LUZ ESPÍRITA
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 6 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 28, 2020 8:13 pm

Acredita nisso.
Olhando para a porta, por onde acabara de sair Roxana, como morta, sem apresentar reacção, balancei a cabeça.
- Agora pouco importa.
Roxana está morta e, com ela, meu filho.
Percebi o espanto no semblante de meu conselheiro e, em seguida, a expressão de piedade estampada em sua face.
Todos ignoravam a gravidez de Roxana.
Eu mesmo, só ficara sabendo pouco antes.
Tentando conter a emoção, Creso disse:
- Lamento, meu senhor.
Todavia, o médico a está examinando e nos trará notícias.
Aguardemos. Melhor descansares um pouco.
Deita-te. Estás nervoso e desequilibrado.
Chamarei um médico real para atender-te.
Aceitei sua sugestão.
Não desejava pensar mais.
Deitei-me e fiquei quieto no leito.
O médico chegou, examinou-me, ministrou algumas gotas calmantes e mergulhei no sono.
Nos aposentos de minha esposa, o médico lutava para conter o fluxo de sangue, sem resultado.
Permaneceu ao lado dela, procurando socorrê-la.
Logo, porém, Roxana entrou em estado de inconsciência e, pouco tempo depois, faleceu.
Aquele momento de loucura custou-me a vida do filho que iria nascer, e que seria meu herdeiro.
Ao mesmo tempo, perdi a esposa e o filho.
Ao receber a notícia, fechei-me em meus aposentos, alucinado, sem querer ver ninguém.
Gritei e chorei de dor e de ódio.
Num acesso de loucura, quebrei tudo o que estava ao meu alcance.
Não saberia dizer o que aconteceu comigo naquela hora.
A confusão mental era tamanha que passei a desconhecer o local onde me encontrava.
Ao mesmo tempo, ouvia perto de mim risos satânicos;
o ambiente parecia-me repleto de sombras ameaçadoras que se divertiam com meu sofrimento, e ai, o pior aconteceu.
Passei a ver os seres que me cercavam:
semblantes horripilantes que me acusavam; outros gargalhavam, satisfeitos com minha situação.
Dizia-me irónica uma delas, aproximando-se de mim:
- Agora estás em nossas mãos e não nos escaparás!
- Fomos nós, maldito, que te trouxemos aqui, onde tantos males tu plantaste.
Agora, não escaparás à nossa vingança.
Aqui, nesta terra, onde nos espezinhaste, nos escravizaste aos teus interesses, nos destruíste a honra e a vida receberás o retorno por tudo o que fizeste.
Tu e aquele teu real mestre infeliz e demoníaco, causador de tantos males - afirmava outra.
Acuado num canto do aposento, acocorado sobre o tapete, eu tremia de pavor, enquanto um suor gelado me envolvia dos pés à cabeça; cada pêlo do meu corpo estava eriçado.
O médico entrou no aposento e viu-me o estado de desequilíbrio.
Imediatamente chamou meu criado de quarto e puseram-me no leito.
Aplicou-me medicação calmante, e, em poucos minutos, cai em sono profundo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 28, 2020 8:13 pm

Ao acordar, fui informado de que o corpo de Roxana seria submetido às cerimónias fúnebres, e depois, embalsamado, como de uso pelos egípcios.
Não quis vê-la.
Ninguém me perguntou o que acontecera, ninguém tocou no assunto.
Eu sabia que comentavam a morte de Roxana e de meu filho pelos corredores do palácio, mas ignorei o fato.
Após a morte de minha esposa a vida continuou seu curso.
Cada vez mais eu demonstrava o estado de insanidade que se apossara de mim.
Muitas vezes, mais consciente, eu lamentava os actos que praticava, lembrando-me com carinho de minha mãe, que sempre me amou, de Ciro, meu pai, e de Aziz, morto havia anos, cuja personalidade marcante e sábia me era tão importante, mantendo-me equilibrado.
Sentia-me praticamente sozinho, sem escoras e sem direcção.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 28, 2020 8:13 pm

24 - Aisha
A vida no Egipto não me foi muito favorável.
Meu estado de saúde mental piorava cada vez mais, levando-me a cometer as maiores insânias, os maiores crimes, as maiores atrocidades.
Os egípcios, que a princípio me tinha recebido bem, logo perderam suas esperanças ao verificar que minha personalidade era diferente da de Ciro.
Assustados, puderam comprovar meu temperamento irascível, vingativo e sujeito às variações de humor, além de uma ambição desmedida.
As riquezas do país me seduziram.
Ratan informara-me sobre a existência de tesouros de valor incalculável nos templos e nos túmulos.
Assim, passei a sonhar em descobrir esses tesouros.
Cheio de volúpia, via-me coberto de riquezas, e não conseguia pensar em outra coisa.
Desse modo, comecei a agir com o fim de atingir meus objectivos.
A sanidade, porém, fugia-me cada vez mais.
Por outro lado, a ânsia de domínio, de conquistas, entrara-me no sangue.
Tendo conquistado o Egipto, desejava agora conquistar toda a África.
Para atingir essa meta, sonhava em submeter Cartago, localizada mais a oeste do estuário do Nilo, porto mercantil importante no Mar Mediterrâneo, e que pela posição estratégica nos seria extremamente útil, que poderia alcançar por mar ou por terra, atravessando o deserto da Líbia.
Ao sul, atacaria a Etiópia, atravessando a Núbia.
A ansiedade, porém, em atingir esses objectivos, a pressão que recebia dos nobres e dignitários egípcios, não contentes com a situação, a urgência em definir rumos de governo, tomar decisões importantes, tudo isso redundou em séria crise orgânica.
Certo dia, desabei no tapete numa crise sem precedentes, em que as convulsões se repetiam, deixando-me prostrado.
Quando acordei, com a cabeça pesada e o corpo dolorido, levei a mão à boca seca e, de imediato, mãos frescas e delicadas aproximaram de meus lábios um pedaço de linho embebido em água, refrigerando-me.
Senti um perfume leve e envolvente.
Abri os olhos e julguei estar diante de uma visão.
O belo semblante de uma jovem surgiu à minha frente.
Traços perfeitos, pele delicada, boca pequena e carnuda e os olhos castanhos mais belos que eu já vira.
Seus cabelos escuros e lisos desciam-lhe sobre os ombros e notei que não vestia o traje dos escravos.
Novamente adormeci; despertei tiritando de frio.
Ela agasalhou-me e deitou algumas gotas de uma substância amarga em meus lábios.
Voltei a dormir.
Por três dias e três noites delirei tomado de uma febre maligna; ao acordar, era atendido sempre pela jovem de mãos frescas e delicadas.
Certa manhã eu acordei mais bem disposto;
a febre tinha desaparecido.
Fiz um movimento e ela debruçou-se sobre meu leito.
Fitei-a numa interrogação muda, quando surgiu a cabeça do meu médico ao lado dela.
- Majestade, tomei a liberdade de trazer, para cuidar de ti, uma de nossas sacerdotisas, que sabe como tratar doentes.
Ela é de inteira confiança, podes ficar descansado.
Respondo por ela com a minha vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 28, 2020 8:13 pm

Voltei meu olhar para a jovem desconhecida e murmurei:
- Como te chamas?
- Aisha, meu senhor, para servir-te - respondeu, inclinando levemente a cabeça.
Eu estava encantado.
Ela era uma criança ainda, deveria ter uns quinze anos; no entanto, seu porte, suas maneiras mostravam serenidade e segurança.
Desejei sentar-me, e ela prontamente trouxe grandes almofadas para apoiar minhas costas.
Depois, ficou parada à espera de minhas ordens.
Pedi algo para comer.
Imediatamente trouxe-me uma bandeja com algumas tâmaras, uma caneca de chá e um pedaço de pão preto.
Fitei espantado com o conteúdo da bandeja e ordenei que me fosse servida uma refeição.
- Esta é a refeição mais adequada às tuas condições, majestade.
O chá foi preparado com ervas que agirão beneficamente sobre teu corpo.
Como estás fraco, deves ingerir coisas leves.
Ela respondera-me com delicada firmeza, sem mostrar medo ou servilismo, o que me agradou.
Resolvi não discutir.
Enquanto fazia minha refeição, observava seus menores gestos, discretamente.
Ao terminar, chamei-a:
- Aisha! É este teu nome, não é?
- Sim, meu senhor.
- Estou sonolento.
Dormirei mais um pouco.
Não permitas que ninguém me perturbe.
- Sim, majestade.
A sonolência é efeito do chá, que acalma e retempera as forças físicas.
Tem bom sono, meu senhor.
Ela afastou-se e fechei os olhos.
Sentia-me deslumbrado com a presença da pequena Aisha.
Quem seria ela, afinal?
Por que sua presença, seus gestos, sua maneira de caminhar me pareciam tão familiar?
E seus olhos?
Onde já teria visto aqueles lindos olhos amendoados e sedutores, de longas pestanas, e que ao mesmo tempo mostravam a tranquilidade de um céu sem nuvens ou a doce serenidade de um lago?
Pelos deuses!
Onde já a encontrara pelos caminhos da vida?
Fechei os olhos e mergulhei em sono profundo.
Sentia-me estranhamente seguro e confiante, como se estivesse protegido de todo mal.
Para minha felicidade, o primeiro rosto que vi ao acordar foi o de Aisha.
Sorri, satisfeito. Não, não era sonho.
Ela era real. Estava ali ao alcance de minhas mãos.
Desejei levantar-me e ela colocou os chinelos ao alcance de meus pés.
- Aisha, já nos conhecemos? - indaguei curioso, completando ao ver seu espanto.
É porque sinto que me és estranhamente conhecida, como se fosses alguém que tivesse privado de minha vida e que eu houvesse esquecido.
Diz-me, onde foi que nos encontramos?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 28, 2020 8:14 pm

Ela sorriu, e seus olhos sorriram também, enquanto uma fieira de dentes alvos surgia.
Diante daquele doce sorriso, fiquei ainda mais encantado. Sim! Eu a conhecia!
Parecia-me que reencontrara aquele lindo sorriso depois de longo, longo tempo.
- Os caminhos dos deuses são insondáveis, majestade.
Talvez já tenhamos nos encontrado antes, em épocas remotas.
- Como assim?
O que queres dizer com isso?
- Que não vivemos apenas uma vida, meu senhor.
Que construímos elos de amor através do tempo...
As palavras dela me lembraram as informações que eu já tinha recebido, a confirmação dos meus próprios sentimentos diante das visões que me aterrorizavam, e uma sombra de tristeza invadiu-me o coração.
- E também de ódio, de ressentimento...
- Sim, majestade. Mas dependem de cada um de nós os actos bons ou maus da vida.
Aprendi no templo que plantamos e colhemos de acordo com nossa vontade.
Naquele momento, lembrei-me de tudo o que estava acontecendo, da grave situação política que atravessava, das atrocidades que praticara, dos actos abomináveis, que, diante deles minha mãe, sempre tão boa, ficaria triste, e meu pai, Ciro, certamente recriminaria.
Perto dela, senti desejo de abrir-me e falar do que me ia dentro do peito, como se fosse alguém muito próximo e querido, a quem pudesse fazer confidências.
- Aisha, creio que tenho plantado muitas coisas más.
- Majestade, sempre é tempo de mudar, de recomeçar.
Nesse momento, os criados aproximaram-se para vestir-me, e não pudemos continuar o diálogo.
Ela afastou-se discretamente.
Meu secretário aproximou-se, informando:
- Majestade, os ministros e conselheiros aguardam para serem recebidos.
Mergulhei em um novo dia, pleno de situações difíceis para resolver, de decisões a serem tomadas, de graves assuntos de Estado para discutir.
Malec também me aguardava.
Após resolver os assuntos mais urgentes, indaguei o que desejava.
- Meu rei, ouso lembrar-te a existência de uma mulher que se mostra impaciente.
- Mulher?!... Quem é?
- Neila, meu senhor.
- Ah!... - exclamei.
Esquecera-me completamente dela.
Malec, tranquiliza-a. Assim que puder irei vê-la.
Ou melhor, diga-lhe que irei jantar com ela esta noite.
Assim que tomei essa resolução, já me arrependera.
Não tinha a menor vontade de rever Neila, que tanto me interessara antes.
Meus pensamentos agora estavam todos voltados para Aisha, minha pequena enfermeira.
Malec afastou-se para cumprir a ordem que lhe dera.
A lembrança dela me fez sorrir.
Perguntei por Aisha e ninguém soube me dar notícias.
Chamei Rafiti, que estava na antecâmara, e mandei que procurasse saber da jovem por intermédio do sacerdote-médico.
Caminhei para o jardim, detendo-me a observar as plantas e as flores.
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 6 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2020 8:05 pm

25 - Complicações políticas
Os delírios de grandeza não conheciam limites.
Ansiava tornar-me imortal.
Com esse propósito, ordenei a meus arquitectos que fizessem um projecto de um grande monumento, para servir-me de túmulo após a morte; porém,
desagradou-me sobremaneira o projecto que me apresentaram.
Achei-o feio, pequeno e insignificante, o que ofendeu meu orgulho desmedido.
Afinal, os faraós do Egipto construíam monumentos enormes, belíssimos, repletos de luxo e riqueza, para servir-lhes de sarcófago.
Eu também desejava perpetuar meu nome através do tempo, para que as futuras gerações pudessem dizer:
"Eis o túmulo de Cambises 2º, Imperador da Pérsia e faraó do Egipto!
Vede quão grande ele era!"
Assim, sentia-me profundamente irritado diante da incapacidade de meus arquitectos, e, nessa manhã em que eles me apresentavam o projecto de construção, externava-lhes meu descontentamento de maneira assaz veemente e em altos brados, enquanto eles, cabeça baixa, ouviam-me cheios de medo.
Estava no meio dessa discussão que já durava algum tempo, quando Rafiti penetrou na sala, acompanhado por meu médico.
Imediatamente esqueci o que dizia, as reclamações que fazia, e dirigi minha atenção para os recém-chegados, para alívio dos pobres construtores que ficaram livres da minha fúria.
- Ah! Eis meu médico que chega!
Aproxima-te, sacerdote.
- Majestade! Mandaste chamar-me? - cumprimentou-me ele, inclinando-se ligeiramente.
- Sim, Zeiu.
Por que razão Aisha deixou o palácio real sem meu consentimento?
Inclinando-se novamente, o sacerdote considerou:
- Majestade, a sacerdotisa Aisha foi levada de volta para o templo, onde exerce suas atribuições e tem importantes serviços a realizar.
- Porventura, seriam mais importantes do que a saúde do teu faraó? - perguntei irónico.
- Certamente que nosso faraó está acima de tudo.
Que os deuses te preservem em glória e saúde!
Todavia, majestade, estás recuperado e não mais precisas de uma enfermeira a teu lado, o que me levou a supor que poderia reconduzir Aisha para suas actividades normais no templo.
- Enganas-te, meu bom sacerdote.
De hoje em diante, requisito os serviços da sacerdotisa Aisha.
Ordeno que ela permaneça a meu serviço.
O religioso esforçava-se por conter seu descontentamento, conquanto não tenha conseguido refrear um imperceptível gesto de contrariedade.
Porém, precisava evitar que suas palavras desagradassem ao faraó.
Então, mordendo os lábios discretamente para esquivar-se de uma contenda, ele prosseguiu tentando se justificar:
- Majestade! Reconheço que permanecer ao teu lado é uma honra a que qualquer dos teus súbditos almeja.
No entanto, meu soberano, as sacerdotisas devem permanecer no templo, entregues às actividades para as quais foram treinadas... salvo em caso de emergência.
- Pois então, considera que esta é uma emergência, Zeiu. Preciso de Aisha aqui, no palácio real.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2020 8:05 pm

25 - Complicações políticas
Os delírios de grandeza não conheciam limites.
Ansiava tornar-me imortal.
Com esse propósito, ordenei a meus arquitectos que fizessem um projecto de um grande monumento, para servir-me de túmulo após a morte; porém,
desagradou-me sobremaneira o projecto que me apresentaram.
Achei-o feio, pequeno e insignificante, o que ofendeu meu orgulho desmedido.
Afinal, os faraós do Egipto construíam monumentos enormes, belíssimos, repletos de luxo e riqueza, para servir-lhes de sarcófago.
Eu também desejava perpetuar meu nome através do tempo, para que as futuras gerações pudessem dizer:
"Eis o túmulo de Cambises 2º, Imperador da Pérsia e faraó do Egipto!
Vede quão grande ele era!"
Assim, sentia-me profundamente irritado diante da incapacidade de meus arquitectos, e, nessa manhã em que eles me apresentavam o projecto de construção, externava-lhes meu descontentamento de maneira assaz veemente e em altos brados, enquanto eles, cabeça baixa, ouviam-me cheios de medo.
Estava no meio dessa discussão que já durava algum tempo, quando Rafiti penetrou na sala, acompanhado por meu médico.
Imediatamente esqueci o que dizia, as reclamações que fazia, e dirigi minha atenção para os recém-chegados, para alívio dos pobres construtores que ficaram livres da minha fúria.
- Ah! Eis meu médico que chega!
Aproxima-te, sacerdote.
- Majestade! Mandaste chamar-me? - cumprimentou-me ele, inclinando-se ligeiramente.
- Sim, Zeiu.
Por que razão Aisha deixou o palácio real sem meu consentimento?
Inclinando-se novamente, o sacerdote considerou:
- Majestade, a sacerdotisa Aisha foi levada de volta para o templo, onde exerce suas atribuições e tem importantes serviços a realizar.
- Porventura, seriam mais importantes do que a saúde do teu faraó? - perguntei irónico.
- Certamente que nosso faraó está acima de tudo.
Que os deuses te preservem em glória e saúde!
Todavia, majestade, estás recuperado e não mais precisas de uma enfermeira a teu lado, o que me levou a supor que poderia reconduzir Aisha para suas actividades normais no templo.
- Enganas-te, meu bom sacerdote.
De hoje em diante, requisito os serviços da sacerdotisa Aisha.
Ordeno que ela permaneça a meu serviço.
O religioso esforçava-se por conter seu descontentamento, conquanto não tenha conseguido refrear um imperceptível gesto de contrariedade.
Porém, precisava evitar que suas palavras desagradassem ao faraó.
Então, mordendo os lábios discretamente para esquivar-se de uma contenda, ele prosseguiu tentando se justificar:
- Majestade! Reconheço que permanecer ao teu lado é uma honra a que qualquer dos teus súbditos almeja.
No entanto, meu soberano, as sacerdotisas devem permanecer no templo, entregues às actividades para as quais foram treinadas... salvo em caso de emergência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2020 8:05 pm

- Pois então, considera que esta é uma emergência, Zeiu. Preciso de Aisha aqui, no palácio real.
Ordeno que ela venha o mais rapidamente possível.
Se não vier por bem, meus guardas irão buscá-la.
O pobre sacerdote não sabia mais o que fazer.
Tentando ganhar tempo, tirou um lenço de dentro da túnica e passava-o na testa e na cabeça rapada enxugando o suor copioso, enquanto febrilmente pensava numa saída honrosa.
- Entendeste, Zeiu?
- Sim, majestade, perfeitamente.
Todavia, sou um simples religioso e a decisão não me compete.
Quero deixar claro, porém, que a permanência de uma sacerdotisa em palácio é contra as regras do nosso templo.
Comunicarei tua ordem ao nosso sumo sacerdote, a quem está afecta a decisão.
- Pois faz como achares melhor, desde que seja feita minha vontade.
O religioso inclinou-se e foi saindo sem dar as costas ao soberano, como o protocolo exigia, até deixar a sala.
Satisfeito, dei uma grande risada, sendo acompanhado por meu fiel Rafiti.
Creso, que entrava naquele instante e ouvira parte do diálogo, ponderou.
- Majestade! Permite-me dizer-te que, com essa decisão atinges muito duramente a casta sacerdotal.
Os religiosos não irão se conformar, e eles são vingativos.
- Meu bom Creso.
Tens toda razão, eles devem odiar-me.
Não te preocupes comigo, porém.
Sei como aplacar-lhes a ira.
Essa casta é orgulhosa, vingativa, mas ambiciosa.
- E posso saber como farás isso, Cambises?
- Verás. Quero que estejas aqui quando o sumo sacerdote se apresentar para falar com o faraó, o que, segundo meus cálculos, não deve tardar.
Após o almoço, Rafiti veio avisar que a liteira do sumo sacerdote havia parado à entrada do palácio.
Logo, ouve-se um burburinho na antecâmara.
A autoridade máxima do templo pede uma audiência com o faraó, e é introduzida sem demora.
- Eu te aguardava, Somief. E então?
- Majestade! Fui informado de tua pretensão.
Quero dizer-te, meu senhor, que o que exiges é absolutamente contrário à nossa ordem.
Asseguro-te, porém, que temos outras jovens, igualmente bem preparadas para atendimento médico, e qualquer uma delas poderia permanecer a teu serviço.
Não, porém, Aisha.
Respirei profundamente mostrando meu desagrado, e depois considerei:
- Não sabes quanto lamento, meu caro sumo sacerdote Somief.
Para demonstrar minha generosidade e gratidão, havia até reservado um régio presente que pretendia fazer ao Grande Templo. Infelizmente...
A expressão do religioso mudou.
Tentando não demonstrar excessivo interesse, inclinou-se ligeiramente, deixando ver a cabeça rapada que brilhava sob a luz do Sol que entrava por uma das janelas, e indagou:
- Ah! E pode-se saber que presente é esse, majestade?
- Lembra-te do nobre Ireret, que, por posicionar-se como inimigo do faraó, foi destituído de seus bens e condenado à morte?
Pois bem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2020 8:05 pm

Ambos caímos numa gargalhada.
- Como sabes, caro sumo sacerdote, Ireret era um homem muito rico, e o faraó pretendia fazer a doação do palácio dele, com todas as suas terras, ao Grande Templo.
É uma pena! Infelizmente, terei que repassar esse esplêndido palácio - com todos os seus tesouros! - para outrem.
Com os olhos a brilhar de cobiça, o sumo sacerdote dirigiu-se a mim com expressão mais conciliadora:
- Pensando bem...
Sempre se pode dar um jeito, majestade.
Tua vontade é uma ordem e, longe de mim, desejar opor-me a teus desígnios.
Não tenho autoridade para libertar a sacerdotisa Aisha de seus votos, o que só Rá pode fazer.
No entanto, por meio de rezas, abluções e oferendas a Rá, quem sabe poderemos contornar a situação, e sensibilizar o coração do nosso deus?
Dá-me o prazo de sete dias.
- Concedo-te apenas um dia.
O sumo sacerdote inclinou-se, concordando:
- Seja. Amanhã à mesma hora voltarei e, segundo espero, com o problema resolvido.
Para tanto, pretendo passar a noite em vigília de orações.
Quem sabe Amon-Rá concederá ao nosso soberano o que tanto almeja?
Fiz um gesto de concordância e o religioso saiu com a fisionomia radiante.
Olhei para Creso com ironia e largo sorriso de vitória.
- Não te disse que conseguiria?
- Tens razão, Cambises.
Esses sacerdotes fazem tudo por dinheiro.
Na tarde do dia seguinte, no mesmo horário, apresentou-se Somief em meu gabinete.
- E então? Qual a decisão de Rá? - perguntei um tanto sarcástico, uma vez que já sabia a resposta.
Ele inclinou-se, reverente, e iniciou um discurso tentando convencer-me das suas supostas acções para abrandar o coração de Amon-Rá em atenção ao meu pedido.
Sem paciência para ouvir-lhe as lamúrias, cortei suas explicações asperamente:
- Não quero saber o que fizeste.
Poupa-me os ouvidos e vai directo ao fim.
O religioso calou-se, empalidecendo diante da minha grosseria.
Depois, com voz sumida, finalizou:
- Amon-Rá aceitou nossas orações e oferendas.
Aisha poderá permanecer no palácio real enquanto desejares.
Em seguida, deu dois passos para o lado esquerdo, e fez um sinal com a mão.
Imediatamente, vi entrar a sacerdotisa Aisha.
Estava soberba.
Trajava vestes brancas e esvoaçantes, bordadas em prata e ouro.
Na cabeça trazia um véu que lhe cobria o rosto, vedando-lhe o belo semblante.
Fascinado, eu a vi caminhar em minha direção, sentindo o coração bater descompassado.
Ao chegar à distância protocolar, parou e inclinou-se.
Em seguida, com as mãos delicadas, levantou o leve véu e pude ver seu rosto.
Estático, eu não conseguia falar.
Com sua voz suave ela disse, quebrando o protocolo:
- Aqui estou, majestade, para servir-te.
Recuperando a voz, agradeci a concessão de Rá, e, com ligeiro gesto, Creso trouxe um rolo de papiro que foi entregue ao sumo sacerdote.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2020 8:06 pm

- Pela generosidade de Amon-Rá, faço entrega a Somief, o sumo sacerdote, de uma dádiva real.
Trémulo de emoção, o religioso pegou o documento que lhe dava todos os direitos sobre a propriedade do infeliz lretet, que, a partir daquele momento passava a pertencer ao Grande Templo de Amon.
Somief agradeceu ao faraó a oferenda e, inclinando-se, deixou a sala, a um sinal meu que dava por terminada a audiência.
Depois, sem a presença do desagradável religioso, dediquei minha atenção à nobre Aisha.
Trocamos algumas palavras desejando-lhe boa estadia no palácio, e, em seguida, ordenei a meu secretário que encaminhasse a sacerdotisa até os aposentos que eu mandara providenciar especialmente para ela.
A partir desse dia, sob a benéfica influência de Aisha, importantes mudanças ocorreram em meu comportamento.
Sempre que estava para tomar uma atitude mais drástica, pensava duas vezes, consultava-a, e acabava por demonstrar mais tolerância e mais brandura nas decisões.
Cada vez sentia-me mais preso ao seu fascínio.
Sua presença passou a ser-me tão necessária quanto o ar que respirava.
Não concebia mais a vida sem Aisha ao meu lado.
As esposas e concubinas reclamavam-me as atenções, mas eu não sentia mais vontade de vê-las.
Neila, sobretudo, irritava-se com minha ausência.
Certo dia, ela mandou recado por Rafiti, exigindo-me a presença, alegando urgência em falar comigo.
Curioso, resolvi atender-lhe à solicitação.
Logo ao chegar, cercou-me de atenções e cuidados.
Falava do quanto sentia minha falta.
Aceitei seus carinhos e gentilezas e depois perguntei:
- Ainda não me disseste o que tens de tão importante a falar comigo, Neila.
Ela, que se preparava para colocar uma tâmara em minha boca, parou e fitou-me, embaraçada.
- Cambises, não me amas mais?
Antes, tuas visitas eram frequentes, e não passava uma lua sem que viesses ver-me! - reclamou com jeitinho tristonho.
- Falta-te alguma coisa, minha bela?
Não tenho te cercado de luxo e riquezas, conforme prometi?
- Certamente que sim, majestade.
Contudo, continuo cativa.
Numa gaiola dourada, sem dúvida...
- De que te queixas, Neila?
Teus aposentos são grandes e sumptuosos, cercados de belos jardins.
Teus trajes e jóias, sem desdouro, poderiam pertencer a uma rainha.
As iguarias que te servem são as mesmas da mesa real; tens criadagem pronta a atender teus menores caprichos.
Que mais te falta, minha bela?
- Tua presença, Cambises.
Sinto-me excluída da tua vida! - fez uma pausa e prosseguiu.
Por que não me tomas por esposa?
Jogando a cabeça para trás, soltei uma gargalhada sarcástica.
- Tu és muito atrevida, minha querida.
Pedes-me em casamento?
Esqueces que sou o rei?
Aqui, sou eu quem decide com quem quero me casar.
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 6 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2020 8:06 pm

- Mas... Após a morte de tua esposa Roxana, tendo em vista os elos que nos unem, pensei...
- Pois pensaste mal.
Não pretendo casar-me contigo, senão já o teria feito.
E podes crer, Neila, mesmo que resolvesse tornar-te minha esposa, esse facto por si só não mudaria tua vida e nem te daria prerrogativas à minha presença.
Extremamente irritada, ela levantou-se e pôs-se a caminhar medindo o aposento como uma fera enjaulada, esfregando as mãos, nervosa.
- Então... então... por que não me libertas de uma vez?
Se não te sirvo para nada, se sou obrigada a ficar sozinha, entregue a mim mesma, por que não me deixas ir embora?
Quero poder decidir da minha vida, ir para onde eu quiser... ter liberdade, enfim!
Impaciente com seus arroubos, eu me levantei e, agarrando-a pelo braço, afirmei exasperado:
- Cala-te! Basta de exigências!
Eu te dei tudo o que poderia dar a alguém.
Talvez tenhas esquecido que, para mim, tu és apenas uma prisioneira, nada mais.
Agora vens com essa ideia absurda de ser minha esposa!
O que te levou a crer que poderias ser minha imperatriz?!
Poupa-me de teus caprichos.
Aqui, só eu mando e sou obedecido.
Livra-te de despertar a minha cólera, porque te arrependerás amargamente.
Agora, pensa com muito cuidado em tudo o que eu te disse.
Rodei nos calcanhares e sai do aposento pisando duro.
Ao me afastar ainda pude ouvir-lhe o choro convulsivo e os gritos de raiva, ao mesmo tempo em que escutava o barulho de objectos de decoração que se quebravam, atirados contra a parede.
Resolvi que não voltaria a vê-la.
Teria que decidir sobre seu futuro e o que fazer com ela, pois se tornara um fardo difícil de carregar.
Dentro de mim, um ódio imenso por Neila se agigantava cada vez mais.
Toda a atracção que exercera sobre mim estava morta.
Sem dúvida, meus sentimentos por ela sempre tinham sido dúbios, estranhos, incompreensíveis.
Meu pensamento voltou ao passado e recordei-me do dia em que a vira pela primeira vez.
Por ordem minha, ela estava presa numa cela.
Fui até o calabouço para conhecê-la, e Malec abriu-me a porta.
Peguei um archote, com o coração disparado.
Entrei. A cena delineou-se nítida em minha mente.
Na cela havia apenas um leito, uma pequena mesa sobre a qual havia uma candeia de azeite e um banco tosco de madeira.
Ao lembrar-me daquele dia, voltei a sentir o cheiro de humidade e de mofo que senti então, causados pela falta de Sol.
Ela estava num canto, acocorada, espremida contra a parede.
Tentei acalmá-la afirmando que não desejava fazer-lhe mal algum; queria apenas conhecê-la.
Sentei-me no banco e perguntei seu nome.
Ela respondeu: Neila.
Pedi que se aproximasse sem receio, para podermos conversar.
Ela pareceu pensar por alguns segundos, depois se decidiu; ergueu-se lentamente e deu dois passos em minha direcção.
Ergui os olhos e, só então, à luz do archote, eu vi seu rosto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2020 8:06 pm

A prisioneira - estava toda suja, as roupas em frangalhos, a cabeleira em desalinho;
mas não pude deixar de perceber também que seu porte era elegante, - que seus braços, roliços e bem torneados, terminavam em mãos delicadas.
Seu peito arfava de medo e raiva, com certeza, e o colo que surgia sob o decote da blusa mostrava uma pele lisa e aveludada.
Sob grande emoção, fitei seu pescoço fino e longo que se abria qual uma flor sustentando uma cabeça soberba, de semblante lindo;
a pele perfeita, branca como leite, deveria ser agradável ao toque;
a boca rosada era carnuda e bem feita;
o nariz, pequeno e bem delineado;
e os olhos eram dois lagos verdes e profundos, que longos cílios tentavam esconder.
Tudo isso cercado por uma moldura de cabelos ruivos e sedosos, com cachos a descerem pelos ombros.
Diante dessa imagem, prendi a respiração.
A emoção era tanta - que eu não conseguia falar.
E naquele momento, difícil definir as sensações que me tomavam de assalto.
Um sentimento de vitória por tê-la ali, um imenso prazer pela sua presença, mas também um misto de repulsa e desejo de fazê-la sofrer, agora que a tinha sob meu poder.
Mas, por quê?
Parecia-me que semelhantes sentimentos eram - muito antigos e longamente acalentados, como se a tivesse conhecido antes.
No entanto, jamais a vira!
Como conciliar essas sensações, como explicá-las?
De repente, ela jogou-se a meus pés, suplicando que lhe concedesse a liberdade.
Sua voz, que eu ouvia pela primeira vez, agitou-me as fibras mais profundas.
Vê-la a meus pés, suplicante, em lágrimas, a causava-me incontida satisfação.
- Coisa estranha!
Ao mesmo tempo em que ela me atraía, que eu a desejava, um sentimento, misto de ódio e de rancor, fazia-me ansiar vê-la sofrer, como se quisesse vingar-me por alguma coisa que me tivesse feito.
Mas como isso era possível, se acabáramos de nos conhecer?
Agora, finalmente, esse relacionamento chegava ao fim.
Não suportava mais sua presença.
Teria que encontrar uma solução.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2020 8:06 pm

26 - Esperança de felicidade
Além dos inúmeros problemas que me exigiam a atenção como faraó do Egipto, havia outros, de minha alçada pessoal, que precisavam ser resolvidos;
entre estes, a situação de Neila, que se fazia cada vez mais difícil.
Ela não mais me despertava o interesse.
E, apesar de ser mantida à distância, o simples facto de sabê-la habitando o palácio real, conquanto bem distante dos meus aposentos, e ainda assim, tão próxima de mim, causava-me grande desconforto e irritação, como se ela representasse sempre um perigo, uma adaga suspensa sobre minha cabeça, pronta a me atingir a qualquer momento.
Existia um facto que eu ignorava e que iria pesar na minha vida.
Neila conseguira despertar o interesse de alguém muito ligado a mim e de inteira confiança: Malec.
Durante aqueles anos, Malec acabara por ficar responsável pela prisioneira, uma vez que Rafiti, agora chefe da guarda real, tinha atribuições mais importantes.
Malec era um persa bonito, elegante e que atraía a atenção das jovens onde estivesse.
Certa ocasião, durante uma viagem, acampados, à noite, ao redor de uma fogueira, os soldados falavam de suas conquistas e nos divertíamos com suas histórias.
Em dado momento, eu brinquei com ele afirmando que, apesar do assédio das mulheres, nunca o vira mais interessado em alguém;
ele respondeu-me, um tanto evasivo, alegando não ter tempo para o amor.
Os demais fizeram pilhérias a respeito dele e acabamos mudando de assunto.
A verdade é que Malec se apaixonara pela prisioneira.
Por sua vez, Neila, astuta e atraente, sabia como utilizar os sentimentos dele por ela.
Tudo isso, porém, eu ignorava na ocasião, sabendo só muito tempo depois.
Também por essa época, Ratan passou a fazer comentários e insinuações contra Creso, o que me deixava descontente e incomodado.
De maneira discreta a princípio, aumentando gradualmente.
Quando o pressionei exigindo me explicasse as razões da sua rejeição àquele que eu, tanto quanto meu pai, Ciro, tínhamos em grande consideração, alegou:
- Ainda não sei bem, meu senhor, mas confesso que tenho observado reacções estranhas em Creso, que me levam a julgá-lo indigno de tua confiança.
Estou fazendo averiguações e acredito que não tarda o momento em que possa dar-te informações mais concretas.
- E esperas que acredite em tuas ideias, quando não me apresentas provas contra meu conselheiro?
Fala, ordeno-te!
Afinal, em que se baseiam tuas dúvidas?
Nesse momento, estávamos conversando a sós no meu jardim privativo, mas ele olhou em torno como se temesse ouvidos indiscretos, e em seguida baixando o tom de voz, justificou-se:
- Majestade, tenho notado que ele sente inveja do teu poder.
- Inveja?!... Ratan, Creso serviu a Ciro durante muitos anos e continua servindo a mim sempre com a maior lealdade.
Seus conselhos são sempre judiciosos e ponderados, visando o interesse do Império. Não posso crer!
- Majestade, por isso evitava expor-te meu pensamento antes de certificar-me do que digo.
Todavia, posso afirmar-te que tenho notado olhares estranhos, de inveja e desejo de poder.
- Quando?
- Quando recebeste a coroa do Império Persa, por ocasião da morte de Ciro, percebi que ele a olhava com expressão diferente, cobiçosa, como se a desejando para si mesmo.
- Não posso crer, Ratan.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2020 8:06 pm

O anão sorriu ironicamente, depois ponderou lentamente:
- Meu faraó, filho dos deuses!
Creso era o rei da Lídia!
Perdeu a coroa de um reino riquíssimo quando os persas, comandados pelo sempre lembrado e invencível Ciro, conquistaram seu país.
Conheces muito bem esse episódio.
O soberano estava tão enlouquecido, tão desesperado, que desejou imolar-se numa fogueira com sua família e os mais leais servidores, não suportando a humilhação da derrota.
Teu pai, Ciro, apiedou-se do seu desespero e o impediu, trazendo-o para a Pérsia e colocando-o a seu serviço.
O anão fez uma pausa, lançou seus olhos amarelos de ofídio sobre mim e indagou:
- Não achas que alguém que já foi rei possa sentir falta de comandar um exército, do poder de mando, da glória de governar um país, da volúpia de receber os aplausos da multidão à sua passagem?
Quedei-me pensativo.
As ponderações de Ratan eram justas, mas eu me recusava a desconfiar de Creso, a quem considerava um verdadeiro amigo, e que já me valera em inúmeras ocasiões.
Mas o anão prosseguiu:
- Também quando entraste em Mênfis com teu exército, coberto de glórias, a caminho do palácio real, para receberes as insígnias de faraó do Egipto, olhei para Creso e novamente notei um brilho de cobiça em seu olhar.
Afirmo-te, majestade, por quem és!
Não confies nesse homem se não queres ser apunhalado pelas costas.
Eu estava com a mente em brasas com tudo o que ouvira.
Queria ficar a sós e poder reflectir.
A presença de Ratan incomodava-me sobremaneira.
- Vou pensar em tudo o que me disseste, Ratan.
Voltaremos ao assunto.
Agora, deixa-me só.
Ele inclinou-se e desapareceu entre os arbustos.
O ar estava perfumado pelas flores, o dia lindo e agradável, mas eu sentia um peso sobre minha cabeça e uma angústia a constringir-me fortemente o coração.
Ah!... Somente a presença da querida Aisha tem o dom de balsamizar meus dias.
"Esse, porém, é outro problema difícil de resolver", murmurei para mim mesmo, suspirando.
Apegara-me tanto à minha jovem e bela enfermeira, que não imaginava mais a vida sem ela.
Com o transcorrer dos dias, passei a acalentar o propósito de fazê-la minha esposa.
Sim, por que não?
Mais do que qualquer outra mulher, ela merecia ser imperatriz!
A esse pensamento, meu corpo agitou-se.
Tê-la a meu lado, viver com ela, era tudo o que eu poderia desejar.
Conseguiria a permissão do sumo sacerdote, custasse o que custasse.
Certamente, com o envio ao templo de grandes oferendas, uma vez que Rá era exigente e não se contentava com pouco.
Sorri a esse pensamento.
No fundo, sabia que não era o deus que se mostrava exigente e ambicioso, mas a casta sacerdotal, representada por Somief.
Como se enviada pelos deuses e transportada pela brisa, eu a vi caminhando entre as aléias floridas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2020 8:06 pm

Como Aisha estava directamente ligada a mim, concedera-lhe permissão para utilizar meu jardim privativo;
porém, era a primeira vez que a encontrava nesse local.
Levantei-me e dirigi-me a seu encontro.
A jovem estava tão distraída que só deu pela minha presença quando lhe dirigi a palavra:
- Aisha!
Levantando os olhos, uma expressão de surpresa e temor surgiu em seu belo rosto.
- Oh, majestade!
Perdoa-me estar aqui em teu jardim preferido!
Tranquilizei-a, ao mesmo tempo em que a erguia, pois se ajoelhara a meus pés.
- Nada fizeste de errado, bela Aisha, que precise do perdão do faraó.
Tens minha permissão para utilizar este recanto sempre que desejares.
- Obrigada, majestade.
Estava em meu quarto e, olhando pela janela, pude ver as flores e sentir-lhes o agradável aroma.
Não resisti. Deixei meus aposentos e pus-me a caminhar, entretendo-me na contemplação de tanta beleza!
- Quando te vi, parecias um anjo cercada de flores!
Vem, senta-te aqui neste banco.
Julgo providencial tua presença.
Precisava mesmo falar contigo.
- Sentar-me em tua presença, majestade? Não posso...
- Tens minha permissão.
Esquece o protocolo.
Aisha elegantemente sentou-se na outra ponta do banco, desejando colocar a maior distância possível entre nós.
Sorri discretamente notando-lhe a intenção.
Depois, procurando deixar o ambiente menos formal, indaguei:
- Aisha, ainda não pudemos conversar desde que vieste para o palácio.
Gostaria de saber o que sentes, o que pensas.
Agrada-te viver aqui?
Tens sido bem tratada?
Sentes falta de algo?
Corando diante de tantas perguntas, que demonstravam um interesse incomum, ela respondeu:
- Oh, sim, majestade!
Viver aqui neste palácio é um verdadeiro sonho.
Sinto-me feliz e nada me falta...
- Nada te falta, mas...
Ela me fitou com os olhos cheios de lágrimas, completando:
- Senhor! Agradeço-te imensamente o interesse que demonstras por mim.
Não me creias ingrata, majestade, quando tanto tenho recebido da concessão do faraó.
- Prossegue...
- Todavia, ainda sinto falta da quietude e da paz do templo.
Lá, entre as paredes sagradas, ou nos jardins perfumados, era fácil orar.
Mas aqui... em meio a tantos ruídos, tantos apelos, tantas coisas que nos afectam as sensações, que nos falam aos sentidos... sinto-me atordoada.
Enquanto ela falava, eu procurava captar em seus olhos, na cambiante expressão do seu rosto e das suas palavras, os seus pensamentos e o que ela deixava entrever nas entrelinhas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2020 7:44 pm

E percebi que, a despeito de sua repulsa por tudo o que fosse mundano, ela estava se deixando envolver por essa nova vida, plena de festas, de prazeres, de sensações.
Inclinei-me e, com delicadeza, peguei a mãozinha que descansava em seu regaço, e ela estremeceu.
- Entendo perfeitamente o que sentes, minha bela Aisha.
Gostarias de voltar para o templo?
Ela agitou-se, e vi seu peito arfante, sob as brancas vestes.
- Oh! Não, majestade!
Não foi isso o que eu quis dizer.
Aprecio bastante a vida que levo agora.
Ela lançou-me um olhar repleto de candura e de gratidão.
Sorri encantado, percebendo que ela não me era indiferente.
Assim, ousei perguntar-lhe:
- Majestade!...
- Deixa-me prosseguir.
Desde que te vi pela primeira vez, senti que laços profundos nos unem, como se te conhecesse desde sempre.
Teus olhos, teu jeito meigo, tua maneira de falar... tudo em ti me encantou.
Era como se eu estivesse a te reencontrar depois de longo tempo, entendes?
Ela ergueu os olhos e vi que estavam húmidos de emoção.
- Também senti a mesma coisa por ti, majestade - ela respondeu baixinho.
Sem poder conter-me por mais tempo, venci a distância que nos separava e enlacei-a em meus braços.
Naquele momento, pareceu-me que retornava para o lar depois de longo tempo, ou como se houvesse aportado a um oásis refrescante após a travessia de um deserto escaldante.
Abracei-a e beijei-a repetidas vezes.
De repente, como se naquele momento ela houvesse tornado a si, afastou-se de mim assustada:
- Senhor, não posso! Deixa-me!
- Quando existe amor, nobre Aisha, nada mais importa.
- Sua majestade esquece que eu sou uma sacerdotisa de Rá?
- Minha querida, nada há que não possa ser resolvido.
Nenhum obstáculo que não possa ser contornado.
- Não, não. Meus votos são perpétuos.
Serei maldita pela eternidade!
Aisha debatia-se, apavorada, enquanto eu procurava acalmá-la.
- Tranquiliza-te, minha Aisha.
Não desejo ver-te desse jeito, tão desesperada.
Eu te prometo solenemente encontrar uma solução para nosso amor.
Aisha, desde que chegaste, meu coração se tomou de amores por ti.
Aos poucos, ela foi serenando, até que sua respiração tornou-se normal.
Então, aproveitando o momento, perguntei-lhe:
- Minha querida, aceitarias ser minha esposa?
Isto é, se conseguirmos solucionar teu problema religioso?
A jovem ergueu-se, de súbito, e disse com firmeza:
- Majestade, repete esta pergunta se conseguires resolver a questão que nos separa.
Dito isso, afastou-se quase correndo.
Acompanhei seu vulto que caminhava entre as aleias, até desaparecer por uma porta entreaberta.
A alegria que me invadia a alma era imensa, inenarrável.
Pela primeira vez na existência eu experimentava o sentimento do verdadeiro amor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2020 7:44 pm

Não tinha dúvidas de que ela também me amava e essa certeza enchia meu coração de paz e desejo de felicidade.
Não ignorava que teria que enfrentar luta feroz contra a casta sacerdotal que, com certeza, tudo faria para abortar meus planos de ventura.
Porém, não desistiria, jamais.
Naquele momento, pus-me a pensar em como tinha sido minha vida até então.
Tivera momentos felizes, sem dúvida, a maior parte dos quais passara no acampamento no deserto, ainda menino.
Depois, minha existência mudara drasticamente.
Cresci e transformei-me por completo.
Na adolescência já denotava o carácter viril e cruel, que seria característica da minha personalidade instável e temperamental, orgulhosa e egocêntrica.
Na tela da memória, passei um olhar por todas as atrocidades que já tinha cometido, todos os actos mesquinhos, todos os crimes nefandos.
As decisões arbitrárias em que prejudicara pessoas de bem, para favorecer interesses escusos.
Lembrei-me da morte de Roxana e de meu filho, causados por um acesso de ira, e que eu lamentaria pelo resto dos meus dias.
Recordei-me também do dia em que, desafiado por Prexaspes, um rapaz que afirmava ser meu filho e exigia com arrogância ser considerado como um príncipe, lançando-me as maiores ofensas e vitupérios, cheio de ira, eu atirara uma flecha contra ele, matando-o, sem remorsos.
Todas essas lembranças me atormentavam e cerrei os olhos, tapando-os com as mãos, como se fosse possível não vê-las.
Contudo, a elas continuavam lá, a atormentar-me do mesmo jeito.
Aisha entrara em minha vida como uma réstia de luz.
Não me conformaria em perdê-la, isso nunca.
Lutaria com todas as forças, utilizando todos os recursos, e venceria por certo.
Nesse momento, ouvi que alguém me chamava:
- Majestade! Majestade!
Abri os olhos, sem lembrar-me bem de onde estava.
- Majestade, perdoa-me! Dormias?
- Não, Rafiti, reflectia apenas.
- Ah!...
- O que desejas?
- Majestade, aguardam-te na sala de audiências.
- O que houve?
- Nada, senhor.
Está na hora das audiências. Só isso.
- Irei em seguida. Ah, sim!
Manda avisar ao sumo sacerdote que preciso falar-lhe com urgência.
- Sim, majestade.
Caminhei apressado para meus aposentos.
Lavei o rosto e as mãos, o servo ajeitou-me o manto e, em seguida, encaminhei-me para a sala do trono, onde se realizavam as audiências.
Quando apontei na galeria, todos se ajoelharam, mantendo a cabeça baixa.
Atravessei a grande sala com toda a pompa e sentei-me no trono, que trazia as insígnias do Alto e Baixo Egipto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2020 7:44 pm

O primeiro caso era o de um camponês a quem pesava a acusação de ter roubado duas reses do vizinho.
O vizinho, homem muito bem trajado, alto como uma palmeira, de fisionomia áspera e olhos duros, fez a acusação:
- Majestade, este criminoso entrou em minha propriedade à noite, para roubar-me duas cabeças de gado.
Exactamente as melhores que eu tinha.
Que ele seja castigado e me devolva, a peso de ouro, o valor que perdi, ou me entregue suas terras para compensar-me.
- Como são as reses?
- Uma é cor de terra e a outra é branca.
Quando ele se calou, o acusado, homem pobre, o que se percebia pela sua aparência, jogou-se ao chão, bradando:
- Majestade! É mentira que o roubei.
Jamais tirei nada de ninguém, e todos na cidade me conhecem e poderão testemunhar a meu favor.
Jamais vi as cabeças de gado que ele afirma terem sido roubadas.
Elas não estão em minha propriedade, senhor, o que pode ser comprovado facilmente.
O acusado calou-se.
Dirigindo meu olhar para o acusador, perguntei:
- É verdade o que este homem diz, que as reses não foram encontradas na propriedade do acusado?
- Sim, majestade.
Com certeza deve tê-las matado durante a noite.
- Quando aconteceu o roubo?
- Ontem, majestade.
- Então, se o acusado as matou, a carne ainda deve estar lá.
E devem existir vestígios por todo lado, não te parece?
O vizinho concordou, a contragosto.
Então, dirigi-me ao chefe da guarda:
- Os guardas que foram prender o acusado viram provas do crime por lá?
- Não, majestade.
Andamos por tudo e não vimos nada.
Aliás, a miséria é tão grande, que a família não tem o que comer - respondeu Rafiti.
Olhei a um e a outro.
O acusador, arrogante, mostrava fisionomia irritada e nervosa, por ver que as coisas não estavam saindo como ele esperava.
O acusado, na sua humildade, aguardava de cabeça baixa que se fizesse justiça.
Compreendendo que o acusador desejava mesmo era obter por esse meio as terras do acusado, e com propensão para a misericórdia nesse dia, exarei a sentença:
- Ordeno que o acusado seja solto por falta de provas.
E o acusador, que seja acompanhado até sua propriedade.
E, se forem encontradas lá as reses que diz terem sido roubadas (e julgo que ele sabe bem onde elas estão), que leve 20 chibatadas para nunca mais acusar injustamente a quem quer que seja.
E as cabeças de gado que sejam entregues ao acusado para compensá-lo pela injúria que sofreu. Tenho dito.
O pobre homem acusado ajoelhou-se, em lágrimas, agradecendo-me a decisão inesperada, e deixou a sala do trono satisfeito.
O acusador, por sua vez, rangeu os dentes de ódio, sem poder fazer nada.
Após esse caso, vieram outros e passei o resto da tarde na sala do trono.
As decisões, sempre justas e ponderadas, causaram espanto, pois normalmente eu julgava de acordo com minhas disposições do momento, e estas, de ordinário eram as piores possíveis.
Contente comigo mesmo, deixei a sala cantarolando.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2020 7:44 pm

27 - Denúncia
Estava em meu gabinete de trabalho, colocando em ordem alguns documentos, quando anunciaram o sumo sacerdote.
- Entra, Somief. Eu te aguardava.
- Vim assim que pude.
De que se trata, majestade?
Deixei o que estava a fazer e, sem rodeios, desfechei à queima-roupa:
- Pretendo casar-me com Aisha e necessito saber o que é preciso fazer para desposá-la, já que ela é uma sacerdotisa.
O religioso levou um susto, diante das minhas pretensões.
Depois, retirou da algibeira o lenço de linho e limpou a testa, tentando ganhar tempo, depois considerou:
- Majestade, isso é impossível!
Aisha fez votos perpétuos de castidade.
Por mais que deseje, não tenho autoridade para libertá-la desse compromisso.
- Conheço as tuas impossibilidades, Somief.
Conversemos de maneira prática.
Farei presente ao Grande Templo de Amon de duas grandes propriedades rurais, que valem uma fortuna.
O que me dizes? Aceitas?
Diante da generosidade do faraó, Somief ficou ainda mais aparvalhado.
Para encurtar a conversa, considerei com uma certa ironia:
- Sim, sei que precisas de tempo para pensar.
Dou-te o prazo de um dia para que me tragas a resposta.
Amanhã, à mesma hora, deverás retornar com a decisão.
Em caso positivo, receberás os documentos concernentes às propriedades.
O sumo sacerdote saiu e, no dia seguinte, como eu previra, retornou.
- Sim, aceito as propriedades em troca da autorização para teu casamento com Aisha.
Pensei bastante e julgo que será muito importante ter uma sacerdotisa como esposa do faraó.
Na mesma hora, fiz entrega dos documentos a Somief.
Certo de que a resposta seria positiva, já havia ordenado ao escriba que redigisse os documentos de doação das propriedades.
Exultei. Aisha também ficou muito feliz, e, animados, pudemos dar andamento às providências que nosso casamento exigia.
Alguns dias depois, estava em meu gabinete colocando em ordem alguns documentos, quando anunciaram Ratan que pedia para ser recebido.
Dei ordem para que ele fosse introduzido e continuei o que fazia.
Logo ouvi um ruído e, sem levantar os olhos, indaguei:
- O que desejas, Ratan?
Inclinando-se, o anão limpou a garganta, e depois começou a falar:
- Majestade, é a respeito daquele assunto sobre o qual conversamos há alguns dias...
- Que assunto? - perguntei sem atinar com o que fosse.
- "Aquele", majestade!
A respeito de teu conselheiro... - disse quase num sussurro.
Agora mais interessado, levantei a cabeça, e, vendo meu secretário que permanecia na sala, ordenei que saísse.
Depois, intrigado, voltei a perguntar:
- Creso?
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 6 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2020 7:45 pm

- Isso mesmo, majestade.
- O que tem ele?
- Meu rei, após muita busca, eu encontrei alguém que tem coisas importantes para dizer-te.
- Traze-o aqui.
- Adiantei-me e tomei a liberdade de trazê-lo.
Ele aguarda lá fora, majestade.
Vou mandar que entre.
Ratan saiu e pouco depois voltou com um homem do povo.
O desconhecido era um persa, de estatura mediana, vestia-se com o traje comum do povo, e seu rosto tinha algo que não me inspirou confiança.
Todavia, procurava mostrar humildade, mantendo a cabeça baixa e os olhos fitos no lajedo.
Levantei-me, dei a volta na mesa e, andando de um lado para o outro, eu o observava, sem conseguir conter a preocupação.
No íntimo, temia o que estava por vir.
- Como te chamas?
- Hargon, majestade.
- Pois bem, Hargon. Fala.
Conheces o conselheiro Creso?
- Sim, majestade. Tenho a honra de conhecê-lo.
- O que sabes sobre ele?
O interrogado lançou um olhar para Ratan, que o incentivou.
- Nada receies, Hargon.
O faraó só deseja saber a verdade.
Então, o desconhecido começou a falar.
- Majestade!
Sou oriundo de família muito pobre, mas consegui um bom emprego.
Trabalho na casa do conselheiro Creso há cinco anos.
Sempre o tive em alta conta, respeitando-o e à sua família.
De algum tempo para cá, no entanto, comecei a notar mudança em suas atitudes, notadamente depois que viemos para o Egipto.
Ele fez uma pausa, indeciso.
Ordenei que prosseguisse.
- Certo dia, estava eu à entrada da residência, quando chegou um desconhecido.
Pelo luxo das vestes percebi que era alguém de elevada posição.
Comuniquei ao dono da casa, que mandou o introduzisse imediatamente.
Creso recebeu-o com todas as honras e de maneira efusiva.
Ao ver que me encaminhava para a saída, meu amo pediu-me trouxesse um refresco.
Conquanto não fosse da minha alçada, obedeci à ordem recebida e, pouco depois, estava de volta com a bandeja contendo o refresco e dois copos.
Enquanto os servia, não pude deixar de ouvir a conversa entre eles.
Não citaram nomes, porém falavam de alguém que precisavam afastar a qualquer custo.
O recém-chegado dizia:
"- Não te preocupes, sei como fazer as coisas.
Tenho o homem que precisamos para essa tarefa.
Ele não falha.
- Tens certeza?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2020 7:45 pm

- Absoluta, Creso.
Já recorri a seus serviços antes e jamais me decepcionou.
- Antes assim. Como se chama?
- Temal.
- Pois bem, meu amigo.
Faz o que achares melhor.
Prefiro não saber os detalhes;
só que nunca mais "ele" me atrapalhe a vida.
De repente, percebendo que eu ainda estava na sala, aguardando para encher novamente os copos, Creso ordenou:
- Pode ir, Hargon. Eu mesmo servirei.
- Obedeci prontamente, entendendo que o assunto era grave.
Todavia, curioso, eu sai, mas não me afastei, permanecendo escondido atrás do reposteiro.
- O que é uma falta grave, passível de punição - afirmei, interrompendo-o.
- Sei disso, majestade, e submeto-me aos rigores da lei se julgares que mereço punição.
Contudo, se não tivesse permanecido à escuta, não poderia estar aqui prestando-te um serviço e relatando o que sei.
- Prossegue.
- Então, majestade, o que ouvi a seguir deixou-me assustado.
- Diz, rápido!
A quem eles se referiam?
- À tua pessoa, majestade!
Estupefacto, arregalei os olhos.
O sangue subiu-me à cabeça, e, com voz soturna indaguei, rilhando os dentes:
- Mencionaram meu nome?
- Não, majestade.
Mas Creso recostou-se na cadeira de alto espaldar, sorriu, levantou o copo selando o acordo e confidenciou ao seu interlocutor:
"Depois do serviço feito, nada atrapalhará meus planos e estarei de novo com a coroa a cingir-me a cabeça".
- Creso afirmou tal coisa?
- Sim, majestade.
- Canalha! Não merecia ter sido perdoado por meu pai.
Melhor que tivesse morrido naquela fogueira da qual Ciro o retirou, para que não fosse possível, hoje, estar tramando a morte do faraó do Egipto!
Que os deuses o castiguem.
Deixei-me cair na minha cadeira, atrás da mesa, incapaz de acreditar em tamanha sordidez.
- Víbora que afaguei em meus braços, não mereces viver! - murmurei.
Depois, voltando a mim do estupor, tornei a indagar:
- E quem é o cúmplice?
Hargon pareceu titubear por alguns segundos.
Depois, com voz sumida disse:
- O ministro do Tesouro Real.
- Repete. O que disseste?
- Sim, majestade. Mustaf.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2020 7:45 pm

Dominado pela cólera, levantei-me e bradei:
- Ratan, chama Rafiti.
Quero esses traidores e criminosos presos ainda hoje. Avia-te!
Ratan, porém, inclinou-se até o chão, afrontando a minha ira, e ponderou:
- Majestade! Não deves te expor dessa maneira.
O que ouviste hoje precisa de provas.
Dá tempo ao tempo.
Deixa que os traidores continuem tramando tranquilamente, ignorantes de que já conheces seus planos.
Assim, será mais fácil surpreendê-los.
Pensei um pouco, entendendo que Ratan estava com a razão.
- É justo, Ratan. Teu conselho é sábio.
Não devo precipitar-me. Vamos aguardar.
Chama-me Rafiti e Malec.
Enquanto o anão cumpria a ordem que lhe dera, retirei de minha veste um belo broche de pedras preciosas e entreguei-o a Hargon.
- Fiel súbdito!
Aqui tens um mimo que te entrego como testemunho da minha eterna gratidão.
Mantém-te alerta, Hargon.
Quero ser informado de tudo o que se passa naquela casa. Ouviste?
- Sim, majestade.
Serei os olhos e ouvidos do faraó.
- Muito bem. Se me servires lealmente, receberás a recompensa real por teus serviços.
Nesse momento, meus leais guardas entravam.
- Rafiti e Malec, conheceis este homem?
- Não, majestade - responderam em uníssono.
- Chama-se Hargon e é criado de Creso.
Guardai a fisionomia dele.
Será nossa ligação.
Tudo o que ouvir na casa de Creso nos será transmitido.
Depois, dirigindo-me a Hargon, afirmei:
- Meu bom homem, estes são meus guardas de confiança.
Tudo o que souberes repassa a eles.
Podes confiar neles como em minha própria pessoa.
- Sim, majestade!
- Agora, vai! Que os deuses te protejam!
Hargon saiu, juntamente com Ratan, e passei a entender-me com meus guardas.
- Rafiti, ordeno que montes um esquema de vigilância visando especialmente Creso e Mustaf.
Rafiti trocou um olhar com Malec, depois perguntou:
- Podemos saber o que está acontecendo, majestade?
- Hargon fez uma séria denúncia contra Creso e Mustaf que, a partir de hoje, considero como traidores de lesa-majestade.
Não quero que esses criminosos dêem um passo, um pensamento, que não seja observado.
Trabalha como quiseres, desde que as provas da traição sejam obtidas.
Ordeno rapidez e eficiência.
Quero ser comunicado de qualquer facto novo, não importa a hora do dia ou da noite. Entendeste?
- Sim, majestade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2020 7:45 pm

- Muito bem. Então, ao trabalho.
Aqueles miseráveis não perdem por esperar.
Ficando sozinho, pus-me a pensar, relembrando factos da minha existência que tinham relação com Creso.
Conforme as imagens desfilavam-me na mente, cada vez mais me entristecia diante de tamanha deslealdade.
Creso sempre fora tratado com todas as honras, gozava de nossa amizade e participava de nossa convivência.
Sua família era considerada como parte da minha família e sempre fora o conselheiro atento, criterioso e ponderado.
Jamais falava sem reflectir e, vezes sem conta, ajudara-me a solucionar assuntos difíceis e complicados.
Sempre fora como um pai para mim.
E, após a morte de Ciro, com sua presença evocava-me a paterna solicitude.
Balancei a cabeça, inconformado.
Não. Não conseguia acreditar.
Do mais fundo do meu ser, não aceitava sua traição.
A consciência afirmava-me que, apesar da denúncia grave, ele era inocente.
Aquela noite não consegui pregar o olho. O que fazer?
Passei as horas revirando-me nos lençóis de linho, sem encontrar a resposta para minhas dúvidas.
O amanhecer do novo dia encontrou-me insone e amargurado.
O melhor seria prosseguir nas acções definidas.
Que meus homens averiguassem a verdade, qualquer que ela fosse.
Levantei-me sem vontade.
Meu criado de quarto ajudou-me com a toalete.
Mostrou-me dois ou três trajes para que eu escolhesse o que desejava vestir naquele dia.
Com um gesto, fiz-lhe entender que poderia escolher.
Vestiu-me. Ajeitou-me os cabelos, a barba, enfeitou-me com as melhores jóias e, depois, deu um passo atrás, observando-me atentamente.
- Perfeito, majestade!
A refeição está na mesa.
- Não desejo comer nada. Manda retirar.
Após a saída do criado, continuei pensativo.
Não desejava sequer sair dos meus aposentos.
De olhos fechados, ouvi passos leves e julguei fosse o criado que voltasse.
- Deixa-me só. Quero pensar.
Como continuasse a sentir a presença de alguém, abri os olhos pronto a expulsar o intruso, mas contive-me a tempo.
Um perfume delicado atingiu-me o olfacto.
Era a querida Aisha que chegava, certamente alertada pelo criado que estranhara minha atitude.
Ela aproximou-se com ternura e colocou as mãos leves e macias em minha fronte.
- O que houve, majestade?
Pareces prostrado e sem vontade...
Sorri levemente ao reconhecer-lhe a presença que tanto bem me fazia.
- Tu és o anjo bom da minha vida, Aisha.
Tuas mãos benditas me acalmam as dores, sossegam meu coração e elevam meu espírito.
Eu estava sentado, recostado em almofadas de cetim, e fiz com que se acomodasse a meu lado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2020 7:45 pm

Tomei-lhe as mãos e beijei-as, levantando os olhos para ela.
- Tua tristeza e teu desânimo me comovem, Cambises.
Se puder ajudar-te de alguma maneira, abre-me teu coração.
- Ah! Se soubesses os problemas que me angustiam a alma, querida Aisha!
Desejaria eu ser o menor dos meus súbditos se isso me livrasse do peso da coroa.
- Algo de realmente muito sério aconteceu contigo ontem.
Não queres contar-me o que tanto te angustia?
- Não posso, minha querida.
Seria expor-te a perigos que sequer imaginas.
- Mas então... se é tão grave... tua vida também deve estar correndo perigo! - ela murmurou, abraçando-me trémula e cheia de temor.
Ficamos por algum tempo assim enlaçados, até que o criado entrou avisando-me que o conselheiro Creso desejava ser recebido.
Antes que ele entrasse, balbuciei aos ouvidos de Aisha:
- Cala-te sobre tudo o que te disse. Ninguém pode saber.
- Nem mesmo Creso, teu conselheiro e amigo?
- Não. Nem mesmo ele.
O conselheiro entrou e encontrou-me de pé, erecto e firme para recebê-lo.
- Salve, majestade!
Que os deuses te cubram de vida e glória!
Enquanto ele falava, observava-o atentamente, procurando vislumbrar em seu semblante o menor resquício que pudesse confirmar as denúncias feitas.
Todavia, Creso mostrava, como sempre, seriedade, simpatia, afabilidade e segurança.
- A que vieste, Creso?
- Temos uma pendência, majestade, que urge resolver.
- De que se trata?
- Daquela província egípcia afastada, aonde um grupo de rebeldes vem causando transtornos ao governo local, gerando insubordinação e dificultando a vida dos seus habitantes.
Necessário decidir como solucionar o problema.
Percebendo que o assunto tendia a estender-se, Aisha afastou-se, buscando um recanto discreto, de onde poderia ouvir o que era dito sem nos incomodar com sua presença.
- E o que meu conselheiro sugere?
- Analisei o assunto e julgo que o melhor seria enviar um grupo para lá com o objectivo de estudar a situação.
Verificar o motivo das queixas dos rebeldes, e, se justas, tentar resolvê-las da melhor maneira possível.
Creio que assim evitaremos problemas maiores, além de quebrarmos a hostilidade dos revoltosos, gerando vínculos de amizade.
- E se não for possível resolver dessa forma?
- Então, as medidas deverão ser mais duras, para contê-los.
Era o mesmo Creso de sempre.
Ponderado e firme.
- Como sempre, tens razão.
Não interessa ao faraó criar desentendimentos com as províncias.
E quem poderia comandar a operação?
Ouvi.
- Temos um hábil negociador, que é Dano, além de excelente líder. Iria acompanhado de um contingente do exército para impor respeito e mostrar sua autoridade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2020 7:46 pm

E, em caso de combate, estaria preparado para atacar.
- Muito bem. Aprovo tua sugestão.
E quando estariam prontos para partir?
- Quanto antes, majestade.
O problema já se estende mais do que deveria.
- Manda-me Dano.
Falarei com ele. Algo mais?
- Não. Por enquanto é só.
Vou procurar Dano agora mesmo.
Creso saiu e voltei-me para a linda Aisha, que repousava em almofadas, examinando uma peça de arte que ficava numa mesinha.
- Ouviste nossa conversa? - perguntei, acercando-me dela.
- O que achaste de Creso?
- O mesmo homem de sempre. Gosto dele.
Tem sempre uma sugestão oportuna e lógica.
- É verdade.
Notaste algo de estranho nele?
- Não. Notei apenas que tem muito carinho por ti, meu rei, o não é difícil de entender, porque eu também o tenho.
- Achas mesmo?
- Sem dúvida.
Quando te olha, o faz como se o fizesse a um filho querido.
Mas, o que tens? Parece que voltaste a ficar triste.
Foi algo que eu te disse?
- Não, minha querida.
Não foi nada. Esquece.
Todavia, uma avassaladora nuvem de tristeza envolveu-me.
As palavras de Aisha aumentaram ainda mais minhas dúvidas.
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