um homem de visão e hábil estrategista, Dano.
Dou-te os parabéns pela sugestão.
Traz-me aqui Elmehr.
E quanto ao exército que seguirá por via fluvial, quem o comandará?
- Não te preocupes, majestade.
Providenciarei alguém à altura para essa operação.
O general inclinou-se e saiu, para cumprir a ordem que lhe dera.
Cerca de uma hora depois, Dano retornou trazendo um rapaz ainda novo, alto, bem apessoado, de andar desenvolto e olhos vivos.
Ajoelhou-se, mantendo a cabeça baixa.
- Levanta-te, meu rapaz - ordenei.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2020 7:43 pm

- Majestade, este é Elmehr, de quem falamos há pouco - apresentou Dano.
O recém-chegado, agora de pé, mantinha-se impassível.
Examinando-o detidamente, fiz um gesto para que se aproximasse um pouco mais.
- Elmehr, teu nome foi cogitado para comandar a operação de guerra que se prepara, por sugestão de Dano.
Ele curvou-se, reverente:
- Sim, majestade.
Se esta for a vontade do meu soberano, mais estou pronto a servi-lo.
- Óptimo - Então, está decidido.
Serás promovido a general, e irás comandando um contingente de cinco mil homens. Será suficiente?
- Mais que suficiente, majestade.
Os soldados persas são valentes, corajosos e resistentes, prontos para enfrentar qualquer batalha.
- Pois então, vamos à luta!
Conquistado o oásis de Amon, teremos uma base para servir como pólo de operações.
Após esse feito, deixarás uma pequena parte dos soldados, apenas para manter a posição conquistada, e partirás para Cartago, que atacaremos assim que outra parte do exército estiver a postos, aguardando nossas ordens nas adjacências.
Receberás instruções no devido tempo.
- Sim, majestade.
Agradeço-te a confiança em mim depositada.
Prometo não decepcionar o meu faraó.
Eu estava satisfeito.
Acreditei em Elmehr e em suas condições para o comando da tropa.
Tratamos de mais alguns assuntos técnicos e de estratégia, que diziam respeito à operação, e, em seguida, eles saíram.
No dia aprazado, o general Elmehr e seus homens partiram, após receberem as bênçãos dos deuses, e se despedirem das famílias.
Ao ver o povo acenando, enquanto o exército partia, eu senti um aperto no coração, como prenúncio de desgraça, mas preferi não dar importância ao facto.
No dia seguinte ao da partida das tropas, seria a execução de Creso.
Eu via a hora aproximar-se sem condição de poder evitá-la.
O capitão da guarda real e seus homens não haviam conseguido nenhuma informação da inocência de Creso, que o salvasse da morte.
O povo se aglomerava nas ruas.
A agitação era grande.
Pouco antes da hora marcada, sai com meu séquito com destino ao lugar da execução.
Acomodei-me no trono, especialmente preparado para esse acontecimento.
Dali, eu tinha ampla visão de tudo o que se passava ao redor.
Todavia, a procissão com o condenado tardava.
O Sol estava a pino, e o calor era escaldante.
Debaixo de um toldo, bem instalado com meu séquito, eu percebia que o povo aflito e faminto, cansado de esperar sob o Sol inclemente, impacientava-se.
Percebendo que já passara da hora marcada para a execução, regozijei-me, arrependido pela decisão que tomara num momento de raiva.
Quando o condenado surgiu com sua escolta, aproveitei a oportunidade para considerar, diante do povo, que os deuses não queriam a morte de Creso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2020 7:44 pm

Todavia, os responsáveis pelo atraso da execução teriam que pagar.
Assim, decretei a morte de todos eles, que foram executados ali mesmo.
A multidão exultou.
Retornei para o palácio sentindo-me mais leve.
Creso fora salvo da morte pelo atraso dos responsáveis pela execução.
Mais tarde, visitando Aisha em seus aposentos, percebi que ela, embora a meu lado, mantinha-se calada e tristonha.
Tomei-lhe a mãozinha delicada, levando-a aos lábios, e fitei-a.
- O que aconteceu, minha bela?
Ela levantou o rosto perfeito e notei seus olhos húmidos, com lágrimas prestes a cair.
Incomodado, senti o coração se confranger.
Ela estava sofrendo e eu desconhecia a razão de sua dor.
Com seu rosto em minhas mãos, disse com suavidade:
- Fala, minha querida Aisha.
Preciso saber o que te aflige.
Duas lágrimas rolaram ao mesmo tempo em que seu semblante se abria num melancólico sorriso.
- Perdoa-me, Cambises.
A cerimónia de execução que me obrigaste a assistir mexeu comigo.
Pela primeira vez tive oportunidade de ver algo semelhante.
Conquanto julgasse uma bobagem, um excesso de sensibilidade da parte dela, pois tudo aquilo para mim era absolutamente normal, abracei-a, aconchegando-a ao peito.
- Se eu soubesse que a visão das mortes iria abalar-te a alma sensível, não teria pedido que me acompanhasses.
Só o fiz por julgar facto normal.
Além disso, como futura imperatriz, deves preparar-te para participar desses eventos.
Mas não chores mais.
Procura esquecer, minha bela; tudo já passou...
Agora estamos a sós aqui, e eu te amo muito.
Ela levantou a cabeça de modo a ver-me o rosto, perguntando:
- É verdade, Cambises?
Tu me amas realmente?
- Ainda duvidas, minha querida?
Amo-te e ficarás comigo sempre.
Nada vai-nos separar.
Ao pronunciar estas palavras um sentimento misto de angústia medo assenhoreou-se de mim.
"Bobagem! Agora nada mais pode dar errado", pensei.
Ao mesmo tempo ouvi uma gargalhada e uma voz rouquenha que falou:
"Tens certeza?"
Estremeci e Aisha percebeu.
Ela nada comentou, mas quando me olhou, notei que também devia ter escutado a ameaça, pois, logo em seguida, balançou a linda cabeça como se quisesse expulsar um pensamento incómodo.
Em seguida, procurou mudar de assunto:
- Ah! Antes que me esqueça, na próxima lua, de hoje a sete dias, devo dirigir-me ao Grande Templo de Amon logo cedo, onde participarei de cerimónias de purificação, preparando-me para o nosso casamento.
Nessa oportunidade, farei oferendas aos deuses para pedir-lhes as bênçãos para nossa união, de modo que tudo corra bem.
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 7 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 02, 2020 7:33 pm

- Se é absolutamente imprescindível, concordo.
- É essencial, meu querido.
- Tudo bem. Quanto tempo permanecerás no templo?
- Três dias.
- Parece-me um tempo longo demais para ficar afastado de ti.
Mas se não há outro jeito, resigno-me.
Mas mudemos de assunto.
Falemos de coisas mais interessantes.
Continuamos a conversar e a falar a respeito dos preparativos para as bodas, sobre nossa vida juntos e coisas fúteis e engraçadas que os apaixonados dizem um ao outro, rindo e brincando.
Em determinado momento, fitei os seus olhos brilhantes de amor e senti uma emoção intensa.
Tomando suas mãos nas minhas, depositei nelas um beijo com carinho extremo.
Naquele instante, um grande hausto de amor invadiu meu peito e eu lhe disse:
- Aisha, não imaginas quanto eu mudei depois que entraste em minha vida.
Como um raio de luz, transformaste o homem rude, prepotente, orgulhoso e cruel;
hoje já não sou o mesmo capaz das maiores atrocidades.
Tornaste-me mais brando, mais humano.
Até conhecer-te não havia amado realmente uma mulher, e agora não saberei mais viver sem ti.
- Não temas, meu querido. Jamais me afastarei de ti.
Eu te amo desde sempre.
Sinto que te procurei através do tempo e em todos os lugares e povos até te encontrar.
Nossos elos se confundem na areia dos séculos.
Jamais te deixarei. Acredita em mim.
Tentando controlar a emoção, mas sem poder impedir que os sentimentos extravasassem dos meus olhos em forma de pranto, disse com gravidade:
- Eu sei, minha Aisha. Também sinto o mesmo por ti.
No entanto, se algo acontecer que me separe de ti, não respondo por mim.
Sem teu amor eu não sou nada.
Moverei céus e terras, e jamais descansarei até te encontrar.
Com o corpo inteiro abrasado de amor por ela, apertei-a em meus braços, beijando-a repetidas vezes, e permanecemos assim abraçados por longo tempo, sem desejar nada mais do que a companhia um do outro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 02, 2020 7:33 pm

30 - Neila
Num outro lugar do palácio, uma jovem agitava-se, andando de um lado para outro, com a fisionomia contraída e preocupada.
Dos seus aposentos, passara ao terraço, não muito extenso, mas bastante aprazível.
Lindas plantas ornamentais e odorantes, abrindo-se em flores coloridas, tornavam o lugar encantador;
gaiolas douradas, dispostas aqui e ali, suspensas em tripés de ouro, abrigavam belos pássaros de matizes vibrantes, trazidos de terras longínquas, que cantavam para alegrar seu coração.
Nada disso, porém, a jovem percebia, entregue às suas preocupações.
Neila - pois era ela -, gozando de uma vida regalada no palácio real, tinha tudo o que precisava para ser feliz.
Tudo, excepto a liberdade, que tanto anelava.
Durante os anos decorridos desde que fora aprisionada, sua situação mudara.
No começo, revoltara-se com a posição de cativa, experimentando intenso ódio pelo homem que assim dispusera de sua vida.
Com o passar do tempo, porém, afeiçoou-se ao seu algoz, que, diga-se de passagem, no início só desejava vê-la feliz e obter o seu amor.
Aos poucos, os sentimentos se modificando, já não era com aversão que o via aproximar-se.
Todavia, dentro dela, coexistia uma dualidade de emoções;
ao mesmo tempo em que ansiava pela presença dele, quando isso acontecia não raro experimentava aborrecimento, irritação, ressentimento e até ódio, a ponto de desejar matá-lo.
Neila não entendia o que se passava em seu íntimo.
Era como se uma mágoa profunda e antiga se lhe assenhoreasse, aflorando do âmago do seu ser.
Parecia-lhe que ele era um velho conhecido seu;
que a seduzira, iludira empenhando-lhe seu amor, e depois a traíra miseravelmente.
Ao mesmo tempo, sentiu crescer um ciúme doentio de outras mulheres, fossem elas esposas ou concubinas, com as quais tivesse de dividir o amor de Cambises.
Esse estado se lhe agravou ao chegarem às terras do Egipto.
À vista da cidade de Mênfis, seu coração passou a sofrer tremendo abalo, batendo descompassado;
emoção intensa a envolveu, agitando-lhe as fibras mais profundas, enquanto uma saudade doida constringia-lhe o peito.
Na ocasião em que os persas entraram em Mênfis com todo o aparato de um exército vitorioso, ela também desfilava, entre as mulheres, os cavalos, os camelos, os elefantes, as carroças, os carros de combate e tudo o mais que fazia parte da tropa vencedora.
Nesse momento, Neila experimentava uma gama enorme de sensações que não conseguia entender.
Desse dia em diante, as coisas pioraram.
Notando seu estado, Ratan - que não a perdia de vista e que até já suplicara ao faraó que se livrasse dela, se não quisesse ter problemas futuros -, com objectivo de saber até onde ela sabia sobre o passado, pretendendo conhecer-lhe as reacções, mandou um recado por Malec, dizendo que viria buscá-la para um passeio.
Ao ser questionado pelo guarda real quanto à conveniência de tal convite, visto que a cativa não tinha permissão para sair de seus aposentos, Ratan informou que o próprio faraó permitira que ele, Ratan, a levasse para conhecer a cidade.
Intrigada, a prisioneira questionou Malec:
- O que achas disso?
O que pretende comigo essa criatura asquerosa?
- Ignoro. Disse-me apenas que deseja levar-te para um passeio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 02, 2020 7:33 pm

- Devo aceitar?
- Creio que não tens escolha, até porque Ratan é muito ligado ao nosso soberano e agiu, segundo informou, por ordem de Cambises.
Quem sabe é o faraó que deseja encontrar-se contigo em outro lugar?
- Tens razão. Irei.
Além disso, morro de vontade de conhecer a grande capital.
- Muito bem.
Vou avisá-lo de que estarás esperando.
Malec mostrou intenção de sair, e Neila fez cara de tristeza.
- Mal chegaste e já te vais?
Por que não ficas mais um pouco para conversarmos?
Sabes como sou solitária e preciso de companhia.
Poderás fazer a refeição comigo...
Malec olhou-a enigmático.
Percebia-se que dentro dele travava-se uma luta entre o desejo de ficar e atender àquele apelo tão sedutor, e afastar-se.
Logo seu rosto suavizou-se e a voz soou terna ao desculpar-se:
- Infelizmente, não posso.
Tenho deveres urgentes a cumprir.
Sabes também, Neila, que não podemos ficar muito tempo juntos.
As escravas e o eunuco podem nos denunciar.
- Não me importo. Sinto falta da tua presença, Malec.
Durante estes anos de convívio, afeiçoei-me a ti e não suporto mais esta situação.
Depois, baixando a voz, quase num sussurro, ela colocou a mão no braço dele e suplicou docemente:
- Por que não me ajudas?
Sei que também me amas...
O guarda sentiu o coração disparar.
Sim, ele se enamorara daquela mulher, mas sua ligação com ela era impossível.
Se o rei soubesse, seriam considerados traidores e condenados à morte.
O semblante de Malec espelhava o que lhe estava na alma, e Neila sorriu para ele, orgulhosa e satisfeita.
Malec era um belo rapaz, de feições tipicamente persas, alto, elegante e ainda jovem;
seus cabelos ondulados e pretos caíam até à altura do pescoço, e uma barba bem aparada cobria-lhe o queixo;
os olhos negros e profundos, sombreados por longas pestanas, eram melancólicos, o que lhe acrescentava certo encanto.
O guarda real, evitando comprometer-se, permaneceu calado;
apenas estendeu a mão longa e forte, e tomando a mão dela na sua, depositou um discreto e ardoroso beijo.
Em seguida, saiu.
Neila deixou-se cair num banco de mármore, levando a mão que ele beijara à boca, enquanto um sorriso de orgulhosa satisfação abria-se em seu rosto.
Sim, finalmente conseguira conquistar o atraente oficial!
Quebrara-lhe a postura de reles carcereiro, frio e incapaz de sentimentos.
Agora, ela o tinha na palma da mão, e ele faria qualquer coisa por ela, tinha certeza.
Nesse momento, uma das escravas, Asnah, entrou no terraço e ajoelhou-se a seus pés.
- Pareces muito feliz, Neila.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 02, 2020 7:33 pm

- Ah, minha querida Asnah!
É verdade; estou muito contente.
- Dar-se-á o caso de teres conseguido convencer Malec a...
- Não, minha cara. Ainda não.
Mas acredito não estar longe deste dia.
A jovenzinha de rosto moreno, belos cabelos lisos, longos e pretos, quase adolescente, mostrou os olhos húmidos.
- Rezo todos os dias aos deuses para que consigas a liberdade, Neila.
- Eu sei, minha querida Asnah.
Quando isso acontecer, levar-te-ei comigo.
Ambas seremos livres!
Nesse dia, que Neila caminhava de um lado para outro do terraço, local de sua preferência, estava tensa e preocupada, aguardando a chegada de alguém.
Nervosa, desfolhava sem piedade as lindas flores que caíam em suas mãos.
Nisso, ouve um rumor na entrada de seus aposentos e vira-se justamente a tempo de ver Malec entrar no terraço.
Ele cumprimentou-a como de hábito e anunciou:
- Ratan nos aguarda num portãozinho discreto do palácio.
Asnah colocou um manto sobre os ombros de Neila e eles deixaram os aposentos, ganhando o corredor.
Andando apressados, atravessaram salas e galerias até sair por uma porta que dava para um grande pátio que atravessaram, chegando a um sombreado jardim, no final do qual Malec abriu um pequeno portão.
Caminharam ainda por mais algum tempo por entre construções, que provavelmente seriam destinadas aos servos, e entraram num outro terreno ajardinado, em cujo fundo, escondido entre arbustos, havia outro portão.
Malec pegou seu chaveiro e, escolhendo uma das chaves, abriu-o.
Com infinito prazer, Neila viu-se fora do palácio;
parecia-lhe que o sol e o ar ali eram diferentes.
Ratan os aguardava, numa liteira transportada por seis escravos.
- Acomoda-te, Neila.
Cambises deu-me a permissão de levar-te a conhecer a nossa capital, adivinhando teus desejos mais íntimos.
- Agradeço-te, Ratan.
Realmente, Mênfis sempre me atraiu e era grande a vontade de conhecê-la, de vê-la de perto.
Acomodados na liteira, Ratan não cabia em si de contente.
Andaram pela cidade e o anão ia mostrando o que ela tinha de mais interessante.
Os monumentos, os templos, os jardins, os bairros nobres com seus palácios deslumbrantes, as margens do Nilo repletas de trabalhadores, o porto onde uma infinidade de embarcações grandes e pequenas estava ancorada ou de passagem.
A jovem mostrava-se encantada, e Ratan não a perdia de vista, observando-a discretamente.
Até que, certo momento, o anão comentou:
- Mênfis é uma cidade muito antiga.
Existem ruínas que vale a pena visitar.
Os olhos da moça brilharam de entusiasmo:
- É mesmo?
Gostaria muito de vê-las!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 02, 2020 7:34 pm

- Se te apraz, nobre Neila...
Ratan deu as ordens aos condutores e eles tomaram o rumo que ele determinou.
O trajecto era longo;
o sítio a que Ratan se referira ficava na saída da cidade, em certo bairro pobre, às margens do rio Nilo.
Após algum tempo de caminhada, pelas cortinas abertas, Neila viu as ruínas ao longe.
Sem saber por que, seu coração bateu mais forte, apressado, enquanto uma angústia intensa, uma ânsia de chegar, se lhe assenhoreava do íntimo.
Em alguns minutos, a condução parou em meio a uma densa vegetação.
Desceram; o anão ordenou aos escravos núbios aguardassem naquele local.
Exaustos, eles sentaram-se no chão.
Neila olhou em torno;
andando a esmo, acabou encontrando o que seriam os vestígios de um pequeno caminho, pelas pedras que ainda existiam nas laterais marcando o trajecto.
Resolveu andar por ele, visto que, se existia um caminho, certamente os levaria a algum lugar.
Ratan e Malec a seguiam a pouca distância, deixando-a livre para dar vazão ao entusiasmo de conhecer aquele sítio.
Percorrendo a vereda, Neila caminhou fazendo voltas em meio às árvores, encontrando pedras maiores que pareciam ter pertencido a bancos, o que fez com que julgasse que ali, provavelmente, teria sido um grande e belo jardim.
A ânsia de conhecer cada vez mais, fez com que começasse a andar mais depressa, cada vez mais depressa, seguida por seus acompanhantes.
Malec não entendia muito bem, achando graça em tudo, porém Ratan notava que a jovem estaria sentindo o ambiente daquele lugar, as vibrações existentes no ar de um passado remoto que se eternizaram, permanecendo perceptíveis às pessoas sensíveis ou àquelas que participaram dos fatos ali ocorridos.
Caminhando sempre, Neila acabou por chegar a um lugar em que a vegetação se tornava menos densa e se abria uma clareira.
Ao mesmo tempo, viu grandes e extensas ruínas, que provavelmente teriam sido de um grande palácio.
Subiu alguns degraus ainda existentes, e caminhou por um extenso terraço.
Uma imensa porta conduzia ao interior, e, embora estivesse tudo destruído e empoeirado pelo tempo, notou que a construção deveria ter sido luxuosa e bela, pelos vestígios de vasos imensos, quebrados, pelas paredes onde se viam restos de pinturas primorosas retratando aspectos da vida dos egípcios, como caçadas, cenas de amor, vida em família e muito mais.
Caminhando pelo grande palácio, Neila percorreu corredores, ou o que restava deles, com portas que levavam a uma infinidade de aposentos, e começou a sentir-se muito mal.
Subtilmente, um odor singular de perfume passou a envolvê-la;
brando a princípio, tornando-se aos poucos cada vez mais forte, mais insinuante.
Com isso, notou que crescia em seu peito uma dolorosa impressão de sufocação, como se ela fosse perder a respiração, ao mesmo tempo em que uma sensação de medo, de pavor, foi aumentando gradualmente até que, sem suportar mais, ela rodou nos calcanhares e saiu correndo para fora daquele lugar.
Malec, preocupado com ela, correu em seu socorro gritando:
- Neila! Neila!
O que está acontecendo? Espera-me!
Mas ela não conseguia ouvi-lo.
Apenas desejava fugir daquele lugar terrível.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 02, 2020 7:34 pm

Apavorada, retornou pela vereda, agora em sentido diferente àquele que tinha tomado ao chegar, com a sensação de que um grande perigo a ameaçava, sem dar-se conta de que já ultrapassara o ponto perto de onde permaneciam os escravos núbios e a liteira.
Corria como se estivesse sendo perseguida e precisasse salvar-se a qualquer custo.
De repente, apavorada, deu-se conta de que estava perdida.
Sem saber para onde ir, olhou em torno e viu que estava perto de um pequeno lago, cercado pela vegetação.
O lugar lhe deu arrepios.
Correu por alguns minutos, assustada, e parou para examinar onde estava, e, em meio à vegetação, vislumbrou as ruínas do que seria, provavelmente, um templo.
Era uma pirâmide parcialmente destruída pelo tempo, e, no seu interior, grandes pedras formavam uma imensa figura, de aspecto horroroso, que deveria ser uma divindade uma escada, também parcialmente destruída, conduzia até os joelhos daquele deus;
entre seus braços, notou uma abertura escura e assustadora.
Naquele instante, sentiu-se mergulhar num vazio, como se um redemoinho a envolvesse tirando-lhe a consciência.
Era noite e tudo estava escuro.
Começou a ouvir uma música, suave a princípio e que aos poucos foi aumentando de intensidade.
De súbito, notou que o lugar ganhara vida;
à luz dos archotes, viu no lago, agora bem maior, entregues a uma paixão avassaladora, casais a afogarem-se, incapazes de vencer as sensações que os acorrentavam às águas escuras e de fazer algo para se salvar.
Depois, como se tivesse mudado o cenário, conquanto o lugar fosse o mesmo, viu uma procissão composta por jovens, que se aproximou ao som de uma música alucinante tocada por escravos.
Neila viu que uma das jovens, escolhida dentre todas, foi erguida até os braços do deus, de onde saiam labaredas, que engoliram a vítima.
Mas uma outra cena prostrou-a, perplexa.
Sob grande desespero, Neila viu-se ser colocada nos braços do deus, dentro da fornalha onde o fogo crepitava.
Com grito estertoroso, rodou sobre si mesma, levando as mãos à cabeça, e desabou pesadamente no solo.
Malec e Ratan, que tentavam alcançá-la, assustados, correram para socorrê-la, sem saber o que acontecia.
- Neila! O que houve?!... - gritou Malec, aflito.
- Vamos levá-la para fora daqui.
Este lugar parece agir negativamente sobre ela - afirmou Ratan, convicto.
Com Neila nos braços, Malec apressou-se a retornar ao lugar onde tinham deixado os escravos.
Lá chegando, acomodou a jovem na liteira, e, após ambos tomarem assento, ordenou aos núbios:
- Para o palácio real! Rápido!
Malec, preocupado, manteve silêncio.
Ratan, conquanto procurasse demonstrar apreensão ante o mal estar de Neila, estava satisfeito.
Havia conseguido seu objectivo, e era isso o que importava.
Sim, Neila fora envolvida pelas ondas do passado que permaneciam naquele lugar.
Sabia que ela tinha sensibilidade para perceber as almas dos mortos e demonstrara cabalmente essa predisposição.
Depois, num outro momento, com calma, procuraria saber o que ela tinha sentido, visto e ouvido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 02, 2020 7:34 pm

Descansados, os escravos aceleraram o passo e, em pouco tempo, chegaram ao palácio.
Entrando pelo mesmo portãozinho, levaram a jovem aos seus aposentos.
Neila continuava inconsciente.
Malec apertava as mãos, nervoso.
O Imperador havia-lhe conferido total responsabilidade sobre a jovem.
E agora, o que fazer?
Como se justificar perante Cambises, que era severo e cruel para os que não cumpriam suas ordens?
Vendo-o cabisbaixo e inquieto, a fitar Neila estendida no leito, enquanto Asnah a cobria com uma manta, Ratan disse contrito:
- Sei que estás preocupado e com razão, meu bom Malec.
Não te aflijas, porém.
A ideia de levar Neila para um passeio foi minha e responderei por ela perante nosso soberano.
Acalma-te. Fica tranquilo que logo a jovem voltará a si.
Tu me conheces de longo tempo e sabes que sou versado em plantas curativas.
Vou colocar na boca de Neila um remédio, preparado com uma erva, que trago sempre comigo, em minha bolsa, para qualquer eventualidade.
Malec, que estava sentado num tamborete, levantou a cabeça fitando o anão, com olhos inquisidores:
- Sabes o que ela tem?
- Digamos que não é nada grave.
Vi acontecer outras vezes, e podes ficar tranquilo que ela logo estará bem.
Voltará a si, mas sentindo-se cansada, tornará a dormir até amanhã, sem problemas.
Levantando-se, Malec parecia mais animado.
- Muito bem.
Se o que dizes é verdade, podes dar-lhe o remédio.
Vou esperar até amanhã para relatar ao Imperador o ocorrido.
Mas, toma cuidado!
Se Neila não apresentar melhoras, serás responsabilizado por isso.
Ratan inclinou-se, concordando.
Retirou da sacola, que sempre trazia a tiracolo, um pequeno vidro, e, aproximando-se do leito, entreabriu os lábios da jovem e deu-lhe a ingerir algumas gotas.
Esperaram com ansiedade, observando a moça estendida no leito.
Após alguns minutos, Neila começou a dar sinais de estar voltando a si, o que os deixou mais esperançosos.
Logo, ela agitou-se, e, abrindo levemente as pálpebras, olhou em torno;
pareceu, num primeiro momento, não reconhecer seus aposentos.
Depois, viu Malec e Ratan debruçados sobre ela.
Com os olhos arregalados de susto, de repente Neila ergueu-se no leito, tentando fugir.
- Deixa-me! Deixa-me!
Socorro! Quero ir embora!
Foi preciso que ambos usassem de força para contê-la.
Ratan disse, calmo:
- Neila, fica tranquila. Está tudo bem.
Olha em torno: estes são teus aposentos.
Estás em segurança no palácio real.
Ouvindo-o, ela pareceu acalmar-se um pouco.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 02, 2020 7:35 pm

Depois, perguntou:
- Onde estão todos eles?
Malec, que observava calado, retrucou:
- Que "eles"? A quem te referes?
Não vimos ninguém!
Ratan sorriu levemente, sabendo que não adiantaria contar ao guarda o que havia acontecido, e explicou:
- Não há ninguém aqui, Neila.
Fica tranquila. Estás cansada.
Procura dormir um pouco; velaremos pelo teu sono.
- Não permitas que "eles" se aproximem de mim!
- Não. Podes ficar descansada.
Agora, repousa.
Neila fechou os olhos e logo adormeceu profundamente.
Asnah puxou as cortinas e o quarto ficou em penumbra.
Deixamos os aposentos, recomendando à escrava que deveria nos avisar assim que Neila acordasse, ou em caso de necessidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 02, 2020 7:35 pm

31 - Fazendo acordos
Deixando os aposentos de Neila, Malec e o anão buscaram um recanto discreto no palácio, encaminhando-se para um jardim pouco utilizado.
Acomodados num banco, Ratan preparou-se para as explicações que seu companheiro exigiria dele.
Malec mantinha-se curioso e intrigado.
- Ratan, sabes o que aconteceu naquelas ruínas para que Neila ficasse naquele estranho estado?
O anão buscava mentalmente explicações para dar ao oficial.
Certamente não poderia dizer-lhe tudo o que sabia, porque ele não entenderia.
Então, escolhendo bem as palavras, principiou lentamente a justificar-se:
- Meu caro Malec!
Existem factos que talvez ignores e, por isso, não é fácil dar-te as explicações que me pedes.
- Não te preocupes com isso.
Algo me diz que sabes muito mais sobre esse assunto do que gostarias de admitir, e julgo até que não levaste Neila até àquele sítio por acaso.
Portanto, exijo que fales.
Ratan pensou um pouco, admirando-se da acuidade daquele homem que julgara um ignorante, e, com os olhos fitando o vazio, começou a falar procurando dosar a verdade:
- Louvo tua percepção, caro Malec.
Como sabes, aquelas ruínas pertencem a um passado remoto.
Existe uma teoria, segundo a qual se acredita que tudo o que já aconteceu no pretérito, o que acontece hoje e o que acontecerá amanhã ficará gravado no espaço - não se sabe por qual processo - de tal maneira que poderá ser percebido por pessoas dotadas de condições especiais, como as sacerdotisas.
- Supondo-se que isso seja verdade, essas pessoas especiais poderão ver ou sentir o que ocorreu à época?
- Sim. Elas vislumbram o que sucedeu naquele lugar.
- Ah! Então, julgas que Neila seja uma dessas pessoas?
Que ela tenha visto cenas do passado, e por isso se apavorou?
- Sim, é o que penso.
Muitas vezes são cenas terríveis e que causam abalo para quem as vê.
Malec mantinha os olhos fixos em Ratan, reflectindo em tudo o que dele ouviu.
Depois, indagou:
- Também podes ver essas imagens do pretérito?
Sabes o que Neila viu hoje naquele sítio?
- Não. Sei, pela sua reacção, que ela percebeu cenas de factos que ocorreram ali há muito tempo, mas não posso dizer exactamente o que ela viu.
Quando Neila estiver mais tranquila, pretendo conversar com ela e me informar.
Pensativo, Malec tornou:
- A crença na metempsicose faz parte da religião egípcia, e muitos persas também acreditam nas vidas sucessivas, conquanto eu, particularmente, não seja favorável a esse modo de pensar.
No entanto, supondo-se que realmente possamos viver muitas vidas, pode acontecer de Neila ter vívido à época em que os fatos ocorreram nas ruínas e ter-se impressionado com isso?
Isto é, ter-se lembrado de acontecimentos dos quais tenha participado?
Ratan ficou perplexo diante da acuidade mental daquele homem que ele julgara um néscio.
- É possível.
Mas não adianta ficarmos conjecturando sobre coisas que desconhecemos.
Somente após conversar com Neila, poderei ajuizar melhor o que aconteceu hoje.
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 7 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 02, 2020 7:35 pm

Asseguro-te, porém, que não houve intenção de minha parte ao levá-la àquele local, a não ser de mostrar-lhe um lugar interessante.
Em seguida, alegando assuntos urgentes a tratar, o anão despediu-se de Malec e voltou para o interior do palácio.
O diálogo com o guarda tinha sido preocupante, segundo considerava ele.
Não desejava que o oficial tivesse conhecimento de certos factos que julgava conveniente permanecerem ocultos ao vulgo.
Na manhã seguinte, Asnah mandou avisar Ratan que a cativa havia acordado.
Malec, responsável pela jovem, às primeiras horas da manhã já se fazia presente em seus aposentos para aguardar-lhe o despertar.
Soube, pela escrava, que ela dormira a noite toda.
Assim, quando isso aconteceu, ele já estava ao lado dela.
Sorriu aliviado ao vê-la abrir os olhos.
- Como te sentes?
- Estou bem.
Chegaste cedo hoje! - ela respondeu, espreguiçando-se, surpresa ao vê-lo.
- Queria ver teu despertar.
- Ah! Não imaginas o bem que isso me faz.
Estou com fome. Aceitas partilhar a refeição comigo?
- Não sei se devo.
Confesso, porém, que também estou faminto!
Na pressa de estar contigo, nada comi.
A escrava trouxe uma bandeja contendo pães, biscoitos, frutas e uma espécie de chá, preparado com ervas.
Estavam entretidos a conversar quando Ratan foi introduzido.
O anão cumprimentou-os e acomodou-se num tamborete, dizendo alegre:
- Vejo que estás bem, cara Neila.
- Por que não estaria?
Apesar de ter tido pesadelos à noite, acordei bem.
Malec despediu-se, constrangido por ter sido pego em atitude mais íntima com a prisioneira, alegando providências urgentes a tomar e dizendo-se mais tranquilo por ver Neila em seu estado normal.
Ficando a sós com a jovem, delicadamente o anão começou fazer-lhe perguntas sobre os acontecimentos do dia anterior.
- Não quero falar sobre isso - ela respondeu categórica.
Pela dificuldade que ela demonstrava em tocar no assunto, percebeu Ratan que Neila realmente tinha presenciado as cenas, tal qual ele.
Teria ela noção da participação dele próprio nos factos de outrora?
- Está bem. Falemos de outros assuntos.
Disseste ter tido pesadelos esta noite.
O que sonhaste? - voltou ele à carga.
- São coisas que só dizem respeito à minha pessoa.
Ratan fez ainda mais duas ou três perguntas, mas Neila continuava irredutível e calada.
Então o anão levantou-se, dispondo-se a sair, certo de que não era o melhor momento para conversar com ela.
Antes de deixar o aposento, olhou-a fixamente e afirmou, escolhendo bem as palavras:
- Cara Neila.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 03, 2020 8:23 pm

Não obstante te recusares a dividir comigo tuas angústias, sou a única criatura que pode te ajudar.
Sei perfeitamente o que viste e estou consciente de tudo o que aconteceu naquele palácio.
Quando quiseres falar comigo, manda chamar-me e eu virei em seguida.
A jovem sentiu um arrepio percorrer-lhe todo o corpo ao ouvir-lhe a voz sibilante.
Ergueu o olhar, onde se via medo e insegurança, que não passaram despercebidos do anão.
Com uma careta, que pretendia fosse um sorriso escarninho, ele foi embora, deixando-a apavorada.
Asnah, que entrara no aposento, acercou-se dela, preocupada:
- O que te aflige, minha amiga?
Estás toda trémula!
O que te disse esse ser repulsivo para te deixar neste estado?
A prisioneira, contudo, nada respondeu, deixando-se cair deitada no leito, encolhida, com os olhos arregalados e fixos num ponto qualquer.
Não conseguindo resposta para seus questionamentos, Asnah cobriu-a com uma manta e afastou-se para um canto do quarto, onde permaneceu acocorada numa esteira.
Em dúvida se deveria comunicar Malec, resolveu aguardar um pouco, na expectativa de melhoras do estado de Neila.
Em posição fetal, a jovem prisioneira experimentava grande tempestade íntima.
As cenas que presenciara no dia anterior, quando da infeliz visita às ruínas, mexeram com ela de uma forma que não conseguiria dimensionar.
O local, os restos do imenso jardim, do luxuoso palácio que tanto pavor lhe causara, a cerimónia naquele lago escuro, a imagem apavorante no templo e daquela divindade que ela não conhecia...
Todas essas coisas lhe pareceram extremamente familiares.
Então, como se num caleidoscópio, cenas ocorridas naquele lugar começaram a ganhar vida, desfilando pela sua tela mental.
Revia o grande e belo jardim, um pouco assustador; via-se sentada num daqueles bancos, com o pensamento preso a um homem atraente e sedutor, que lhe fazia vibrar as fibras mais profundas.
Ao lembrar-se dele, revia-o entregando-lhe uma bela rosa vermelha, cujo odor a inebriava e lhe despertava os sentidos, fazendo com que o amasse com ardente e avassaladora paixão, ansiando pela sua presença.
Revia cenas em que se via dentro daquele palácio esplendoroso, participando da vida daquele homem alto, elegante, de tez clara e olhos brilhantes, magnéticos e, ao mesmo tempo, frios e indiferentes.
Lembrava-se também que, ao saber-se preterida, tomara-se de grande ódio por ele, e, escapando daquele lugar de horrores, tudo fez para destruí-lo.
O mais interessante, e o que a enchia de verdadeiro temor, em que conseguira identificá-lo com o seu algoz de hoje, aquele que novamente a aprisionara, por quem se sentira atraída desde a primeira vez que o vira, naquele calabouço, embora não admitisse tal coisa nem para si mesma; aquele a quem odiara, mas por quem, através dos anos apaixonara-se, e que, novamente, a preterira por outra mulher.
As lágrimas rolavam de seus olhos na penumbra do ambiente.
Durante aquele tempo, sentira-se muitas vezes envolver pelo ciúme das esposas e concubinas, julgando-as suas rivais, porém sabia que ele não tinha interesse especial por nenhuma delas.
Mas agora era diferente.
Cambises amava realmente aquela mulher, Aisha, estava noivo dela e se casariam em breve.
Todos os preparativos estavam sendo feitos.
Ele, o faraó, amava Aisha e demonstrava seu amor por ela, enquanto relegava Neila ao mais cruel esquecimento.
Não, novamente não.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 03, 2020 8:23 pm

Não permitiria ser desprezada, pisoteada, humilhada por alguém que antes dizia amá-la e agora a atraiçoava da maneira mais sórdida.
- Maldito Cambises! Mil vezes maldito!
Que os deuses te façam apodrecer em vida, que percas tudo o que conquistaste!
Que morras no pó, suplicando uma gota de água para aplacar tua sede, e que, mesmo essa, te seja negada!
Eu era livre, infame, e sem respeito algum me retiraste da minha casa humilde, da convivência com meu querido pai, arrastando-me para esta prisão dourada.
Sê maldito pela eternidade!
Que tua alma não encontre descanso em lugar algum!"
Enquanto Neila entregava-se a esses pensamentos, que bem demonstravam a fúria da sua raiva, entidades de Além-túmulo, afinadas com esses sentimentos, aproximaram-se dela, provocando ainda maior indignação, ira, rancor por aquele que agora odiava com todas as forças do seu amor desprezado.
E esses espíritos passaram a insuflar-lhe ideias contra Cambises pelas vias da sugestão mental, aumentando-lhe a revolta contra ele.
Eram os mesmos que Cambises também percebia em suas crises, aqueles homens de línguas arrancadas, as mulheres de vestes negras e véus esvoaçantes que lhes cobriam o rosto, de cujo peito o coração lhes havia sido extirpado, e que traziam nas mãos uma rosa rubra, entre tantos outros.
Com a mente tumultuada por esses pensamentos, Neila reflectia, procurando lembrar-se de tudo.
Um outro facto a havia impressionado sobremaneira:
reconhecera em Ratan o mesmo mago que, com seus conhecimentos e poções, dava tanto poder àquele homem, a ponto de ele considerar que não morreria jamais, que teria juventude e vida eterna.
Sim, era ele mesmo, o anão!
E por esse motivo recusara-se a falar com ele.
De repente, uma sombra se aproximou e sussurrou-lhe ao ouvido, sugerindo-lhe que o anão poderia ser um aliado, uma vez que intimamente sentia inveja do poder que Cambises possuía.
Neila não escutou essas ideias com os ouvidos do corpo, mas as assimilou na acústica da alma.
- Sim! Quem sabe, aliando-se ao maldito Ratan, poderia derrubar o todo-poderoso Cambises 2, Imperador persa e faraó do Egipto?
Quem sabe se, descobrindo o ponto fraco do anão, poderia ele ser útil em sua vingança?
Aparentemente, Ratan era muito devotado ao faraó, mas quem sabe?!..."
Passou a sentir-se forte e poderosa, em virtude da presença dos desencarnados que ali estavam secundando-a em suas reflexões.
Também não poderia prescindir de Malec, que se apaixonara por ela e estava em suas mãos.
Depois de muito pensar, Neila decidiu que, para atingir Cambises, teria que começar por Aisha, de quem lhe vinham os estímulos para uma vida nova de amor e felicidade.
Ouvira Malec afirmar, até, que o soberano, de ordinário cruel e sanguinário, tornara-se um homem mais brando nas decisões, mais comedido e compreensivo com aqueles que cometiam erros, que ele, antes, não perdoava jamais.
- Pois sim!
Cambises não será feliz nunca!
Ele não merece ser feliz.
Depois de tomar essa decisão, Neila sentiu-se mais satisfeita.
Quando Malec apresentou-se mais tarde para saber do seu estado, encontrou-a tranquilamente mordiscando uma tâmara, sentada em coxins; ao vê-lo, ela lançou-lhe seu melhor e mais atraente sorriso, acompanhado de um doce olhar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 03, 2020 8:24 pm

Encantado, Malec aproximou-se dela, sentando-se também.
- Estás com óptimo aspecto, Neila.
- Sim, estou bem, Malec.
No entanto, poderia estar melhor.
Fiquei triste. Senti tua falta;
por que tardaste tanto? - perguntou, estendendo a mão delicada e oferecendo-lhe uma fruta, que lhe colocou na boca com ar sedutor.
Corando ante o gesto de intimidade, incomum em suas relações, o oficial agradeceu-lhe a gentileza com olhar febril e apaixonado.
Conversaram durante algum tempo, que ela aproveitou para pedir a certo momento:
- Malec, diz a Ratan que desejo vê-lo.
Quando ele esteve aqui, pela manhã, eu não estava em condições de falar-lhe, mas agora já estou bem.
Depois, aproveitando a ausência do eunuco, Neila disse-lhe num sussurro:
- Meu querido Malec!
Não suporto mais a vida sem ti.
Sei que também me amas.
Por que somos obrigados a sofrer assim? Não é justo!
Assustado ante o crime que estaria cometendo ao desejar uma favorita do faraó, com expressão compungida Malec considerou:
- Tenho deveres a cumprir, Neila.
Sou um oficial da guarda real do faraó. Não posso...
A cativa colocou a mão sobre seus lábios, impedindo que continuasse.
- Sei disso, Malec.
Só lamento que obedeças tão cegamente a um soberano que não te valoriza como mereces.
- O que dizes, Neila?
Sabes de algo que ignoro? - indagou ele, surpreso e inquieto.
A ardilosa criatura alegrou-se intimamente, vendo que começava a destilar veneno na relação entre Malec e seu soberano, até àquele momento indestrutível.
Então, com voz melosa ela desconversou:
- Não te preocupes com isso, Malec.
Falei sem pensar. Esquece.
- Agora exijo que fales.
O que o faraó tem contra mim?
- Bem, contra ti, nada.
Mas deixou escapar um dia, em que estava particularmente falante por causa da bebida, que não és tão competente quanto Rafiti, embora te considere fiel, e, por isso, tuas tarefas são sempre inferiores às de teu amigo Rafiti.
- Cambises afirmou isso?
Justo ele, a quem devotei toda a minha vida e por quem tenho guardado lealdade há tantos anos...
Aproximando-se mais dele, Neila procurou desanuviar o ambiente, insistindo:
- Esquece, Malec.
Lembra-te de mim que te amo.
Peço-te apenas alguns minutos de entrevista sem testemunhas.
Ouve-me. Ao anoitecer, colocarei um sonífero na bebida do eunuco;
em poucos minutos ele estará dormindo a sono solto.
Esperar-te-ei em meu quarto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 03, 2020 8:24 pm

Asnah é fiel e nada dirá a ninguém.
Fica tranquilo. Vem, meu querido!
Neila disse estas palavras ao mesmo tempo em que passava a mão suave pelo rosto dele e o braço roliço roçava-lhe o pescoço.
Malec levantou-se abrasado, e saiu quase a correr.
Ela sorriu, satisfeita com o resultado da sua investida. Vencera.
Agora, precisava apenas cuidar que o eunuco realmente estivesse adormecido quando Malec chegasse.
Meia hora depois Ratan apareceu, eufórico por ter sido chamado por Neila.
Ela o esperava, ansiosa.
- Peço-te desculpas da maneira como agi hoje pela manhã.
Confesso-te que, quando me visitaste, não queria conversar sobre aquele assunto.
Mas agora é diferente, Ratan.
O que desejas saber?
Com os olhinhos de ofídio apertados, ele procurou entender o que ela realmente desejava dele.
Então, começou colocando as cartas na mesa:
- Neila, sei o que viste naquelas ruínas.
Nada me passou despercebido.
- E Malec?
- Teu guarda ignora tudo.
- Por que eu pude ver aquelas cenas que ocorreram há tanto tempo?
- Porque és uma pessoa com dom especial.
Consegues ver e sentir o que se passa no além-túmulo e para a maioria das pessoas, é indevassável.
- Ou é porque eu vivi lá e participei daqueles factos?
- Ambas as coisas.
A verdade é que esse é um dom especial que te foi concedido pelos deuses.
Neila ficou calada durante alguns segundos, pensativa.
Depois, prosseguiu, tentando observar-lhe a reacção:
- Percebi outras coisas. Inclusive que foste aquele mago, mestre e quase um pai para aquele homem.
- Ah!... Então sabes também porque sou tão ligado a Cambises.
- Sei. Todavia, estive pensando, Ratan.
Creio que não estás satisfeito com a presença de Aisha na vida do nosso soberano.
Ele se deixa levar por ela;
virou um boneco em suas mãos;
escuta-a, pede-lhe conselhos, faz tudo o que ela quer.
Pelo menos é isso o que se comenta na corte.
E isso, evidentemente, diminui a tua influência sobre ele, ou estou enganada?
- Não. Prossegue.
Neila levantou-se e começou a caminhar pelo terraço, local onde estavam conversando, por ser mais preservado de olhos e de ouvidos indiscretos.
- Ratan, confesso-te que amo Cambises acima de tudo.
Apesar de ser sua prisioneira, sei que esse sentimento é antigo, o que me foi confirmado pelas imagens que pude ver nas ruínas daquela propriedade.
Pois bem, não me conformo em perder seu amor para uma mulher qualquer.
Desejo acabar com ela.
E creio que queres o mesmo. Certo?
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 03, 2020 8:24 pm

O anão fez um gesto com a cabeça, concordando, e ela tornou, animada:
- Então, por que não unir nossas forças num mesmo objectivo?
Ratan observava aquela mulher que agora mostrava personalidade firme, orgulho, altivez e vontade para agir, não se detendo diante de nada.
- Neila, sabes a que te expões?
Se Cambises descobrir, serás condenada à morte.
- Não me importa.
Se perder o amor dele, nada mais me importa.
Mas não te esqueças que tua situação será igualmente ruim;
também terás tua cabeça a prémio, se ele descobrir.
- Quanto a mim, sei como me defender.
Estou muito bem escudado.
Bem, podemos fechar um acordo de auxílio mútuo.
Tu me ajudarás e eu te ajudarei a conseguir o que desejas.
Temos que estabelecer um plano de acção.
- Que não pode demorar muito.
O tempo urge - disse Neila preocupada.
- Não ignoro esse facto.
Vou reflectir bem sobre o assunto, quando tiver decidido o que fazer, te comunico.
Ficará mais fácil se pudermos contar com Malec.
- Por ele eu respondo.
Fará o que eu quiser.
- Então, até breve.
O anão saiu e Neila não continha a alegria.
Tudo caminhava bem.
Muito melhor do que poderia esperar.
O resto da tarde passou preparando-se para o encontro com Malec, à noite.
Ao anoitecer, mandou Asnah levar até o eunuco - que ficava na antecâmara, vigiando as pessoas que entravam - um copo com bebida feita com cevada, um tipo de bebida muito comum à época.
O eunuco aceitou agradecido.
Fazia bastante calor e a bebida refrescante vinha a calhar; não esperou nem mesmo a escrava afastar-se para tomar todo o conteúdo do copo.
Um quarto de hora depois, dormia profundamente, escarrapachado no piso.
Pouco depois, Malec chegou, ficando aliviado ao ver o eunuco adormecido na antecâmara.
Asnah introduziu-o no quarto de Neila, que o aguardava ansiosamente.
Ao vê-lo levantar o reposteiro, ela deu alguns passos em direcção a ele, que fez o mesmo.
Malec abraçou-a com paixão e era como se o tempo houvesse parado e só eles existissem no mundo.
Lá fora, a lua se erguia no firmamento, envolvendo toda a cidade com sua luz prateada.
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