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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 7:20 pm

− Sim, mí amigo, meus intentos permanecem os mesmos! – responde o outro. – Decidi-me por denunciar os marranos ao Tribunal, imediatamente!
− E os que te denunciaram a existência do conluio contra a tua vida, que farás com eles? Não te esqueças de que essa gente é mui perigosa! Não temes uma emboscada? Também com aqueles terás de te decidires bem rapidamente!
− Tens toda a razão, meu caro, e como não lhes vou pagar pela informação que detêm, ando a correr, sim, risco de vida, pois me poderão armar uma cilada, em qualquer canto escuso da cidade, a qualquer momento. Sabes muito bem como soem acontecer tais coisas. Ocorrem quase todos os dias...
− Estás certíssimo, D. Aníbal – concorda o outro. E batendo, insistentemente, o indicador no peito, exclama: – Voluntas pro facto reputatur!...116 E, se não te apressares, teus inimigos poderão agir primeiro, aí então...
− Tanto de um lado quanto do outro, não é mesmo? Há gente demais interessada em minha cabeça... Preciso agir bem depressa!...
− Mas, primeiro, raptarás a mocinha judia, presumo...
− Tem de ser assim, uma vez que, quando eu fizer a denúncia, também ela se achará envolvida no processo... Faz parte da família e não escaparia à prisão!
− Acaso já preparaste tudo para o rapto? – pergunta D. Fernán.
− Sim – responde o outro. – Acha-se tudo pronto; apenas aguardava o teu concurso: arranjaste os homens?
− Sim, os dois irmãos núbios já se encontram bem contratados por mim, para o serviço. Tão-somente aguardam uma ordem...
− Terá então que ser nestes próximos dias – fala D. Aníbal Velásquez. – Sei que o Tribunal já anda a receber algumas denúncias e as investiga. Segundo uma conversa que, ontem mesmo, mantive com um dos notários que lá trabalham, as perquirições sobre os denunciados processam-se, a princípio, de forma discreta, para que não se instaure o pânico, e advenha o caos; quando houver um bom número de denunciados, proceder-se-ão às prisões e aos interrogatórios. Sabes como é, as coisas deverão parecer a seguirem os trâmites legais, uma vez que o papa mantém acirrada vigilância sobre nós! E não quereremos, outra vez, ter cassado o Tribunal, mal o tenhamos restaurado em Castela...
− Seria uma lástima se isso acontecesse! – concorda D. Fernán.
– O povo de Espanha e seus soberanos ver-se-iam, uma vez mais,frustrados em seus intentos de varrerem essa imundície da Península, definitivamente! Todos queremos uma Espanha limpa e unida! Para tal, sei que ninguém andará a fazer besteira, a torto e a direito, ou chamaremos a atenção da Santa Sé...
− Sim, mas vamos ao que realmente interessa – diz D. Aníbal, a mostrar-se um tanto impaciente. – Como agiremos, então, para raptar Milagros?
− Já tenho uma estratégia – responde o outro. – Uma vez me disseste que Milagros e a irmã vão, amiúde, à catedral, para rezar, não é mesmo?
− É o que se pensa, mas, na realidade, sei tratar-se isso de bom subterfúgio que ela emprega para encontrar-se com o noivo, longe das vistas dos pais. Por suposto, não desconheces que há momentos em que a catedral encontra-se completamente vazia...
− Sim, e muita gente aproveita-se de lugar amplo, bem penumbroso e cheio de socavas, perfeitíssimo, não exactamente só para rezar... – ironiza o outro.
− Tens toda a razão – diz D. Aníbal a rir-se. – Quantas damas e donzelas de nossa cidade não encontram, na catedral, lugar perfeitíssimo para seus escusos encontros românticos?
− Eu diria até perfeito demais: quem suspeitaria de castas donzelas e de pias matronas a irem-se à igreja rezar?... Volenti nihil difficile.117 − e se abre numa gostosa gargalhada: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Ninguém, mi amigo, ninguém! – concorda o outro, também se pondo a rir.
− Afáveis e doces damas e moçoilas, que se julgam acima de quaisquer suspeitas, andam a fazer novenas eternas, que nunca se findam!... Só não se sabe para quais santos andam a rezar!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Muito bem! – exclama D. Aníbal, ora fazendo-se sério. – Afirmo-te, com toda a certeza, de que Milagros aproveita-se do lugar para encontrar-se com o noivo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 7:20 pm

− É o que meus informantes também me relataram, D. Aníbal. – observa o advogado. – Com o auxílio da irmã, que se põe devigilante, encontram-se, frequentemente, na cripta, onde dão vazão aos seus anseios amorosos.
− Que ordinários! – murmura D. Aníbal, entre dentes, cheio de despeito. – Sugerirei ao cardeal que se mantenham soldados a vigiarem o interior da catedral!
− Depois, D. Aníbal, depois farás isso! Por ora, vamos ater-nos ao que interessa: isso posto, não nos será difícil raptar a judiazinha.
− Tal mister deixarei, entretanto, aos teus cuidados, D. Fernán – diz D. Aníbal. – Tu e os pretos núbios, certamente, sabereis como agir, na catedral.
− Deixa por minha conta – diz o outro. E, apontando o dedo indicador à testa, prossegue: – Já tenho tudo planejado, aqui dentro da minha cabeça. Nada poderá dar-se errado. A ti restará, tão-somente, aguardar-nos com o carro, atrás da catedral, para conduzirmos a mocinha até Las Palmas!
− Perfeito! – exclama D. Aníbal, contentíssimo. – E já descobriste o dia em que ela costuma ir à catedral?
− Sempre pelo meio da semana, às quartas-feiras, bem de manhãzinha! – responde o advogado. – Já ficaremos combinados: o dia é depois de amanhã, logo que se finem as matinas, e as gentes deixem a catedral!
− E, para o final da semana, após o rapto confirmar-se, farei a denúncia, a envolver os parentes todos de Milagros, também o noivo e sua família, por usura e prática de judaísmo.
− O teor da denúncia pouco importa, D. Aníbal, o que se pretende, de fato, é dar cabo aos marranos todos de Espanha! – e a rir-se, satisfeito: − O que nos interessam, a priori, são os fabulosos bens que possuem esses porcos imundos!
− Tens razão! A ti e ao resto dos catelhanos, a rapina: a mim, os doces encantos de Maria de los Milagros! Nada mais almejo, nesta vida, além disso!
− Dizes assim, porque já és bastante rico! – emenda o outro. – Como ainda não atingi a totalidade dos bens que mereço nesta vida, muito ainda terei de labutar!
− Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... – ri-se o outro, com a facécia do amigo.
− És um pândego, D. Fernán!... Como se não já tivesses ajuntado uma montanha de ouro!
E os dois amigos riem-se satisfeitos. Tudo marchava para um desfecho, a contentar a ambos os apetites: para D. Aníbal Velásquez, a mulher que o matava de volúpia e paixão, e para D. Fernán Guillén, bela fatia da imensidão de bens que possuíam as duas famílias judias.
___________________________________________________________________________________________________________
114. Referência ao ectoplasma, substância fluídica que emana do corpo do médium e se presta, principalmente, à realização de fenómenos de efeitos físicos.
115. A materialização de espíritos processa-se pela condensação do ectoplasma que, segundo Gustave Geley, um dos mais sérios experimentadores de efeitos físicos, “se apresenta, em primeiro lugar, para a observação, com a aparência de uma substância amorfa, ora sólida, ora vaporosa; depois, muito rapidamente, de um modo geral, o ectoplasma amorfo se recompõe, tornando assim possível o aparecimento de novas formas, as quais possuem, quando se completa a materialização, as características anatómicas e fisiológicas dos órgãos biologicamente iguais aos dos vivos: o ectoplasma torna-se, pois, um Ser ou uma fracção do Ser, o qual, por sua vez, depende sempre do organismo do médium, organismo esse de que é uma espécie de prolongamento e em que se dá a sua reabsorção tão logo termine a experiência.” − Dr. Gustave Geley: L’Ectoplasmie et La Clairvoyance (Observations et Expériences Personelles), pág. 190, edição de 1924.
116. “A intenção é que faz a acção...”, em latim.
117. “Para quem quer, nada é difícil.”, em latim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 7:20 pm

Capítulo XI. Rapto na catedral
Na quarta-feira subsequente ao encontro do secretário do arcebispo com seu amigo D. Fernán Guillén, tudo se achava conforme o combinado entre os dois: o advogado, acompanhado dos dois núbios, todos eles encapuzados, aguardavam, ocultos em esconso e penumbrento desvão da imensa catedral, à espreita de sua vítima; eles haviam chegado, logo que as derradeiras pessoas deixavam o recinto, após o ofício religioso da manhã. D. Aníbal Velásquez, por sua vez, juntamente com seu fiel mordomo, aguardavam ansiosos, dentro do carro, estacionado aos fundos do majestoso templo.
− Credes, Señor, que tudo sairá a contento? – pergunta Gumersindo a D. Aníbal, em voz baixa.
− Estou a rezar para que assim se passe – responde o prelado, nervosíssimo. – Nada poderá dar errado, Gumersindo, ou as coisas, certamente, irão complicar-se para mim. Se formos surpreendidos pela guarda real, como haverei de justificar tal acção ao arcebispo?
− Acalmai-vos, Senhor! – tranquiliza-o o serviçal. – Nenhum castelhano, em sã consciência, nos tempos atuais, condenar-vos-á por desgraçardes uma abjecta judiazinha, nem mesmo o arcebispo!
− Tens razão! – concorda D. Aníbal, com fundo suspiro, a desafogar-lhe os nervos tensos. – Mas, se pudermos evitar o escândalo, tanto melhor, não achas?
− Sim, sem dúvida! – concorda o mordomo. E a abrir ligeiro sorriso, prossegue: − Tudo que é feito à sorrelfa, traz-nos mais sabor e prazer!
− Como roubar a mulher dos nossos sonhos?− ¡Sí, Señor! – responde o experiente mordomo. – Principalmente ao furtarmos cândida donzela, como ora fazeis!
− A propósito, Gumersindo, acha-se tudo a contento em Las Palmas?
− Sim, Senhor! Fiz exactamente como solicitastes. A casa encontra-se um primor!
− Compraste-lhe os vestidos, como te ordenei? Saibas que ela sairá desta empreitada tão-somente com a roupa do corpo e quero impressioná-la com primoroso enxoval!
− Ficai sossegado, Senhor! Adquiri tudo de excelente qualidade!
Sei que vos agradarão as roupas que lhe comprei!
− Deverão satisfazer mais à minha amada, Gumersindo...
− ¡Por supuesto, Señor... Son ropas dignas de una reina!118
Neste ínterim, dentro da catedral, o rapto de Milagros iniciava-se.
Do esconderijo onde se ocultavam, D. Fernán e os núbios puderam observar que as duas mocinhas – Milagros e sua irmã – adentravam o recinto e, para disfarçarem a sua real intenção ali, que era encontrar-se com o rapaz que já as aguardava na cripta, ambas encaminharam-se até defronte o altar-mor e, genuflectindo-se, puseram-se a rezar. Esse foi o tempo necessário para que D. Fernán e seus comparsas pusessem-se em guarda, com o propósito de atacarem as duas jovem, assim que tomassem o rumo da cripta.
− O rapaz não poderá perceber nada!... – cochichou D. Fernán aos dois pretos. – Temos de agir muito rapidamente: é preciso amordaçar a ambas, para que não tenham tempo de gritar. O judeuzinho aguarda-as lá embaixo, no interior da cripta. Entretanto, se ele perceber algo e tentar intervir, desçam-lhe o porrete, sem comiseração! Se preciso for, arrebentem-no em pedaços! Matem-no, se necessário, mas não no deixem atrapalhar o nosso propósito!
Os três postaram-se, então, de espreita, num escuro desvão que existia bem próximo à entrada da cripta e, quando as duas moças terminaram as orações, diante do altar-mor, e se dirigiam para a porta que franqueava o acesso à escada para o interior da cripta, os pretos caíram-lhe em cima, como dois espertíssimos gatos, e, rapidamente, taparam-lhes as bocas, antes mesmo que conseguissem emitir qualquer som. Num instante, os dois gigantes, cada qual carregando uma das jovens, sob os longos e potentes braços, como se fossem levíssimos fardos de panos, e, mui ligeiros, deixaram a catedral por uma das portas laterais e, em pouquíssimo tempo, estavam junto do carro onde aguardavam, ansiosíssimos, D. Aníbal Velásquez e Gumersindo.
À retaguarda, conferindo, minudentemente, se tudo saíra a contento e sem testemunhas, vinha D. Fernán Guillén.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 7:21 pm

Colocadas as jovens dentro do carro, que sequer conseguiram emitir um mínimo grunhido, de tão apavoradas que se achavam, e D. Fernán que, no momento, aproximava-se dali, ordena afoito ao cocheiro:
− Depressa! Toque para Las Palmas!
O carro sai, em disparada, e D. Fernán Guillén e os pretos núbios acompanham-no com o olhar até que ele desapareceu num canto da praça.
− Consumatum est!119 – exclama D. Fernán, com largo sorriso de satisfação aos lábios. E despede os auxiliares: − Mais tarde, depois que anoitecer, apresentem-se em minha residência para receberem o combinado!
Os negros vão-se, e o advogado, lentamente, encaminha-se para a praça. Ia caminhar, despreocupado, por algum tempo, para desafogar-se da tensão por que passara havia pouco. No horizonte, o sol dardejava seus primeiros raios de ouro, riscando fogo aos telhados de Toledo.
Nesse entrementes e depois de hora e meia, o carro que conduzia D. Aníbal Velásquez, seu mordomo e as duas irmãs raptadas adentrava os portões de Las Palmas.
Fortemente amordaçadas com lenços a cobrirem-lhes as bocas, as duas mocinhas haviam desistido de debater-se. Apenas os olhos, desmedidamente esbugalhados, quase a saltarem de suas órbitas, indicavam excessivo assombro pela situação em que se achavam, uma vez que não atinavam com o motivo daquela violência que sofriam, além do fato de D. Aníbal e seu fiel mordomo trazerem os rostos cobertos por máscaras negras, fato a lhes aumentar, ainda mais, o terror. Em pouco, os quatro deixavam o carro. D. Aníbal conduzia Maria de los Milagros, e Gumersindo, Consuelo. Voltando a debater-se, furiosamente, as jovens eram literalmente arrastadas por seus captores, até que, finalmente, foram arrojadas dentro de amplo aposento da luxuosa vivenda campestre.
Rapidamente, Gumersindo trancou, atrás de si, a porta da espaçosa câmara a chave.
− Que fareis com a outra jovem, Senhor? – já na sala, pergunta o mordomo, pouco depois, a D. Aníbal, enquanto lhe servia uma taça de vinho. – Presumo que não pretendeis manter cativas as duas.
− Não – responde o prelado. – Mais tarde nos livraremos dela.
− Acaso pretendeis eliminá-la, Senhor? – insiste o mordomo.
− Será eliminada de qualquer forma, Gumersindo – responde D. Aníbal, após sorver longo hausto do vinho. – Se não por nós, certamente, pelos inquisidores, pois pretendo, logo mais, denunciar a família toda ao Tribunal.
− Se não desejais deixar qualquer rastro, poderei dar cabo dela, lançando-a do alto do despenhadeiro, e os abutres encarregar-se-ão de limpar qualquer eventual sobra que da moçoila restar... – e se ri debochado: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Falaremos sobre isso mais tarde – diz D. Aníbal, fleumático. No momento, seu pensamento achava-se preso ao aposento onde havia pouco tinham prendido Milagros e a irmã.
− Como se acharão as duas? – pergunta o mordomo, depois de alguns instantes. – Não desejaríeis observá-las, pois não?
− E como eu faria isso, sem ser visto? – pergunta D. Aníbal.
− Também desse ponto preocupei-me, Senhor – exclama Gumersindo, cheio de si. – Pressupus que a cativa fosse, eventualmente, necessitar de algum tipo de vigilância e instalei um visor oculto à parede da câmara a qual poderá ser vigiada do quarto contíguo que, naturalmente, preparei para vosso uso...
− Bem pensado, Gumersindo! – acende-se D. Aníbal. – Por que não me contaste logo sobre essa possibilidade de vasculhar aquela câmara, às ocultas? – e, levantando-se lépido como uma lebre, convida o outro: − Vem, vamo-nos até lá! Em pouco, achavam-se no aposento contíguo ao que ocupavam Milagros e sua irmã. O mordomo, então, sem provocar mínimo ruído, aproxima-se da parede que separava os dois cómodos e, baixando pequena gravura presa à parede, exibiu diminuto orifício que se achava muito bem camuflado à pintura dum outro quadro dependurado, correspondentemente, na parede contígua.
D. Aníbal Velásquez, a exibir largo sorriso confiante, aproximou um olho da pequena abertura e espiou.
No quarto adjacente, Milagros e a irmã, sentadas sobre o majestoso leito, de mãos dadas, ainda com as feições transfiguradas pelo medo, confabulavam em voz baixa.
− Onde pensas que seja este lugar? – pergunta Consuelo à irmã que, de tão nervosa, não conseguia segurar as lágrimas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 7:21 pm

− Não sei! – responde Maria de los Milagros. – Desconheço completamente esta casa! Tenho certeza de que nunca estive aqui antes!
− Também para mim! – observa a outra jovem. – Mesmo o caminho que aqui nos conduziu é-me totalmente estranho! Nunca passei por ele!
− Percebi, tão-somente, que viemos para longe da cidade! – diz Milagros.
− E aqueles mascarados, quem serão? – pergunta Consuelo. – Tens alguma noção de quem sejam?
− Não sei... – responde Maria de los Milagros. – Mas quem desejaria raptar-nos? – e, de repente, com um salto, levanta-se da cama e exclama: − O maldito padre!... Sim, é ele!... Mesmo pelo pouco que conversou com o outro mascarado, ora lhe reconheço a voz!... Sim, é o desgraçado que vivia a molestar-me onde quer que me visse!
− Deus do céu! – exclama Consuelo, a encher-se ainda mais de terror. − Se, de fato, for ele, que será de nós?
− E, presas aqui, sob o seu jugo, corremos sério risco, mana! – e, de repente, lembrando-se do noivo, enche-se ainda mais de pavor: − E Andrés?... Será que lhe fizeram algum mal?
− É bem possível que tenham apanhado o teu noivo, Milagros, pois já lá estavam os nossos raptores, antes de nós! − Será que o mataram? – exclama a jovem, pondo-se a soluçar.
– Oh, pobre Andrés!
− Não pense no pior, querida! – diz Consuelo, abraçando-se à irmã. – O Altíssimo não terá permitido que tamanha desgraça tenha sucedido ao teu noivo! Tem fé!...
− Oh, mana! – exclama Milagros, desesperada. – E nossos pais?
Por certo ainda nada sabem sobre o nosso desaparecimento!
− Irão sofrer muito, ao descobrirem que fomos raptadas!
− Ainda se Andrés não foi covardemente assassinado, creio que moverá mundos e fundos para encontrar-nos!
− Crês que, se teu noivo ainda vive, será capaz de ligar o nosso desaparecimento àquele padre desgraçado?
− É possível, sim, minha irmã, pois eu nunca escondi do meu noivo as abjectas pretensões que aquele maldito tinha sobre mim!
Tenho a absoluta certeza de que o meu amado, por esse tempo, já andará à nossa procura.
No outro aposento, D. Aníbal espiava e, apesar de falarem aos cochichos, conseguia ouvir o que as duas irmãs faziam e falavam.
Satisfeito com a condição em que se encontrava a sua pretendida, afasta-se da parede e diz, em voz baixa, para o mordomo.
− Vamo-nos, estou contente com o que vi e ouvi; por ora, deixemo-las a acomodarem-se e a se conformarem com a nova situação, e será até bom que tenha a irmã por perto. Depois, trataremos de nos desvencilhar da outra. E, ainda, será providencial
que tu lhes leves um bom repasto, com o propósito de que, alimentando-se, tenham sono, durmam e se aquietem mais.
Importante que, enquanto a irmã aqui estiver, mantenhamos tudo dentro da normalidade possível, entendeste?
Em seguida, saem ambos do aposento, e o mordomo tratou de logo cumprir a ordem recebida. D. Aníbal, por sua vez, a ostentar feições felicíssimas, trancou-se na biblioteca. Precisava ficar a sós, para muito bem antegozar as delícias que lhe proporcionaria aquele delicioso fruto do seu tão acalentado desejo.
Passadas essas coisas e, recuando-se um pouco, no tempo, no interregno em que as jovens eram vilmente raptadas por D. Fernán Guillén e pelos irmãos núbios, o jovem Andrés, cheio de expectativas e alheio ao que ocorria com a sua amada, ansiava pelo momento em que a teria aos braços. Na cripta fracamente iluminada por um velador que pendia do tecto, preso por longa corrente, Andrés não tirava os olhos da escada recta e comprida que conduzia ao corpo da catedral. Sequer imaginava que, poucos metros acima, uma tragédia acontecia. E, como todo o procedimento feito para o rapto das duas jovens ocorrera sem que elas emitissem mínimo ruído, o rapaz nada percebeu e seguiu, pacientemente, à espera da noiva. Entretanto, o tempo transcorreu-se, e ela não veio. Por fim, concluiu ele que Milagros não viria e resolveu ir-se dali. Nada de anormal percebeu, uma vez que os raptores das jovens nada haviam deixado para trás que pudesse levantar qualquer tipo de suspeita.
Já na casa das jovens, Sara Shlomo, a mãe, inquietava-se pela demora das filhas e, enquanto ocupava-se de cozer o almoço da família, mantinha-se atenta a qualquer ruído que pudesse denunciar a chegada das duas.
O tempo passou, e chegou o meio do dia. Yaacov e o filho Benyamin chegavam para o almoço e estranharam a ausência de Milagros e de Consuelo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 10:48 am

− Onde estão as minhas filhas? – pergunta Yaacov à esposa. – Deste-lhes alguma tarefa a fazerem na rua?
− Oh, Yaacov – responde Sara, a mostrar-se bastante aflita. – Não lhes dei qualquer tarefa, não, apenas que se foram à catedral, como sempre fazem, mas, hoje, ainda não retornaram. Será que lhes sucedeu algo?
− É bem possível, Sara! – responde Yaacov, pondo-se exaltado, como lhe era do feitio, quando algo se lhe apresentava contrário. – Eu bem que nunca gostei que as minhas filhinhas fossem à rua sozinhas! A cidade anda em polvorosa com as prisões de alguns da nossa raça! Sabias que as perseguições já começaram? A coisa anda ainda meio velada, mas, logo de manhã, os esbirros do Tribunal já prenderam Abraham Goveh, a esposa e filhos, e ainda, Shimon Gabai e a família! Tu os conheces todos, não é? São gente muito boa, com algo muito peculiar em comum: têm muito dinheiro!
E a acusação?... Nenhuma que justifique tais prisões, pois são pessoas honestíssimas! E ponho as minhas duas mãos ao fogo por qualquer um deles!
− Ai, mais essa! – exclama Sara, a pôr-se ainda mais aflita. – Por Yavé santíssimo, será que o nosso martírio já vai começar?
− Temo que sim, minha cara! – responde o judeu, aflitíssimo. E chamando pelo filho: − Vamo-nos, Benyamin, alguma aconteceu às tuas irmãs! Estou com péssimos pressentimentos aqui dentro do meu coração! Tomara que se tenham, simplesmente, distraído pelo mercado da praça!
Ambos saem, e Sara põe-se a rezar, aflita. Entretanto, horas depois, retornam ambos a casa muito cansados e desanimados.
− Não nas encontraram! – exclama Sara, ao vê-los que chegavam altamente abatidos.
− O pior, minha cara, é que ninguém as viu pelas ruas!
Desvaneceram no ar, como a bruma, à chegada do sol!
− Não é possível, Yaacov, que ninguém as tenha visto! – diz Sara, a encher-se ainda mais de desespero. – Estiveram na catedral? Interrogaram as pessoas ali em redor?
− Ninguém as viu! – repete Yaacov. – Perguntamos às pessoas conhecidas, em torno da catedral; depois, pela praça, pelas barracas, pelas lojas todas; também com o sacristão e com o padre fomos ter! Misteriosamente, ninguém as viu!
− Por Yavé! – grita Sara, pondo-se a chorar. – Que será feito das minhas crianças?
− Não sei! – exclama o judeu, também se pondo a lamentar, desesperado. – Algum mal sucedeu às minhas filhas!... Não poderiam ter desaparecido, assim, do nada!
− Oh, Yavé!... Yavé!... – grita Sara, a esmurrar o peito, cheia de desespero.
− E tu, Benyamin – diz Yaacov, dirigindo-se ao filho que se punha do lado, trémulo, com os olhos a encherem-se de lágrimas −, corre, meu filho, vai à casa de Ben Hanan, a avistar-se com Andrés!
Ele é o noivo de Milagros e quem sabe não na terá visto hoje?
O rapaz sai em disparada, em busca da residência de Ben Hanan. E, algum tempo depois, estava ele de volta, juntamente com Andrés, que se mostrava pálido e cheio de apreensões.− Oh, Yaacov! – diz o jovem, abraçando-se ao pai da sua noiva.
– Mostrava-me muito apreensivo, desde a manhã, pois tinha um encontro com a tua filha, na catedral, e ela não apareceu. Sempre nos encontramos lá, às manhãs das quartas-feiras, mas, hoje, ela não apareceu!
− Oh, desgraça! – grita Sara, a desgrenhar-se toda. – Eu sabia!...
Eu pressentia essa desgraça!... – e erguendo ambos os braços, brada: − Oh, Yavé, trazei as minhas crianças de volta!
− Agora é momento de mantermos a calma! – diz Andrés, percebendo que os familiares da sua noiva entravam em grande aflição. – Em vez de entrarmos todos em desespero – que não nos levará a nada! − vamos raciocinar, juntos, a ver se atinamos com o que pode ter acontecido – e se voltando para Sara, pergunta: − Confirmas, imi120, que Milagros e Consuelo deixaram esta casa, bem de manhã, assim que clareava o dia, para irem à catedral?
− Sim! – confirma Sara, a torcer as mãos de nervoso. – Foi o que fizeram!
− Entretanto, lá não chegaram! – observa Andrés. – Eu as aguardava dentro da catedral, como sempre fazia, mas não as vi chegar! – e, depois de pensar por instantes, revela o que tinha sido, até então, um segredo entre ele e as duas irmãs: os encontros furtivos na cripta. Não havia jeito, tinha de revelar esse segredo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 10:48 am

Então, baixa os olhos e diz: − Devo confessar-vos que, especificamente, não poderia ter visto as duas chegarem, porque eu as aguardava embaixo, na cripta...
− Na cripta?! – espanta-se Yaacov. – E o que faziam, escondidos e a sós, lá embaixo?
− Não ficávamos exactamente a sós, abh121, pois Consuelo postava-se à entrada da cripta para vigiar...
− Se precisáveis pôr Consuelo a vigiar é porque boa coisa não andavam lá a fazer! – exclama Sara. – Viste só no que deu?
− Perdão... – murmura o rapaz, altamente envergonhado. – Mas não penseis que andávamos a fazer algo de errado: sempre respeitei a vossa filha!
− Creio em ti, creio em ti, meu rapaz! – exclama Yaacov, apertando as trémulas mãos do jovem, com o intuito de acalmá-lo. – Porém, o que realmente nos importa agora é descobrir o que aconteceu às minhas filhas.
− Não crês que seria importante avisarmos papai? – diz Andrés.
– Ele dispõe de muitos serviçais que nos auxiliariam sobremodo na busca de Milagros e Consuelo.
− Tens razão! – concorda Yaacov. – Vamo-nos, eu e tu, a darmos ciência desse desaparecimento ao teu pai. Quem sabe não nos auxiliará na busca?
− Tenho a absoluta certeza de que papai colocará toda a sua criadagem a serviço! Vamos!
− E tu, Benyamin, farás companhia à tua mãe! Cuida bem dela, entendeste? – ordena Yaacov ao filho.
Em pouco tempo, ambos estavam diante de Ben Hanan.
− Dizes que as tuas filhas desapareceram, Yaacov? – pergunta o secretário da rainha de Castela, altamente preocupado.
− Sim, Ben Hanan – confirma o outro. − Acham-se sumidas desde a manhã.
− Naturalmente já as procuraste pela cidade, não é assim?
− Como uma agulha num palheiro! – responde Yaacov, altamente nervoso. – Entretanto, ninguém as viu!
− Já ligaste, acaso, o desaparecimento das tuas filhas, com o pulha de D. Aníbal Velásquez?... Andrés já me confidenciou que o desgraçado andava a perseguir Milagros!
− Por Yavé! – exclama Yaacov, atónito.
E, tendo as vistas a escurecerem-se, diante da hipótese que aventara Ben Hanan sobre a causa do desaparecimento das filhas, empalidece, grandemente, e cambaleia, mas é imediatamente amparado por Andrés, que o sustém aos braços.
− Vem, senta-te aqui – condu-lo, gentilmente, o jovem, a sentar-se. Em seguida, dá-lhe um pouco de vinho a beber.
− Tens razão, Ben Hanan! – exclama Yaacov, recompondo-se, depois de um tempo. – Só pode ter sido aquele miserável o responsável pelo desaparecimento das minhas crianças!
− Já quase não tenho qualquer dúvida! – diz o secretário da rainha. – De alguma forma, o biltre anda a acelerar as coisas! − Sim! – brada Yaacov, levantando-se nervosíssimo da poltrona onde estivera sentado. – Ou o maldito açougueiro deu com a língua nos dentes, revelando-lhe a nossa intenção de assassiná-lo, ou sabe que o Tribunal já anda a funcionar e trama a nossa desgraça!
− Que história é essa de assassinar aquele demónio?! –
pergunta Andrés. – Como pudestes deixar-me à revelia desse plano? Também eu sou interessado nesse assunto!
−Achamos que devias ficar longe disso – diz Ben Hanan.
− Teu pai tem razão, Andrés! – emenda Yaacov. – Quanto menos gente souber dessa embrulhada, melhor!
− Mas eu poderia ter sido útil! – insiste o rapaz.
− Não! Não! – mantém-se irredutível Ben Hanan. – E é importante que esqueças essa parte!
− E o que achas que devemos fazer? – pergunta Yaacov. – Se o desgraçado as raptou, deverá mantê-las presas nalgum canto!
− Por certo que sim! – diz o rapaz. – Mas onde?
− Deveremos investigar, ficar de olhos pregados nele e nos seus serviçais – observa Ben Hanan. – A qualquer momento, alguém nos conduzirá ao cativeiro, se tal malefício aquele monstro, realmente, fez às tuas filhinhas, meu amigo!
− Tens razão, papai – diz Andrés. – E deveremos fazer isso imediatamente!
− E quem lá botaremos, com o fito de vigiar os passos do desgraçado secretário do arcebispo? – pergunta Yaacov.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 4 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 10:48 am

− Não será difícil encontrarmos alguém capaz de fazer isso – explica Ben Hanan. – Só não poderá ser algum de nós, ou alguém conhecido, para não se levantarem suspeitas.
− Sim, é assim que deveremos agir: o mais discretamente possível! – observa Andrés. – E, de minha parte, tudo farei para descobrir o paradeiro da minha adorada Milagros!
− Está bem – diz Ben Hanan −, deixaremos a teu encargo encontrares o espião. Sei que te mostras apto para esse mister!
− Podeis ficar tranquilos, que já sei a quem dar tal incumbência! – exclama o rapaz, enchendo-se de ânimos.
− Porém, antes, convém que especulemos por onde andará D. Aníbal Velásquez – observa Yaacov. − Algum criado da mansão arquiepiscopal, eventualmente, poderá dar-nos essa informação!
− Caro Yaacov, não creio que o pulha terá deixado a ponta da sua cauda à mostra! – explica Ben Hanan. – Entretanto, nunca se sabe...
− Sei o que queres dizer, mas deixa a meu encargo, que, se possível, tentarei obter tal informe – insiste Yaacov. – Não te esqueças de que o ouro destranca qualquer língua...
− Mormente a da criadagem... – observa Ben Hanan, irónico.
Depois, aconselha: – Mas, vai com cuidado, para não estragares tudo... Essa gente é velhaca por demais!
− Fica sossegado; sei como agir!
E, nesse comenos, enquanto confabulavam os três judeus, em Las Palmas, conforme o combinado, Gumersindo, a sobraçar avantajada bandeja de prata, contendo lauta refeição, para diante da porta do quarto onde se achavam as duas irmãs prisioneiras, apanha a chave do bolso e destranca a fechadura. Depois, bate, gentilmente, com o nós dos dedos à porta e abre-a.
À chegada do mordomo de D. Aníbal Velásquez, as duas jovens, tomadas de grande pavor, abraçam-se uma à outra, em busca de protecção mútua.− ¡Buenas-tardes, Señoras! – diz o mordomo, gentil.
E, diante dos assustados olhos das duas mocinhas, coloca a bandeja sobre um guéridon, dispõe os pratos, monta a mesa com esmerado apuro e, em seguida, estendendo, gentilmente, a mão, convida, a fazer longa mesura:
− Com os cumprimentos de Sua Excelência, Senõras!
− Quem nos mantém prisioneiras, Senhor? – enche-se de coragem e se atreve a perguntar Maria de los Milagros, com a voz trémula.
− Depois, Sua Excelência, em pessoa, dar-vos-á tal informação, Señora! – responde, polidamente, o mordomo. – Por ora, convém que vos alimenteis, pois já se faz bem tarde! – e, depois de longamente curvar-se, deixa as duas a sós.
− Que te parece, Consuelo? – pergunta Maria de los Milagros à irmã, mal a porta se fechava atrás de Gumersindo. – Achas que devemos comer?− Não sei, minha irmã – responde a outra, receosa. – Por outro lado, nada comemos desde a manhã! Achas que iremos aguentar prolongado jejum?
− Por mim, não tenho fome – responde Milagros. – Entretanto, convém que comamos um pouco, pois deveremos nos manter fortes e saudáveis para daqui tentarmos fugir!
− Tens razão – concorda Consuelo −, se não tivermos forças, como iremos escapar?
Ambas, então, aproximam-se da mesa e se põem a experimentar os deliciosos acepipes preparados pelo mordomo de D. Aníbal Velásquez.
− Não fosse a terrível condição em que nos encontramos – observa Maria de los Milagros −, diria que tudo se encontra mui saboroso, não achas?
− Deliciosíssimo, mana! – concorda Consuelo, a lamber os dedos. – Quem cozeu esta comida é dono de prendas ímpares!
− Sim, mas e agora? – pergunta Milagros. – Que faremos?
Vamos nos sujeitar a essa condição, sem nenhuma luta?
− Tens razão, e, juntas, precisamos pensar numa solução – responde Consuelo. E se encaminhando para a janela, observa a paisagem que se abria sobre a profunda escarpa do vale do rio122. – Tu reconheces essas plagas?
− Não, nunca estive por aqui antes! – responde Milagros, a perscrutar, minudentemente, a paisagem que se abria à ampla janela. – A não ser o vale do rio, tudo para mim é desconhecido!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 10:48 am

− Esta casa deverá localizar-se rio abaixo, pois, nem mesmo ao longe, é possível ver-se o casario, nos limites da cidade – observa Consuelo, forçando a cabeça para um dos ângulos da janela que lhe possibilitasse ver mais longe.
− Tens razão – concorda Milagros. E, baixando os olhos para o fundo do vale, continua: − Pela posição das espumas que fazem as águas, ao chocarem-se com os penedos, o rio corre para lá!
− Sim, e, então, estamos a oeste da cidade – conclui a jovem. – Decididamente, nunca estivemos por estes lados!
− E não conhecemos ninguém que possua vivenda por cá! – diz Milagros. – A não ser, possivelmente, aquele desgraçado que vive a perseguir-me!
− Ora podemos concluir, com certeza, tratar-se do miserável! – e pondo-se em desespero: − Oh, que quererá ele de nós?
− De mim sei o que deseja tão-somente: desgraçar-me! – exclama Milagros. – Que mais poderá ser?
− Mas e de mim? – pergunta a outra, trémula. – Se deseja apenas a ti, que fará comigo?
− Diante de mim, em ti não tocará num só fio do teu cabelo, pois juro, por Yavé, que lhe arrancarei os olhos com as minhas unhas! – brada Milagros, a fremir os lábios de tanto ódio. – Oh, se imaginasse o quanto o abomino!... E se, acaso, pensa que irei submeter-me à sua lubricidade, passivamente, engana-se redondamente! Prefiro, antes, a morte!
− Oh, mana, que será de nós? – pergunta Consuelo, com os olhos rasos de lágrimas.
− Tem fé, querida! – diz Maria de los Milagros, abraçando-se à irmã. – Por este tempo, papai e Andrés – se não estiver morto! – andarão à nossa procura e, com toda a certeza, moverão céus e terra para encontrarem-nos! Tem confiança, que tudo acabará bem!
− Gostaria de ter essa tua certeza! – exclama a jovenzinha, pondo-se a soluçar. – Mas o meu coração está amarrado, cheio de fundas apreensões!
− Vai, tranquiliza-te! – encoraja-a a irmã, embora tivesse o próprio coração também carregado de profundos receios. – Em breve, papai e Andrés virão em nosso socorro! Bem o verás!...
A tarde passou, sem que surgissem quaisquer novidades; caiu a noite, e as duas irmãs, premidas pelo cansaço advindo da forte comoção por que passavam, acabaram por adormecer, abraçadas uma à outra.
A grande casa, então, mergulhou em pesado silêncio, e tão-somente o choroso pio de um mocho solitário, pousado no telhado, ouvia-se, como a pressagiar as acerbas dores que adviriam ao coração das duas pobres jovens ali cativas...
___________________________________________________________________________________________________________
118. “− Naturalmente, Senhor! São roupas dignas de uma rainha!”, em castelhano.
119. “− Está acabado!”, em latim.
120. “Minha mãe”, em hebraico.
121. “Pai”, em hebraico.
122. Referência ao rio Tago, que corta um dos limites da cidade de Toledo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 10:49 am

Capítulo XII. Consuelo
D. Aníbal Velásquez acorda-se bem disposto, à manhã subsequente ao sequestro das duas jovens. Antes de deixar o leito, espreguiça-se, vigorosamente, e sorri. Seus olhos apresentavam brilho ímpar, a indicarem a ventura extrema que lhe ia à alma.
− Finalmente! – murmura ele, a irradiar excessiva felicidade. – Doravante é saborear a minha doce prenda, bem devagar, sem atropelos...
Em seguida, com um salto lépido, deixa a cama e, encaminhando-se até a ampla janela do aposento, num gesto abrupto, com ambas as mãos, abre o cortinado de pesado veludo azul-escuro e espia, minuciosamente, a deslumbrante paisagem que se lhe revelava aos olhos: lá embaixo, no fundo da garganta, corria o rio Tago, a serpentear suas águas brilhantes por entre a profusão de escolhos, a dificultarem-lhe a louca corrida vale abaixo.
Por um tempo, seus olhos vivazes perscrutam a estonteante paisagem do vale do rio. Depois, volta-se e, devagar, principia a vestir-se.
Em pouco, apresentava-se à sala de jantar, onde o fiel mordomo aguardava-o, de prontidão, ao lado de mesa posta com fino e copioso desjejum.
− ¡Buen día!...– exclama o prestimoso serviçal, saudando-o com efusão. − Dormistes bem, Senhor?
− Maravilhosamente bem, Gumersindo! – responde D. Aníbal Velásquez, sem esconder a patente satisfação que lhe ia à alma. E, sentando-se ligeiro à mesa: − Serve-me, meu caro, pois tenho a fome dos lobos!− Oh, confesso-vos, Senhor – diz o mordomo, enquanto servia seu amo −, que já perdia a esperança de ver-vos, novamente, assim tão disposto e feliz!
− E não é que a sorte anda a sorrir-me outra vez, Gumersindo? – diz D. Aníbal, a sorver, duma xícara, longo gole de fumegante leite de cabra. – Agora tenho em mãos o tesouro por que venho anelando há tanto tempo!
− ¡Por supuesto, Señor! – exclama o outro, com marota piscadela. – A avezita dourada acha-se presa, na gaiola, à vossa disposição!
− A propósito, Gumersindo – diz D. Aníbal, a baixar, intencionalmente, a voz −, quero que, logo mais, dês um fim à outra... Já sabes como?
− Sim, Senhor – responde o mordomo, de pronto. – No alcantil...
− Porém, não muito próximo da casa; não quero que nenhuma suspeita recaia sobre mim, entendeste?
− Ficai sossegado, Senhor – diz o serviçal. – Sei como agir. Depois, despencando daquela altura, que poderá sobrar dela? Além do mais, os lobos e as raposas incumbir-se-ão de limpar-lhe os ossos... Nada restará, entendeis?
− Assim espero! – exclama D. Aníbal, secamente. – E faça com que Milagros de nada desconfie, pois não quero que se consuma em choradeiras e em lamentações! Já pensaste que lástima não seria, se viesse a saber do fim dado à outra? Ao retirar Consuelo de junto da irmã, diz-lhe que a estará devolvendo à casa dos pais, assim a minha deliciosa pombinha presumirá que a irmãzinha encontrar-se-á a salvo e então...
− O caminho tornar-se-á mais ameno aos vossos avanços, não é assim? – observa o mordomo com um olhar malicioso. – Pensaste muito bem, Señor! – e se põe a rir.
− Assim será, meu amigo! – diz D. Aníbal, cheio de contentamento. E, levantando-se da mesa, já satisfeito, prossegue:
− Ficarei na biblioteca, à áspera de notícias. Assim que tudo estiver consumado, vem depressa ter comigo.
D. Aníbal sai, e o mordomo toma de fina bandeja de prata e repleta-a com delicioso desjejum destinado às jovens. Em seguida, com passos firmes, toma o rumo do quarto onde se achavam presas as duas irmãs. Retira a chave do bolso e mete-a à fechadura. Com um estalido, a porta destranca-se, e Gumersindo entra.
− ¡Buen-día, Señoras! – saúda ele, com cordialidade. – Trago-vos o desjejum! − e, com a prática que detinha, rapidamente, põe a mesa e, com longa mesura, convida: − Estais servidas?
As jovens, abraçadas uma à outra, com olhos cheios de medo e de desconfiança, haviam acompanhado, em total silêncio, todos os movimentos do mordomo.
− Ficai bem à vontade que, mais tarde, virei tirar a mesa – diz ele e sai, trancando a porta à chave.
Então, devagar e altamente melindradas, as duas jovens aproximam-se da mesa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 10:49 am

− Que planejarão connosco esses desgraçados? – pergunta Milagros à irmã que se ocupava em devorar avantajado pedaço de bolo.
− Não sei – responde a outra. – Yavé é que saberá!
− Oh, não sei como podes comer com tamanho apetite, diante duma situação como esta! – exclama Milagros, a irritar-se com a irmã.
− Oh, de fome é que não morrerei! – devolve a outra. – Tola serás tu se te deixares enfraquecer! Como conseguiremos fugir, se adoecermos? Melhor que comas e bem, a fim de resguardares as tuas forças!
− Tens razão! – concorda a outra, rendida, pondo-se também a comer.
Pouco depois, o mordomo retornava. Entretanto, não se encaminhou à mesa, com o propósito de retirar o sobejo do desjejum. Ao contrário, aproximou-se de Consuelo e, muito gentil, convidou-a:
− Senhorita, meu senhor decidiu que retornarás à tua casa!
− A casa?! – exclama Milagros, animando-se.
− Não tu, mas a tua irmã! – responde, firme, o mordomo. – Tu ficarás, ainda, por um tempo.
− Oh, não! – grita Milagros, abraçando-se à irmã que se punha a tremer, descontroladamente. E, a enfrentar o mordomo, acintosamente, exclama: – Levareis a nós duas ou a ninguém mais!
− Não tornes mais difícil o meu trabalho, Señora! – brada o mordomo, rispidamente, agarrando Consuelo pelo braço. – Apenas cumpro ordens do meu amo: se ele decidiu assim, desse modo será! – e, com forte safanão, arranca Consuelo dos braços da irmã.
− Milagros! – grita pela irmã a pobre Consuelo, tomada de fundo desespero, debatendo-se, mas segura firmemente aos punhos, pelas potentes mãos de Gumersindo e sendo arrastada, truculentamente, na direcção da porta.
− Vá em paz, minha irmã! – grita Milagros. E, quando, aos atropelos, ambos já se achavam no limiar da porta, emenda: − Se voltares para casa, conforta nossos pais! Diz-lhes que estou bem e que logo também eu retornarei!
Consuelo nada respondeu. Apenas gritava e chorava, altamente desesperada. Fechada a porta à chave, no extenso corredor que dava aos quartos, Gumersindo tapa a boca da jovem e lhe sussurra ao ouvido:
− Ouve bem, minha cara: se não te calares e não te acalmares, não conseguirei levar-te de volta à tua casa; então, nada me custará dar cabo de ti pelos caminhos, pois ninguém saberá, nem mesmo o meu senhor, se te devolvi ao lar ou não, entendes? Deixo-te a escolha: ou te conténs ou te mato, entendeste?
Mais apavorada, ainda, a jovem aquiesce com a cabeça e se deixa conduzir pela mão, em total silêncio. Saem, então, por uma porta, aos fundos da casa, e tomam estreita trilha, a margear, perigosamente, o largo e profundo alcantil em cuja vala, lá embaixo, corria veloz o rio, a meio de uma profusão de alvacentas espumas.
Caminharam em total silêncio, por cinco centenas de metros, em direcção oposta à da cidade, fato que chamou a atenção da jovem, mas que nada disse, em razão do grande medo que lhe fazia aquele homem a conduzi-la, segurando-a, fortemente, pelo punho.
Em dado momento, Gumersindo estacou e, espichando o pescoço, sondou o abismo que principiava, mesmo a pouquíssimos palmos de onde se achavam os pés de ambos.
Após perscrutar, meticulosamente, a profundidade e a condição da alta escarpa, muito rapidamente, abraçou Consuelo, de modo aprender-lhe, firmemente, ambos os braços e, num átimo, antes mesmo que a mocinha pudesse entender o que se passava, jogou-a, de uma vez, ao tétrico vazio...
Com um lúgubre grito de terror, a reboar pelo fundo vale do rio, a jovem despencou, em vertiginoso e mortal voo, indo o seu pobre corpo, em alguns segundos, bater fofo, nos pontiagudos escolhos que se levantavam quais ciclópicas pontas de lanças afiadíssimas, à margem do revolto rio.
Gumersindo, então, agarrando-se, cuidadosamente, aos tufos de capim que margeavam o abismo, espiou lá embaixo e conseguiu conferir o resultado: a uma tétrica e disforme massa sanguinolenta reduzira-se o corpo da jovem Consuelo...
Plenamente satisfeito com esse desfecho, ganha o caminho de volta e, em pouco, achava-se diante do seu patrão.
− Tudo consumado, Señor! – exclama ele.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 4 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 10:49 am

− Como se deu? – pergunta D. Aníbal, sem muito entusiasmo e sem levantar os olhos da página de pesado volume que lia.
− Sem qualquer resistência – explica, friamente, o assassino.
− Muito bem! – diz D. Aníbal, fechando o livro. E, levantando-se da poltrona em que estivera sentado, continua, com intenso brilho aos olhos: – Agora é dedicar-me à conquista daquela preciosidade!...
Neste entretempo em que a irmã fora retirada da sua companhia, Maria de los milagros estivera a encher-se de fundas apreensões: que teria sucedido a Consuelo? E uma profusão de ideias, entremeadas de intenso desespero, invadiram a sua cabeça. Teria a irmã, de fato, sido devolvida ao lar?... Estaria, efectivamente, a salvo, a contar aos pais que também ela, Milagros, estava viva e prisioneira naquela casa?... Ou teriam covardemente assassinado a sua doce irmãzinha, por não apresentar ela nenhuma serventia aos abjectos propósitos daquele desgraçado?... Sim, pois ora não detinha mais qualquer dúvida de que houvera sido sequestrada por D. Aníbal Velásquez, uma vez que ninguém mais teria motivo para prendê-la daquela forma. “Ah, mas aquele demónio não me submeterá a seus ignóbeis propósitos!”, pensa ela, a rilhar os dentes de profundo ódio. “Só morta, ter-me-ás, desgraçado!...” Maria de los Milagros tem interrompidas essas suas cogitações pelo ruído da chave na fechadura. Põe-se, então, de sobreaviso. A porta abre-se, e entra D. Aníbal Velásquez, sem nenhum pudor de revelar-se à jovem.
− Ah, tinha a certeza absoluta de que éreis vós a propiciar-me tamanha perfídia! – grita ela, a enfrentar, acintosamente, o seu sequestrador. – E a minha irmã, o que fizestes dela, monstro?
− Oh, acalma-te, minha bela! – diz ele, aproximando-se devagar e, estacando bem próximo da mocinha, prossegue: – A tua irmã, a esta hora, já se achará com os teus! Fica tranquila!
− Como posso ter a certeza de que me dizeis a verdade? – exclama a jovem, afastando-se e se pondo em distância mais segura do seu captor.
− Tens a minha palavra! – exclama ele, com um sorriso. – Acaso não confias em mim?
− Nem um pouco! – diz ela, com a voz tremente de ódio. – Quem comete tais vilezas com indefesas criaturas poderá também mentir mui facilmente!
− Oh, assim me reduzes a um descarado biltre! – exclama ele, voltando a aproximar-se dela.
− Infelizmente, é o que me pareceis ser, Senhor! – diz Milagros, novamente se afastando dele e indo para próximo da janela.
− Entretanto, posso provar-te que de infame nada tenho, pois me encho da mais pura e bela intenção a teu respeito, minha querida! – declara ele, com a voz pejada de paixão. E tenta nova aproximação.
A jovem, sentindo-se cada vez mais acuada, estudava, com olhar nervoso, toda a câmara, com o propósito de encontrar uma maneira de furtar-se às investidas de D. Aníbal. Entretanto, não havia como fugir dali, se ele, efectivamente, resolvesse por submetê-la à força.
Então, o pavor apodera-se dela e começa a soluçar.
− Que pretendeis, afinal, aprisionando-me em vossa residência, Senhor? – pergunta ela, com a voz tremida pelo desespero.
− Minha pretensão é amar-te, tão-somente, querida! – diz ele, agora, bem próximo, tanto que a trémula jovem até podia sentir-lhe o hálito quente, a tresandar fortes odores de licor. “Oh, ele está embriagado!”, pensa Maria de los Milagros, a encher-se ainda mais de pavor. “Estou perdida!...”
− A nada te forçarei, meu bem! – sussurra ele, a tomar-lhe as mãos. – Apenas quero que me ames, só isso!
− Impossível amar-vos, Senhor! – diz a jovem, a olhá-lo firme aos olhos. – Meu coração acha-se preso a outro homem, conforme presumo que já bem o sabeis!
− Tu pensas que amas aquele rapaz, Milagros, e te provarei que andas a enganar-te! É a mim que doravante passarás a amar!
− Como posso amar-vos? – rebate ela. – Acaso é possível ditarem-se ordens ao coração?... Acho que bem deveríeis saber dessas cousas!
− Às preferências do nosso coração, dá-se um jeito! – rebate ele, rindo-se. – Posso garantir-te que o coração é assaz volúvel e troca as suas preferências a seu bel-prazer!
− Não o meu, que se acha perdidamente atrelado ao do meu amor! Isso posso assegurar-vos! – diz ela, decidida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 10:49 am

− E o que te garante que o coração do teu amado encontra-se assim tão pregado ao teu? Não és um homem, e posso afirmar-te que o coração dos homens é assim um pouco diferente do das mulheres...
− Quereis insinuar, acaso, que seriam mais volúveis? – observa ela, com forte tom de ironia à voz.
− Não volúveis, como dizes, mas um tantinho mais conscientes, mais sábios...
Maria de los Milagros cala-se. Acabava de constatar o quanto aquele homem era habilidoso com as palavras e de raciocínio bastante rápido e, por essa maneira, revelava-se assaz perigoso.
Era preciso, então, mudar a estratégia.
− Não creio em nada do que me dizeis, Senhor – diz ela, olhando-o, acintosamente, aos olhos. – Penso que tudo isso não passa de ardilosa armadilha que me preparais, a fim de, mais facilmente, obterdes os meus favores. Entretanto, posso afirmar, com toda a certeza deste mundo, que o meu adorado amor, se já não estiver morto a vosso mando, bem desesperado haverá de encontrar-se pelo meu desaparecimento, e também sei que moverá céus e terra, com o propósito de descobrir o meu paradeiro – e, a mostrar-se demasiadamente corajosa, prossegue ameaçadora: − E vos previno, Senhor: suplicai a Deus que vos proteja, se Andrés, um dia, cruzar os vossos caminhos! Ninguém, em toda a Toledo, maneja as armas melhor que ele!
D. Aníbal Velásquez limita-se a sorrir da veemência de Milagros.
Aquela maneira afogueada como pronunciara as palavras, deixava-a ainda mais linda, com a face rúbida pela excitação. O coração do prelado ardeu-se ainda mais de paixão.
− Oh, amo-te tanto, Milagros! – exclama ele, tentando abraçá-la.
A jovem, ligeira como uma gazela, escapa-lhe do ataque e corre para o lado oposto da câmara.
− Poupai-me, Senhor, de tamanho vexame! – brada ela, tomando-se de fundo desespero. E ameaça-o: − Se tendes a pretensão de que eu, um dia, cederei aos vossos desejos, andais a perder o vosso tempo! – e, entre dentes, prossegue: − Antes buscarei a morte! – e arremata, com derradeiro reforço de coragem:
− Oh, não sabeis o quanto vos abomino, Senhor!
D. Aníbal morde os lábios, a demonstrar a profunda contrariedade que lhe causava a reacção da jovem, diante das suas investidas. No fundo, não desejava empregar a violência para submetê-la.
− Acho que ainda não entendeste o que se passa contigo, minha cara! – diz ele, mudando a maneira de abordá-la. Então, pretendeu assustá-la e, endurecendo o cenho e as palavras, aproxima-se dela e a agarra pelos pulsos, dizendo-lhe: − Não estais em condição de afrontar-me, mocinha! És minha prisioneira e de ti farei o que quiser, entendeste bem? Pouco me importa se me amas ou não: a mim me interessas sobremodo e terei o que quero, cedo ou tarde!
Ditas essas palavras, D. Aníbal dá-lhe as costas e sai furibundo.
Maria de los Milagros, então, assustadíssima, lança-se sobre o grande leito e, afundando o rosto no travesseiro, põe-se a soluçar, dando vazão ao seu enorme desespero.
− Oh, que desgraça! – geme ela, entre lágrimas de aflição. – Que será de mim? Por muito tempo, a jovem chorou desesperada. Por fim, o cansaço venceu-a, e ela adormeceu. Quando se acordou, já estava escuro.
Despertar daquele sono foi-lhe extremamente desagradável. Ao retomar a noção de onde se encontrava, a realidade caiu-lhe como imenso rochedo que pretendeu esmagá-la. Deus do céu! Que seria da sua vida dali para frente? Com o dorso das mãos, esfrega os olhos, ainda inchados pelo choro e pelo sono de muitas horas, e se senta no leito. Em pouco, ouve o ruído da chave na fechadura e se põe em guarda: qual dos dois desgraçados estaria ali?
A porta abre-se, e a voz de Gumersindo ouve-se:
− ¡Con permiso, Señora! – exclama ele e, com a vela que trazia à mão, diligentemente, ateia fogo às lamparinas dos candelabros espalhados pela câmara, e profusa luz invade o ambiente. Depois, com longa reverência: − Em pouco, trar-vos-ei o jantar!
Maria de los Milagros nenhuma importância deu às palavras do mordomo. Encontrava-se tão quebrantada pelas circunstâncias que a envolviam que nem fome ou sede tinha. Extenuada pela alta carga emocional, volta a deitar-se sobre o leito. Forte calafrio, então, percorre-lhe o corpo, e ela, tomada de estranho torpor, cochila.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 10:49 am

Entretanto, um pouco depois, acorda-se aterrada e emite rouco grito de pavor: parecera-lhe divisar algo terrível, no lusco-fusco reinante na câmara, logo ao despertar da ligeira modorra por que passara!
− ¡Consuelo!... – grita ela. −¿Estabas allí?123
E, embora embotados pelas lágrimas, seus olhos puderam divisar uma forma luminosa que tremeluzia bem diante dela.
− Quem é?... – murmura a jovem, tomada por intenso pavor. – Quem está aí?
O Espectro então ganha mais força e se materializa: Consuelo apresentava-se horrível à irmã: os olhos esbugalhados, mais pelo terror e pelo desespero, numa face terrivelmente deformada, a resumir-se numa massa sanguinolenta e disforme; a boca, rasgada num tétrico ríctus, mostrava os dentes todos quebrados; os braços, descarnados e partidos em vários seguimentos, balançavam sem qualquer controle, como os de um títere; as vísceras achavam-se à mostra; as pernas, totalmente descarnadas, estavam maceradas, com pontas de ossos e tutano à mostra; os cabelos, desgrenhados e empapados de sangue, e as roupas mais eram farrapos sujos de lama e sangue.124 Que horror, meu Deus!
− Consuelo, que fizeram de ti, minha irmã? – diz Milagros, levantando-se trémula de medo e de desespero, tentando aproximar-se do Espírito materializado.
− O desgraçado infame lançou-me do alto do rochedo! – responde o fantasma, com a voz cava e as palavras mutiladas pela deformidade dos dentes e dos lábios.
− Por Yavé! – grita Milagros, louca de desespero, tentando abraçar-se à irmã. – Dizes que o mordomo jogou-te no abismo?!...
Então não estás com nossos pais!... Ele a matou!
Porém, a aparição nada respondeu e, com infinita tristeza no olhar, aos poucos, desvaneceu-se no ar.
− Consuelo! – grita Maria de los Milagros, tomada de desespero intenso. – Não te vás!... Volta cá!...
Entretanto, apenas o silêncio obteve como resposta.
Desesperada, vasculha toda a câmara com o olhar, mas se encontrava só. Num ímpeto, descerra as pesadas cortinas de veludo azul e perscruta ansiosa, lá fora, contudo apenas constatou a pesada escuridão da noite.
− Oh, que desgraça! – geme ela, votando a sentar-se sobre o fofo leito. E, tapando o rosto com as mãos, dá evasão a copioso pranto convulso, a sacudi-la violentamente.
Neste ínterim, ouve o ruído da chave na fechadura, e o mordomo de D. Aníbal adentra a câmara, a sobraçar grande e pesada bandeja de prata, contendo o jantar de Milagros.
Num ímpeto, a jovem, tomada por força descomunal, lança-se sobre o homem, a lanhar-lhe o rosto com as unhas. Assustado com a inopinada reacção da prisioneira, a enorme bandeja escapa-lhe das mãos, indo dar ao chão, com espectacular estrondo e espalhando a comida, os talheres e cacos de louça para todos os lados.
− Que te deu, maldita? – brada Gumersindo, tentando dominar, com as potentes mãos, a fúria de Milagros.− Maldito és tu, monstro! – grita ela, já presa fortemente pelos punhos. E, a encarar o mordomo, acintosamente: − Que fizeste da minha irmã, desgraçado?... Mataste-a, atirando-a ao despenhadeiro!
− Que dizes, doida?! – exclama o homem, extremamente nervoso, apanhado de inopino pelas palavras da jovem. – Quem te enfiou tamanha estultícia às ideias?
− Ela mesma, a minha pobre irmã veio, há pouco, mostrar-me o que lhe fizeste, demónio! – brada a moça. − E a mando do teu asqueroso patrão, por certo!
Pego pela acusação que Milagros atirava-lhe à face, Gumersindo retrai-se, a cogitar: por meio de qual diabólico sortilégio a mocinha tivera contacto com a verdade? E como era um homem que possuía muito das superstições e crendices, ainda então comuns e pertinentes à sua época, tremeu-se todo de receios. Teria, de facto, aquela judiazinha tido contacto com a alma da irmã por ele assassinada? O que ela lhe atirara em face era bem a verdade do que acontecera horas antes.
− Vamos: diz-me quem veio encher-te a cabeça de tamanhas idiotices? – pergunta ele, ríspido, logo se recompondo e a pressionar, com suas vigorosas mãos, ainda mais, os punhos da moça.
− Ela própria veio mostrar-me o que lhe fizeste, desgraçado! – repete Milagros, altamente perturbada pela forte comoção que lhe ia à alma. – Disse-me que tu a lançaste do alto da penha!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 10:50 am

O mordomo, então, tomado de espanto, solta os braços da jovem, devagar, e, mui rapidamente, alcança a porta, antes que ela voltasse a agredi-lo com as afiadas unhas.
− Fica-te aí, ordinária! – grita ele, do limiar da porta e, rapidamente, sai, trancando ligeiro a porta à chave.
No corredor, passa as mãos repetidas vezes sobre o rosto que andava a sangrar e a queimar como brasa. − Maldita fera! − murmura ele, entre dentes, cheio de raiva. − Tu ainda me pagarás caro por esta ousadia!... − e, com passos ligeiros, procura pelo amo que se encontrava trancado na biblioteca.
− Que queres? – pergunta D. Aníbal, seco, ao mordomo que lhe vinha interromper a leitura de grosso alfarrábio.− Ela descobriu tudo, Señor! – diz o serviçal, com a voz trémula.
− Descobriu o quê, Gumersindo? – exclama o prelado, sem esconder a contrariedade que lhe proporcionava aquela inoportuna interrupção.
− A jovem prisioneira sabe que lhe matamos a irmã...
− Que tu lhe mataste a irmã... – fala D. Aníbal, cheio de ironia à voz. E, levantando-se da poltrona em que estivera sentado, a ler, rodeia o serviçal e prossegue: − Mas que asneira andas a dizer?...
Como pôde ficar ela sabendo, se a mantivemos presa por todo esse tempo? Acaso permitiste que alguém mais tivesse contacto com ela?
− Pelo céu, juro-vos, Senhor, que ninguém mais lá esteve, à excepção de nós dois! – explica o mordomo, ainda tremendamente abalado pela acusação que lhe fizera Milagros.
− Daí presumo que ela jogou contigo e tu te deixaste cair na esparrela como um parvo! – exclama D. Aníbal, a enfurecer-se. – Como pudeste ser tão imbecil, Gumersindo?
− Posso garantir-vos, Senhor, que, pela maneira feroz como me agrediu e como bem podeis averiguar em minha face – e lhe exibe o rosto todo lanhado pelas unhas de Milagros −, é possível constatardes que ela, de algum modo, teve a revelação do que lhe fiz à irmã!
− Quem lhe teria revelado? – pergunta D. Aníbal, a vazar ironias.
– Acho que varias...
− Mas como se explica então, Senhor? – persiste o mordomo. – Precisáveis ver como ela se encontrava transtornada, quando lhe fui levar o jantar! E da maneira violenta como me atacou!
− Repito: ela te armou uma negaça, e tu a engoliste como um bicho incauto! – e a bater com a mão às costas do mordomo: − Não és mais o mesmo, Gumersindo! Andas a envelhecer!...
− Se dizeis, Senhor... – murmura o mordomo cheio de mágoa. E, a engolir em seco, pergunta: − E doravante, como agiremos com a mocinha?
− Deixa que ela lance sobre ti toda a sua fúria: se quiser arrancar-te a pele toda com as unhas, deixa-a fazer; mas, importante: nega sempre, se continuar a acusar-te pela morte da irmã! Sei que logo se cansará, pois, de fato, nada saberá a respeito: apenas lançou-te a isca, com o propósito de revelares aonde, verdadeiramente, levaste a irmã.
− Assim farei, Senhor! – diz o mordomo, com ligeira reverência.
− A propósito, Gumersindo – diz D. Aníbal, quando o serviçal já quase transpunha o limiar da porta – diz-lhe que eu não me encontro em casa, desde ontem, pois, assim, ser-me-á mais fácil fazer-me de desentendido, quando eu com ela estiver, amanhã ou depois.
O mordomo deixa a biblioteca, e D. Aníbal Velásquez põe-se a cogitar. De repente, as coisas começavam a dar erradas. Se a mocinha se pusesse a agir daquela forma aloucada, não lhe seria muito fácil dominá-la ou, até mesmo, conquistá-la, dando-lhe valiosos presentes e a tratando como uma rainha, como, a priori, pretendia. Sabia muito bem como eram as coisas: as mulheres dessa idade costumavam ser mais volúveis, mais fáceis de se conquistar com determinados deslumbramentos. Era preciso, agora, usar o tempo e tudo que o dinheiro pudesse comprar: joias finíssimas, roupas e calçados magníficos, perfumes raros, e isso não seria difícil conseguir...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 7:52 pm

Entretanto, ardia-se de desejos por Milagros e, se tivesse que esperar, ainda, muito tempo para conquistá-la, acabaria enlouquecendo. Então, perpassa-lhe pela cabeça a ideia de tê-la à força. Por que não?... Que o impedia de sujeitá-la a seus desejos?...
Que era ela, agora, senão a sua prisioneira?... Os familiares, certamente, já teriam as duas por desaparecidas e, acaso, não era comum as moçoilas serem raptadas por traficantes de mulheres e levadas para bem longe, a serem vendidas como escravas sexuais?... Era tão comum...
Depois, não iria ficar com ela por muito tempo: apenas o tempo necessário para locupletar-se até se enjoar e mesmo porque, sendo um prelado, somente a poderia manter como amante...
D. Aníbal, então, decide-se: iria submeter Milagros à força. Vai até a porta e chama pelo mordomo que se apresenta, logo em seguida.
− Quero que prepares, para a noite de amanhã, um banquete, e que seja o melhor que já fizeste em toda a tua vida, entendeste? – ordena o religioso. – Nada economizes e prepares o salão com primor: quero que seja deslumbrante!
− Perfeitamente, Senhor – diz o serviçal, com ligeira reverência.
Neste comenos, Maria de los Milagros, após o feroz entrevero que tivera com o mordomo, atirara-se sobre a cama e chorara, profundamente, por várias horas, pelo terrível destino que se reservara à pobre irmã.
Depois, exausta pela forte comoção que a dominava, adormecera por um bom tempo e, ora, acordava-se, no meio da madrugada, tomada por grande sede. Ainda bastante trémula, com os nervos em frangalhos, devagar, encaminha-se para a mesa onde havia uma moringa de terracota com água. Toma a água, sofregamente, e se decidia a voltar ao leito, quando divisa, espalhados pelo chão do quarto, a bandeja de prata, a comida, os cacos da louça e os talheres de prata, resultado do seu entrevero com o desgraçado mordomo. Seus olhos, então, fixam-se em pequena faca de prata que jazia entre os restos da bandeja. “A faca!...”, pensa ela, de repente, notando o brilhante objecto no meio daquele caos. “O desgraçado esqueceu-se de recolher os restos do jantar!...”, e, abaixando-se, apanha o objecto cortante e o guarda, rapidamente, sob a roupa e, mais animada, emite ligeiro sorriso, no meio da infinita tristeza que a acometia: “Agora tenho uma arma!...”
____________________________________________________________________________________________________
123. “− Consuelo!... (...) – Estavas aí?”, em espanhol.
124. “As aparições propriamente ditas se dão quando o vidente se acha em estado de vigília e no gozo da plena e inteira liberdade das suas faculdades. Apresentam-se, em geral, sob uma forma vaporosa e diáfana, às vezes vaga e imprecisa. A princípio é, quase sempre, uma claridade esbranquiçada, cujos contornos pouco a pouco se vão desenhando. Doutras vezes, as formas se mostram nitidamente acentuadas, distinguindo-se os menores traços da fisionomia, a ponto de se tornar possível fazer-se da aparição uma descrição completa. Os ademanes, o aspecto são semelhantes aos que tinha o Espírito quando vivo. Podendo tomar todas as aparências, o Espírito se apresenta sob a que melhor o faça reconhecível, se tal é o seu desejo. Assim, embora como o Espírito nenhum defeito corpóreo tenha, ele se mostrará estropiado, coxo, corcunda, ferido, com cicatrizes, se isso for necessário à prova da sua identidade.” − O Livro dos Médiuns, Allan Kardec, cap. VI – Das Manifestações Visuais, item 102, pág. 133 – Edição da Federação Espírita Brasileira.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 7:53 pm

Capítulo XIII. A fuga de Milagros
Milagros, então, vencida pela forte emoção, voltou a dormir, pelo resto da madrugada e despertou, quando a claridade do dia nascente invadia o aposento. Nesse mesmo tempo, ouviu o barulho da chave na fechadura e, sentando-se na cama, pôs-se de sobreaviso.
Gumersindo apareceu no limiar da porta e nada disse; apenas resumiu-se a lançar à jovem um olhar cheio de rancor. Sempre em silencio, acocorou-se e, diligentemente, pôs-se a recolher, sobre a bandeja, os restos da louça e da comida; entretanto, por se encontrar muito alterado pelo fundo ódio que emitia contra Milagros, não percebeu a falta da pequena faca de prata e, terminando o seu trabalho, rapidamente, deixou o quarto.
A jovem, durante esse tempo, mantivera a respiração contida, a temer que o mordomo desse pela falta da faca e viesse revistá-la. E, foi com um suspiro de alívio que o viu fechar a porta atrás de si, carregado de ódio.
O dia transcorreu-se, sem qualquer novidade, excepção ao fato de que o mordomo nenhuma vez mais, durante o transcorrer das horas, viera ao quarto de Milagros, nem mesmo para lhe trazer o café matinal, nem mesmo o almoço; certamente, andava a castigar a jovem pela forte agressão que dela recebera na noite anterior.
Entretanto, Gumersindo tinha de cumprir as ordens que lhe passara D. Aníbal e, mesmo profundamente magoado pelo ataque que sofrera de Milagros e pelo modo desdenhoso e grosseiro com que o tratara o patrão, na véspera, ele houvera preparado espectacular banquete e, estando tudo pronto, cabisbaixo e muito contristado, foi em busca do amo que, àquela hora, mesmo quando as primeiras estrelas surgiam no céu, passeava pelos jardins da mansão, a admirar os esplendores da noite magnífica que principiava.
− Tudo está pronto, Senhor! – diz ele, com a voz baixa e cheia de melancolia.
− Já vou entrar! − responde D. Aníbal, com tom mui seco à voz e sem encarar o serviçal única vez.
Gumersindo, profundamente magoado, segue D. Aníbal e, chegam ao salão de banquete.
− Fica em prontidão, que me vou a buscar Milagros! – diz D. Aníbal.
Ao ouvir o ruído da chave na fechadura, a jovem tem um sobressalto e se põe em guarda.
− Venho em paz! – exclama D. Aníbal, ao adentrar a câmara. E, aproximando-se da jovem, abre um sorriso: − Para celebrarmos o armistício entre nós, mandei que preparassem um banquete! – e oferecendo-lhe o braço, convida-a, gentil: − Vem!
Maria de los Milagros, a princípio, pensara em atacar o prelado da mesma forma como fizera ao seu mordomo. Houvera, até mesmo, apalpado a pequena faca de prata que mantinha sob o vestido, mas se contivera. Planejava matá-lo, mas para tal, era preciso frieza, calcular tudo de antemão, sem precipitações; por isso é que, então, decidiu aguardar oportunidade propícia para executar seu intento. Então, lançando mão de frieza que arrancara do fundo cabedal de ódio que devotava a D. Aníbal e, sem hesitar um só instante, dá-lhe o braço.
− Sabia que irias aceitar, minha querida! – exclama ele, contentíssimo, e, a franquear-lhe a porta, extremamente gentil, faz longa reverência e diz: − ¡Por favor, Señora!
Maria de los Milagros devolve-lhe um sorriso meticulosamente estudado e responde:
− ¡Gracias, Señor!
Já no salão de banquetes, D. Aníbal fá-la sentar-se ao seu lado e, agora, a mostrar-se assaz gentil para com o seu tristonho mordomo:− Gumersindo, pode servir-nos – ordena ele, a vazar sorrisos e amabilidades para com o serviçal.
O mordomo, de repente, reacendendo-se e a ganhar extenso brilho ao olhar, apresta-se em servir as delícias que andara a preparar pelo dia todo.
O jantar transcorreu-se devagar, numa sucessão de pratos finos e bem preparados pelas competentes mãos do prestimoso mordomo, além do vinho afável e delicioso, servido ao longo de todo o tempo que durou o fino repasto.
Findo o banquete, delicadamente, D. Aníbal Velásquez, felicíssimo, convidou Milagros a sentarem-se no largo e arejado alpendre que dava para o vale do rio. A paisagem, à luz do luar, fazia-se deslumbrante.
− Agradeço-te, imensamente, querida, por teres aceitado o meu convite! – diz D. Aníbal, estonteado pelos vapores do vinho, pela maravilhosa paisagem e, principalmente, pela beleza de Maria de los Milagros.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 7:54 pm

A jovem judia, tendo em mente plano já meticulosamente articulado de antemão, ideado com o propósito de facultar-lhe a fuga do cativeiro, propositadamente, mudava o comportamento para com o seu captor, a fim de insinuar-lhe que, de certa maneira, conformava-se com a sua situação e, sem remédio, passava a aceitar a corte que D. Aníbal tão airosamente fazia-lhe. Então, no processo de construir, solidamente, o seu ardil, sorri-lhe, dizendo: − Sinto-me deveras lisonjeada, Senhor, pelo tratamento assaz cortês que me dirigis!
− Oh, nem imaginas o quanto me fazes feliz em aceitar esta homenagem que te presto! – exclama ele, animando-se, sobremodo, com o sinal favorável que ela lhe demonstrava. E, num arrebatamento de paixão, toma a graciosa mãozinha de Milagros e a beija apaixonado.
A jovem, então, percebendo que ele lhe engolia a isca, prossegue a engodilha-lho, porém sem precipitações de arroubos que poderiam, eventualmente, denunciar-lhe os intentos. Limitou-se, tão-somente, a permitir que ele lhe segurasse, ternamente, a mão entre as suas.− Oh, Milagros, tu me fazes tão ditoso esta noite! − murmura ele, com a voz efervescente pela paixão que lhe devorava a alma. – Sê minha e te colocarei bem alto, a roçares o céu com a tua mão!
− Oh, assim me adulais demais! – diz ela, rindo-se. – Será que mereço tanto?
Milagros riu-se e, para que seus lábios assim procedessem, de forma tão natural, preciso foi-lhe arrebanhar todas as forças da sua alma, para que o desgraçado nada percebesse. No íntimo, penitenciava-se e, de antemão, pedia perdão ao seu verdadeiro amor, por andar a agir daquela forma. Mas, era preciso fingir e fingir direito, para que o seu plano desse certo. Dessarte, então, passou a permitir que D. Aníbal avançasse sobre ela, com todo o seu furor de apaixonado.
− Quisera beijar-te os lábios, minha querida! – exclama ele, com a voz rouca de tanto desejo e se pondo bem próximo a ela.
A jovem não opôs qualquer resistência, e D. Aníbal, encorajado pela abertura que ela lhe proporcionava, num ímpeto, toma-a entre os braços e lhe esmaga os lábios com ardente beijo.
Milagros sentia-lhe o gosto da boca e enojava-se. Na verdade, tinha era vontade de arrancar-lhe os lábios com intensa mordida.
Mas, para salvar a vida, conteve-se. Era preciso ser forte, muito forte. E nem resistiu quando ele, levantando-se, estendeu-lhe a mão, convidando-a:
− Vem! Vamo-nos aos meus aposentos...
A jovem, obedientemente, seguiu-o, e, enquanto caminhavam rumo à câmara de D. Aníbal, disfarçadamente, com a mão, apalpou a pequena faca de prata que mantinha presa sob as dobras do vestido...
No quarto de D. Aníbal, Gumersindo já houvera preparado tudo de antemão: o leito encontrava-se ricamente recoberto por finos lençóis de linho; vasos de perfumadas flores espalhavam-se pelos cantos; apenas um castiçal estava aceso, lançando feérica luz ao ambiente, formando espaço idílico perfeito, propício ao desafogar de paixões intensas; ainda, pequena mesa achava-se repleta de guloseimas variadas, além de uma profusão de frutas secas e de duas taças de fino cristal e uma botelha de vinho especial. Maria de los Milagros sentiu intenso desgosto apoderar-se de sua alma, ao ver tudo preparado com tamanho esmero, e um nó intenso entupiu-lhe a garganta. De repente, advinha-lhe a dúvida: e se tudo desse errado? E se não conseguisse realizar o seu intento?
O desgraçado era um homem forte, muito forte... E sentiu medo.
− Estás a tremer, minha pombinha! – diz D. Aníbal, ao perceber que a jovem empalidecia. – Ora, vem cá! – prossegue ele, tomando-a aos braços. – Não há o que temer! – e a rir-se: − Andas a considerar que sou o quê?... Acaso não te tenho tratado com respeito?
A jovem, entretanto, achava-se às raias do pavor. Matar nunca foi tarefa muito fácil para ninguém! Mas, era preciso coragem: ou agia naquele momento ou estaria, definitivamente, perdida. Sabia muito bem que, logo que aquele demónio conseguisse realizar seus sórdidos intentos, daria a ela o mesmo fim que dera à pobre Consuelo... E, mentalmente, suplicou: “Yavé, dai-me forças!...” D. Aníbal abraçava-a, com o intuito de consolá-la. Ela, então, com todo o cuidado do mundo, desceu a mão direita e, com movimentos extremamente subtis, delicadamente, retirou a pequena faca de prata das dobras do vestido. D. Aníbal abraçava-se a ela, fortemente. E, para realizar o seu tenebroso intento, era preciso que ele estivesse completamente abstraído. Ela, então, oferece-lhe a boca aflante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 7:54 pm

Ele, transido pela louca paixão, de nada desconfia e a beija furiosamente. Ela, então, com toda a força que pôde arrebanhar naquele instante, finca-lhe fundo, de inopino, a faca de prata ao flanco...
Com um esgar de dor intensa, ele se desvencilha dela e, com os olhos transidos de terror, apalpa as costas e retira a mão encharcada de sangue que escorria abundante, a empapar de rubro a fina camisa de seda branca.
− Desgraçada!... – grita ele. – Que fizeste?!
E, com as mãos estendidas, intentando agarrá-la, ensaia dar um passo em direcção de Milagros. A judia, acuada junto à parede e ainda a segurar a pequena faca de prata, tinta de sangue, olhava-o hirta, com os olhos desmedidamente arregalados a revelarem todo o intenso pavor que a dominava. D. Aníbal, entretanto, não conseguiu ir avante. As vistas escureciam-se-lhe, rapidamente, e as pernas fraquejavam. Então, com abafado grito de terror, foi ao chão.
A jovem, a seguir, despertando do torpor que a dominava, e tremendo pela funda comoção por que passava, olha para a faca que mantinha à mão e, com um esgar de nojo, atira-a sobre o corpo inanimado de D. Aníbal Velásquez. Em seguida, sacode a mão manchada de sangue, diversas vezes, e, em seguida, limpa-a à borda da imaculada toalha de linho alvinitente que recobria a mesa posta.
Depois, cutuca com a ponta do pé o corpo de D. Aníbal, e constatando que ele não se movia, depressa, encaminha-se à porta e a abre, devagar, sem fazer qualquer ruído, e ganha o corredor que se achava completamente na penumbra.
Colada à parede e, pé ante pé, Milagros consegue chegar à sala de jantar que se encontrava vazia. No momento, temia ser surpreendida pelo mordomo. Onde andaria ele? Se tivesse sorte, pelo avançado das horas, o desgraçado, possivelmente, já se teria recolhido.
Milagros teve sorte. Não foi surpreendida em nenhum momento.
O mordomo, naturalmente exausto pelas árduas tarefas desenvolvidas ao longo do dia, a preparar o banquete, esfalfara-se além do costumeiro e, crente que o amo andava a consumar o que tão profundamente anelara, acabou por recolher-se ao seu quarto e dormia a pregas soltas...
E, rapidamente, a jovem judia deixou a mansão e se viu lá fora, a meio da pesada escuridão da noite alta que já fazia. Mesmo sem ter a exacta noção de qual rumo deveria tomar, fugiu. Correu, atropeladamente, ora caindo, mas sempre se levantando e correndo sempre, para o mais longe possível da casa de D. Aníbal Velásquez.
Maria de los Milagros correu até esfalfar-se e parou. Arfava, penosamente, e não conseguia mais continuar. Não tinha a exacta noção de onde se encontrava, mas se reconfortava, apesar do cansaço extremo. Abatera aquele demónio, e isso a deixava animada. Desse modo, vencida pela exaustão, recostou-se ao tronco de vetusta oliveira e, instantaneamente, adormeceu.
Foi despertar às primeiras claridades do dia. Custou-lhe um tantinho descobrir onde estava e, ligeiramente, vieram-lhe à mente os incríveis acontecimentos da noite anterior. E, premida pelo medo, levantou-se ligeira e perscrutou o horizonte. Teve sorte: a distância e não muito longe, divisou os telhados da cidade. Inadvertidamente, a meio da escuridão, tomara o rumo certo!
E, sem titubear, pôs-se a caminho de casa. Um bom tempo depois, estava diante do portão da residência dos pais. Imensa felicidade invadiu-a e, rapidamente, abriu o pesado portão e entrou.
Seu coração batia freneticamente. A mãe, certamente, àquela hora, já se acharia a preparar o aruchat boker125.
Sara Shlomo, de fato, acocorada ao lado do fogão de pedras, cozia o matizoh126, para o desjejum da família.
Milagros, então, do limiar da porta, chama-a:
− Ima!...127
− Bat!...128 – grita Sara, ao ouvir a voz da filha amada. E, voltando-se, a explodir de felicidade: − És tu, meu anjo! – e abraçando Milagros e a beijando às faces: − Tu voltaste!... Eu sabia que estavas viva!... O meu coração não se enganou!... – e, a olhar para a porta: − E a tua irmã?... Não estava contigo?
− Consuelo estava comigo, sim, mãe – responde a jovem. E a fazer-se extremamente triste: − Entretanto, eu a perdi!
− Tu a perdeste como? – fala Sara, sem compreender o que lhe dizia a filha. – Acaso não fostes juntas à catedral, àquela manhã?
− Sim, mãe, fomos – explica Milagros. – Mas, senta-te aí, que vou contar-te como tudo aconteceu.
E, minudentemente, narra à mãe o que sucedera a ela e à irmã.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 7:55 pm

− Então tua irmã está morta?! – exclama Sara, a tomar-se de funda comoção. – Elohim129 sagrado!... Meu anjinho está morto?!...
Oh, não!... Não pode ser!... – e a gritar estentórea: − Não, não é verdade!... Meu tesouro foi-se!... Oh, desgraça!... – e rasga a túnica130 que usava e se põe a unhar-se toda e a arrancar os cabelos, premida pela dor intensa. Alertados pelos gritos de Sara, Yaacov e Benyamin que se encontravam em outro compartimento da casa, surgem à porta, assustados.
− Milagros! – gritam ambos, em uníssono, ao depararem-se com a jovem que regressava ao lar.
− Tu voltaste, meu bem! – exclama Yaacov, com lágrimas aos olhos, a abraçar-se à filha. – Tu estás de volta!... – e, notando o extremado desespero da esposa: − Por que gritas tanto, mulher?...
Deverias estar feliz pelo regresso do nosso tesouro!
− Não vês que Consuelo não está com ela? – observa Sara. – O meu anjinho está morto!... Mataram a minha menina!
− Morta a tua irmã?! – brada o homem, pondo-se a tremer. – E quem a matou?
Maria de los Milagros, então, passa a narrar ao pai e ao irmão todos os acontecimentos por que passaram, desde a fatídica manhã em que houveram ambas desaparecido.
− Maldito, desgraçado! – grita Yaacov, a rasgar a túnica e a tomar-se de funda ira. – Oh, aquele demónio matou a minha filhinha!
– e a esmurrar o peito e a desgrenhar-se todo, lança uma série de pesados impropérios sobre o prelado. – Eu o matarei, imundo, com minhas próprias mãos!
Passados os terríveis momentos da cruel revelação, adveio, então, a profunda prostração, causada pelo desencanto. Era demasiadamente forte e terrível aquela verdade, mormente aos pais que, no fundo, ainda anelavam pelo regresso das duas filhas sãs e salvas. Agora, no entanto, a notícia trazida por Milagros abatia todas as esperanças.
− É preciso procurar pelo corpo... – diz Yaacov, com a voz baixa, pejada de tristeza. – Temos de dar uma sepultura digna à minha menina, ou sua alma não terá paz131 – e se voltando para Milagros:
− Tens alguma ideia de onde tudo ocorreu?
− Pelo que me disse Consuelo, depois de morta, o desgraçado mordomo atirou-a ao fundo do precipício – diz a jovem.
− E saberias, acaso, onde fica a casa do maldito? – pergunta Yaacov. – Certamente a desgraça deu-se ali por perto.− Sim, acho que saberei voltar àquele nefasto lugar– responde Milagros.
− Vou arregimentar alguns amigos e para lá, então, iremos, logo ao cair da tarde – diz Yaacov. – e, voltando-se para a filha. – Desculpa-me por ter de levar-te de volta àquele maldito lugar, mas não há outra maneira de lá chegarmos, minha filha.
− Oh, tens mesmo de levá-la contigo, Yaacov? − intervém Sara, preocupadíssima. – Deverias era poupá-la de tais aborrecimentos!
Está tão combalida!
− Não há como sabermos onde fica a casa do desgraçado, Sara.
Mas, prometo-te que não exporei a nossa filha a nenhuns perigos!
Fica sossegada!
Logo ao cair da tarde, Yaacov, Milagros e alguns amigos rumaram para os sítios onde se localizava a mansão de D. Aníbal Velásquez. Seguindo as instruções da jovem, em duas horas, achavam-se no fatídico local em que jazia o corpo destroçado de Consuelo. E, com grande comoção, encontraram o cadáver da jovenzinha ao fundo do alcantil. Foi tremendamente desagradável a Yaacov e Milagros a visão do corpo todo destroçado de Consuelo e, tomados de funda dor, rasgaram partes das vestes132 e choraram longa e amargamente pelo triste fim que se reservou à pobre mocinha, ainda na flor dos anos.
Com intenso pesar, recolheram os restos mortais da jovem e o depuseram em grande cesto de vime que haviam levado para tal fim. E, quando as primeiras estrelas já apontavam no firmamento, o triste cortejo rumou de volta a Toledo.
A chegada do corpo de Consuelo a casa causou ainda mais dor e mais revolta aos pais e aos amigos da família.
− Baruch Dayan Emet!133 – brada Sara, aos gritos, a rasgar a roupa. − Oh, Altíssimo, dai-me a coragem dos fortes para enfrentar este terrível momento! – e a descobrir o cesto, onde jazia o corpo da filha, emite lancinante grito e cai desfalecida, diante de tamanho horror. Os restos mortais da sua querida filhinha não passavam de um amontoado de carne pútrida e de ossos partidos.
Como já se fazia noite, não era mais possível sepultar-se o corpo de Consuelo, e Sara, depois de passados aqueles terríveis primeiros momentos, com extremada coragem e dedicação, fez o que pôde, para rearranjar o que sobrara do cadáver, e cobriu-o com um pano preto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 7:56 pm

A noite passaram-na em orações e a velar o corpo da pobre jovem, tão barbaramente assassinada.
Ao raiar do dia, sem mais delongas, fizeram o sepultamento do cadáver, uma vez que já cheirava muito mal e em respeito à Lei antiga134.
De volta ao lar, pesarosos e chorosos, a família de Yaacov Shlomo descansava na sala de estar, recostados às almofadas.
Alguns amigos mais chegados ficaram para firmarem seu apoio e darem consolo aos enlutados.
− Vou cozer os ovos135 – diz Sara, levantando-se, depois de algum tempo de conversa com os familiares e os amigos − e também me preparar para o Shivá136.
A um canto e mui discretamente, Yaacov confabulava com Ben Hanan.
− Demoramos em dar cabo do maldito e eis o que me aconteceu:
perdi o meu anjinho, vilmente abatido, sem compaixão! – e furtiva lágrima surge-lhe ao canto dos olhos.
− Tua filhinha será vingada, juro-te! – murmura Ben Hanan, em voz baixíssima.
− Como? – questiona Yaacov. – Já havíamos contratado aquele sicário que acabou por dar-nos o tombo e levou-nos bom dinheiro, esqueceste?
− Não, não me esqueci! – rebate o outro. – O que não faltam em Toledo são bons assassinos, sabes muito bem!... Apenas que escolhemos o homem errado!
− Por mim, gastarei o que for necessário para ver aquele
desgraçado morto! – diz Yaacov a rilhar os dentes de tanto ódio.
− A mim também a morte da tua filha me dói como a ti! – fala Ben Hanan. – Somos quase parentes.
− Sim − concorda Yaacov.
Neste ínterim, aproximam-se dos dois amigos os filhos de ambos, Andrés e Maria de los Milagros, que, embora tristonhos pela morte de Consuelo, também não conseguiam esconder a extrema ventura que lhes ia à alma, pelo seu feliz reencontro.
− Preciso falar-te, papai – diz Milagros, dirigindo-se a Yaacov. – É algo muito importante, mas que me sumiu, completamente, da memória, ao nosso reencontro e pelo sepultamento da minha irmã.
− De que se trata, querida? – pergunta Yaacov, assaz curioso.
− Eu matei aquele desgraçado! – revela Milagros em voz baixa.
− O quê?! – perguntam, em uníssono, os dois homens. – Que fizeste?!
− Dei cabo daquele infeliz que me raptou e que mandou seu mordomo atirar Consuelo ao despenhadeiro!
− Como conseguiste realizar tamanha proeza, minha filha?! – pergunta Yaacov, a estupefazer-se. – Não consigo acreditar que fizeste isso!... Conta-nos como foi!
E Milagros, detalhadamente, narra ao pai e aos outros dois como conseguira enganar D. Aníbal Velásquez e como o esfaqueara e conseguira fugir do seu cativeiro.
− Por Yavé! – exclama Yaacov. – E alguém mais sabe que fizeste isso, minha filha?
− Por certo, o mordomo do maldito, neste momento, já tudo descobriu – diz a moça.
− Então estamos todos perdidos! – diz Yaacov. – Abateste um dos homens mais eminentes do reino, e não sei como ainda não vieram prender-nos a todos!
− Importante que, a partir de agora, nós nos postemos de sobreaviso – observa Ben Hanan, a mostrar-se bastante preocupado. – O mordomo, se já não fez, mui em breve fará a denúncia contra Milagros.
− Oh, papai! – diz a jovem entre lágrimas. – Tive de abatê-lo, pois sei que pretendia desonrar-me, sem piedade! E, depois, com certeza, mandaria seu mordomo lançar-me ao abismo, como fizera com a minha pobre irmã!
− Acalma-te, meu bem – consola-a Yaacov. − Aquele demónio mereceu que o enviasses ao inferno!
− E o que será de mim agora? – pergunta a jovem, extremamente nervosa.− Oh, eu te defenderei até a morte, meu amor! – apressa-se Andrés em consolar a sua jovem noiva.
− E como o farás? – pergunta ela, toda trémula. – Não há como nos defendermos deles! Sabes que são poderosos!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 7:56 pm

− Antes agiremos nós! – exclama Ben Hanan. E, voltando-se para Yaacov: − Por ora, é aconselhável que escondas a tua filha em lugar seguro e ignorado e deverás fazê-lo, imediatamente, antes que venham prendê-la pelo assassinato do secretário do arcebispo!
− Sim, mas onde encontrar lugar assim seguro em Toledo? – diz Yaacov, a pôr-se extremamente nervoso.
− Nem Toledo, nem qualquer lugar em Espanha, doravante, serão seguros para a tua filha, Yaacov – observa, grave, Ben Hanan. E, depois de cogitar por instantes: − Tive uma ideia: que achas de despachar a tua filha, em companhia do teu filho, para Portugal? Ambos poderiam lá viver, por um tempo, sem levantarem qualquer suspeita, residindo nalguma aldeia, mais para oeste, bem distante da fronteira, até que as coisas por aqui voltem a acomodar-se.
− Mostraste uma boa saída, Ben Hanan! – exclama Yaacov, voltando a animar-se. – Vou pôr Sara a par de toda essa história e, em seguida, preparar a ambos para a viagem, pois, quanto antes deixarem a Espanha, melhor será!
Yaacov e Maria de los Milagros vão até a cozinha, onde Sara preparava a primeira refeição do dia, e deixam Ben Hanan e o filho a confabularem.
− Também irei com eles! – exclama Andrés, resoluto. – Não mais deixarei sozinha a minha noiva!
− Oh, aquieta-te, rapaz! – diz Ben Hanan. – Sabes que Yaacov jamais permitirá que te vás junto com a tua noiva, sem antes com ela te casares!
− Mas Benyamin estará connosco! – insiste o rapaz. – Que mal haverá nisso?
− Tu sabes muito bem como são os costumes, Andrés! – fala Ben Hanan. – Uma jovem só deixará a casa do seu pai para seguir com um homem, depois de casarem-se!− E se nos casarmos antes? – persiste o rapaz. – Assim não haverá empecilho!
− Como?... Tu conheces muito bem a lei: da preparação até a celebração do matrimónio levam dias!137 Entretanto, temos pressa!
Se a tua noiva não fugir, ainda hoje, por certo, será presa!
− E se escondermos Milagros numa de nossas propriedades? – insiste o rapaz, que não desejava, de modo algum, separar-se da sua noiva.
− Sempre será arriscado, meu filho! – diz Ben Hanan. – Sabes como são os criados... Difícil ser-nos-ia manter em sigilo o paradeiro de Milagros.
− Tens razão... – concorda o rapaz, entristecendo-se ainda mais.
− Na verdade, a tua noiva, a partir do momento em que deu cabo da vida daquele homem, pôs-se em grande perigo! Eles a caçarão sem tréguas!
− Mas, insisto, pai, deixa-me ir com eles para Portugal!
− Que adiantaria eu autorizar a tua ida com eles, Andrés? Eu tenho a absoluta certeza de que Yaacov e Sara jamais concordarão com isso! E têm razão: nada mais fazem que zelar pela honra da filha solteira.
− Mas, encontramo-nos numa emergência! – insiste o jovem. – Oh, pai, dize tu a Yaacov que desejo acompanhar Milagros!
− Nada me custa tentar, mas, de antemão, já sei qual será a resposta de Yaacov – diz Ben Hanan. E, a fitar, firmemente, os olhos do filho: − Além do mais, não me agrada nada ver-te longe da minha protecção!... Se te pilharem junto com a assassina de D. Aníbal Velásquez, a dar-lhe cobertura, também tu serás arrolado nesse crime e presumo que saibas qual é a pena para isso!
− A forca! – diz o rapaz, com a voz embargada pela forte emoção.
− E não terás direito a qualquer apelação, mesmo sendo o meu filho!
− É um risco que preferirei correr, meu pai, a ver a minha amada Milagros novamente longe de mim – diz o rapaz, cheio de tristeza. – Não sei se irei suportar, pois quanto tempo terá ela de viver longe de mim? E o que será pior: como teremos notícias do seu paradeiro? E Benyamin ainda é tão-somente um rapazola! Que entende ele da vida?
− Não deixas de ter razão, meu filho – concorda Ben Hanan. – E, por outro lado, sei que também não resistirias vê-la a pender de uma forca, se eles a apanhassem, não é?
− Sim – responde o rapaz, lacónico, com os olhos rasos de lágrimas. E, abraçando-se ao pai, prossegue, com a voz molhada pelo pranto: − Eu, por certo, morreria de tanta dor! – e a mostrar-se assaz desesperado: − Oh, pai, por piedade, convence Yaacov a deixar-me acompanhar Milagros e Benyamin a Portugal!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 7:56 pm

O judeu enche-se de compaixão pela dor do filho e, afagando-lhe os cabelos revoltos, diz-lhe:
− Sossega, querido! Assim que Yaacov retornar, eu lhe farei o pedido. Afinal, estamos numa emergência, não é? Que lhe custará abrir mão de cuidados em relação à honra da filha? Ele te conhece muito bem e sabe que és um homem digno. Melhor lhe será ter a filha viva e feliz em detrimento dos costumes da nossa raça!
Em pouco, Yaacov e Milagros retornam da cozinha, seguidos de Sara que, diante da notícia que lhe haviam levado, vinha toda chorosa, a lamentar-se.
− Estamos de acordo, Ben Hanan – exclama Yaacov. – Ser-nos-á extremamente penoso separarmo-nos dos nossos filhinhos, mas não há outro jeito! Melhor tê-los longe e vivos que perto de nós, dentro de uma tumba!
− Sábia resolução, Yaacov! – exclama Ben Hanan. E, depois de olhar para o rosto do filho, que se mostrava ansiosíssimo, prossegue: − Mas, antes, ouve o que tenho a dizer-te: sabes muito bem que os teus filhos são ainda bastante jovens e inexperientes; portanto, faço-te um pedido, por desejo de Andrés, que anseia acompanhá-los a Portugal. Que te parece?... Meu filho é mais velho, por isso detém mais experiência e maneja as armas com excelente destreza, a salvaguardá-los todos, ainda mais em terra estranha!
− De jeito nenhum! – adianta-se Sara, a interpor-se na conversa.
– Acaso não sabes que tal procedimento manchará a honra da minha filha?... Sem, antes, casarem-se, não admito tamanho disparate!... Não e não!...− Pensando bem, Sara – diz Yaacov −, Ben Hanan tem razão. Se nossos filhos ficarem juntamente com Andrés, permaneceremos, cá, mais tranquilos! E decidido: da minha parte, dou já a permissão!
− Oh, eu queria tanto dar-te uma linda festa de casamento! – exclama Sara, chorosa, abraçando-se à filha. – E, não que te desgraçasses, partindo, antes, com o teu noivo, sem a assinatura da Ketubá138!
− Eu o sei, mamãe! – diz Milagros, tentando consolar Sara. – Também eu esperei tanto por esse dia, mas nem sempre as coisas fazem-se do modo como as desejamos!
− Vão-se, mesmo sem o kidushin139 e a chupá140! – exclama Yaacov. E, resoluto: − Preparemo-nos, então, o mais rápido possível!
− Sim – concorda Ben Hanan –, e nada de levarem muita bagagem; só o estritamente necessário; depois, lá, em Portugal, comprar-se-á o que faltar!
− Teremos o restante do dia para os preparativos e que se o faça sem muito alarde, para que não se chame a atenção dos vizinhos – observa Yaacov. − Apenas que se arranjem três bons cavalos marchadores, mais duas bestas para a carga. Nada mais que isso.− Sim – concorda Ben Hanan. − Eu e Andrés ir-nos-emos, agora, a casa para prepararmos a viagem e, logo anoiteça, encontrar-nos-emos à saída da cidade, ao pé da ponte141. Melhor que passem a noite já longe de Toledo, a dormirem pelo caminho.
Assim procederam. Discreto corre-corre tomou conta da residência de Yaacov Shlomo, a prepararem a bagagem de Maria de los Milagros e Benyamin, para a sua inesperada viagem a Portugal.
− Por que, então, não nos vamos todos para lá? – pergunta Sara, chorosa, ao esposo que a ajudava nos preparativos. – As coisas por aqui andam mesmo a mudar para nós, judeus!
− Sabes que não podemos ir-nos daqui, de repente – explica Yaacov. – Temos, antes, de vender as nossas coisas! Ou pretendes que deixemos tudo o que temos para trás? Apraz-te, acaso, ficares na miséria?− A pobreza extrema assustar-me-ia menos que perder meus outros filhos, Yaacov! – desabafa a mulher, com a voz molhada pelo pranto. – Que me valeria possuir todo o ouro do mundo, se não tivesse mais a minha família?
− Na actual conjuntura, poderia até considerar que tendes alguma razão, minha cara! – diz o judeu. – Mas já não tenho mais tanta saúde e disposição para ajuntar tudo de novo, se para lá formos todos, a deixar atrás tudo o que temos!
− Já somos bastante ricos, Yaacov! – insiste Sara. – E o nosso ouro todo não nos será difícil carregar em duas ou três mulas. E, quanto às propriedades, compraremos outras em Portugal! – e a desafogar-se: − Afinal, para que desejamos ter tanto?
− Não, Sara! Dói-me muitíssimo deixar, assim de repente, tudo o que amealhamos, eu e tu, a duras penas, pelos anos afora. Toda a minha vida encontra-se, aqui, em Toledo!... Não!... Decididamente, não deixarei nada para trás!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 03, 2024 7:56 pm

− E se, de repente, resolverem tomar tudo de ti? – diz ela, arrostando-o, séria. – Aí então, nem o teu ouro deixarão para ti, e a tua fortuna resumir-se-á tão-somente ao laço de uma corda em volta do teu pescoço!... Acaso não és tu mesmo que andas a alardear que as coisas andam a mudar, e que o advento do maldito Tribunal
não se justifica senão para trazer a desgraça sobre a nossa cabeça?... E não vives dizendo que os cobiçosos andam a espichar os olhos gananciosos sobre a fortuna que detêm os judeus todos de Castela?
− Infelizmente, assim é, querida!... – diz Yaacov, com fundo suspiro.
− Então, decide-te já: vamo-nos com os nossos filhos! – exclama a mulher. – Antes que essas coisas terríveis abatam-se sobre as nossas cabeças!
− Não, Sara... – responde Yaacov. – Tudo, menos isso!... – e, encaminhando-se para a porta. – Vou-me em busca dos animais.
Sara olha-o com os olhos vermelhos de tanto chorar. E, num rompante de raiva profunda, atira ao chão a coberta de lã que, displicentemente, dobrava, para juntar à bagagem dos filhos. E, a rilhar os dentes, exclama, cheia de raiva à voz:− Teimoso!... Ages como uma mula empacada! – e, quando o marido já se afastava, grita: − Se algo de ruim acontecer aos meus filhos, eu jamais te perdoarei!
Às últimas palavras da esposa, Yaacov, simplesmente, deu de ombros. As mulheres costumavam ser muito passionais e, quando nervosas ou acuadas, não conseguiam raciocinar direito. E, resoluto, ganha a rua em busca das alimárias para a viagem dos filhos.
___________________________________________________________________________________________________________
125. O desjejum, em hebraico.
126. Pão ázimo, em hebraico.
127. “− Mãe!...”, em hebraico.
128. “– Filha!...”, em hebraico.
129. Um dos nomes sagrados pelos quais os judeus chamam Deus.
130. Entre os judeus, o hábito de rasgar as próprias vestes, diante da morte de algum parente, o Keriá, é frequentemente encontrado na Bíblia, onde há diversos relatos sobre esse comportamento. O patriarca Jó, ao saber que seus filhos haviam morrido, “... se levantou, rasgou o seu manto...” (Jó, 1.20). Jacó se desesperou ao ser comunicado por seus filhos que um animal tinha despedaçado José. Então, diante dessa notícia, sua atitude foi imediata: “... rasgou as suas vestes...” (Gn, 37.34).
131. Segundo as fontes místicas judaicas, a alma só descansa depois que o corpo é sepultado.
132. Entre os judeus, este ritual, o keriá, é um sinal tradicional de luto desde os tempos bíblicos. Esse proceder tem uma finalidade psicológica: uma forma de descarregar a dor e a angústia, diante da perda de um ente querido.
133. Ao rasgar a roupa, o enlutado profere a bênção “Baruch Dayan Emet”, “Bendito seja o verdadeiro Juiz”, demonstrando, assim, que, apesar da tragédia, sua crença em Deus e na justiça divina continua inabalável.
134. A lei judaica ordena que o corpo seja sepultado o mais breve possível, de preferência no mesmo dia. Uma excepção é feita no Shabat e no Yom Kipur, durante os quais não se pode realizar o enterro. Adiar o sepultamento é visto como um desrespeito para com o falecido e só deverá ocorrer na necessidade de aguardar a chegada dos filhos.
135. Durante o período de luto, é costume incluir ovos na primeira refeição dos enlutados, após o enterro, pois a forma arredondada do ovo simboliza, para os judeus, a natureza cíclica e contínua da vida e reflecte sua crença na imortalidade da alma; ainda, assim como o ovo não para numa mesma posição e vira, continuamente, esperam que a sua sorte também possa virar, e que a tristeza de hoje possa se transformar na alegria de um novo amanhã.
136. A palavra “Shivá” significa “sete”, e se refere ao período de sete dias de luto, contados a partir do dia do enterro.
137. A cerimónia de casamento entre judeus é longa, permeada de uma infinidade de rituais.
138. Contrato judaico de casamento. Ao assinarem esse documento, os noivos demonstram que não vêem o casamento apenas como uma união física e emocional, mas também como um compromisso legal e moral.
139. A cerimónia de consagração do matrimónio judaico.
140. Pálio ou dossel, sob o qual se realiza a cerimónia do casamento judaico.
141. Referência à ponte de Alcântara, sobre o rio Tago, à entrada da cidade de Toledo.
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Capítulo XIV. Gumersindo Acuña
O dia subsequente aos acontecimentos em que Maria de los Milagros apunhalara D. Aníbal Velásquez surgira claro e brilhante.
Gumersindo, o mordomo, acordara-se assustado, manhã alta.
− ¡Dios mío! ¡Debe ser demasiado tarde!142 – exclama ele, levantando-se ligeiro da cama. Achava-se tão cansado, da véspera, que acabara dormindo demais. E, rapidamente, dá início ao preparo do desjejum do seu amo e, pretensamente, da sua jovem companheira.
Três quartos de hora depois, a sobraçar pesado bandejão de prata, repleto de excelentes acepipes, ruma para o quarto de D. Aníbal.
Educadamente, bate à porta, e entra. A princípio, na semiobscuridade do aposento, nada notou, mas, quando seus olhos acostumaram-se à penumbra reinante, solta um grito abafado:
− ¡Dios del cielo!143
E, depositando, rapidamente, a bandeja sobre pequena mesa, acocora-se ao lado do corpo que jazia sobre o tapete, dentro de imensa mancha de sangue, e chama:
− ¡Señor!... ¡Señor!...
Não obtém nenhuma resposta. Então, cutuca-lhe os flancos com a ponta dos dedos e repete:
− ¿Por Dios, Señor, qué está pasando?144
Nada tem em reposta. Então, tomando-se de desespero, vai até a janela e, num gesto amplo, corre as pesadas cortinas de veludo. A luz matinal faz-se plena, clareando totalmente o quarto. Gumersindo, então, analisa o ambiente: nada da moça; D. Aníbal, com as feições cadavéricas, jazia sobre o tapete, que se achava encharcado de sangue e, ao lado, a faca de prata ensanguentada. Desesperado, sacode o amo e chama-o, repetidas vezes:
− ¡Señor!... Señor, me responda!
Abafado gemido, então, escapa dos lábios de D. Aníbal Velásquez. Gumersindo, afobadíssimo, vira-o de costas e descobre-lhe o ferimento ao flanco.
− A desgraçada feriu-vos, Señor! – exclama ele, tomado de altas aflições.
De momento, não soube o que fazer. Então, passados os primeiros instantes inerciais, provocados pela terrível situação em que se encontrava o patrão, o mordomo, depressa, despiu-o da camisa ensanguentada e, arrebanhando esforço sobre-humano, conseguiu alçá-lo do chão e colocá-lo ao leito, deitado de costas. E, então, sondou-lhe, minuciosamente, o ferimento: era um corte estreito, feito pela pequena faca, mas se apresentava fundo, muito fundo.
− Deve ter-lhe alcançado o rim! – murmura Gumersindo, preocupadíssimo.
O ferimento ainda sangrava um pouco, talvez pelo esforço de o mordomo tê-lo movido, com o fim de colocá-lo sobre o leito. E, decide-se, rapidamente, a pensar o profundo corte que D. Aníbal apresentava ao flanco direito. Depressa, vai até a cozinha, com o propósito de ferver água e encontrar o desinfectante necessário à limpeza da ferida.
Em pouco, achava-se de volta aos aposentos de D. Aníbal e, paciente e diligentemente, tratou do ferimento do amo.
Após a meticulosa limpeza e desinfecção do corte, Gumersindo sentou-se ao lado do leito onde jazia D. Aníbal e pôs-se a vigiar. O ferido apresentava as faces extremamente pálidas; os olhos
cerrados e os lábios descorados como os de um defunto. As mãos,
além de bastante pálidas, achavam-se álgidas. Não fora a existência
da respiração muito leve e quase imperceptível, dir-se-ia que
Gumersindo guardava um cadáver. Depois de algum tempo, o ferido emitiu curto e abafado gemido.
O mordomo, então, tomou-lhe a fria e descorada mão e apertou-a, dizendo:
− Coragem, Senhor!... Vamos, lutai!
Um novo gemido, um tantinho mais forte, ouve-se. Gumersindo anima-se:
− Senhor!... Senhor!... – chama ele, apertando a mão de D. Aníbal.
O prelado, então, contorce-se, dolorosamente, e, depois de algum tempo, abre os olhos.
Ave sem Ninho
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