LUZ ESPÍRITA
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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

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Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo - Página 8 Empty Re: Asas da Liberdade - Jerónimo Mendonça/Célia Xavier de Camargo

Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 03, 2020 8:26 pm

32 - Atingido pela traição
A partir daquela noite, Malec tinha verdadeira dificuldade em esconder seus sentimentos por Neila.
A jovem e ele ficavam muito tempo juntos, aproveitando as horas de sono do eunuco, a quem Asnah continuava a levar, ao cair da noite, a bebida com o sonífero.
Durante esse tempo, Neila foi inoculando no amante ideia contra o faraó, mostrando-lhe, sempre que possível, as facetas negativas e cruéis do soberano;
e o orgulhoso oficial, indignado com a falta de consideração e respeito, além da ingratidão de Cambises, quem sempre servira com honra e lealdade, reserva e discrição, num momento de revolta, exasperado, acabou por contar à amada o que na realidade acontecera com o pai dela.
Deixou claro o desinteresse de Cambises pela vida do ancião, não obstante afirmasse o contrário.
Malec relatou, inclusive, diante da encolerizada moça, a farsa que cercara a execução de Ramendi, guarda real a quem o soberano teria "supostamente", conferido a responsabilidade de zelar pelo seu velho pai, e concluiu:
- Ramendi morreu para encobrir, perante tua pessoa - a quem Cambises queria agradar -, o descaso e a indiferença dele, que prometera solenemente zelar pela vida do teu pai, quando na realidade o havia abandonado à própria sorte.
- Diz-me, então, onde está meu pai?
O que aconteceu com ele? - perguntou ela com esperança na voz.
- Quando Rafiti e eu fomos até a casa de teu pai, após o sonho profético que tiveste, ele já havia morrido.
Lamento, Neila, dar-te essa triste notícia, mas não acho justo que continues pensando que teu pai está bem, em algum lugar.
- Maldito! Mil vezes maldito!
Cambises afirmou-me que meu pai estava bem, mas que, ao ficar sozinho, preferira transferir-se para outra cidade, onde residia com um velho amigo - murmurou ela rilhando os dentes.
Com lágrimas amargas descendo pelo rosto, diante dessa revelação, realmente enojada pelo egoísmo, indiferença e falsidade de Cambises, Neila deixou-se invadir por um ressentimento surdo e avassalador, predispondo-se, agora com mais determinação, a destruí-lo.
Mais tarde, Ratan apresentou-se para falar com ela.
Discretamente, notificou-a que já sabia como agir; e que o momento certo seria no templo, quando Aisha estivesse se preparando para as bodas reais.
A prisioneira quis detalhes, mas o anão afirmou julgar mais prudente que ela desconhecesse os pormenores da operação, com vistas à própria segurança dela.
Neila concordou, e separaram-se.
No fundo, Ratan sabia que os sacerdotes não perderiam a ocasião de agir, rancorosos e vingativos como eram, e já estava a par do que se tramava dentro do Grande Templo de Amon, sem que ele precisasse mover uma palha para conseguir seu objectivo.
Porém, ser-lhe-ia muito útil que Neila acreditasse na participação dele no episódio, ficando credor da gratidão dela, a quem desejava ter por aliada, e, no devido tempo, retirar do caminho de seu soberano.
Enquanto tramavam às minhas costas, eu passava o tempo ao lado de minha querida noiva, aproveitando todas as oportunidades para gozar da sua presença tão doce, que me era tão necessária quanto o ar que eu respirava.
Infelizmente, chegou o dia em que teríamos de nos separar.
Eu trazia o coração opresso, apertado por estranhas sensações de perda, de vaticínios horrendos, sentindo no mais íntimo do ser como se aquela fosse a última vez que veria minha doce Aisha.
Vendo-me tenso e desanimado, ela procurou suavizar a situação dizendo com ternura:
- Meu querido! Estaremos separados fisicamente por apenas três dias, nada mais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 03, 2020 8:26 pm

Tranquiliza tua alma, desenruga a fronte, despe essa capa de desânimo que te envolve e não dês atenção a maus presságios.
Sei que essa insegurança decorre de me amares, mas eu também te amo e estou com o coração partido por afastar-me de ti.
No entanto, este é o preço que precisamos pagar para permanecermos juntos e felizes para o resto da vida.
Depois, não nos separaremos mais.
Lembra-te de que três dias passam rápido e que, ao cabo desse tempo, irás buscar-me no templo.
Vamos, não quero mais ver-te assim!
Desanuvia a mente e aproveitemos os momentos de convívio que nos restam... - disse ela, passando a mãozinha pela minha fronte, numa carícia suave, como se quisesse expulsar da minha cabeça os maus pensamentos.
Respirando fundo, sorri, fitando-a com ternura.
Abraçamo-nos e beijei-a com ardor.
Conversamos ainda por mais uma hora, até que o sumo sacerdote, com seu séquito, veio buscá-la para conduzi-la ao templo.
Despedimo-nos e ela caminhou para fora da sala, acompanhada pelos sacerdotes.
Ao cruzar a porta ainda virou-se, lançou-me um olhar cheio de amor e acenou delicadamente.
Depois foi embora.
Durante esse período, procurei trabalhar bastante, ocupando minhas horas.
Resolvi várias pendências, assuntos que se arrastavam havia longo tempo;
reuni-me com os conselheiros e ministros diversas vezes, preocupado com a falta de notícias do exército que partira para o deserto da Líbia;
decidimos, em Conselho, uma nova expedição bélica, que visava atacar Cartago, poderoso porto marítimo, tomando todas as providências para concretizar essa acção no menor espaço de tempo possível, ficando Dano responsável pelo exército e tudo o mais que se fizesse necessário a uma viagem de longo curso;
resolvemos, também, levar adiante uma outra expedição guerreira para o sul, com o objectivo de atacar a Etiópia, atravessando o território da Núbia;
o resto do tempo, eu passava pensando em Aisha.
No segundo dia, resolvi visitar Neila, que não via fazia meses.
A prisioneira estranhou ver-me, mas cumulou-me de atenções e carinhos.
Perguntei como tinha sido sua visita pela capital, e ela olhou-me de forma diferente, como se surpresa por ter tocado no assunto, depois relatou:
- Gostei muito, majestade.
Mênfis é uma bela cidade, tem lugares muito interessantes.
Fez uma pausa e prosseguiu:
- O que mais me impressionou, porém, foi um sítio em ruínas, fora da cidade. Conheces?
- Ruínas? Não, realmente não as conheço.
- Pois deverias conhecê-las.
São muito... interessantes.
- Ah!... Como assim, interessantes?
Explica-te melhor, Neila.
Aquela conversa causava-me grande mal-estar.
Sem saber a razão, liguei essa conversa e o que Neila dizia com os sonhos que, desde que chegáramos a Mênfis, aterrorizavam-me mais do que de costume.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 03, 2020 8:26 pm

Fiquei impaciente, incomodado, comecei a suar frio, a sentir falta de ar.
Ela notou e resolveu mudar de assunto.
- Bobagem. Nem sei por que disse tal coisa.
A propósito, ouvi dizer que te vais casar novamente.
Com novo brilho no olhar, agora mais interessado na conversa, concordei:
- É verdade.
Dentro de poucos dias celebrarei meu casamento com Aisha.
- A noiva é muito bela, segundo afirmam.
- Sim, é belíssima.
E eu a amo mais que a própria vida.
Aos poucos voltando ao normal, a essa lembrança a saudade de Aisha bateu fundo em meu peito.
Queria ficar sozinho.
Sem poder suportar por mais tempo a presença de Neila, despedi-me dela, vendo as marcas da decepção em seu rosto.
Contudo, não via razão para estar ali, com outra mulher, quando sentia tanta falta de Aisha.
Só conseguia lembrar-me de que, no dia seguinte iria, com toda a pompa, buscá-la no Grande Templo.
Antes de sair, pareceu-me ouvir Neila dizer entre dentes:
- Jamais te casarás com ela...
- O que disseste? - indaguei, voltando-me surpreso.
Com sorriso amarelo, curvou-se numa reverência:
- Vida longa e glória ao faraó!
Deixei os aposentos intrigado. Teria me enganado?
Conservava a nítida impressão das palavras de Neila.
Ganhando o imenso corredor, porém, resolvi não dar atenção ao incidente.
Bobagem! Devo ter-me enganado.
Entrementes, Ratan trabalhava para realizar seus objectivos.
O anão era leal a mim até à morte, por isso, diante das situações que me envolviam e que julgava serem negativas, decidira agir para libertar-me delas.
Desse modo, queria afastar Aisha e Neila por acreditar que ambas poderiam causar minha destruição.
Assim, aceitara a colaboração de Neila para afastar Aisha, mas ao mesmo tempo, planeava desaparecer com Neila, utilizando-se de Malec, em quem notara o interesse pela bela prisioneira.
Ardiloso, Ratan tinha contactos e informantes em todos os lugares, inclusive no templo.
Certamente, ele contava com o apoio da casta sacerdotal, e sabia o que se tramava dentro do santuário, uma vez que, apesar do sumo sacerdote ter concordado com meu casamento com Aisha, no fundo os sacerdotes sentiam-se cheios de profunda revolta e humilhação por terem sido obrigados a engolir essas bodas que execravam;
jamais uma sacerdotisa poderia deixar o Grande Templo de Amon para unir-se a alguém, mesmo que essa pessoa fosse o faraó do Egipto.
Gananciosos, não se lembravam, porém, que esse casamento, em vias de realização, não seria consumado à revelia da casta sacerdotal, de vez que eles próprios haviam aceitado o acordo, em virtude do qual foram regiamente recompensados pelo soberano.
Aquele último dia transcorreu em meio a febril agitação.
O dia amanheceu esplêndido.
O Sol brilhava no céu e uma leve aragem soprava refrescando o calor e trazendo bem-estar.
Acordei satisfeito, lembrando-me de que logo estaria com minha noiva.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 03, 2020 8:26 pm

Meus auxiliares banharam-me e ungiram-me com óleos aromáticos; em seguida, vestiram-me regiamente; sobre o traje dourado, nos ombros trazia o manto de púrpura fechado por presilhas de ouro; na cabeça, a dupla coroa branca e vermelha, símbolo do Alto e do Baixo Egipto, e, na mão direita, o ceptro e a chibata, as insígnias do poder soberano; assim paramentado, caminhei para fora dos aposentos reais.
O séquito já me aguardava, e atravessamos o palácio até a porta principal.
Desci as escadarias onde uma multidão se aglomerava para ver-me passar; o povo tinha muito interesse em tudo o que dizia respeito ao seu faraó e, transpirando as notícias de que iria buscar a bela noiva no Grande Templo de Amon, desde as primeiras horas da manhã aguardava ansioso.
Sentei-me no trono, uma liteira de ouro maciço, ancorada por varões do mesmo material, carregada por uma dezena de grandes e fortes escravos núbios.
Mais afável, contra meus hábitos, acenei com a mão e a multidão delirou.
Lentamente fizemos o trajecto do palácio real até o templo, onde os religiosos nos aguardavam.
Ao chegar, fui recebido pelo grande sacerdote, já paramentado para a cerimónia.
Somief pareceu-me mais pálido do que de costume, e sua cabeça raspada, mais branca.
Ao povo era vedado o acesso à cerimónia, e apenas uma comitiva restrita e a guarda real puderam me acompanhar.
Após todos se acomodarem, teve início a cerimónia, que em nada me interessava, ansioso por ver minha noiva.
Em dado momento, as trombetas soaram e, por uma grande porta, vi surgir um pequeno vulto.
Era Aisha.
Vestida toda de branco, com um traje longo e esvoaçante, trazia os longos cabelos escuros delicadamente entremeados com pequenas flores róseas, e as madeixas, deixando ver as flores aqui e ali, caíam-lhe pelas costas, produzindo lindo efeito.
Jamais a vira tão encantadora.
Parecia uma deusa, diáfana e leve, a caminhar pela nave.
No centro do amplo recinto, sobre um degrau, havia uma espécie de mesa rectangular, toda fechada, de cerca de uns três pés de altura, de granito negro;
nas laterais, contornando a mesa, artísticas pinturas de deuses egípcios enfeitavam o granito num belo efeito decorativo, o mesmo acontecendo com a parte de cima.
Nos quatro cantos da mesa, a uma distância de aproximadamente quatro pés, postavam-se tripés de ouro com vasos cilíndricos do mesmo metal, cravejados de pedras preciosas; das brasas acesas, exalava-se um odor acre e penetrante.
Aproximando-se da mesa, Aisha foi colocada sobre ela e permaneceu deitada, impassível.
Em seguida, o sumo sacerdote disse algumas palavras se referindo à importância da cerimónia, e, na sequência, proferiu uma oração a Amon-Rá, sendo acompanhado pelos demais sacerdotes, ajoelhados.
Depois, recebendo uma pequena vasilha, também de ouro, contendo o que parecia ser uma erva, lentamente passou a contornar a mesa, enquanto pulverizava essa substância sobre o corpo de Aisha.
Ao terminar, ergueu os braços para o alto, conclamando o deus Amon-Rá para fazer-se presente e expressar sua vontade soberana:
se julgasse que a sacerdotisa deveria ser liberada de seus votos, que ela permanecesse ali, como estava.
Se não, que o deus a levasse consigo para ser julgada no Amenti.
Nesse instante, ao mesmo tempo, quatro sacerdotes jogaram algo nos tripés e uma cortina de fumaça começou a se erguer, espalhando-se sobre toda a mesa e encobrindo Aisha.
Tudo foi muito rápido.
Meu coração começou a bater freneticamente, diante do inusitado.
Sem saber a razão, o facto de não estar vendo Aisha me apavorou.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom maio 03, 2020 8:27 pm

Esse deus teria realmente o poder de levá-la consigo?
Num átimo, abri a boca para dar uma ordem impedindo que aquela cerimónia absurda prosseguisse, quando um grito abafado ecoou de todas as bocas.
A fumaça, que se condensara durante alguns segundos à nossa frente, se esvaia aos poucos, deixando ver a mesa completamente vazia!
Indignado e perplexo, levantei-me, exigindo explicações do sumo sacerdote.
- Onde está Aisha?
O que fizeram com ela, seus malditos?!...
Numa reverência que tinha mais orgulho que humildade, Somief respondeu:
- Majestade! Nada há a fazer.
Estamos diante da vontade soberana do nosso deus.
Amon-Rá, não concordando com o casamento, levou tua noiva consigo.
Nesse momento, uma grande confusão já se instalara no templo.
Com um grito desesperado, que ecoou lugubremente nas altas paredes do recinto, corri para a mesa, examinando-a.
Impossível! Como ela poderia ter sumido, assim, diante de todos?!...
Ante o inusitado da situação, fiz um gesto rápido e, enquanto alguns oficiais da escolta prenderam os religiosos, mantendo-os afastados, Rafiti e os demais membros da guarda real puseram-se a esquadrinhar cada pedacinho da mesa, cada pequena ranhura, tentando encontrar um dispositivo, uma fresta, uma abertura pela qual Aisha pudesse ter sido criminosamente retirada dali.
Tudo em vão.
- Revirai cada canto deste templo, do chão ao teto, por menor que seja.
Minha noiva deve estar em algum lugar.
Obrigai estes miseráveis a falarem!
Por horas os guardas reviraram todas as dependências do templo, sem encontrar vestígios.
Exausto, acabei por despencar em uma cadeira.
Rafiti, aproximando-se, sugeriu:
- Majestade, melhor que aguardes no palácio.
Aqui não temos como proteger-te no caso de algum ataque.
Nunca se sabe o que pode acontecer; não estás livre de que um grupo de rebeldes resolva insurgir-se, aproveitando a confusão reinante.
Ademais, tua noiva parece ter-se evaporado no ar.
Talvez tenha sido mesmo levada por Amon-Rá.
Ao ouvi-lo, pude entender como funcionava a mente de todos.
Rafiti, apesar de persa, também parecia acreditar nesse absurdo, isto é, que Aisha fora levada pela divindade.
Eu não desejava afastar-me dali, porém, entendi a preocupação do meu chefe da guarda.
Talvez o melhor fosse retornar para o palácio e, ali, tomar decisões.
Sentia-me arrasado.
Reuni o Conselho expondo a situação;
conselheiros e ministros foram unânimes em afirmar que não havia o que fazer.
Perplexos, embora achando difícil de acreditar, só viam uma realidade:
a sacerdotisa fora levada por Amon-Rá ao seu reino.
Todos concordaram que era impossível Aisha ter sido retirada de sobre a mesa de cerimónias, diante dos olhares de todos os presentes, sem ser vista.
- Aquela mesa deve ter alguma abertura, um segredo muito bem camuflado - aduzi, não admitindo outra hipótese.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 04, 2020 7:45 pm

- Se tal abertura existisse, majestade, teria sido descoberta.
A guarda real examinou tudo, em minúcias - considerou Ciaxares, com profundo pesar.
Impotente para resolver a questão, com a mente em desalinho, sem saber o que fazer, uma vez que não acreditava que ela sumira, mas sofrendo intensamente por não poder vê-la mais, deixei-me envolver por uma tempestade de angústia, ódio da casta sacerdotal, inconformado diante daquilo que, apesar do meu poder soberano, não conseguia mudar.
Cai ao chão sob terríveis convulsões, revolvendo-me em agonia.
Chamado às pressas, o médico veio e socorreu-me.
Levado para meus aposentos, os criados colocaram-me no leito e dormi durante muitas horas.
Ao acordar, estava sem forças, incapaz de uma reacção, por pequena que fosse.
Minhas energias haviam quase que se esgotado, deixando-me apático e febril.
Mais tarde mandei chamar Rafiti, que, preocupado com meu estado de saúde, permanecia na antecâmara, e veio incontinenti.
Aproximou-se do leito aflito.
- Alguma novidade? - indaguei.
De cabeça baixa, o fiel guarda respondeu:
- Infelizmente não, majestade.
Tudo continua do mesmo jeito.
Reviramos tudo: todos os espaços, salas, quartos, corredores, aléias, os jardins internos, tudo. Sem resultado.
- Usaste a tortura? Obrigaste-os a falar?
- Sim, majestade.
Todos repetem a mesma cantilena:
Aisha foi levada por Amon-Rá.
- Não desistas. Continua procurando.
Vigia-os dia e noite.
Coloca homens disfarçados dentro do templo.
Alguém há de abrir a boca.
- Sim, majestade. Mais alguma coisa?
- Não. Estás dispensado.
O tempo foi passando e nunca mais tivemos notícias de minha querida Aisha.
Em meus momentos de solidão e de tristeza, eu reflectia sobre tudo o que acontecera.
Lembrava-me da última vez que vira minha noiva, belíssima, caminhando até a mesa cerimonial;
parecera-me um tanto estranha, como se estivesse alheia ao que acontecia;
tal estado, porém, poderia talvez até ser normal ante o momento.
Ter-lhe-iam dado algo para beber, para evitar qualquer reacção de sua parte?
Ela me parecera até um tanto sonolenta.
Talvez! De que outro modo ela teria desaparecido sem emitir um grito, sem que se ouvisse qualquer som no recinto?
Uma coisa era certa:
os sacerdotes deveriam estar exultantes com o facto;
levaram vantagem em tudo, pois ficaram com os bens e com a sua sacerdotisa.
Na verdade, o clero se vingara do faraó daquela forma horrível, separando-me de Aisha, fazendo-me pagar pelo atrevimento de desejar possuir uma sacerdotisa consagrada, por seus votos, ao templo.
Mas não era só isso.
Ali, nas terras do Egipto, eu era o invasor, o inimigo que se apossara do trono e do poder, e isso eles nunca poderiam aceitar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 04, 2020 7:46 pm

Agora eu estava de mãos atadas.
Tinha convicção profunda que Aisha estava viva, mas nada podia fazer, pois seu paradeiro era um mistério impenetrável.
Restava-me continuar procurando sem descanso, sem jamais desanimar.
Aos poucos, voltei à vida normal, uma vez que o Império não podia parar.
Mas uma imensa tristeza e amargura se instalaram em meu íntimo.
Por dentro, eu havia mudado.
Aquele ímpeto que me jogava para frente, a ambição de conquistas, de vitórias, de aumentar cada vez mais o Império persa, a energia com que lutava durante um combate, tudo isso desaparecera, só permanecendo a impotência para descobrir o mistério que encobria o desaparecimento da doce Aisha.
Todavia, fora decidido em Conselho que iríamos conquistar outros territórios da África, e o próximo passo seria anexar Cartago, o grande porto marítimo, que nos seria de grande utilidade por sua posição estratégica.
Abalado em virtude dos últimos acontecimentos, todas as decisões haviam ficado em suspenso, mas era preciso dar continuidade ao nosso plano.
Mesmo porque um contingente do nosso exército partira para o deserto da Líbia e, após conquistar o oásis de Amon, ficaria aguardando ordens para atacar Cartago, por terra.
Então, era imprescindível ultimar os preparativos para a partida.
Dano incumbira-se de cuidar de tudo.
O exército partiria pelo Nilo, até o Delta, em seguida continuaria pelo mar Mediterrâneo.
Depois expedimos um mensageiro, buscando obter a colaboração dos fenícios, hábeis navegadores e cuja frota marítima era fundamental para atingirmos a conquista de Cartago.
Preocupava-nos, apenas, a falta de notícias do contingente que partira para a Líbia, sem saber o que estava acontecendo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 04, 2020 7:46 pm

33 - Derrota na Núbia
A resposta da frota fenícia tardava.
No entanto, não podíamos esperar mais, pois o tempo era precioso.
Assim, confiando no apoio dos fenícios - que até aquela data eram nossos aliados -, conquanto não houvesse chegado nenhuma anuência explícita deles unindo-se a nós no ataque a Cartago, optamos por colocarmo-nos em marcha, para ganhar tempo.
Porém, havia outro problema igualmente grave:
O contingente do exército enviado para o deserto da Líbia tampouco dera notícias, gerando ansiedade e preocupação.
A frota egípcia navegava pelo Nilo fazia alguns dias quando, atracada para repor víveres, viu aproximar-se um correio cavalgando a toda pressa.
O mensageiro chegava empoeirado, cansado, mas satisfeito por cumprir sua missão, que ele sabia de extrema importância para o Imperador.
Entregou a mensagem a um oficial, que a enviou ao almirante, comandante-em-chefe da frota.
A notícia era péssima:
os fenícios recusavam-se a colaborar com o exército persa no ataque a Cartago.
Em vista dessa informação, após analisar o assunto com os outros oficiais, o almirante resolveu enviar um mensageiro a Mênfis e permanecer ali atracado, aguardando as determinações do soberano.
Concomitantemente a esse facto, grave por si mesmo, outro aconteceu que viria a piorar ainda mais a situação egípcia.
Transpirando a notícia de que a frota fenícia se recusara a colaborar no ataque a Cartago, os tripulantes, em sua maioria composta por fenícios, igualmente aderiram ao boicote, recusando-se a participar do ataque a Cartago, antiga colónia fenícia.
Desse modo, o correio partiu levando ao faraó a notícia da situação singularmente agravada.
Ao retornar, trazia a resolução do faraó, que não poderia ser outra:
ordenava ao soberano o retorno imediato da frota, uma vez que os fenícios eram imprescindíveis para a concretização dos planos egípcios.
Além disso, não havia chegado ainda notícia alguma do contingente mandado para a Líbia, o que tornava a campanha absolutamente inviável.
Em meu gabinete de trabalho, após despachar o portador, dispensei o escriba e fiquei sozinho, cabisbaixo e pensativo.
O sonho de conquistar Cartago, o poderoso Império mercantil do Mediterrâneo, caíra por terra, e eu sofria ao pensar que fôramos derrotados sem ao menos ter lutado.
Sempre me julgara omnipotente, jamais supondo que algum dia poderia ser derrotado; e o orgulho, o malsinado orgulho que me dominava a alma recusava-se a aceitar essa realidade, conquanto impotente para mudá-la.
Reconhecia, porém, que, como estrategista, fora imprudente, pois jamais os fenícios aceitariam participar de ataque a uma colónia fenícia.
Em outras circunstâncias, teria tido um acesso de fúria, gritado, agredido meus assistentes, mandado matar meia dúzia de súbditos, dando vazão à agressividade e à violência, jogando a culpa de minhas desditas e insucessos sobre aqueles que estavam ao meu redor.
No entanto, após a perda de Aisha, mais brando e sem vigor, não tinha ânimo nem disposição para agir.
A cólera em mim tornara-se concentrada e mais perigosa.
Esse fracasso, atingindo-me fundo, interiorizou-se gerando ressentimento, rancor e desejo de vingança contra aqueles que causaram tal situação e que eu julgava traidores.
Todavia, decidido a reverter essa maré ruim, lembrei-me de que, de nossos projectos, ainda faltava conquistar a Etiópia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 04, 2020 7:46 pm

Desse modo, após o retorno da frota, levamos alguns meses preparando-nos para o novo ataque.
Para vencer a melancolia e a apatia que me dominavam, conclui que necessitava de acção para tentar esquecer os infortúnios.
Assim, resolvi partir para a Etiópia no comando do exército.
Tomada a decisão, senti-me mais animado e, numa madrugada, parti à frente das tropas, que se repartiram seguindo uma parte pelo rio e outra por terra, atravessando a Núbia, um território desértico.
Todavia, não sei se em virtude do meu estado de ânimo ou pela vontade dos deuses, nada deu certo.
Desde o começo da viagem, tudo saiu errado, como se uma onda de mau-agouro houvesse nos envolvido.
A Núbia, uma terra nua que acreditávamos poder atravessar sem maiores dificuldades, recebeu-nos com garra e valentia.
De alguma forma, seus habitantes souberam da invasão egípcia e nos esperavam.
Não eram bem equipados como os soldados persas e egípcios, mas combatiam com muita coragem e determinação, causando-nos expressivas perdas.
A verdade é que não levamos em conta que os núbios conheciam bem seu território, praticamente todo ele desértico, e nos surpreenderam com investidas;
desprevenidos para responder ao ataque, levamos desvantagem.
Outro factor grave que enfrentamos foi o da falta de comida.
Em consequência da inesperada reacção núbia, levamos mais tempo do que pretendíamos atravessando seu território, o que nos levou à escassez de alimentos.
Em outras campanhas guerreiras, os habitantes dos lugares por onde nosso exército passava, por admiração ou temor do poderio bélico persa, ajudavam-nos com víveres e água, o que não aconteceu em relação à Núbia.
Além disso, devido à temperatura extremamente elevada e às escaldantes regiões desérticas, nossos soldados caíam na areia, incapazes de prosseguir, obrigando os que estavam em melhores condições a socorrê-los.
Em determinado momento, desanimados, não tivemos outro recurso senão retornar para salvar o que restava do nosso exército.
A frota, atacada pelos núbios, foi em parte destroçada, e os navios restantes foram obrigados a fugir.
A infantaria e os carros de combate, que se locomoviam por terra, fizeram um regresso dramático para o Egipto:
pelo caminho iam abandonando nas areias do deserto os animais e soldados mortos, os feridos que não conseguiam caminhar, os doentes, os atacados por enfermidades várias, quase mortos e impossibilitados de acompanharem o exército.
Assim, aproximamo-nos de Mênfis abatidos, derrotados, esgotados, com soldados enfraquecidos pela fome, pela sede e pelas doenças; o que sobrara do nosso contingente mal podia caminhar, arrastando-se pelas estradas.
A campanha foi um fracasso, uma vez que fomos obrigados a retornar da Núbia, sem termos chegado ao nosso objectivo: a Etiópia.
Do invencível e glorioso exército persa pouco restava.
Na ocasião, comemorava-se certa festividade religiosa de grande valor para os egípcios.
Lembro-me que, à mesma época do ano, alguns meses depois da entrada dos persas em Mênfis após a rendição da cidade e a consequente deposição do faraó Psamético iria realizar-se essa festividade, da qual eu não pretendia participar.
Creso, meu conselheiro, ponderou alguns dias antes sobre a importância do meu comparecimento a essa festa:
- Majestade, o faraó do Egipto é tido como um deus, e, em última análise, é o sacerdote supremo, conquanto delegue essa função a um sacerdote.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 04, 2020 7:46 pm

Assim, até para reforçar tua liderança perante o povo, que se mostra descontente, é imprescindível que compareças.
Com a água do Nilo voltando ao nível normal, a cerimónia marca o início da semeadura, com pedidos aos deuses, especialmente a Ísis e Ápis, para que todo o Egipto tenha fartura e não falte alimento ao povo.
Diante do bom-senso do amigo, concordei, embora de má vontade.
Não tinha o menor desejo de assistir a cerimónias longas e fastidiosas.
Todavia, resignei-me.
Chegando a ocasião, logo cedo fiz com que me vestissem regiamente.
A corte, avisada de antemão, também se preparara condignamente.
Assim, foi com grande aparato que me dirigi ao templo levando oferendas de vulto para agradar ao clero, sempre ambicioso e insaciável.
Avisados de que o faraó para lá se encaminhava com uma grande e luxuosa comitiva, os religiosos se encheram de alegria.
Os sacerdotes, paramentados para a ocasião, tendo à frente o sumo sacerdote, vieram receber-me no local sagrado, inclinando-se perante seu faraó, mas não com a humildade que eu gostaria.
Recordo-me de que me irritei com seus semblantes satisfeitos e orgulhosos.
No fundo, eles desejavam dizer a todos:
"Vêde! O invasor se humilha perante nossos deuses!"
Porém, certo de que era o melhor a fazer, a partir daí, a cada ano voltava a participar da cerimónia, com tolerância e serena resignação diante daquilo que não podia evitar.
Entramos em Mênfis num lindo dia de Sol.
A capital se encontrava toda enfeitada, trajada festivamente para a ocasião.
Os barcos enfeitados de bandeirolas, esteiras coloridas nas janelas das casas e as ruas apinhadas de populares que desejavam participar da festa.
Aproximamo-nos e vimos o sumo sacerdote oficiando a cerimónia, dando graças aos deuses pela promessa de fartura para todo o Egipto.
Ao ver-nos, os religiosos arregalaram os olhos, surpresos.
Certamente nosso exército causava péssima impressão, com os soldados rotos, sujos, queimados pelo Sol escaldante do deserto, expressão esfomeada nos rostos e quase se arrastando pela via pública.
Pareceu-me que, entre a perplexidade e a piedade, luziu nos olhos deles, especialmente nos do sumo sacerdote, um ar de orgulho satisfeito por verem o faraó retornar derrotado.
Aquilo acordou em mim os brios do guerreiro, a dignidade e a altivez do soberano.
Adiantei-me em meu cavalo, e o povo, ao reconhecer seu faraó, inclinou-se reverente.
Sem opção, os sacerdotes, tendo à frente Somief, inclinaram-se igualmente.
Com a fronte erguida, ostentando na cabeça a coroa do Alto e do Baixo Egipto, e nas mãos as insígnias do poder, esqueci o cansaço e caminhei erecto e orgulhoso, enquanto meu peito se enchia de cólera.
Colocaram-me diante de um simples animal, o boi Ápis, considerado sagrado pelos egípcios, reverenciado como um deus.
Revoltado, recusei-me a prestar-lhe homenagens.
Ao contrário, desejei mostrar aos egípcios que Ápis era apenas um animal, nada mais.
Embora eu não fosse ligado à religião alguma, considerava-me seguidor de Ahura-Mazda, e, de qualquer forma, irritado, colocava-me contra os deuses egípcios, defendendo a religião que Ciro introduzira na Pérsia.
O sumo sacerdote começou seu discurso, que me pareceu outra provocação, pois claramente se referia ao deus Ápis, um animal, como se fosse o mais importante ali naquele momento e estivesse acima de mim, o faraó do Egipto e Imperador da Pérsia.
Deixei-me dominar pela ira, sem atinar nas consequências do meu gesto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 04, 2020 7:47 pm

Num átimo, saquei da minha espada e enterrei-a no boi, para mostrar-lhes que não era um deus imortal, mas apenas um animal perecível como qualquer outro.
O golpe foi tão rápido e certeiro que ninguém pôde impedi-lo.
Diante do meu acto, o sumo sacerdote e os religiosos ficaram estáticos, sem conseguir esboçar sequer uma reacção.
Apalermados, tanto os assistentes quanto os religiosos não sabiam o que fazer.
Em seguida, sob terrível assombro dos presentes, Ápis cambaleou e, em seguida, desabou no chão com todo o seu peso.
Só então, os sacerdotes se jogaram sobre seu deus, levantando os braços em gritos de desespero, a suplicar a ajuda dos Imortais, rezando para que ele se salvasse.
Seus lamentos soavam estranhamente no meio da multidão que igualmente se desesperou, pondo-se a gritar e a bradar.
Toda a corte ali presente também não conseguia acreditar em tamanha desgraça, e os nobres, de braços erguidos, igualmente suplicava a ajuda dos deuses.
Todavia, não obstante suas orações e suas súplicas, Ápis morreu, e a dor deles era inenarrável.
A multidão, que ficara em suspenso aguardando o desfecho do meu ato tresloucado - e que não conseguia se aproximar em virtude da intensa aglomeração -, informada da grande tragédia que se abatera sobre o Egipto, demonstrou uma indignação sem precedente, visto que, segundo suas crenças, a morte do deus Apis significava má sorte para todo o país.
De prontidão, o exército, reunindo forças, mesmo abatido precisou interferir.
A guarda imperial, sob o comando de Rafiti, com precisão posicionou-se à minha volta, cercando-me, para que o povo enlouquecido não me atingisse.
Um dos sacerdotes, desejando evitar um mal maior, indicou uma saída pouco conhecida, uma ruela que mal se percebia entre dois muros, e assim fui retirado daquela confusão o mais rápido possível e em segurança.
A partir desse episódio, em que ofendi publicamente a religião egípcia, as coisas só fizeram piorar, declarando-se um verdadeiro estado de guerra entre persas e egípcios.
Diante dessa situação, resolvi agir com rigor.
Já que eles preferiam colocar-se contra seu soberano, a ralé egípcia iria enfrentar o poder da ira de Cambises 2º.
Com minha guarda pessoal e grupos bem aparelhados do exército, organizei invasões a túmulos reais, profanando-os e matando a todos os que se opunham à nossa acção.
Exumei múmias sem respeito algum pelos mortos e pela tradição religiosa egípcia.
Invadi templos, destruí e queimei seus ídolos, tudo no afã de descobrir o que me interessava: os tesouros.
Ouvia referências às antigas maldições existentes, a que estariam sujeitos àqueles que profanassem os túmulos e os templos, mas nada disso me importava.
Ao contrário, como o deus Ápis morrera, acreditava que com isso iria destruir para sempre as arcaicas superstições dos egípcios.
Todavia, numa dessas incursões, frustrado por não conseguir descobrir-lhes os tesouros, muito bem guardados, enchi-me de fúria.
Estávamos num templo e alguns sacerdotes haviam sido trazidos para serem interrogados.
Ajoelhados no piso de mármore, com a cabeça no chão, entre os braços, aguardavam minha decisão.
Após sujeitos à inquirição por várias vezes, prosseguiam afirmando não saber de tesouro algum, e não ignoravam que seriam executados.
Conheciam meus métodos.
A resistência deles, porém, humilhava-me e enchia-me de cólera, porque compreendia que não adiantava matá-los sem obter as respostas de que precisava.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 04, 2020 7:47 pm

Justo naquela hora chegou um mensageiro vindo da Pérsia.
Trazia a informação de que alguém que afirmava ser o príncipe Esmérdis, meu irmão desaparecido, havia-se apossado do trono persa e era apoiado por muitos nobres.
Uma revolução estava em andamento e os aliados exigiam a presença do Imperador na Pérsia para conter os avanços do usurpador.
Pressionado pela gravidade da notícia que acabara de chegar, uma tempestade de sentimentos atingiu-me a cabeça.
Eu sabia perfeitamente do desaparecimento de Esmérdis, mas a notícia deixou-me sobressaltado, afinal ninguém vira o corpo de meu irmão.
Durante anos ficara tranquilo, certo de que ele estava realmente morto, mas e agora?
Após ler a mensagem, troquei um olhar com Rafiti, que me fitava assustado, embora fizesse leve sinal, tranquilizando-me.
Todavia, à minha frente, outra situação exigia providências ante o silêncio dos religiosos, que se recusavam a falar.
Sob imensa tensão, acabei tendo uma crise.
Cai no chão, estrebuchando e babando, completamente descontrolado, diante do assombro de todos.
Rafiti, que estava próximo, não me perdia de vista.
Sabendo como agir nessa circunstância, com agilidade correu e, enfiando a mão em minha boca, puxou-me a língua enrolada;
depois, pegando um pequeno lenço de linho branco que eu trazia num bolso da túnica amassou-o como uma bola e colocou-o entre os meus dentes.
Os demais observavam terrivelmente assustados, inclusive os religiosos.
Os guardas da escolta, sob as ordens do chefe, preocupados ao ver-me naquele estado, imediatamente tiraram-me dali, transportando-me de volta ao palácio real, totalmente esquecidos dos sacerdotes.
Acomodado em meus aposentos, logo em seguida entrou o médico que, avisado, com presteza me atendeu.
Passada a crise, dormi por muitas horas, sem dar-me conta de nada.
Após esse episódio que, como tempestade de areia no deserto não pode ser contida, a população de Mênfis foi informada da doença do faraó.
E a crença dos egípcios em seus deuses aumentou ainda mais, pois consideraram que a enfermidade que eu já tinha, mas que eles ignoravam - fora causada pelas minhas iniquidades.
Era a resposta dos deuses!
A justiça divina castigava-me pelos crimes que eu cometera.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 04, 2020 7:47 pm

34 - [b]O retorno[b]
Em vista da situação com que me deparava, tomei a decisão de partir para a Pérsia em defesa de meu trono.
A permanência no Egipto tornara-se insustentável em virtude dos últimos acontecimentos.
Havia transformado o Egipto em uma satrapia, isto é, numa província do Império persa.
Dessa forma, coloquei em ordem os assuntos pendentes, tomei providências para manter a governabilidade do país e nomeei Ariandés, um de meus homens de confiança, como sátrapa.
Navegando pelo Nilo, parti para a Pérsia com o que restou do exército, parte da corte persa, minhas esposas e concubinas.
Debruçado sobre a amurada, observava as paisagens das florescentes culturas às margens do rio, os canais que levavam as águas das cheias fertilizando as áreas de cultivo por grande extensão do seu leito;
via os camponeses entregues às suas ocupações, cuidando da terra para que as sementes produzissem fartamente o trigo, o linho, a cevada;
as pequenas embarcações de pescadores, entregues ao seu labor, tirando do rio os peixes necessários para sua subsistência e para seu comércio;
via as olarias, onde homens faziam tijolos com o lodo do rio e que seriam utilizados nas construções;
os bairros pobres e apinhados de gente.
No entanto, meu pensamento estava longe.
O retorno à Pérsia não era o que eu esperava, pois a fragorosa derrota na Núbia enchera-me de tristeza e frustração;
fora mal informado pelos meus conselheiros e subestimara o valor dos núbios.
Nessa hora de infortúnio, apenas a presença de Aisha poderia levantar-me o ânimo.
Mas ela se fora e a saudade torturava-me cada vez mais, deixando um vazio no coração.
Depois dela, nenhuma outra mulher me despertaria a atenção.
Minhas esposas e concubinas eram belas, atraentes e desejáveis, mas eu não conseguia interessar-me mais por qualquer uma delas.
Deprimido, a vida perdera todo o sentido para mim.
Deixando o Nilo, adentramos o Mar Mediterrâneo, prosseguindo viagem.
A partir da Síria, o resto do trajecto seria feito via terrestre.
A frota permaneceu ancorada em território amigo, e partimos.
O percurso era longo e sujeito a paradas para reabastecer, tratar dos animais e descansar do árduo esforço de um dia inteiro de viagem no lombo dos cavalos.
As mulheres, as crianças e os idosos iam abrigados em carroças.
Certo dia, ainda atravessando o território da Síria, repousava das canseiras do dia em minha tenda, quando Malec entrou, solicitando falar comigo.
Com um sinal, ordenei que se aproximasse.
Em voz baixa, ele disse:
- Majestade, Neila deseja falar-te com urgência, a sós.
- O que deseja ela?
- Ignoro majestade.
Afirmou-me, apenas, que era do teu interesse.
Parece que tem uma grave comunicação a fazer.
Intrigado, concordei:
- Se é assim, trazei-a à minha presença.
Malec saiu e voltou pouco depois acompanhado de Neila.
Apesar da precariedade das condições, a jovem apresentou-se vestida com belo traje verde-água, que lhe realçava os olhos verdes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 04, 2020 7:47 pm

No pescoço trazia riquíssimo colar de ouro, brincos nas orelhas e braceletes no antebraço do mesmo metal, jóias com que eu a presenteara.
Estava deslumbrante.
Ao vê-la, não pude deixar de admirar-lhe a beleza.
A um gesto meu, oficiais, amigos e auxiliares, todos saíram da tenda.
Agora sozinhos, mandei que ela se acomodasse num tamborete a meus pés.
- Muito bem.
Desejavas falar comigo e aqui estou.
De que se trata?
Neila lançou-me um olhar envolvente, titubeou, dando a impressão de que procurava as palavras certas, depois falou:
- Majestade!
Sei como estás amargurado pela perda de tua noiva Aisha... e também preocupado com outros problemas.
No entanto, a vida continua e tens muito tempo pela frente...
Um tanto entediado, eu a interrompi:
- Não sei aonde queres chegar, bela Neila.
Explica-te melhor.
- Cambises, há muitos anos permaneço a teu lado e aprendi a conhecer-te.
Por outro lado, sabes do meu amor por ti.
Definho aos poucos sem tua presença, sem teus carinhos.
Não me relegues à solidão, eu te peço.
- Não me aborreças com essas bobagens.
Sê breve, O que desejas, de facto? - perguntei impaciente.
- Por que não te casas comigo?
Agora, já não tens motivos para negar-me essa alegria! - respondeu com ardor incomum.
Sumamente irritado com seu atrevimento, retruquei:
- Neila, já te afirmei uma vez e volto a repetir:
aqui, eu tomo as decisões.
Sou o Imperador da Pérsia e sei o que me convém.
E não pretendo, nem nunca pretendi, casar-me contigo.
Malec fez-me entender que tinhas algo urgente para dizer-me e que era do meu interesse.
Se soubesse que era essa a tua intenção, não teria concordado em receber-te.
Ela ajoelhou-se e, de cabeça baixa, humilde, desculpou-se:
- Peço o teu perdão, majestade.
Fui inconveniente, reconheço.
Todavia, tenho realmente algo de muito grave para dizer-te.
- Pois fala! - ordenei enérgico.
Ela respirou fundo e, novamente procurando as palavras mais adequadas, disse:
- Majestade! Existem factos que ignoras e que são do teu absoluto interesse, preciso de algumas garantias.
Uma delas é que prometas desposar-me.
Perplexo diante da sua petulância, redargui irado:
- Com que então, mulher, pensas fazer uma barganha comigo em troca dos teus segredos?
Quem pensas que és?
Como ousas propor-me tal acordo?
Não sabes, porventura, que se eu quiser vomitarás o que sabes de qualquer maneira, mesmo que seja sob tortura?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg maio 04, 2020 7:48 pm

Diante da minha reacção, assustada, a tremer da cabeça aos pés, seus olhos verdes arregalados me fitaram, percebendo tardiamente que fora longe demais.
- Perdão, majestade! Perdão!...
- Pois agora fala, mulher, antes que eu chame meus guardas!
Com lágrimas a rolar pelo belo rosto, ela finalmente entrou no assunto:
- Majestade, o segredo que tenho a revelar-te diz respeito ao desaparecimento de Aisha.
Relatou-me, então, em voz baixa, porém perfeitamente audível:
soubera por alguém bem informado, que a sacerdotisa Aisha não estava morta, mas muito bem guardada no próprio templo de Amon.
Que, em virtude da insistência do faraó em desposá-la, os sacerdotes haviam planeado o sumiço dela diante de todos para que ninguém pudesse duvidar do poder de Amon-Rá, que não compactuara com o casamento de sua serva.
Com a respiração presa, em suspenso, eu acompanhava-lhe as palavras, tenso e ansioso.
Se realmente era verdade o que ela me confidenciava, aquilo batia com o que sempre acreditei:
Aisha, minha querida Aisha, estava viva!
Então, sem poder conter-me mais, perguntei aflito:
- Como eles a retiraram de lá? Diz-me!
- A mesa em que ela estava era dotada de uma abertura muito bem camuflada, acompanhando os desenhos da pintura, e absolutamente imperceptível ao toque.
Quando a fumaça a cobriu completamente, mesmo que por poucos segundos, foi o suficiente para que alguém, accionando o mecanismo, fizesse-a cair num alçapão e, dali, para um local muito bem guardado, nos subterrâneos do templo.
- Então eu tinha razão! Sempre tive razão!
Era exactamente o que eu pensava, mas que não pude provar, porque meus guardas não conseguiram descobrir a saída secreta.
Ah!... Mas agora eles me pagam!
Voltarei lá com o exército e não descansarei enquanto não descobrir em que lugar está minha Aisha.
Preparava-me para bater palmas chamando alguém, quando Neila me impediu:
- Não faças tal coisa, majestade!
- Por que não?
- Não conseguirias libertar a sacerdotisa.
Se alguém atacar o templo e se aproximar do local onde ela está, o carcereiro tem ordens explícitas para matá-la imediatamente.
Sentei-me de novo, sentindo-me impotente, decepcionado e sem forças.
- Então, nada poderei fazer para libertar a mulher que eu amo e por quem daria a própria vida?
- Sim, majestade.
O sangue subiu-me à cabeça.
Numa tempestade íntima sem precedentes, com os olhos congestos e o coração acelerado, virei-me para Neila com ódio agarrando-a pelo pescoço.
Eu não tinha dúvidas, de que era verdade o que ela me afirmara, pois descrevera exactamente o que aconteceu no templo, sem estar presente.
- Diz-me: como soubeste de tudo isso?
Quem é teu informante?
- Ratan, senhor.
Ao ouvir o nome do anão, em quem eu confiava, afrouxei os dedos que, qual tenazes, ameaçavam-na de estrangulamento;
Neila desabou no tapete, com a respiração opressa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 05, 2020 7:56 pm

Com expressão enlouquecida, cai na cadeira que me servia de trono nas viagens.
Então, Ratan, a quem eu protegera, a quem dera tudo, que gozava da minha confiança irrestrita, traíra-me vergonhosamente?
Sabia de tudo e nada me dissera, mesmo diante do meu sofrimento?
Peguei o copo no qual bebia antes da chegada de Neila e que permanecera numa mesinha ao lado, e levei-o aos lábios, sorvendo-lhe todo o conteúdo.
Alguns minutos depois, minha respiração tornou-se difícil, um mal-estar terrível apossou-se de mim.
Levei as mãos ao pescoço para abrir a túnica, como se ela me impedisse de respirar; ao mesmo tempo, levantei-me tentando chegar até a porta, mas não consegui.
Cai no tapete, inconsciente.
Apavorada, ao ver-me naquele estado, Neila correu até a saída, gritando por socorro.
Malec, que estava nas imediações, correu ao ouvir-lhe os gritos;
os guardas de plantão se apressaram a entrar para ver o que estava acontecendo.
Dentro da tenda, Malec, o primeiro a chegar, logo seguido pelos demais, viu-me caído no chão.
Imediatamente colocaram-me no leito, e o sacerdote-médico, chamado às pressas, chegou esbaforido.
Examinou-me cuidadosamente, mas não chegou à conclusão nenhuma sobre meu estado.
Ministrou algumas gotas calmantes, julgando fosse uma crise, como tantas outras;
fez algumas rezas, colocou um amuleto no meu peito, mas tudo em vão.
Como a tenda já se encontrava cheia de curiosos, Neila, muito assustada, puxou Malec para fora, arrastando-o para um lugar isolado no meio de alguns arbustos.
- Vamos embora, Malec.
Fujamos! Não podemos ficar aqui.
- O que fizeste, Neila?
- Nada. Porém, somente eu estava com Cambises na tenda.
Se acontecer alguma coisa com ele, irão prender-me.
Além disso, algumas pessoas sabem do nosso relacionamento e tu serás igualmente envolvido.
Tanto temos desejado uma nova vida!
Não achas que o momento seja adequado?
Malec reflectia, procurando febrilmente encontrar uma saída para a mulher que ele amava.
Depois concordou:
- Quem sabe tens razão?
No momento, todos estão muito preocupados com o Imperador e nem se preocuparão em nos procurar.
Assim, teremos algumas horas de vantagem para fugir, colocando a maior distância possível entre nós e a guarda de Cambises.
Decisão tomada, foram avisar Asnah da fuga; em seguida, rapidamente Malec e Neila juntaram algumas roupas e pertences, como moedas e jóias, alimentos, água e, pegando três cavalos, fugiram aproveitando a escuridão da noite.
Quando amanheceu o dia, aquele que fora Cambises 2º, Imperador da Pérsia, estava morto.
Acompanhara todas as providências sem saber o que acontecia.
Via-me planando um pouco acima do leito, enquanto meu outro corpo permanecia imóvel no leito, e também via o médico a meu lado sem saber o que fazer.
Ele chamou mais dois médicos e trocaram ideias, sem chegar a nenhuma conclusão.
Apavorado, tentei voltar para o corpo e não consegui.
Sentia dores pelo corpo, como se estivesse sendo queimado vivo e pus-me a gritar por socorro, mas ninguém parecia ouvir-me.
Cansado de gritar e de chorar, fiquei encolhido num canto, vendo as pessoas que chegavam.
Umas estavam preocupadas pelo meu estado; outras, satisfeitas por ver-me naquela condição e torcendo para que eu morresse; outras, indiferentes à minha situação, preocupavam-se apenas com seus interesses.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 05, 2020 7:56 pm

Ali naquele canto, acocorado, sentindo muita dor, um mal-estar intraduzível em palavras, ouvi Zeiu, meu médico, dizer ao povo que ali estava:
- Comunico-vos que os deuses chamaram nosso Imperador para seu reino.
Cambises 2º, Imperador da Pérsia, acaba de morrer.
Novamente pus-me a gritar, alucinado:
- Não! Não estou morto!
Estou vivo! Vivo!
Socorro! Socorro!...
Nesse instante, comecei a ouvir um barulho ensurdecedor.
Era um bando que chegava fazendo o maior estardalhaço, como nuvem de gafanhotos.
Ao vê-los, gelei de pavor; eram os mesmos seres vingativos que me atormentaram a vida toda.
As mulheres de vestes e véus negros, com o peito aberto e sem o coração; os homens de cujas bocas foram extirpadas as línguas e muitas outras criaturas, algumas enforcadas, outras queimadas, além de pessoas que eu prejudicara em vida, como meu irmão Esmérdis.
Todas, porém, cheias de satisfação, por verem meu sofrimento.
Arrastaram-me consigo e os tormentos que passei ninguém poderá sequer imaginar.
Por longos anos estive nas mãos deles, encarcerado.
Lembrava-me de que não era a primeira vez que isso acontecia.
Sofri todos os tormentos que alguém pode sofrer.
Torturaram-me, espancaram-me, submeteram-me às maiores atrocidades, além da fome, do frio enregelante, da sede perene.
Todavia, não há sofrimento que não chegue ao fim.
Quantos anos se passaram?
Perdi a noção do tempo.
Depois de muito sofrer e muito chorar, certo dia joguei-me no solo ressequido e, recordando-me de tudo o que minha mãe me ensinara, elevei o pensamento aos imortais e, com o coração mais abrandado pela dor, fiz uma oração suplicando o socorro dos deuses.
Não sei quanto tempo permaneci chorando e repetindo a minha súplica.
De repente, notei que, à minha frente, uma fumaça azulada se condensava aos poucos.
Logo, uma imagem apareceu: era um homem de cabelos brancos e barba bem aparada, de olhar doce e sorriso terno, que me estendia os braços com carinho.
Fitei-o surpreso.
Parecia-me alguém conhecido, mas não sabia quem era.
- Não me reconheces? - murmurou.
Ao ouvir aquela voz, lembrei-me da minha infância feliz e cai em pranto convulsivo:
- Mestre Aziz! És tu mesmo?...
- Sim, meu filho querido.
Estou aqui para ajudar-te. Descansa agora.
Serás levado para um local onde receberás todo o tratamento de que necessitas.
Agradece, Kambújiya!
Agradece ao nosso Deus que me permitiu socorrer-te.
De repente, senti-me tão fraco que não conseguia falar ou me levantar.
Dois homens trouxeram um lençol de linho e deitaram-me nele;
depois, segurando nas pontas, transportaram-me para algum lugar.
Extremamente cansado, adormeci quase que de imediato.
Ao acordar, estava num local aprazível.
Era um quarto claro e agradável, com uma grande janela que dava para um jardim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 05, 2020 7:57 pm

Do leito, além de onde estava, eu via as flores, o céu azul; ouvia o canto dos pássaros.
Julguei que estivesse num lugar de bem-aventurados.
Fiquei ali por algum tempo, sendo tratado com carinho e delicadeza por médicos e enfermeiras.
Parecia-me que já estivera naquele local, embora não lembrasse quando isso acontecera.
Fui informado de que era um lugar para tratamento de espíritos necessitados que já haviam transposto o Grande Portal da morte.
Aprendi muito e soube que todos os espíritos voltavam muitas vezes ao mundo material em novo corpo, e que a existência era bênção divina para que todos os seres pudessem progredir cada
vez mais.
Quase recuperado, recebi a visita de Aziz.
Conversando, perguntei a ele sobre meus pais, Ciro e Moa.
- Não estão longe e tu logo poderás vê-los.
- Por que ainda não vieram ver-me?
Aziz pensou um pouco e respondeu com brandura:
- Querem evitar que te sintas humilhado diante deles por tudo o que aconteceu.
Por isso aguardam que estejas mais fortalecido e mais feliz e consciente da realidade e do que deves fazer pela tua própria melhoria.
Baixei a cabeça, envergonhado.
Sim, eu errara muito.
Cometera actos terríveis, crimes hediondos, dos quais agora não me orgulhava.
Descansar nem um pouco.
Naquele momento fitei Aziz, que sempre fora como um pai para mim, e considerei:
- Agradeço-te a dádiva da tua presença.
Não fosse por ti, eu ainda estaria sofrendo na região das sombras.
O que te faz interessar-te por mim, o ser desprezível que reconhece nada merecer?
A entidade veneranda sorriu suavemente e em seus olhos brilhou a luz da emoção quando disse:
- Somos conhecidos de longa data, Kambújiya, e laços de afecto nos ligam um ao outro.
Só lamento que, em outra oportunidade, não tenha conseguido ajudar-te como pretendia...
Fitei-o surpreso, sem entender as palavras que me dirigira.
- Como assim?
Explica-te melhor, meu amigo.
Ele não respondeu.
Continuou a olhar-me em silêncio; intrigado, notei que o semblante dele se transformava aos poucos, e, admirado, vi que tomara as feições de um outro homem.
Quem era ele?
Parecia-me tão conhecido e, ao mesmo tempo, não conseguia reconhecê-lo.
De repente, algo se abriu em minha mente e lembrei. Sim, era ele mesmo:
- Ahmim! Ahmim! Meu amigo!
Incapaz de conter a emoção, joguei-me em seus braços e nos abraçamos longamente, com grande alegria.
Então, Ahmim voltara como Aziz!
Naquele momento, entendi a profundidade da misericórdia de Deus, que sempre socorre suas criaturas com amor, estejam elas onde estiverem.
Uma compreensão mais abrangente das vidas sucessivas incorporou-se ao meu modo de entender, ampliando-me a visão e mostrando-me que, no conhecimento da imortalidade da alma e das reencarnações, está a solução para nossa transformação com vistas a um futuro melhor e mais feliz.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 05, 2020 7:57 pm

35 - Epílogo
O tempo, bênção divina cuja importância nós, seres atrasados, não sabemos avaliar devidamente, é a resposta a todas as nossas necessidades, anseios e aflições.
Aos poucos, sem se deter, ele consegue vencer as maiores imperfeições, moldar caracteres, despertar consciências, difundir conhecimentos e desenvolver sentimentos mais elevados em todos os espíritos.
Muitos anos depois do retorno à espiritualidade, algo melhorado intimamente, pude tomar conhecimento do passado, recente e remoto, e da razão de certos factos.
Assim, revendo a encarnação em que fui Emil, no Egipto, pude entender a raiva que eu sentia por Cleofas e Nefert.
O ódio a Nefert, que me vendera, poderia ser explicado;
não, porém, a Cleofas, uma vez que nosso encontro foi rápido, o que não justificava o ressentimento que guardara dele, mesmo sendo um criminoso que prejudicara seus familiares, especialmente a filha e o genro.
A verdade é que já tinha encontrado antes Cleofas e Nefert, em existência anterior, como adversários, o que gerou a forte rejeição que sentia por ambos.
Quanto à Neila, ao despertar para a realidade nas reminiscências que me foram permitidas, lembrei-me de que ela fora Néftis, e, entre todas as mulheres que me assediavam com suas vestes e véus negros, era a mais vingativa, a que mais sentia ressentimento por mim.
Séculos depois, voltando à carne, nos reencontramos como Neila e Cambises e, com o esclarecimento dos factos ocorridos no pretérito, pude entender que o sentimento dela por mim, tal qual o meu por ela, era dúbio:
ora se sentia atraída por mim, ora me odiava; e pude entender, também, por que, como Cambises, fiz questão de mantê-la cativa, quando ela poderia gozar até de certa liberdade, simplesmente integrando o rol de minhas concubinas.
Intuitivamente, porém, reconhecia nela a vítima de tempos passados, agora transformada em algoz, e pronta a atingir-me.
No retrospecto que me foi dado ver, nas cenas que cercaram meu retorno ao Além-túmulo, percebi que Neila, após contar-me a verdade sobre o sumiço de Aisha, ficou apavorada quando a agarrei pelo pescoço tentando estrangulá-la.
Então, temendo-me as reacções desequilibradas, que ela tão bem conhecia, aproveitou-se de um descuido meu e despejou veneno no copo de bebida que eu havia deixado sobre a mesinha.
Neila usava um belo anel de ouro com um ónix oval, dotado de um mecanismo habilmente disfarçado: apertando-se uma pequena saliência, quase imperceptível, abria-se a tampa e, sob ela, surgia diminuto recipiente.
Ela accionou o dispositivo, que abriu, deixando cair um pó em meu copo.
Então, sem saber desse facto, procurando recuperar-me das notícias que tanto me abalaram - isto é, o destino de Aisha e a participação de Ratan no episódio -, agarrei o copo e ingeri todo o conteúdo.
O que aconteceu em seguida eu lembrava perfeitamente:
o mal-estar súbito, a respiração difícil e a consequente falta de ar, a sensação de algo a me queimar por dentro;
tentei erguer-me para pedir ajuda, mas não consegui; a dor era intensa.
Caí no tapete, inconsciente.
Naquele instante, voltaram-me as sensações que experimentei na ocasião.
O que aconteceu depois estava vívido em minhas lembranças:
a impressão de que algo de muito grave estava ocorrendo;
eu via as pessoas e não conseguia me comunicar com elas;
depois, desesperado, percebi que me julgavam morto, enquanto eu me sentia vivo e pensante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 05, 2020 7:57 pm

Tudo isso me era extremamente doloroso, mas o pior viria depois, com a chegada da falange de meus inimigos desencarnados.
Nesse ponto, o amigo espiritual que estava a meu lado achou prudente interromper o retrospecto, retirando-me daquela faixa vibratória, para que eu pudesse retornar ao equilíbrio das emoções.
Posteriormente, ao reencontrar-me com Ratan, ele se demonstrou muito arrependido e relatou-me o que aconteceu:
- Jamais quis te prejudicar, Cambises; ao contrário, pretendia proteger-te.
Só entreguei o veneno a Neila, afirmando que era seguro e não deixava vestígios, por confiar nas palavras dela.
Contou-me a história de uma concubina tua que a importunava por ciúmes de ti e a ameaçava de morte.
Suplicou-me que a ajudasse, pois tinha necessidade do veneno para livrar-se da tal mulher, ou seria morta.
Todavia, ao ver a agitação no acampamento e a confusão que se estabelecera, fui informado de que havias morrido, e, ao dar pela falta de Neila, arrependi-me amargamente do meu gesto.
Ratan suplicou o meu perdão, afirmando que jamais faria coisa alguma contra minha pessoa.
E acreditei nele, ficando tudo muito claro quando descobri que Ratan fora o antigo mago Tadar, reencarnado, o que justificou a imediata afinidade que nos uniu novamente.
Quanto à Neila, fugiu com Malec, seu antigo aliado quando era Néftis, passando o resto da vida numa pequena aldeia temendo ser descoberta.
Certa ocasião, enlouquecido de saudade e desejando ardentemente rever minha querida Aisha - embora ainda não de todo recuperado -, transportei-me com a rapidez do pensamento até Mênfis, antiga capital do Egipto.
Fui até o Grande Templo de Amon, sendo atraído para seus subterrâneos, onde, em pequeno alojamento, percebi alguém a orar.
Acerquei-me lentamente e vi uma mulher de idade avançada, mas que trazia ainda no rosto as marcas da antiga beleza.
- Aisha! - murmurei, reconhecendo-a.
Ela ergueu a fronte e esquadrinhou o ambiente, sentindo-me a presença.
Depois, seus olhos se encheram de lágrimas.
Então, sentei-me no lajedo e, com as mãos sustentando a cabeça, também chorei desconsolado, ao pensar que tudo poderia ter sido diferente, que poderíamos ter sido tão felizes juntos, mas que os sacerdotes nos separaram.
Aisha, dotada de sensibilidade, começou a pensar, e eu a "ouvia" como se ela falasse comigo:
- Querido Cambises!
Percebo que sofres no invisível, inconformado e rebelde perante as determinações divinas.
Todavia, por razões que escapam ao teu entendimento actual, não poderíamos ficar juntos.
Erramos muito no passado, e nossa separação iria acontecer de qualquer maneira, pois não merecemos ainda a felicidade.
Assim, não culpes os religiosos, eles simplesmente agiram acreditando fazer o melhor naquele momento, em defesa de Amon-Rá.
Consola-te e resigna-te.
Algum dia, em algum lugar, nós teremos direito à felicidade.
Não está longe o momento em que deixarei meu corpo material, voando ao teu encontro.
Aguarda-me com paciência e trabalha pelo teu progresso.
Que os imortais te amparem e iluminem! Vai em paz!
As palavras de Aisha envolveram-me em benéficas sensações de paz e reconforto.
A partir desse dia, mostrei-me mais disposto a vencer minhas inferioridades e a lutar por merecê-la.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 05, 2020 7:57 pm

Creso, meu fiel conselheiro, que fora salvo "milagrosamente" pelo atraso da sua execução, num ardil criado por mim para livrá-lo da morte, afastou-se de tudo permanecendo com a família em uma pequena propriedade rural;
bem idoso, quando deixamos o Egipto, ele não nos acompanhou e ali permaneceu, vindo a falecer pouco depois, ralado de amargura pela injustiça que sofrera.
Encontrei-o, algum tempo depois, e descobri toda a trama de que tinha sido vítima.
Ao sabê-lo realmente inocente, como meu pai afirmara e eu também acreditava, humildemente pedi o seu perdão.
Somos muito amigos e, através do tempo, temos nos encontrado em outras encarnações.
Preocupado pela falta de notícias dos cinco mil homens que eu mandara para o deserto da Líbia, fui atraído para lá.
O exército havia perecido de fome e de sede e
os esqueletos dos soldados ainda podiam ser encontrados na região.
Seus espíritos vagavam no areal, sem saber o que acontecera.
Compadecido da sorte deles, supliquei a ajuda dos benfeitores espirituais, que os socorreram.
Dano, que se transformara num amigo e grande general do
Império persa, prosseguindo viagem, levou meus despojos para serem enterrados na Pérsia.
Enfrentou a rebelião do meu suposto irmão Esmérdis, à qual haviam aderido muitos nobres, e venceu.
Após lutar contra outros adversários e sair vencedor, foi reconhecido como meu sucessor e tornou-se um grande imperador, que aumentou ainda mais o poderio persa.
Durante seu reinado, transformou a crença em Zoroastro, em religião oficial da Pérsia, o que foi um avanço por ser monoteísta, em contraposição à velha crença persa politeísta.
Através do tempo, reencarnei inúmeras vezes.
Envergando personalidades diversas, sofri e fiz sofrer, torturei e fui torturado, ainda causei muito mal.
Enfrentei dores acerbas até que, nesse ir-e-vir constante e alternado, ora em experiências na Terra, ora no mundo espiritual, a consciência começou a despertar, mostrando-me que recebemos sempre o que plantamos.
Então passei a entender que causando o mal receberia o mal de retorno, mas que, por outro lado, fazendo o bem, colheria bênçãos infinitas.
Dessa forma, modifiquei-me lentamente, acendendo no íntimo o desejo de ser melhor.
Ao envergar, no entanto, a vestimenta carnal, não raro me esquecia dos compromissos assumidos na espiritualidade antes do retorno ao planeta.
Tornava a errar e a me comprometer, gerando o mal e me digladiando com aqueles que eu enxergava como adversários ou inimigos.
Até que, finalmente, consegui vencer minha natureza rebelde, orgulhosa e egoísta.
No invisível, dediquei-me a trabalhar muito e a socorrer, incansavelmente, todos os que foram prejudicados por mim, graças à ajuda dos benfeitores espirituais, sempre prontos a sustentar-me os esforços no bem.
Alguns desses antigos desafectos ainda sofrem em zonas inferiores e necessitam de ajuda.
A esperança e a fé mantêm meus propósitos e acredito não estar longe o momento em que conseguirei libertá-los das amarras do ódio em que se cristalizaram por tantos séculos.
Apesar do trabalho a que me dedicava havia muitos anos, comecei a sentir a necessidade de reduzir meus clamorosos débitos com a justiça divina e também de provar as mudanças que eu acreditava ter incorporado, em definitivo, ao ser espiritual, razão por que desejei reencarnar.
No íntimo, ansiava por voltar em situação de sofrimento que me permitisse testar meus próprios valores.
Assim, planejei retornar com uma enfermidade que me deixasse inapelavelmente num leito, cego, sem fala e sem audição.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 05, 2020 7:57 pm

Os benfeitores acolheram-me a sugestão de planeamento reencarnatório com algumas ressalvas.
Um deles, de condição mais elevada, meu antigo mestre Aziz, considerou:
- Caro irmão Jerónimo.
Muito justo teu desejo de retornar às lides terrenas na reafirmação de tuas conquistas, ao mesmo tempo que trazes no íntimo o anseio de reparar débitos contraídos em encarnações passadas.
Louvamos teu propósito.
No entanto, dessa maneira ficarias restrito ao padecimento físico, utilizando a tua condição para desenvolver, especialmente, a resignação, a paciência e valores íntimos de elevação por meio da prece, em contacto com as esferas espirituais.
Todavia, considerando-se tua condição moral e espiritual, entendemos que podes fazer mais, para que teu retorno ao palco do mundo adquira novo significado pela exemplificação do Evangelho do Cristo.
Então, sugerimos que deves renascer com os talentos da fala e da audição, para que te sirvam de poderosa alavanca no exercício do bem, de que a seara de Jesus tanto necessita.
Para maior facilidade da tua tarefa - e sabemos ser este teu íntimo desejo - renascerás na Terra do Cruzeiro.
Meu coração encheu-se de alegria e a emoção humedeceu meus olhos.
Renascer no Brasil facilitaria minha tarefa, pelas amorosas disposições de seu povo e pelas conquistas espirituais existentes em terras brasileiras;
além de que, ali, a doutrina codificada por Allan Kardec avançava de maneira estupenda, contando já com um movimento espírita dedicado e actuante.
Agradeci, comovido, as sugestões dos amigos da espiritualidade, que me enriqueceram o planeamento reencarnatório com novas perspectivas de labor.
E, a partir desse dia, entreguei-me aos cuidados de irmãos responsáveis para preparar-me para a nova encarnação.
Transcorria o segundo quartel do século 20, quando renasci em território brasileiro, nasci em Ituiutaba, pequeno burgo das Minas Gerais, no Triângulo Mineiro.
Família amorosa cercou-me o berço cheio de esperanças.
Em virtude da prole numerosa e muito pobre, facilidades económicas e educacionais não me seriam concedidas;
a saúde, embora não fosse muito boa, até a adolescência me permitiu viver sem grandes problemas.
Criança ainda, conheci a fé protestante e tornei-me presbiteriano, embora sem entender direito as noções de bondade e justiça divinas.
Mais tarde, fui apresentado à Doutrina Espírita, cujos ensinamentos, trazidos pelos espíritos superiores, clarearam minha mente, ajudando-me a entender os grandes questionamentos da vida, o porquê do sofrimento e da dor, a grandeza do universo, a imortalidade da alma, a interacção existente entre os dois mundos, a lei de causa e efeito, e muito mais.
Aos dezassete anos a enfermidade manifestou-se, prostrando-me no leito aos primeiros sintomas da artrite.
Com a bênção da Doutrina Espírita a iluminar-me os caminhos, pude entender que o sofrimento era a oportunidade que o Senhor me conferia para transformar-me num ser melhor, mais brando, afável, fraterno e solidário.
E que as limitações orgânicas não seriam suficientes para prender-me ao leito e fazer-me uma pessoa apática, incapaz e sofredora.
Não! Enquanto consegui locomover-me, trabalhei quanto pude para beneficiar a todos os que me procuravam.
Quando a doença surgiu, todos os sonhos caíram por terra.
O anseio de ter uma profissão e de trabalhar para meu sustento, de me casar e constituir uma família, de ter esposa e filhos, tudo isso virou pó.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 05, 2020 7:57 pm

A princípio fui obrigado a usar muletas; depois, cadeira de rodas, até que me vi preso a um leito, sem apelação.
Ainda assim, não me entreguei.
Fundamos uma casa espírita, depois uma creche, para abrigar crianças necessitadas, de modo que as mães pudessem trabalhar e ganhar o sustento da família, uma vez que muitas dessas crianças não tinham pai.
Deus, misericordioso e bom, concedeu-me uma equipe de amigos dedicados, companheiros de outros tempos que desejavam unir-se a mim na restauração espiritual - para atendimento a todas as pessoas que nos batiam às portas, carentes de auxílio.
Aqueles mesmos que tinham sido, muitas vezes, meus cúmplices e até inimigos, hoje transformados em companheiros do bem.
Também aqueles que prejudicamos no passado retornaram para nosso convívio, agora em outras bases, como frequentadores da casa espírita, como ouvintes das palestras, para encontrar-nos renovados pelo Evangelho do Mestre.
Por verdadeira bênção divina, acabei por ficar cego, conforme planeamento feito antes da encarnação.
Viajei por todo o Brasil num veículo que era uma dádiva para quem, como eu, só podia locomover-se num leito anatómico - devido as modificações que a enfermidade provocara em meu corpo.
Desenhado sob inspiração do Alto e com a inclinação exacta para que eu continuasse encarnado, em virtude dos meus problemas cardíacos, era transportado por verdadeiros anjos encarnados.
Por meio de palestras, inspirado pelos amigos do invisível, eu procurava levar o consolo, a esperança e a alegria aos sofredores e aflitos do caminho;
ao ver-me nessa cama, a falar sobre o Evangelho de Jesus e sobre a Doutrina Espírita, a cantar pequenas melodias que aprendera e utilizava com as crianças da creche, comoviam-se e se dispunham a trabalhar, elas também, no exercício do bem.
Assim, libertei-me de ranços do pretérito.
Os olhos, antes utilizados para fazer e enxergar tantas coisas más, agora só viam o mundo espiritual, desenvolvendo-me a sensibilidade e a intuição superior;
os ouvidos, que tanto foram usados para escutar o mal, agora ouviam as reclamações das pessoas, suas queixas, seus pedidos, que eu procurava atender na medida do possível; depois de tanto aprisionar pessoas, no próprio corpo tinha agora a prisão que merecia;
o coração, tantas vezes impassível e indiferente diante do sofrimento alheio, agora apresentava uma doença cardíaca que provocava dor aguda, levando-me a entender o sofrimento das inúmeras mulheres que tiveram o coração extirpado por minha causa.
Todavia, a possibilidade de raciocinar, de pensar, era grandiosa e eu a utilizava para aprender cada vez mais;
e a voz, não raro empregada para seduzir, humilhar, condenar, servia-me agora para gerar melhores condições a quantos me ouviam falar dos ensinamentos morais do Evangelho e dos conhecimentos da Doutrina Espírita, aquela mesma voz que desejara não ter em virtude dos homens que perderam a língua e a voz para que não pudessem relatar os absurdos que pratiquei.
Por esse meio século de existência, agradeço infinitamente a Deus, que nunca me abandonou, sustentando-me nas horas mais difíceis;
esse nome sacrossanto que não me canso de louvar, em lágrimas benfazejas!
Na actualidade, no mundo espiritual, tendo a bênção de trabalhar em benefício do meu próximo, sinto-me outra criatura.
Longe da perfeição, sem dúvida, porém bem melhor do que era.
Muitas vezes percorro o espaço infinito, embevecido na contemplação das miríades de estrelas e astros que povoam o cosmos e reverencio Deus, criador do universo, curvando-me ante a perfeição da Sua obra.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 05, 2020 7:58 pm

Retorno àquelas longínquas regiões e entristeço-me com o que fizeram do Egipto, da Pérsia e de outros territórios.
A guerra, a fome, a sede e as doenças devastam populações inteiras.
O coração se me confrange e elevo o pensamento ao Alto, rogando socorro e assistência a esses povos.
Debalde tento reconhecer a antiga beleza daqueles territórios e a fertilidade do solo; em vão tento vislumbrar os fantásticos monumentos, as esfinges, as pirâmides, os templos, os obeliscos, os túmulos faraónicos.
Tudo dorme sob a areia do deserto.
Pequena parte de todas aquelas maravilhas pode ser vista, porém nada mais são que ruínas causadas pelo tempo.
Entretanto, com os olhos espirituais, contemplo aquelas imensidões, a pujança e a magnificência dos Impérios nos quais vivi.
Agora, de posse de recordações mais remotas, revejo a sumptuosidade do Egipto durante o reinado da grande rainha Hatshepsut, quando tanto mal pratiquei;
o palácio majestoso do príncipe Horemseb, teatro de tantas ignomínias, de tantos crimes, de tanta devassidão, e curvo-me envergonhado, a lamentar profundamente.
No entanto, hoje, com o conhecimento espírita a me felicitar
o coração, tento analisar todos os acontecimentos de um ponto de vista mais racional, sem que isso represente o desejo de esquivar-me à responsabilidade pelo mal que pratiquei.
A Lei do Progresso nos conduz a mudanças lentas e graduais.
Àquela época, os espíritos que habitavam a Terra, com raras excepções, eram bastante atrasados, sem compreensão da vida e da sua finalidade.
Lutavam apenas para manter a vida e conquistar territórios, riquezas e poder.
Possuíam sentimentos ainda em fase rudimentar, deixando-se levar mais pelas sensações e pelo prazer puramente material.
Com o passar do tempo e a roda das encarnações, os seres fixaram conhecimentos, passaram a distinguir o bem do mal e despertaram para ideais mais nobres e elevados.
O reinado da rainha Hatshepsut, época dos mais trágicos fatos que narrei, ocorreu 15 séculos antes da chegada de Jesus ao orbe terreno!
Precedeu até a Moisés, o grande legislador, que trouxe a primeira revelação aos homens, com as Tábuas da Lei.
A vinda de Jesus ao mundo foi revolucionária.
Colocando no amor a base da sua doutrina, exemplificou de maneira grandiosa e jamais vista as lições que nos legou, na vivência junto ao povo necessitado e sofrido.
Referiu-se a Deus como Pai, amoroso e bom, justo e sábio, que dá a cada um de seus filhos aquilo de que precisa para progredir rumo à evolução, meta a ser alcançada;
mostrou que todos somos irmãos e, dessa forma, transformou o planeta numa grande família que nos compete amar, ajudar, proteger.
Através destas despretensiosas páginas, desejei mostrar que ninguém está perdido perante a Lei Divina.
O pior criminoso terá sempre oportunidades de se transformar e de ser bom algum dia, conquistando valores ético-morais, aqueles de que Jesus nos fala em seu Evangelho, e vencendo a si mesmo por meio da mudança interior.

Podemos estar certos dessa verdade, pois o próprio Mestre afirmou:
"Nenhuma das ovelhas que o Pai me confiou se perderá."

Jerónimo Mendonça
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter maio 05, 2020 7:58 pm

36 - Sobre o autor espiritual
Jerónimo Mendonça Ribeiro nasceu em Ituitaba (MG) no dia 1° de novembro de 1939.
Sua infância foi igual à de todas as crianças:
dividia seu tempo entre as brincadeiras próprias da idade e os estudos.
Seus pais enfrentaram grandes dificuldades materiais.
Até os 15 anos de idade, Jerónimo frequentou a Igreja Presbiteriana, onde fazia palestras.
Depois da desencarnação da avó, sentiu necessidade de entender a vida no Além.
Conheceu o Espiritismo e passou a frequentar reuniões e eventos dirigidos aos jovens.
Aos 17 anos, revelou-se um bom jogador de futebol.
Foi na puberdade que sentiu os primeiros sinais da moléstia que um dia o imobilizaria:
as dores nas articulações, joelhos e tornozelos começaram a incomodá-lo.
Aos dezanove anos, foi obrigado a usar muletas:
a artrite reumatóide que o acometeu não encontrou cura na medicina e o impediu de trabalhar.
Resignado, buscou aprofundar seus conhecimentos no Espiritismo.
Mesmo preso a uma cama ortopédica, animou-se a prosseguir a pregação doutrinária que iniciara.
Por toda parte realizava palestras, acompanhado por amigos fiéis.
Recebia aplausos generosos ao fim de suas prelecções.
Às dores que o atormentavam, à impossibilidade absoluta de movimentar-se, somou-se ainda a gradativa perda da visão.
Mesmo diante de mais essa dolorosa investida, manteve-se firme e não perdeu o bom ânimo.
Entre outras instituições, fundou os centros espíritas Seareiros de Jesus, Manoel Augusto da Silva e Lar Espírita Pouso do Amanhecer.
Escreveu os livros Crepúsculo de um coração, Cadeira de rodas, Nas pegadas de um anjo, Escalada de Luz, De mãos dadas com Jesus e quatorze anos depois (em co-autoria).
Deixou ainda o esboço de uma autobiografia.
Gravou dois discos: Intimidade espírita e Obrigado, Senhor.
Recebia visitantes de toda parte, que vinham em busca do seu aconselhamento.
Foi grande amigo do médium Francisco Cândido Xavier, que tanto o admirava.
A grandeza de sua alma, em contraste com sua fragilidade física, o tornou conhecido como o "gigante deitado".
Desencarnou no dia 26 de novembro de 1989, dias depois de completar meio século de existência.
Ao terminar a leitura deste livro, talvez você tenha ficado com algumas dúvidas e perguntas a fazer, o que é um bom sinal, Sinal de que está em busca de explicações para a vida.
Todas as respostas que você precisa estão nas Obras Básicas de Allan Kardec.

Se você gostou deste livro, o que acha de fazer com que outras pessoas venham a conhecê-lo também?
Poderia comentá-lo com aquelas do seu relacionamento, dar de presente a alguém que talvez esteja precisando ou até mesmo emprestar àquele que não tem condições de comprá-lo.
O importante é a divulgação da boa leitura, principalmente a da literatura espírita. Entre nessa corrente!

§.§.§- Ave sem Ninho
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