LUZ ESPÍRITA
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 5 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 9:43 am

− Gumersindo... – murmura ele, com voz débil. – Que aconteceu?
− Oh, Senhor, foste ferido por aquela miserável judia! – responde o mordomo.
− Milagros!... – exclama D. Aníbal. − Agora me recordo de tudo... − e, com extrema dificuldade, pergunta: − Onde está a maldita?
− Conseguiu fugir, Senhor! – responde o mordomo.
− E tu, por que não a impediste de safar-se?
− Dormia, quanto tudo aconteceu, Senhor! – responde o serviçal, baixando o rosto, envergonhado.
− Dormiste, Gumersindo... – diz D. Aníbal Velásquez, a menear vagarosamente, a cabeça, tremendamente desapontado. – Tu me decepcionaste, deixando-a fugir, depois de tanto esforço que tivemos para capturá-la... E para onde terá ido a ordinária?
− Certamente terá voltado à casa dos pais – diz Gumersindo.
− E o ferimento?... É grave?... Tu o examinaste bem?
− É profundo, Senhor! Perfurou-vos o flanco pela extensão disto!... – e exibe ao amo a faquinha de prata, ainda manchada de sangue.
− Maldita! – diz D. Aníbal entre dentes. – E o ferimento dói-me muito, Gumersindo!... Queima como os diabos! – exclama ele, com expressivo esgar de dor.
− Certamente que deverá doer muito, Senhor! – exclama o mordomo. – Pois presumo que vos tenha atingido o rim direito!
− Deveras?! – pergunta o outro, tomando-se de funda preocupação. – E não crês que isso possa ser grave?... A dor que sinto é intensa!
− Já vos pensei o ferimento, Senhor – observa o mordomo. – E percebo que estás, também, febril. Acaso não queirais retornar a Toledo?... Penso que deveríamos chamar um médico!
− Sim, tens razão – concorda D. Aníbal. – Sinto que a febre aumenta. Prepara o carro. Vamos retornar a Toledo...
Pouco depois, com extrema dificuldade, Gumersindo e o cocheiro conseguiram carregar D. Aníbal Velásquez para o carro que rumou célere, em direcção da cidade.
Enquanto o coche sacolejava pela poeirenta estradinha que conduzia a Toledo, D. Aníbal gemia, premido pela intensa dor que lhe causava o ferimento e, se não estivesse amparado pelos braços de Gumersindo, certamente, teria perdido os sentidos, em consequência das dificuldades originadas pelo acidentado trajecto.
Quando, finalmente, as rodas do carro rolaram sobre o calçamento de pedras das ruas de Toledo, D. Aníbal, após cogitar por algum tempo, disse ao mordomo:
− Ordena ao cocheiro tomar os rumos de Santo Domingo145, Gumersindo. Não quero retornar ao palácio arquiepiscopal deste jeito. Não pretendo dar nenhumas explicações a ninguém!
− Perfeitamente, Señor! – diz o mordomo e, pondo a cabeça fora da janela do carro, ordena ao cocheiro: − Para Santo Domingo!
Quando o carro estaciona diante do pórtico do imponente monastério, D. Aníbal diz ao mordomo:
− Entra e busca por D. Sebastián Navarrete: fá-lo vir ter cá, comigo. Aguardar-vos-ei aqui!
Pouco tempo depois, o mordomo regressava, seguido por um religioso de meia-idade. Aproximam-se ambos do carro e Gumersindo, abrindo a porta do veículo, convida-o a entrar.
− D. Aníbal Velásquez! – exclama o padre. E estranhando a patente palidez do prelado, pergunta: − Que tendes, Señor?...
Acaso estais doente?
− Sim, padre Navarrete – responde D. Aníbal, arfante. E, com grande dificuldade, prossegue: – Encontro-me ferido, gravemente, e preciso dos vossos préstimos.
− Por Deus, que tendes? – pergunta o bondoso religioso.− Vamos, dai-me guarida em lugar discreto, que vos explico tudo – diz D. Aníbal, com a voz débil.
Como a grande maioria da irmandade se achasse na basílica, a assistir à missa matinal, por ninguém foram notados, à excepção do irmão porteiro que, reconhecendo familiar o grupo, nada obstou à sua entrada no mosteiro. E, então, com extrema dificuldade, amparado por Gumersindo e pelo padre Navarrete, D. Aníbal foi instalado em pequeno aposento que o próprio religioso usava.− Aqui estareis a salvo das bisbilhotices – diz o padre Navarrete.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 9:44 am

– E, por esta porta, tem-se acesso ao meu laboratório, onde preparo os meus remédios.
− Deus vos aumente a graça, padre Navarrete – exclama D. Aníbal Velásquez, assaz agradecido. E, voltando-se ao seu mordomo: − E tu, Gumersindo, toma o carro e retorna ao palácio arquiepiscopal. Se, eventualmente, perguntarem por mim, dize que me encontro em Las Palmas, a repousar. Quanto ao arcebispo, não há problemas: acha-se ele em Roma, a ter com Sua Santidade.
Destarte, por longo tempo, não no teremos por aqui!
− Virei cá, todos os dias, a acompanhar a vossa recuperação, Senhor! – diz o mordomo.
− Não carece que cá venhas todos os dias, Gumersindo. Atém-te, tão-somente, a avisares-me, se se apresentar alguma novidade, pois não quero chamar a atenção sobre a minha estada no monastério – e, atraindo-o para bem próximo de si, cochicha-lhe: − Arranja um jeito de descobrires se a desgraçada, de fato, retornou ao lar.
− Assim será feito, Senhor! – exclama o mordomo, afastando-se e, a fazer longa reverência, despede-se e deixa a cela.
A sós com o padre Navarrete, D. Aníbal Velásquez passa a narrar-lhe todo o ocorrido.
− Por Deus, D. Aníbal! – exclama o religioso, depois de tomar conhecimento dos fatos que haviam conduzido o prelado aos seus cuidados. – Deixai-me examinar-vos o ferimento! Se, de fato, a faca atingiu-vos um dos rins, o ferimento será, certamente, bem grave!
E, pacientemente, D. Sebastián Navarrete examina o ferimento que D. Aníbal ostentava ao flanco direito.− Infelizmente, parece-me grave a ferida, Senhor! – diz o piedoso padre. – Por certo, o golpe de faca perfurou-vos o rim direito.
− E, agora, D. Sebastián? – pergunta D. Aníbal, extremamente nervoso. – Há o que se fazer por mim?
− Primeiro, que retomeis a vossa calma, Senhor! – responde o padre, em sua fleuma habitual. − E, agora, mui depressa, vou aplicar tudo o que conheço, com o propósito de evitar-vos o pior. De antemão, entretanto, devo advertir-vos de que o vosso rim, possivelmente, secará, mas muito bem vivereis com um deles, se, entretanto, não vos acontecer o pior!
− E o que me seria o pior, D. Navarrete? – pergunta o prelado, assaz ansioso.
− A infecção, D. Velásquez! – retruca o religioso. – A infecção do ferimento poderá pôr-vos a vida em risco! Atentai bem: já faz mais de vinte e quatro horas que fostes ferido, e ainda nada ingeristes a combater-vos a contaminação! E a febre que vos acomete é sinal de que ela já anda a instalar-se!... Porém, irei, imediatamente, preparar-vos uma beberagem para que possamos bem combater esse mal!
Em seguida, D. Sebastián Navarrete apanha grosso cobertor de lã e, com ele, cobre D. Aníbal que se tremia todo de frio, cozido pela febre inclemente. Depois, dirige-se ao compartimento contíguo, onde se instalava o seu laboratório. O bondoso padre orava, em voz baixa, enquanto, pacientemente, pilava uma série de ervas, com o propósito de preparar a mezinha para o ferido.
Algum tempo depois, volta para onde se encontrava D. Aníbal e, delicadamente, ministra-lhe o remédio, a colheradas.
− Pronto! – diz ele, após ter dado todo o líquido pilado ao doente.
– Agora estamos muito bem armados para a grande batalha! – e emenda confiante: – Queira Deus que saiamos vencedores!
− Deus vos pague, D. Sebastián! – diz D. Aníbal com os olhos lacrimosos, extremamente judiados pelo assédio da febre severa.
*******
Nesse ínterim, em casa de Yaacov Shlomo, tudo já estava preparado para a viagem de Maria de los Milagros e Benyamin. Anoite principiava a cair, e apenas se aguardava que a escuridão se fizesse mais intensa, para melhor acobertar a saída dos jovens, sem se chamar, demasiadamente, a atenção dos vizinhos que, invariavelmente, costumam acometer-se de curiosidade, quando notam qualquer movimentação diferente pelas redondezas.
− Enfim, faz-se noite! – exclama Yaacov, depois de se haver aproximado da janela e de afastado as pesadas cortinas e de ter espiado lá fora. – Acho que já poderemos sair, sem que os vizinhos notem!
− Oh, que o Altíssimo, em Sua ciência e amor, possa conduzir-vos sãos e salvos ao vosso destino! – exclama Sara, chorosa, a abraçar-se aos filhos amados. – E, beijando-os em ambas as faces, abençoa-os.
Em seguida, os três montam seus cavalos, ainda no pátio interno, e saem. Yaacov segui-los-ia até a ponte, à saída da cidade.
Ao chegarem ao local combinado para o encontro com Andrés, lá já se achava o rapaz, de prontidão, acompanhado do pai.
E, foi com forte comoção que os três jovens despediram-se dos pais e partiram apressados, logo engolidos pela escuridão da noite.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 9:44 am

Entretanto, o que ninguém notara é que um vulto todo encapuzado de negro e que se postara o tempo todo colado às pedras da muralha, tudo observava, com especial interesse e com os ouvidos bem atentos, a pungente despedia e a partida dos três cavaleiros misteriosos...
− D. Aníbal não gostará nada do que lhe tenho a relatar... – murmura para si a personagem toda vestida de negro. – Portugal é o destino deles...
Mal amanhecera o dia, o mordomo Gumersindo já se encontrava a caminho do monastério onde se achava internado D. Aníbal Velásquez, sob os especiais cuidados do padre Sebastián Navarrete.− Como está D. Aníbal, Senhor? – pergunta ele a D. Navarrete que, bem às primeiras horas do dia, já se achava a trabalhar em seu laboratório.
− Oh, como quer Deus! – responde o padre. – A febre baixou um pouco, mas ainda é cedo para cantarmos vitória! – e, abrindo um sorriso gentil, convida: − Ele já se acordou. Vinde vê-lo!
− ¡Buen día, Senõr!... ¿Como estás? – cumprimenta a D. Aníbal o mordomo.
− Así... Así... – responde o prelado, sem muito ânimo. – E o que te traz aqui tão cedo?
O mordomo olha para D. Sebastián Navarrete, mostrando-se
reticente em relação à presença do padre.
− Podes dizer: nada tenho a esconder de D. Sebastián – encoraja-o D. Aníbal.
− Muy bien...146 – diz Gumersindo. – Conforme me ordenastes, ontem mesmo, ao sair daqui, dirigi-me incógnito à residência da judiazinha e notei alguma movimentação na casa. Aguardei por um tempo e, logo que a noite desceu, três cavaleiros deixaram a casa, a puxarem duas bestas de carga. Logo supus que os judeus andavam a fugir. E, como também eu fora a cavalo, não me foi difícil segui-los a distância. Marcharam em direcção à porta da cidade e, em lá
chegando, mais dois cavaleiros aguardavam. E, nada mais era o que eu já supunha: a judiazinha, o irmão e o noivo fugiam! E, ao se despedirem dos pais que os haviam acompanhado até a ponte, ouvi mui claramente: seu destino era Portugal!
− Malditos! – exclama D. Aníbal entre dentes. E, depois de cogitar por segundos, ordena: − Vai, Gurmesindo!
Apressa-te em segui-los! Eles têm apenas algumas horas de vantagem! Antes, passa na mansão e provém-te de dinheiro e de leve bagagem, apenas o indispensável, coisa que, para ti, levará bem pouco tempo, pois te reconheço a presteza em arranjares as coisas e não te será difícil alcançá-los, uma vez que não suspeitam que estejam sendo seguidos e deverão andar a cavalgar sem muita pressa! Segue-os, sem que te percebam, e descobre-lhes o paradeiro em Portugal! E, assim que daqui conseguir sair, eu os trarei de volta!... – e crispando a mão, cheio de ódio, acrescenta: − ¡Por Dios te juro!
Gumersindo despede-se de D. Aníbal e sai ligeiro.
− Amais essa jovem, não é? – pergunta D. Navarrete a D. Aníbal, assim que o mordomo deixara o quarto.
− Sim... – responde D. Aníbal. – Não há como ocultar, não é? − Foi-me possível perceber o quanto a simples menção do nome dessa moça faz os vossos olhos brilharem intensamente!
− Não há como negar-vos tal coisa, D. Navarrete!... Assim é:perco-me de paixão por Milagros! – e a baixar os olhos, pejados de tristeza, prossegue: − Mas ela me desdenha...
− Oh, aí está a grande desgraça que costuma trucidar os corações humanos! – exclama o bondoso padre. – A paixão!... E, se não correspondida, é a morte em vida!
− Assim bem é! – concorda D. Aníbal. – É exactamente como me sinto agora! – e depois de silenciar por instantes: − Talvez me fora melhor morrer!
− Não, D. Aníbal, não é bom que assim penseis! – contesta-o o padre. – As questões de amor combinam com a vida, não com a morte!... Que vos adiantaria buscar a morte, cheio de desilusão, se – e baixando a voz e se aproximando mais do outro, depois de voltar-se e de, meticulosamente sondar o ambiente – a morte, na realidade, não existe?
− Como não existe a morte, D. Navarrete? – D. Aníbal estranha a afirmação do padre. – Em que vos baseais para assegurar tal coisa?
− Explico-me, D. Aníbal – responde o padre. E, puxando uma cadeira, senta-se ao lado do leito do enfermo e continua:
− Facto estranho ocorreu-me, recentemente, Senhor, que me fez mudar, completamente, os meus conceitos acerca da morte e da vida eterna – e diante do profundo interesse que demonstrava o outro, prossegue:
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 9:44 am

− Há algum tempo, um dos nossos irmãos, o padre Juan Poveda, despencou escadaria abaixo e foi estatelar-se no lajedo, após cair da altura de mais de cinquenta degraus!... Pois bem: trouxeram-no cá, para que eu o examinasse. O pobre havia partido os ossos de um braço e os de uma das pernas, facto que o fez permanecer no leito, imobilizado por vários meses.
“Eu lhe ministrava os remédios, com o propósito de minorar-lhe os intensos sofrimentos, uma vez que deveis bem imaginar o quanto traumas como esses devem doer, não é mesmo? E, ao passar do tempo, à medida que os ossos do padre Poveda iam solidificando-se, e ele ganhava saúde e vigor e, enquanto dormia, estranho fenómeno acontecia com ele. “Não raras vezes, ao vir observá-lo, à noite, enquanto ele dormia, pude observar misteriosa nuvem vaporosa e fosforescente que lhe pairava alguns palmos acima do corpo. Eu estranhava bastante aquilo e questionava-me o que poderia ser, uma vez que, nunca houvera, antes, escutado relatos sobre aquele acontecimento.
“Passei, então, a observar aquele fenómeno, com bastante atenção, e pude presenciá-lo, desde o princípio, porque não conseguia cogitar como ele se iniciava.
“Naquela noite, então, ao aproximar-se do leito onde jazia D. Juan a dormir, notei que a nuvem vaporosa formava-se a partir dos orifícios naturais dele: aquela fumaça brilhante originava-se-lhe, misteriosamente, da boca, dos ouvidos e do nariz!147
“Muito curioso e, ao mesmo tempo amedrontado, vi aquela coisa ganhar expressivo volume e, D. Aníbal, pelo céu que sobre nós
está, juro-vos que a nuvem condensou-se, mais e mais, e, de repente, tomou uma forma humana!”
− Que dizeis, D. Navarrete?! – espanta-se D. Aníbal, com a narrativa que lhe fazia o outro. – Tendes certeza de que não sonhastes essa loucura?
− Não!... Não!... – responde o padre. E continua: − Na semiobscuridade do quarto, devagar, a nuvem brilhante foi tomando os contornos de uma pessoa e, estarrecido, descobri que aquele ser que ali ganhava forma, nada mais era que D. Javier Fajardo!
− O quê?!... – espanta-se D. Aníbal. – O Conde de Jaione?!...
Mas ele morreu anos atrás!
− Sim, Senhor! – exclama o padre. – Estais correctíssimo!... D. Fajardo finou-se há exactos cinco anos!
− Mas, como é possível o que me relatais, D. Navarrete? – pergunta o prelado, encontrando grande dificuldade em crer nas palavras do outro. Se não conhecesse bem aquele santo padre, difícil ser-lhe-ia acreditar naquele facto.
− Também a mim custou-me crer nos meus próprios olhos, D. Velásquez! – responde o padre. – Mas o que aconteceu a seguir, convenceu-me de que quem ali se encontrava, efectivamente, era o meu velho conhecido, o Conde de Jaione!− E como pudestes ter a absoluta certeza de que tudo não passava de um engodo da vossa cabeça?... Sabeis muito bem como são essas coisas...
− A evidência dos fatos, D. Aníbal! – responde o padre, com segurança. – Pouco antes de morrer – e eu era o confessor do Conde – contou-me ele, em confissão, pesado segredo que ninguém mais neste mundo sabia, a não ser ele tão-somente!
− E podeis relatar-me que segredo era esse?
− Sim, pois uma vez que o Conde já não mais pertence a este mundo e pelo fato de vós serdes, também, um padre, creio que levareis para o túmulo o que vou dizer-vos: lembrai-vos da morte do enteado do Conde, o jovem Alejandro, filho da Condessa Yolanda, em suas primeiras núpcias?
− Perfeitamente, D. Navarrete – responde o outro. − Estive presente em suas exéquias. A Condessa Yolanda não se conformava com a morte prematura do seu filho, encontrado morto em sua cama.
− Sim, à época, muito se comentou sobre a morte do garboso rapaz, ocorrida em situação bastante estranha: ele era jovem, bonito, aparentemente bem saudável... – observa D. Navarrete. – E, de facto, a morte do moço não foi natural: o Conde de Jaione envenenou-o!
− Que dizeis, D. Sebastián?! – espanta-se D. Aníbal. – E por que D. Javier Fajardo matou o rapaz?
− Simplesmente, porque o Conde não o suportava! Ciúmes da esposa com o enteado, por certo!
− Mas que absurdo! – exclama D. Aníbal. – Como alguém poderá ter ciúme de uma mãe com o seu filho?
− Sabeis como são tais coisas, não é? – explica D. Navarrete. – A Condessa Yolanda não desgrudava do rapaz, dando-lhe atenções e carinhos excessivos, fato que irritava, demasiadamente, o Conde que, por essa época, já se encontrava bem decrépito, por sinal, contando mais de oitenta anos!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 9:44 am

− Quando o rapaz morreu, D. Fajardo já andava aos cacos, lembro-me, perfeitamente, disso! – diz D. Aníbal.− E, como podeis bem compreender, não lhe foi difícil propinar os venenos ao enteado, vivendo ambos sob o mesmo tecto...
− Mas que desgraçado! – observa D. Aníbal. – Tirar a vida ao jovem por ciúme!
− Sim, D. Aníbal! O ciúme costuma cegar as pessoas, tirando-lhes a razão! – observa o padre.
− E ficastes sabendo tudo em confissão...
− Sim, pouco antes de o velho Conde finar-se – diz D. Navarrete.
– Certamente, pesou-lhe a consciência em demasia!
− Por certo! – exclama D. Aníbal – e depois de cogitar por instantes, pergunta: – E o que tem a ver esse fato com a aparição do velho Conde, conforme andáveis a relatar-me?
− Oh, sim, justamente! – responde o padre. – Relatei-vos esse trágico acontecimento, uma vez que a ele reportou-se o velho Conde, quando sua alma veio ter comigo, por intermédio do padre Poveda! Foi o meio de convencer-me de que era ele realmente que voltava do além!
E, conforme podeis bem aquilatar, não pude deixar de crer, uma vez que só nós dois, neste mundo de Deus, sabíamos do crime que ele cometera!
− Por esse lado, tendes razão, padre Sebastián! – observa D. Aníbal. – E como se vos apresentou ele?... Que mais vos relatou do mundo de lá? – pergunta o prelado, curiosíssimo.
− Oh, o velho conde apresentava uma aparência horrível: todo desgrenhado e macilento, com as vestes rotas e sujas de lama, e roído pelo remorso que, segundo ele próprio, carcomia-lhe o imo da alma, sem tréguas! E o que era pior: tinha de repetir a nefasta acção de preparar os venenos e deitá-los na taça que, traiçoeiramente, oferecera ao rapaz, ao convidá-lo a conversarem, junto à lareira, pouco antes de irem deitar-se para dormir. E, sem que a isso conseguisse opor qualquer resistência, tinha de seguir os passos do enteado, até que ele ganhasse o seu quarto, e, forçosamente, presenciar, quando o veneno passava a agir, destruindo-lhe, implacavelmente, as entranhas; com extremado horror, tinha que, obrigatoriamente, assistir à violenta agonia por que passava o jovem, a contorcer-se e a gemer, sentidamente, ao mesmo tempo em que, entre os estertores de intensa dor, com a voz pejada de ódio, lançava pesados impropérios e maldições, ao perceber que o desgraçado padrasto o houvera envenenado tão traiçoeiramente! E isso vinha se repetindo, sem cessar, fazia, já, mais de cinco anos!
− Que terrível desgraça! – deixa escapar D. Aníbal Velásquez, intensamente envolvido pela tétrica descrição que lhe fazia D. Navarrete sobre a horrível condição em que se achava a alma do velho Conde de Jaione. E, desagradável calafrio percorre-lhe o corpo, de alto a baixo, ao lembrar que mandara Gumersindo lançar a irmã de Maria de los Milagros do alto do abismo, em Las Palmas...
− Penso que não poderia ser de outra forma, D. Aníbal... – diz o padre. – Pude, desse modo, ter a incrível surpresa de rever o Conde depois do seu decesso... – e após fixar o rosto do seu interlocutor, por alguns instantes, prossegue: − Não há como negar que, efectivamente, era ele mesmo, não concordais?
− Não sei, D. Navarrete, ainda não sei... – diz D. Aníbal, pensativo. – Preciso reflectir muito sobre o estranho fato que me narrastes.
− Pensai e reflecti, D. Velásquez – fala o padre. – E, se, de facto, tais coisas assim sucedem, precisamos modificar os nossos conceitos acerca da vida e da morte, urgentemente!...
− Sem dúvida! – exclama D. Aníbal. E, depois de alguns momentos de silêncio: − D. Sebastián, estive a cogitar (passara-lhe pelas ideias como provar o que o outro dizia e, ao mesmo tempo, matar a sua curiosidade sobre algo). Dizei-me, Senhor: ainda anda por cá D. Juan Poveda?
− Sim – responde o outro. – Ontem, mesmo, avistei-me com ele – e cheio de curiosidade, quis saber: − Por que a pergunta, Senhor?
− Porque me perpassou pela cabeça um pensamento: não poderíamos, logo que eu melhore e consiga mover-me, provocarmos o fenómeno que acomete D. Poveda?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 9:44 am

− Acho que sim!... Mas, naturalmente, se D. Juan concordar!... – responde o outro. E, prossegue: – É bem verdade que, depois que ele se curou, de vez, das suas fracturas, não mais tentamos promover a aparição das almas... – e com uma ponta de curiosidade, pergunta: − E quem desejaríeis trazer do além?− Oh, não supondes quanta saudade eu ainda guardo do meu primeiro amor, a Condessinha de Fuenteguinaldo... – responde D. Aníbal. E cheio de expectativas: − Será isso possível, D. Navarrete?
− Em princípio, creio que sim, D. Velásquez – diz o outro. – Mas devo advertir-vos de que tive contacto tão-somente com D. Javier Fajardo. Com ninguém mais, pois, ao mesmo tempo em que a minha curiosidade de pesquisador açulava-me a continuar a observação desse fenómeno, o medo natural do desconhecido freava-me o intenso interesse que me dominava a alma!... Não sabeis como lutei comigo mesmo para interromper esse estudo!
− E por que decidistes por não prosseguir? – pergunta o prelado.
− Mais por medo das consequências, D. Velásquez! – e, abrindo ligeiro sorriso nervoso, continua: − Sabeis muito bem o que acontece a quem contraria os cânones...
− Mas, se vos cercardes de extremados cuidados, quem vos delatará?
− Oh, não sei!... Não sei, D. Velásquez!... − responde o outro. – As paredes, às vezes, têm ouvidos, e num lugar como este, difícil é-nos manter a privacidade. Por toda a parte, sempre existiram olhos e ouvidos a sondarem-nos os passos, diuturnamente!
− E se vos deslocardes para lugar fora do mosteiro, a vos pordes a salvo dos bisbilhoteiros? – observa D. Aníbal.
− Mas, onde, Senhor? – pergunta o outro.
− A mansão arquiepiscopal, por exemplo...
− Lá?! – estranha D. Navarrete. – Mas e o arcebispo, a criadagem?...
− O arcebispo acha-se em Roma e não retornará a Castela, tão cedo. Quanto à criadagem, saiba que, mal a noite desce, vão-se embora para as suas casas, restando na mansão apenas eu e meu fiel mordomo, Gumersindo Acuña, que muito bem conhecestes, ontem... E o fiel servidor de Sua Eminência, Alfonso Ugarte, segue-o aonde quer que vá.
− Assim sendo... – aquiesce o outro. – Se nos cercarmos de segurança, por que não tentarmos trazer cá, de volta, a vossa amada?
___________________________________________________________________________________________________________
142. “− Meu Deus! Deve ser muito tarde!”, em castelhano.
143. “− Deus do céu!”, em castelhano.
144. “− Por Deus, Senhor, que se passa?”, em castelhano.
145. O Monastério de Santo Domingo de Silos, também conhecido como Convento de Santo Domingo, o Antigo, encontra-se em Toledo, Espanha, e foi fundado pelo rei Afonso VI.
146. “− Muito bem...”, em castelhano.
147. Referência ao ectoplasma.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 9:45 am

Capítulo XV. Perseguição aos fugitivos
Enquanto esses fatos ocorriam em Santo Domingo, o mordomo Gumersindo, após receber as ordens de D. Aníbal Velásquez, deixara o monastério, apressadamente, e, depois de passar rapidamente pela mansão arquiepiscopal, a preparar leve bagagem, por esse tempo, já cavalgava, à brida solta, garboso e valente garanhão dos estábulos do arcebispo, indo nas pegadas do trio que deixara Toledo ao início da noite anterior.
Cavalgava, já, por três horas, e não pretendia parar, até que a sua montaria se esfalfasse, pois sua meta era alcançar os três cavaleiros que lhe iam à frente, com apenas algumas horas de vantagem e, se conseguisse manter aquela marcha, antes que o dia se pusesse, por certo, alcançá-los-ia hospedados nalguma das muitas estalagens que havia às margens do caminho. A fronteira portuguesa não ficava tão longe assim, e antes mesmo que pudessem dar-se conta, ele os estaria a seguir, visualmente.
É certo que o mordomo de D. Aníbal Velásquez não era nenhum tolo e saberia manter-se incógnito, até descobrir onde é que os fujões pretendiam esconder-se.
E, assim, escoaram-se as horas e, quando as primeiras estrelas surgiram no firmamento, Gumersindo avistou as luzes acesas de uma taverna, ao lado de um posto de troca de cavalos.
O mordomo, então, suspirou aliviado, pois se achava extenuado tanto quanto a sua montaria que arfava, dificultosamente, às raias da exaustão. Freando o cavalo, aproximou-se devagar, uma vez que, mesmo guardado pelo negror da noite, não desejava, em hipótese alguma, ver-se descoberto, uma vez que, se tal acontecesse, veria abortar-se, definitivamente, os seus propósitos, e, por certo, isso deixaria D. Aníbal Velásquez tremendamente desapontado.
Apeou-se do animal, bem antes de chegar à estalagem e, pé ante pé, aproximou-se de uma das janelas e, com extremado cuidado, espiou lá dentro.
Seus olhos, então, brilharam de satisfação, pois, acomodados numa das mesas do salão, os três jovens que fugiam de Toledo comiam com particular apetite.
− Ah!... – Gumersindo murmura para si, mui satisfeito. – Comem como lobos esfaimados e, certamente, por aqui pernoitarão!
Em seguida, a puxar seu cavalo pelas rédeas, contorna a velhusca construção de pedras da estalagem e dirige-se aos fundos, onde se localizava a estrebaria, pois pretendia alimentar e alojar o animal. E, enquanto o rapaz encarregado do posto de trocas atendia o cavalo, Gumersindo aproveitava para dar o tempo necessário para que os seus perseguidos terminassem o jantar e, como, certamente, encontrar-se-iam esgotados, logo deveriam ir dormir, sem quaisquer delongas.
E assim se deu. Depois de três quartos de hora, e depois de bem alimentado, dessedentado e alojado o seu cavalo, Gumersindo dirigiu-se, mui cautelosamente, à taverna e, de novo, espiou, antes, pela janela. O salão estava vazio: ninguém mais lá se achava, à excepção do estalajadeiro que recolhia os pratos da mesa em que os três jovens estiveram a cear.
O mordomo solicita, também, comida para si e, depois de bem alimentar-se, pede ao estalajadeiro um quarto e mete-se na cama, pois tinha o corpo arrebentado pela marcha ligeira que desenvolvera pelas últimas horas.
Aos primeiros albores da manhã seguinte, Gumersindo despertou-se e, rapidamente, pôs-se de pé. Primeiro, era preciso averiguar, com todo o cuidado deste mundo, se os três jovens já haviam partido. E foi o que fez. Armando-se de extremada precaução, encaminhou-se até o início da escadaria que dava ao saguão da estalagem e, ainda do alto do mezanino, espiou lá embaixo: tudo estava tranquilo, não havia ninguém, à excepção do estalajadeiro.
Desceu as escadas e aproximou-se do balcão, com o propósito de pagar a conta. Em seguida, pergunta ao homem sobre os três jovens que ali também haviam pernoitado.
− Partiram já faz mais de meia hora, Señor – responde o taberneiro, solícito.
Gumersindo, então, solicita pequeno farnel ao homem e, em seguida, apanha o seu cavalo na estrebaria e põe-se a caminho, sem delongas. E, impondo à sua montaria ligeiro trote, logo avistou o pequeno grupo que cavalgava, despreocupadamente, e, pelos gestos que faziam, era possível perceber-se que conversavam animadamente.
O mordomo, então, refreou a marcha do seu cavalo e procurou manter distância razoável, para que os jovens não percebessem que ele os seguia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 9:45 am

− Em mais dois dias, nesta marcha, deveremos ganhar a fronteira portuguesa – observa Andrés que, por ser o mais velho dos três, era naturalmente o mais experiente deles todos.
− Deveras? – diz Milagros, a sorrir, felicíssima, para o noivo. – Não sei o que seria de nós, se não tivesses vindo connosco!
− Talvez nem encontrássemos o caminho para Portugal! –
exclama Benyamin, jocoso. – À esta hora, deveríamos estar a cavalgar em roda, sem lograr alcançar nada, a não ser nossos rastros anteriores! Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Oh, exageras! – diz Andrés, a rir-se da facécia do rapazote. – Percebeis como caminhamos o tempo todo ao lado do rio148?...
Bastaria que se o seguísseis ou fôsseis perguntando o caminho em todos os postos de troca de cavalos!
− Assim se torna bem fácil! – intervém Milagros. – Mas nem imaginas o quanto eu andava a morrer de medo de vir a sós com Benyamin, que nunca viajou além do mercado da praça de Toledo!
− Oh, sabes muito bem que já fui a Madrid com papai! – contesta o rapaz, ofendido. – Por que andas a menosprezar-me?− Desculpa-me, Benyamin – diz a jovem, a rir-se. – Não te amofines; apenas brincava contigo! Todo o mundo sabe que és um rapaz assaz viajado...
E todos caem em gostosas gargalhadas, com a espirituosa observação da moça.
− E que rumo achais que devamos tomar em Portugal? –pergunta Andrés, tornando-se sério. – Nossos pais recomendaram-nos que nos dirigíssemos bem a oeste, o mais longe possível de Toledo.
− Entretanto, nada conhecemos de Portugal – observa Milagros.
– Como achas ser-nos possível fixarmos o nosso destino, de antemão?
− Minha irmã tem razão! Assim se faz bem difícil saber para onde vamos!... – diz Benyamin.
− Eu também jamais estive em território português – explica Andrés. – Entretanto, pelo que sei, Lisboa situa-se bem à foz do rio Tago, e consequentemente, à costa atlântica. Portanto, não poderíamos ir mais além!
− E terá Lisboa uma judiaria149, como Toledo? – pergunta Milagros.
− Com toda a certeza! – responde o rapaz. – E isso nos facilitará muito a nossa instalação em território português, pois os rabinos, certamente, dar-nos-ão o apoio indispensável à nossa integração na comunidade de lá.
− Isso me deixa um pouco mais tranquila, meu amor! – diz a jovem, com um suspiro de alívio. – Ao menos, poderemos continuar com os nossos costumes.
− Sim – concorda Andrés. – Mais difícil ser-nos-ia ter de abandonar o nosso jeito de viver, para absorver os hábitos de outro povo!
− E, acaso, perseguir-nos-ão também em Portugal? – pergunta Benyamin.
− Pelo que me contou papai, em Portugal, os de nossa raça não são tão perseguidos como em Castela. Mas, não nos fiemos muito nisso, pois, à medida que a perseguição aos judeus recrudesce num dado lugar, normalmente, ocorrerá em outros! Tem sido assim, ao longo do tempo. Somos apátridas, não vos esqueçais disso nunca!
Gumersindo seguia-os, à distância segura; entretanto, era-lhe impossível ouvir o que os jovens conversavam, tão animadamente.
Porém, naquele momento, isso não era importante; essencial, mesmo, era seguir-lhes os passos e descobrir onde é que se alojariam, quando chegassem a Portugal.
Desse modo, caminharam até que o sol ganhasse o alto do zimbório. Então, como o caminho, naquele trecho, passasse sob algumas árvores frondosas, resolveram aproveitar a ocasião e a magnífica sombra e apearam dos cavalos, com o propósito de tomarem a refeição posta em bem recheado farnel que houveram obtido na estalagem onde pernoitaram.
Milagros, então, apanhando larga toalha na bagagem que traziam, desdobrou-a e, magistralmente, estendeu-a sobre o esplendente relvado que medrava à margem da estradinha.
Em seguida, apanhando a matula, dela retirou um avantajado pão, um pesado e perfumado queijo e uma botelha de vinho.
Depois, convidou os dois rapazes que, de pé, mantinham-se a observá-la que, compenetradamente e cheia do profissionalismo tão peculiar às mulheres, em tais misteres, dispunha sobre a imaculada toalha aquela singela refeição.
− Estais servidos, Senhores? − pergunta ela, a rir-se gentil. − Tomai assento e servi-vos!
− Perfeitamente, Señora! – exclama Andrés, acocorando-se-lhe ao lado e lhe tomando ambas as mãos, beija-as apaixonadamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 9:45 am

Depois, a jovem toma de uma faca e, delicadamente, corta grossas fatias de pão e de queijo e entrega-as ao irmão e ao noivo; em seguida, serve-se ela mesma da comida. E comem em silêncio; apenas os olhos de Milagros e de Andrés não se desgrudavam uns dos outros; dir-se-ia que se trocavam juras de amor eterno numa linguagem desconhecida, revelada apenas aos que muito se amam...
Depois da frugal, mas substanciosa refeição, recostam-se aos troncos das frondosas árvores, a se permitirem pequeno descanso.
E, enquanto Benyamin cochilava, vencido pela modorra que, insistentemente, dominava-o, os jovens noivos, de mãos enlaçadas, conversavam baixinho:
− Meu amor – dizia ele com os olhos fixos nos olhos da amada −, não sei se suportarei conviver tão proximamente contigo, sem ter-te plenamente!
− Também a mim me será mui difícil viver ao teu lado, sem consumarmos a nossa paixão! – exclama ela, a apertar-lhe, fortemente, a mão. – Entretanto, não poderemos, jamais, quebrar o juramento que fizemos aos nossos pais!
− Assim deverá ser, querida! – diz ele, com os olhos tristes. – Mas ser-nos-á um tormento convivermos, sem nos tocarmos! A pressa fez-nos não cogitar, seriamente, acerca desse ponto.
Deveríamos ter exigido que, depois de algum tempo, viessem eles de Castela, com o propósito de realizarmos as nossas bodas, mesmo em solo português.
− Tens plena razão, querido! – exclama ela. − Entretanto, nada nos impedirá de escrevermos aos nossos pais, solicitando-lhes a bênção para a realização do nosso casamento. E se, de fato, assim o desejarem, poderão, eventualmente, vir a Portugal, para esse propósito!
− Assim será feito, meu amor! – diz o rapaz, apertando ainda mais forte a delicada mãozinha da sua noiva. E, com incontida paixão, esmaga-lhe os lábios com ardoroso beijo, a aproveitar-se da invigilância de Benyamin que, por esse momento, dormia profundamente...
E, por algum tempo, os dois jovens enamorados aproveitaram-se para dar vazão ao sentimento profundo que lhes invadia a alma. Por fim, chega o momento de reencetarem a viagem, e Milagros, delicadamente, fez com que o irmão despertasse da sua sesta. Em pouco, os três retomavam o caminho que rumava para a fronteira portuguesa.
O mordomo de D. Aníbal Velásquez também aproveitara aquele interregno da viagem para tomar a sua refeição, constituída à semelhança da que houveram feito os três jovens. Entretanto, não cochilara. Sempre de prontidão, acompanhava todos os movimentos que faziam os seus perseguidos, sem nada deixar escapar. E, ao vê-los que reiniciavam a jornada, pôs-se também ele a caminho.
Assim fizeram, por mais dois dias, até que passaram a fronteira portuguesa. Até Lisboa, entretanto, que se localizava bem a oeste, quase à costa atlântica, teriam ainda de cavalgar por mais alguns dias.
Como desconheciam, plenamente, o solo português, tiveram de ir indagando, ao longo da viagem, qual o caminho certo a seguir.
Por fim, sem maiores incidentes, ao meio do sétimo dia após haverem cruzado a fronteira luso-castelhana, avistaram a magnífica capital do reino português.
Lisboa, por essa época, já se tornara a principal cidade de Portugal e sede do governo. Construída à margem direita do rio Tejo, a cidade espalhava-se em derredor de uma colina, em cujo cimo erguia-se o Castelo de São Jorge150, magnífica fortaleza reconquistada e remodelada pelos cruzados à época medieval.
Os três jovens, diante da esplendorosa visão da capital portuguesa, deixaram escapar exclamações de admiração pela imponente cidade que se derramava colina abaixo, a partir das fundações da vetusta muralha que guardava o majestoso castelo, até às margens do brilhante Tejo que, em seus derradeiros momentos de existência, ondulava e faiscava as suas límpidas águas verde-azuladas, antes de ser definitivamente tragado pelo grandioso Atlântico!
− Pronto!... Cá estamos!... – exclama Andrés. – Agora é só descobrir onde fica a judiaria e lá nos instalarmos.
− Finalmente! – brada Benyamin, com forte suspiro. – Não vejo a hora de esticar-me num leito!... Chega de dormir ao relento, no chão duro, sob as árvores!
− Logo te refestelarás em leito bem macio e limpo, maninho! – diz Milagros, dirigindo-se ao irmão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 9:45 am

− Creio que vivenda modesta ser-nos-á suficiente – observa Andrés. – É bom não chamarmos a atenção. Sabeis como é: somos estranhos nesta terra, ninguém nos conhece, e ladrões existem por todo o lado!− Concordo com o que dizes, meu amor – diz Milagros. – O importante é que nos achemos a salvo!
− Suplico a Yavé que tenhas razão, querida! – exclama o rapaz.
– Tu mataste um alto dignitário da Igreja, e não creio que os padres deixem isso passar em branco. Ainda mais que és uma judia...
− Oh, queira o Altíssimo que jamais nos encontrem cá, meu bem!
– diz a moça, com um calafrio a percorrer-lhe o corpo todo. – Caso contrário, seremos, impiedosamente, condenados à morte!
− Certamente! – concorda o rapaz. – E, rezemos, então, ao Eterno, para que nunca nos encontrem, ou será o nosso fim!
− Oh, Andrés! – exclama a moça, a tomar-se de extremo terror. – De repente, perpassou-me à cabeça terrível pensamento: e se apanharem meus pais, com o propósito de fazê-los dizerem onde é que nos ocultamos?
− Acho que tem muita lógica isso que pensaste, meu bem – responde o rapaz, depois de cogitar por alguns instantes. – Analisando bem essa possibilidade, não será difícil que resolvam prender os teus pais e, sob tortura infamante, fazê-los revelarem onde é que te ocultaste.
− Então, nem aqui estaremos a salvo! – exclama o jovem Benyamin, a encher-se de medo.
− Acalma-te, Benyamin! – aquieta-o Andrés. – Teus pais não poderão revelar-lhes o nosso paradeiro porque nem mesmo eles sabem onde é que nos instalamos! Poderão, eventualmente, dizer que estamos em Portugal, mas não nos descobrirão assim tão facilmente, e o território português não é tão pequeno! Levariam um bom tempo para localizar-nos, e penso que se nos seria mais favorável darmos nomes falsos, quando lá nos apresentarmos. O que acham disso?
− Bem pensado, Andrés! – concorda Milagros. – Se, eventualmente, vierem a saber que aqui estamos, isso lhes dificultará ainda mais a nossa busca!
− Sim! – diz Benyamin, a interessar-se sobremodo pela possibilidade de ter o nome mudado. – Eu, doravante, serei Moshe!
− Belíssima homenagem ao nosso patriarca! – exclama Andrés.
– Bem escolhido!− E eu serei Rachel! – diz Milagros, a rir-se.
− A bela filha de Yaacov!... Muito bem!
− E tu? – pergunta Milagros. – Quem serás?
− Não sei... Talvez Yoshua... – responde o rapaz. E, quase a murmurar, completa: – Há imensa muralha a pôr-se abaixo, e eu ainda não tenho em mãos nenhuma trombeta...
− Que disseste, meu querido? – pergunta Milagros, ao ouvi-lo murmurar algo.
− Nada importante, meu bem! – responde ele. – Nada importante...
E, antes que a tarde começasse a cair, os três jovens já se achavam à entrada da Judiaria Grande de Lisboa151, aglomerado de casas e de lojas, além de uma sinagoga.
− Aqui estamos, afinal! – exclama Andrés. – Agora devemos procurar alojamento e, mais tarde, avistarmo-nos com o rabino.
O rapaz, apeando-se da sua montaria, adentra uma correaria e interpela o artesão que, compenetrado, ocupava-se de cortar uma peça de couro.
− Salve, Senhor! – exclama o jovem, descobrindo-se. – Podeis dispensar-me um instante da vossa atenção?
− Que desejais? – pergunta o artesão, interrompendo o que fazia.
− Dizei-me, senhor, onde poderei encontrar abrigo?
− Na estalagem do velho Mordechai – responde ele e, rodeando o balcão, vai até a porta do seu estabelecimento e aponta com a mão: − Lá, ao final da rua, o sobrado!
Andrés agradece o artesão de couros e, a puxar a sua montaria pelas rédeas, sinaliza aos outros dois que o seguissem.
Pouco depois, achavam-se na estalagem. O estalajadeiro era um velho de grande calva luzidia e de olhos azuis profundos e bondosos.
− Sede bem-vindos!... – o velho dá-lhes as boas-vindas, extremamente gentil.
− ¡Gracias, Señor! – respondem os três jovens em coro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 7:19 pm

− Pelo trajar, e pelo modo de falar, não sois destas paragens, pois não? – observa o estalajadeiro cheio de cortesia.− Não, senhor – responde Andrés. – Somos castelhanos...
− Ah, de Castela!... – diz o velho, a iluminar, ainda mais, os olhos azuis. – Muito bem!... E pretendeis permanecer por longo tempo em Lisboa?
− Por um bom tempo, Senhor – responde Andrés. – Mas, por ora, apenas que nos arranjeis dois quartos. E, depois, desejamos comer.
− Perfeitamente, Senhor! – diz o velhote, a fazer ligeira reverência. E, a apanhar grosso molho de chaves, convida: − Fazei a gentileza de seguir-me!
Em pouco, Andrés e Benyamin instalavam-se juntos, num dos quartos, e, num outro, Milagros ajeitava-se. Depois de depositarem as bagagens em seus respectivos alojamentos, saem para comer.
− Aqui permaneceremos o tempo suficiente, até conseguirmos encontrar pequena casa para alugarmos – diz Andrés, enquanto desciam a estreita escadaria de pedras que dava ao salão da hospedaria.
O velhote de calva grande e brilhante já os aguardava sorridente.
− Preparei-vos o almoço, senhores! – exclama ele. – Fazei o favor de acomodar-vos.
Enquanto os três jovens comiam com bom apetite o almoço que o velho preparara-lhes, o mordomo Gumersindo, com o corpo colado à parede da Igreja da Madalena152, a tudo acompanhava, sem ser notado. E, assim que os jovens adentraram a hospedaria do velho Mordechai, assinalou bem o local onde os três passariam a residir, em Lisboa.
Satisfeitíssimo, o mordomo de D. Aníbal Velásquez esfregou as
mãos de contentamento. Agora deveria encontrar uma hospedagem para si, fora da judiaria, mas não muito distante, pois pretendia ficar de olho no que faziam os fugitivos de Castela.
Depois de terem comido, os três dirigem-se aos seus respectivos quartos, com o propósito de descansarem da longa viagem.
Nesse entretempo, Gumersindo também já se houvera alojado em singela hospedaria, não muito longe da judiaria, e, também ele, moído de cansaço pelo longo trajecto que percorrera, vindo de Castela, no encalço dos três jovens fugitivos, aproveitava para recuperar-se e lançara-se ao leito para descansar.
Desse modo, passou a tarde e, como todos se achavam demasiadamente cansados pelos longos dias despendidos na viagem, emendaram com a noite, indo acordar-se somente à manhã do dia subsequente.
Andrés foi o primeiro a despertar. A princípio, levou um tempo para localizar-se; depois, com as ideias já ajustadas, deixou o leito e encaminhou-se até a pequena janela do aposento e escancarou-a, de súbito. O jovem Benyamin, acordado pela brilhante luz do sol matinal a invadir o ambiente, protesta veementemente:
− Oh, por que te levantaste tão cedo?... Acho-me ainda moído de cansaço!... Bem que poderíamos ficar no leito até o meio do dia!
− Ora, deixa-te de molezas, Benyamin! – exclama o outro, a rir-se. – Estiveste a dormir por mais de dezassete horas seguidas!
Desse modo, ficarás totalmente entorpecido!
− Ui! – geme o rapazote, a virar-se na cama. – Tenho os ossos todos doloridos por haver dormido todos esses dias ao relento e sobre o chão duro!
− Oh, que exagero! – rebate Andrés. – Bem que dormimos algumas vezes em estalagens à beira do caminho!
− Algumas pouquíssimas noites tão-somente! – corrige-o Benyamin. – No mais das vezes, dormimos ao relento!
− Ora, vamos, levanta-te daí, preguiçoso, pois temos de cuidar da vida! – exclama Andrés, a puxar-lhe as cobertas, forçando-o a levantar-se.
− Está bem, venceste! – diz o rapazinho, levantando-se e se pondo a rir. – Pelo que vejo, tu te sais pior que o meu pai e a minha mãe juntos!
− Sim! – diz o outro, em tom jocoso. – Tu que não te afines e verás o peso da minha ira abater-se sobre ti, sem piedade!
− Oh, que Elohim apiede-se da minha pobre alma! – diz Benyamin, a juntar as mãos e a levantar os olhos ao alto, a fingir uma súplica.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 7:19 pm

Neste comenos, leves batidas à porta ouvem-se. Andrés abre-a:
era Milagros que já se achava pronta.− Pelo que percebo, acabais de vos levantar! – observa ela, ao ver que ambos ainda se achavam em trajos de dormir. – Como me adiantei a ambos, aguardo-vos lá embaixo para o desjejum – e sai para o corredor.
Em pouco, os três juntavam-se no pequeno salão de refeições da estalagem.
− Que achas que devemos fazer hoje? – pergunta a jovem ao noivo, enquanto aguardavam o velho estalajadeiro servir-lhes o desjejum.
− Penso que deveríamos procurar o rabino, apresentarmo-nos a ele e lhe revelar o motivo porque aqui estamos – responde Andrés.
− E crês que precisamos, mesmo, contar-lhe a verdade? – pergunta a moça.
− Não vejo por que não lhe revelarmos o principal motivo que nos levou a deixar Castela – responde o rapaz. – Desse modo, numa emergência, certamente, poderemos contar com a sua ajuda e a conivência de toda a judiaria, não é?
− Tens razão, querido! – diz ela. – Pensando dessa maneira, concordo em contar ao rabino a necessidade que tivemos de deixar a nossa terra, tão de repente!
− E achais que podemos confiar nesse rabino? – pergunta Benyamin, a revelar-se altamente desconfiado. − Sequer o conhecemos! Quem nos garante que não nos delatará à guarda do rei?
− Não o conhecemos, mas devemos confiar nele, pelo cargo que ocupa, Benyamin! – explica Andrés. – Sei que nossos pais recomendaram-nos muito cuidado e que desconfiássemos de tudo e de todos, mas, como iremos explicar a nossa abrupta chegada à judiaria?...
Sabes como são essas coisas: as pessoas são muito curiosas em relação aos fatos que acontecem em seu derredor. Inda mais que somos estrangeiros!
− Andrés tem razão, Benyamin – atalha Milagros. – Não poderemos permanecer incógnitos aqui. As pessoas exigirão de nós uma explicação! – e baixando, propositadamente, a voz, dirige-se ao noivo: − Entretanto, não vejo a necessidade de contarmos ao rabino que dei cabo daquele miserável, não concordas?− Sim – aquiesce o rapaz. – Não é preciso que entremos em detalhes. Combinemos agora, entre nós três, que deixamos Castela porque o Tribunal do Santo Ofício inicia as perseguições contra o nosso povo, e que decidimos abandonar a nossa terra, antes que o terror por lá se instalasse de fato.
Concordes sobre o que diriam ao rabino, dirigem-se à sinagoga local153, segundo as indicações do velho Mordechai.
O templo fora construído entre os anos de 1306 e 1307 e tinha características interessantes: possuía três grandes naves e, no pátio fronteiriço ao magistral edifício, medrava gigantesca e viçosa parreira, plantada ali pelo seu fundador154, o rabino-mor de Lisboa, à época.
Os três jovens adentram o templo e admiram-lhe o majestoso espaço interior: as abóbadas altas, sustentadas por quatro corpos de colunas de mármore opalino, dois deles junto às paredes, e os restantes a separar a nave central das outras duas laterais; os acentos individuais eram forrados de fino tecido e, à frente, erguia-se enorme púlpito para os sermões, feito todo ele de boa madeira lavrada a capricho e esmero. Além disso, dez enormes candelabros de bronze reluzente ardiam com nove brandões de cera cada um, a darem uma atmosfera peculiar ao ambiente pejado de quietude e de respeito.
Por um tempo, os três ficaram a admirar as belezas do majestoso templo e, por fim, decidem-se a procurar pelo rabino-mor e vão encontrá-lo em sala reservada, debruçado sobre grosso alfarrábio.
Notando-lhes a presença, o rabino levanta os olhos e pergunta:
− Quem sois?
− Somos de Castela, senhor, e necessitamos falar-vos – responde Andrés, a fazer longa reverência.
− Pois bem – diz gentil o velho rabino de longas barbas brancas.
− Sou todo ouvidos!
E, conforme o combinado entre si, pouco antes, Andrés relata-lhe os fatos que os levaram a deixar Castela e rumarem a Portugal.
− Ouço, com muito pesar, as tristes notícias que trazeis de Castela, meus jovens! – diz o velho rabino. E depois de emitir fundo suspiro cheio de desalento, prossegue: − Infelizmente, já pressinto o que sucederá, mui em breve, também cá, em terras portuguesas, pois a intolerância contra a nossa gente já brota feroz em todo o canto, embora Sua Majestade, o rei155, tenha se mostrado bem tolerante para com os judeus até então156.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 7:20 pm

Mas, até quando isso acontecerá?... Deveis saber que a pressão que o clero faz sobre os governantes é muito intensa, para que nos expulsem da Península!
− Às vezes penso, Senhor, que não nos tolerarão muito mais tempo, mesmo aqui, em terras portuguesas – observa Andrés. – E como muito bem deveis saber, com a restauração do Tribunal do Santo Ofício, em Toledo, mui em breve, creio, começarão, ostensivamente, as perseguições, e teremos emigração em massa de judeus castelhanos para cá. Se isso, de fato, acontecer, o vosso soberano continuará a ser assim tolerante, quando milhares e milhares de judeus castelhanos baterem às portas do reino português?... Onde se acomodará tanta gente?... – e, depois de alguns segundos de silêncio, conclui: − E posso garantir-vos, sem sombra de dúvida, que é exactamente isso que ocorrerá proximamente!
− É verdade isso! – diz o rabino, a espantar-se com as ideias maduras e inteligentes que lhe expunha aquele rapaz ainda tão jovem. E assaz admirado com o raciocínio do moço, prossegue: – Estais coberto de razão, pois creio serdes os pioneiros dessa emigração que promete acontecer mui brevemente! – e mudando de assunto: −
Entretanto, aconselho-vos a ajeitarem-se pela judiaria e buscarem estabelecer-se dalgum modo. Acaso tendes alguma profissão?
− Somos tecelões – apronta-se em responder Andrés.
− Perfeito! – exclama o rabino. – A cidade precisa mesmo de experientes tecelões, e recomendo que monteis uma tecelagem.
Juntos encontraremos lugar adequado! Procurai-me, logo caia a tarde, pois, agora, tenho coisas importantes a fazer – e despede os três jovens, acompanhando-os até uma porta lateral do templo.
Já fora da sinagoga, a jovem cochicha ao noivo:
− Onde é que foste tirar a ideia de que somos tecelões?− Ora, foi a primeira coisa que me veio à mente! – responde Andrés, a rir-se. – E, não será difícil encontrar alguém que nos faça o serviço! – prossegue ele. – Isso será tão-somente uma desculpa, não percebeste? Com o dinheiro que temos, não precisaremos fazer absolutamente nada, entendeste?
− E achas que nos será assim fácil vivermos sem chamar atenção, nada fazendo? – observa ela.
− Tenho algo a revelar-lhes! – diz Benyamin que, até então, permanecera calado o tempo todo, tão-somente a observar o acontecimento dos fatos: − Eu aprendi noções de tecelagem, quando frequentava a casa do meu amigo Shimon Hazan! Acho que, se indagado sobre o ofício, saberei alguma coisa sobre como tecer tapetes e mantas! Que vos parece?
− Perfeito! – responde Andrés. − Abriremos a loja e, aos fundos, a oficina. Além do mais, que nos custará mandar comprar aos mouros de Castela um carregamento dos bons e excelentes tapetes que tecem por lá?
− Assim sendo... – concorda ela, com ligeiro sorriso. E achegando-se mais ao noivo, prossegue: − Não sei o que seria de nós sem a tua esperteza...
Andrés dá de ombros e ri-se. Para ele, o mais importante, no momento, era ter a sua amada, constantemente, ao seu lado. Tudo o mais, certamente, acomodar-se-ia com o tempo...
______________________________________________________________________________________________
148. Referência ao rio Tago que, após banhar Toledo, segue o rumo oeste e adentra o território português, onde passa a denominar-se Tejo e deságua no Atlântico, sendo a sua foz em Lisboa, Portugal.
149. Bairro destinado aos judeus.
150. O Castelo de São Jorge localiza-se na freguesia do Castelo, na cidade e concelho de Lisboa, em Portugal.
151. A Judiaria Grande ou Judiaria Velha de Lisboa situava-se na Baixa, entre as Igrejas da Madalena, de S. Nicolau e de S. Julião e nas imediações das antigas Ruas da Correaria, Ourivesaria, Poço da Fótea e Rua Nova de El-Rei.
152. A Igreja da Madalena era um dos pontos de demarcação da Judiaria Grande de Lisboa.
153. A Sinagoga Grande de Lisboa, inaugurada em 10 de setembro de 1307, localizava-se na Rua da Princesa, à esquina da Rua dos Mercadores. Depois do decreto de expulsão dos judeus, de 1496, essa sinagoga foi transformada na Igreja de Nossa Senhora da Conceição pelo rei D. Manuel I, que a doou aos frades da Ordem de Cristo.
154. A Sinagoga Grande de Lisboa foi fundada pelo rabino-mor Judah Ben Yahia, neto do primeiro rabino-mor do Reino, Yahia Ibn-Yaish, entre os anos de 1306 e 1307.
155. Referência ao rei D. João II, que reinou em Portugal de 1481 a 1495.
156. Na verdade, por essa época, em Portugal, os judeus gozaram de relativa liberdade, mas, em contrapartida, tinham que pagar impostos escorchantes ao erário, para permanecerem no reino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 7:20 pm

Capítulo XVI. Benyamin Shlomo
Alguns dias já se haviam passado, desde a chegada dos três jovens à Judiaria Grande de Lisboa. Com o auxílio do rabino, já haviam encontrado local propício à instalação da modesta loja de tapeçaria, com pequena tecelagem aos fundos e, como se tratava de edificação assobradada, montaram a residência no andar superior; pequenos cómodos, mas confortáveis o suficiente para que seus ocupantes gozassem de relativo conforto.
Andrés encomendara de um mercador castelhano a compra de dois teares grandes, mais um carregamento de tapetes, dos quais aguardava, ansiosamente, a chegada, para dar início ao negócio.
Enquanto isso, para matarem o tempo, saíam, amiúde, os três para conhecerem a cidade de Lisboa que, à época, já se firmara como a capital do reino português, além de ser o principal porto do país, uma vez que a nação lusitana já galgava posição de destaque nas artes da navegação.
Por esse tempo, numa tarde ensolarada de verão, Benyamin − enquanto Andrés e a irmã faziam a sesta, após o almoço − resolveu ele sair sozinho com o propósito de conhecer o porto, pois, da janela do seu quarto, no pequeno sobrado que habitavam, costumava observar, a distância, as águas brilhantes do caudaloso rio Tejo, bem como os navios que chegavam de longe, e os que saíam em busca dos portos distantes.
Assim, com cuidado, o rapaz calçou as botinas e saiu, sem chamar a atenção de ninguém. Sem pressa, deixou a judiaria pela Rua da Princesa, passando bem em frente à sinagoga e, na esquina, tomou a Rua dos Mercadores. Destarte, despreocupadamente, Benyamin seguiu em direcção à ladeira que conduzia ao porto. Entretanto, à relativa distância, um homem seguia-o, discretamente colado às paredes das casas: era Gumersindo que, cheio de atenção, não perdia um só dos movimentos do rapaz que lhe ia, descuidadamente, à frente.
O mordomo de D. Aníbal Velásquez exultava de satisfação por aquele achado: o mocinho não o conhecia, e não seria difícil acercar-se dele e, com um pouco de perspicácia, arrancar-lhe tudo o que desejava saber acerca dos rumos que os três fugitivos tomariam em terras portuguesas e, dessa forma, poderia retornar a Toledo, a dar satisfações ao seu patrão.
Com tais intenções, o mordomo seguiu Benyamin até que se acercassem do cais do porto. Desejando abordar o jovem, Gumersindo estugou os passos e aproximou-se.
− Lindo o rio nestas paragens, não achas? – diz ele, com um sorriso, esforçando-se ao máximo por falar, correctamente, a frase em português.
− ¡Por supuesto! – responde Benyamin, gentil, às observações do mordomo de D. Aníbal Velásquez. – ¡Efectivamente, es muy hermoso el río en este lugar!157
−¡Oh, tu eres de Castilla!... – finge Gumersindo, agora falando castelhano. − ¡Un español real!...158
−¡Pero sí! – diz o ingénuo rapazote, alegrando-se sobremodo por encontrar um patrício ali. E, cheio de curiosidade, indaga: − ¿Dónde vienes, Señor?159
− Vengo de Córdoba – mente Gumersindo, propositadamente. − ¿Y tú, de dónde vienes?160
− Vengo de Toledo – responde o jovem, mostrando-se assaz feliz por encontrar alguém da sua terra.
− De Toledo?... – continua Gumersindo, interessadíssimo em prosseguir a conversação com Benyamin. – E por que vieste dar em Lisboa?... Acaso estás de passagem?...
− Oh, penso não nos encontrarmos tão-somente de passagem, Señor! – responde o rapazinho. – Pelo que me consta, nós deveremos permanecer longo tempo cá...− Empregaste o plural; então não te achas sozinho nesta cidade, presumo...
− Não! – responde o jovem. – Estamos aqui eu, minha irmã e seu noivo.
− E o motivo pelo qual deixastes a Espanha? – pergunta Gumersindo.
− Perseguições, Señor... Señor?...
− Juan Martins! – exclama Gumersindo, a mentir de propósito o nome e a estender a mão ao jovem em cumprimento.
− Benyamin Shlomo! – diz o rapaz, a apertar, efusivamente, a mão do mordomo de D. Aníbal Velásquez.
− Então, Benyamin... – prossegue Gumersindo em seu jogo –, dizias que deixastes Toledo, movidos por uma perseguição. Quem vos perseguia?
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 5 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 7:20 pm

− Pelo que sei, um cavalheiro atormentava minha irmã... – explica o simplório rapaz. − E chegou mesmo a raptá-la e ainda assassinou minha outra irmã, Consuelo...
− Oh, que desgraça! – exclama o outro, a fingir profunda consternação. − Mas que miserável esse... esse... Não sabes dizer o nome do infame?
− Sei-lhe tão somente o prenome: Aníbal, mas não o conheço pessoalmente.
− Muy bien... – murmura Gumersindo e, a coçar o queixo, a fingir profundo interesse pelo caso, pergunta: − E onde vos estabelecestes, cá, em Lisboa?
− Na judiaria – responde o rapaz. – Estamos a abrir uma tapeçaria, na rua da sinagoga...
− Ah, sois tecelões, então! – exclama o mordomo, a simular curiosidade intensa.
− Na verdade, não... – responde o mocinho, em sua ingenuidade juvenil. – Como andamos a nos esconder por cá, preciso foi que nos disfarçássemos atrás dalguma profissão! Sabeis bem como é...
− Correctíssimo! – diz o outro. – Se estais a esconder-vos, natural
que achásseis bom disfarce como esse! – e, pela extrema facilidade de como conseguira arrancar tudo o que desejava saber daquele papalvo rapazito, ri-se satisfeitíssimo: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...− Papai diz-me sempre que é importantíssimo sermos espertos neste mundo, não achais, Señor?
O mordomo de D. Aníbal Velásquez ri-se das palavras de Benyamin e, por fim, como já estivesse de posse de todas as informações de que necessitava, despede-se, efusivamente, do jovem e se vai.
O jovem segue com os olhos o estranho que se afastava ligeiro até vê-lo desaparecer numa esquina próxima. Depois, volta-se para admirar o grande rio que corria para a sua foz que se dava a algumas centenas de metros abaixo, tão-somente.
Por um longo tempo, Benyamin andou pelo porto, a observar, atentamente, as embarcações atracadas ao cais. Alguns estivadores esfalfavam-se na estafante ocupação da estivação, arcados sob os pesadíssimos fardos de mercadorias que embarcavam ou desembarcavam dos navios.
O jovem admirava-se daquelas novidades e não percebeu que o tempo passava e só se deu conta de que era bastante tarde, quando o estômago passou a roê-lo de fome e resolveu-se, então, por voltar a casa.
− Onde estiveste por todo esse tempo? – pergunta Andrés, preocupadíssimo, ao vê-lo que adentrava a casa bem ao final da tarde. – Que te deu às ideias de saíres por aí, a sós?
− Ora, fui tão-somente ao cais do porto, a observar as embarcações – responde o rapazinho. – Nada, além disso!
− Não deverias ter saído sozinho, à nossa revelia! – ralha a irmã.
– Sabes o quanto a cidade é perigosa, mormente para ti que és judeu e ainda estranho a estas paragens!
− Nada me ocorreu, maninha! – brada o jovem, a amofinar-se sobremaneira, reacção comum aos da sua idade. – Acaso pensas que ainda sou um bebê?
− Ora, não faz muito que deixaste os cueiros, meu caro! – brinca Andrés, a rir-se. Depois, faz-se sério, com o propósito de pôr fim àquele colóquio que poderia convergir para uma tola briga entre eles. Levanta, então, a mão direita e diz: – Agora é bom que busquemos a paz!− Entretanto, penso que Benyamin deve obediência a nós dois, que lhe somos mais velhos, conforme bem recomendou o meu pai! – observa Milagros.
− Sim, de acordo – diz Andrés. E se voltando para o rapaz: − Doravante esperamos que não mais saias a sós pela cidade. És, ainda, muito jovem e poderás, facilmente, cair à lábia dalgum espertalhão! – e, como se, do invisível, alguém o alertasse, pergunta: − Acaso mantiveste contacto com algum estranho?
− Apenas com um patrício nosso que também perambulava pelo porto – responde o rapaz, sem demonstrar qualquer preocupação por esse facto.
− Fizeste isso?! – pergunta Andrés, sobressaltando-se enormemente. – Diz-me, como é o nome desse um?
− Juan Martins – responde Benyamin, tranquilo. – Castelhano de Córdoba...
− E como podes ter a certeza de que era ele um cordovês? –
pergunta Andrés, a mostrar-se assaz preocupado. – Acaso falava ele como um toledano ou como um cordovês?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 7:21 pm

− Como posso saber?... Nunca estive em Córdoba e jamais ouvi falar alguém de lá!
− Deixa para lá, Andrés! – atalha Milagros. – Ele não saberá responder a essa pergunta – e voltando-se para o irmão: − Ao menos, vestia-se bem ele?
− De modo singelo; acho que era um akum161 – responde o rapaz.
− E como podes ter a certeza de que era um akum? – pergunta Andrés.
− Ora, sei farejar um a distância! – responde o rapaz, rindo-se. – Costumam não se banhar regularmente!
− És mesmo um pândego! – exclama Andrés, também se pondo a rir.
− Riem-se os dois, mas estou preocupada! – atalha Milagros. E se voltando para o irmão: − Benyamin, acaso falaste sobre nós?
− Como não falaria sobre nós?... – responde o rapaz. − O homem fez-me uma série de perguntas: meu nome, onde morava, quem era, o que fazia...− E respondeste a todas elas, presumo... – diz Andrés, pondo-se altamente preocupado.
− E não deveria? – fala o rapaz, já se impacientando com tantas perguntas. – Era um nosso patrício e mostrou-se assaz gentil para comigo!
− Diz-me, Benyamin: como era esse homem? – pergunta Andrés.
− Não era novo, porém não muito velho; forte e possuidor de olhos mui negros e vivazes; seu nariz era bem adunco e o maxilar projectado; usava bigodes virados para cima e uma barbicha curta; seus braços eram longos e suas mãos muito grandes e peludas.
− O mordomo de D. Aníbal Velásquez! – grita Milagros, apavorando-se sobremodo com a descrição que fizera o irmão. – O maldito seguiu-nos, por certo!
− É bem possível! – observa Andrés. – Pelo relato que nos faz Benyamin é bem possível que seja ele!
− E agora, que faremos? – pergunta a jovem, tomada de alto desespero e a contorcer, nervosamente, as mãos. E, voltando-se para o irmão: – Percebes o que fizeste?
− Como poderia adivinhar que era esse tal que nos perseguia? – observa o rapaz. – Mostrou-se tão atencioso...
− Para ganhar-te a confiança, tão-somente! – explica Andrés. – Oh, Benyamin, com a tua imprudência, estragaste tudo!... Agora é preciso abandonar o negócio que já iniciamos, e teremos de fugir para outro lugar, o mais rápido possível!
− Yavé Kadosh!162 – exclama Milagros, pondo-se a chorar. − Que será de nós?
− Acalma-te, meu bem... – diz Andrés, abraçando-se, ternamente, à noiva. – Haveremos de dar um jeito!... Não convém que te apavores, antes do tempo!
E, imediatamente, põem-se todos a arrumar a bagagem. Era preciso organizar a mudança, o mais breve possível, pois tudo indicava que já haviam sido descobertos pelo mordomo de D. Aníbal Velásquez que, certamente, seguira-os, ocultamente, até ali. Mas Deus houvera-lhes sido misericordioso, fazendo-os descobrir o plano, antes que fosse tarde demais.− Achas que o maldito já nos delatou às autoridades portuguesas? – pergunta Milagros ao noivo, a meio do afã de juntarem, rapidamente, os seus pertences e os meterem nos sacos de viagem.
− Quem o saberá? – responde Andrés. – Só teremos certeza disso, se aqui permanecermos, mas é o que, nem em sonho, desejo fazer agora!
− E para onde pretendes que devamos ir? – pergunta a jovem, ansiosa.
− Não sei ainda; talvez tomemos o rumo norte; penso que, no Porto, possamos esconder-nos mais facilmente.
− Oh, acham mesmo que devemos partir? – pergunta Benyamin, altamente desestimulado diante da bagagem que deveria juntar, apressadamente. – Penso que isso não passa de doidices da vossa cabeça. O homem a que me referi era um cavalheiro, posso garantir-vos! − Na nossa situação, meu caro, nada me pode afiançar que estejamos a salvo em qualquer lugar! – observa Andrés. – Na dúvida, o mais aconselhado é precavermo-nos!
− Penso como tu – diz Milagros. – Quem nos garantirá que não era o desgraçado?
Em pouco mais de uma hora, já tinham tudo arranjado e estavam prontos para partir.
− E as mercadorias e o tear? – pergunta Benyamin. – Ainda nem chegaram!... Vamos deixar tudo para trás?
− Encarregarei o rabino de resolver por nós esse impasse – responde Andrés. − Além do mais, antes de partir, devemos prestar-lhe satisfações sobre a nossa necessidade de deixar Lisboa, assim tão abruptamente!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 7:21 pm

− Sei que ele nos dará todo o apoio, Andrés – diz Milagros.
− Sim, e todo o dinheiro que ele obtiver da revenda dos teares e das mercadorias que o reverta para o gazofilácio da sinagoga!
− Com toda a certeza, ele tirará bom proveito desta pequena fortuna que lhe destinamos! – exclama a moça.
− E quem sabe Yavé não nos dê a mão, ocultando-nos dos olhos daquele maldito! – observa Benyamin.− E que te encolha a língua também! – diz Milagros, zangada. – Se a tivesses mantido quieta dentro da boca, nada disso estaria acontecendo!
O jovem resume-se a resmungar algo incompreensível e se cala.
Em seguida, acertaram tudo com o rabino, que os aconselhou deixarem Lisboa, o mais rapidamente, e escreve uma carta de recomendação a um conhecido seu que vivia no Porto; tratava-se de Ezri Zev, um judeu muito rico que, com toda a certeza, poderia auxiliá-los por lá. E, depois de algum tempo, os três cavalgavam rumo Norte, em demanda da cidade do Porto, local em que pretendiam pôr-se mais seguros.
Neste comenos, Gumersindo Acuña também cavalgava, mas em direcção oposta, a tomar a direcção de Castela, pois pretendia levar ao seu patrão a notícia do paradeiro dos três jovens fugitivos.
E, depois de alguns dias, os que tomaram o rumo Norte, em direcção da cidade do Porto, lá chegavam, esfalfados pelo cansaço do longo percurso, e o mordomo, não menos exaurido pela longa e extenuante cavalgada, também chegava, finalmente, diante da ponte de Alcântara, que dava acesso à cidade de Toledo.
Em pouco, achava-se no Mosteiro de Santo Domingo de Silos, onde ainda se internava D. Aníbal Velásquez que, por essa época, já se achava em franca recuperação do seu ferimento, tão bem e esmeradamente tratado que fora pelas mãos do piedoso padre Sebastián Navarrete.
− Que novidades trazes de Lisboa, meu fiel Gumersindo? – exclama D. Aníbal, contentíssimo, ao ver o seu mordomo que lhe adentrava a cela para onde se transferira, assim que se vira livre dos riscos que lhe advieram do grave ferimento a faca, feito por Maria de los Milagros. E, ansiosíssimo, pergunta: – Conseguiste encontrá-los?
− Sim, Senhor, D. Aníbal! – responde o mordomo.
− Vamos: conta-me tudo! – exclama o prelado, a quase morrer de anseios.
− Como bem o pressupuséramos, os três rumaram para Portugal; segui-os, à relativa e segura distância, até que foram dar à judiaria de Lisboa e, recentemente, em contacto directo com o jovem irmão de Milagros, dele arranquei todas as informações de que precisava: estabeleceram-se por lá e abrem um negócio de tapetes.
− Muito bem, Gumersindo! Muito bem!... – exclama, efusivamente, D. Aníbal. – Por certo, em mais uns dez ou doze dias, serei liberado pelo padre Sebastián Navarrete e deverei retornar à mansão arquiepiscopal, onde concluirei a minha convalescença que espero não se alongar mais que o previsto.
− E que atitude pretendeis tomar em relação àqueles que fugiram, Señor? – pergunta o mordomo.
− Por ora, como bem o podes ver, nada posso ainda fazer, mas, assim que me for possível, pretendo denunciá-los ao Santo Ofício que, certamente, tratará de pedir-lhes a extradição de Portugal – explica D. Aníbal.
− Então, por ora, é só aguardarmos!
− Sim, essa empreitada ser-nos-á bem fácil porque lhes conhecemos o endereço, e creio que não nos darão mais qualquer trabalho. Agora, vai descansar! – diz D. Aníbal.
A sós em sua cela, D. Aníbal remói o seu recalcamento pela milésima vez. Não se conformava de ter sido enganado, tão facilmente, por aquela jovem. “Maldita”, pensa ele, a rilhar os dentes de tanto ódio. “Tu sentirás o quanto pesa a minha mão!...”
Entretanto, sua cabeça, uma vez mais, põe-se a fervilhar, no dualismo que, desde que a jovem judia o apunhalara, não lhe abandonava o pensamento, pois, ao mesmo tempo em que a dor do ferimento carcomia-lhe, forte e insistentemente, as carnes e o orgulho, por outro lado, enternecia-se, enormemente, ao recordar-lhe as belas feições que tanto o encantara, ao conhecê-la, uma vez que ela lhe lembrava, enormemente, a outra, Teresa Villalba, a Marquesinha de Fuenteguinaldo, que fora, na realidade, o seu primeiro e grande amor. Maria de los Milagros fazia-o recordar-se da outra, sobremaneira, e talvez fosse isso o que tanto o fazia sofrer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 7:21 pm

No fundo, não desejava maltratar Milagros; queria era tê-la, ali a seu lado, a sufocar-lhe as dores da imensa saudade que sentia de Teresa... Entretanto, a maldita judia ferira-o, acintosamente, mais que o corpo, a alma e, por isso, sentia-se tão abatido e, dessarte, se lhe demorava mais a recuperação do ferimento. D. Aníbal Velásquez procurava manter-se no leito, apesar do fogo do despeito que lhe ardia o coração, quase a levá-lo à loucura.
Pelo pensamento, a imagem da bela Milagros bailava, a provocar-lhe sentimentos díspares: ora ansiava por tê-la junto a si, ora tinha ganas de sufocá-la com as próprias mãos. E isso judiava tanto dele, a ponto de lançá-lo às raias da demência.
E os dias de D. Aníbal Velásquez goteavam enfadonhos, por verse atado àquela convalescença que não terminava nunca.
Entretanto, o que veio tirá-lo daquele marasmo forçado foi que, certa tarde, aparece-lhe, à porta da cela, o velho amigo, D. Fernand Guillén.
− ¿Aquí es el hombre que está muriendo?163 – brinca D. Fernán.
− D. Fernán! – exclama D. Aníbal, ao ver o querido amigo que adentrava a cela. – Onde estavas, que não me vieste ver?
− Andava por Barcelona e só vim saber da desgraça que se abateu sobre ti, ao avistar-me com o teu mordomo, na mansão arquiepiscopal. Contou-me ele, por cima, que a tua judiazinha quase te matou. Pelo que vejo, escapaste por pouco!
− Sim, D. Fernán – responde o outro. – A maldita quase que me despacha ao inferno, antes da hora!
− Mas que coisa!... Conta-me, agora com detalhes, o que de facto sucedeu-te!
E, meticulosamente, sem omitir nenhuma parte, D. Aníbal Velásquez relata ao amigo seu desventurado incidente com a jovem judia.
− Ora, vejam só! – diz o outro, ao ficar a par do infausto acontecimento. – Não é que a danadinha quase acaba com a tua vida?... Há que se ficar mais atento com as donzelas, meu caro, pois o perigo poderá advir de onde menos se espera! − Dulcia non meruit qui non gustavit amara!...164
− Bem o dizes, meu caro! – concorda o outro. – E nunca se as deveremos menosprezar!
− E o que pretendes fazer, agora, logo te ponhas, definitivamente, em pé? – pergunta D. Fernán.
− Trazê-la de volta, é lógico! – responde D. Aníbal. – Mas, em verdade, não sei o que fazer com ela. Verdadeiramente, ainda não sei!
− Achei que a irias denunciar ao Tribunal! – diz o outro, estranhando a resposta do amigo. – Pensa bem: ela quase te matou, e não convém deixá-la solta por aí!
− Sinto-me dividido, D. Fernán! – explica D. Aníbal. − Às vezes, tenho forte desejo de esganá-la, com as minhas próprias mãos; doutras vezes, rendo-me vencido aos seus encantos! Encontro-me em situação deveras desesperadora!
− Acho que entendo o que se passa contigo – diz o outro. – No fundo, encontras-te é ferido em teu brio, pois foste passado para trás por uma jovem que te reacendeu o fogo da paixão, depois de tanto tempo de lamuriosa solidão! E, pelo que já me contaste, ela te lembra o teu saudoso amor, Teresa Villalba, morta há anos!
− Penso teres razão, meu caro! – concorda D. Aníbal. – Essa segunda perda do objecto da minha paixão apavora-me! Não suportarei outro baque!... Se não reagir, será o meu fim!
− Sendo assim e, para encurtarmos as distâncias, perdoa-a! – aconselha D. Fernán. – Tu não viverás sem ela, pelo que de ti conheço!... Entonces, mi amigo, corre atrás dela, não para prendê-la e arrastá-la pelos cabelos ao Santo Ofício, para que seja julgada, condenada e supliciada, mas para submetê-la a ti, mesmo que seja à força!
− Acho que tens razão! – concorda D. Aníbal, sentindo-se animar. D. Fernán tinha o dom de fazê-lo arribar-se, principalmente quando se encontrava em situação desesperadora como aquela.
− E, primeiro, logo que te recuperes, arma-te de pequeno contingente de valentes quadrilheiros e ruma para Portugal, com o intuito de prendê-la, juntamente com o noivo e o irmão. E para que tudo se faça de conformidade com a lei, antes, consegue de D. Torquemada uma ordem de prisão para os três, coisa que não te será difícil obter, em consequência da estreita amizade que com ele deténs!
− E com que propósito dirigir-me-ei a D. Tomás? − questiona D. Aníbal. – Ele não é nenhum tolo e, certamente, quererá saber o motivo que me levou a essa solicitação! Além do mais, para uma denúncia, necessária faz-se uma acusação...− Queres uma acusação?... Simples: alega que te furtaram algo ou que te caluniaram ou, ainda, tão-somente porque te cuspiram nos rastros, enquanto te dirigias à catedral... – diz D. Fernán.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 7:21 pm

– Ora, D. Aníbal, isso, verdadeiramente, não importa e, se queres, mesmo, saber, D. Torquemada sequer far-te-á essa pergunta: interessa-lhe, de facto, que sejam marranos e marranos ricos!
− Mas, se a denuncio, juntamente com o irmão e o noivo, será presa! E como farei, depois, para livrá-la das garras do Tribunal?
Sabes muito bem como é!
− Ora, com a amizade que deténs com o chefe da Inquisição, bastará uma palavra tua, e ela será libertada!
− Nesse ponto, tens razão! – concorda D. Aníbal. – E ver-me-ei livre do noivo que, certamente, será julgado e condenado à morte!
− Sim! – exclama D. Fernán. – E, como contrapeso, se quiseres, mandarás toda família dela à fogueira! Basta que a denúncia estenda-se a todos eles!
− Há que se pensar nisso, D. Fernán! E pensarei com carinho, prometo-te!
− Entretanto, não te esqueças de que também eu desejo entrar nesse mistifório! – observa D. Fernán. − Essa gente possui muito dinheiro, e desejo abocanhar um bom pedaço dessa carniça, à hora que armarem a patuscada! – e se ri, debochadamente: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
D. Aníbal Velásquez limita-se a menear a cabeça, diante da espirituosa observação de D. Fernán.
− És um pândego, mi amigo... – diz ele, sorrindo. – E conseguiste dar-me novo alento à vida! Deus te abençoe!...
Entretanto, dias depois da visita do amigo, e, como o seu ferimento custasse a cicatrizar, e as dores ainda se fizessem bastante intensas, D. Aníbal Velásquez voltava a amuar-se e, particularmente naquela manhã, encontrava-se ele com o humor mais ácido que nunca. Tudo lhe causava irritação, até mesmo à vista do dulcíssimo padre Navarrete que, uma vez mais, aparecia-lhe sorridente à porta da cela, com os petrechos de curativo à mão.
− ¡Bueno dia, D. Velásquez! – diz ele alegre, como sempre. – ¿Cómo es nuestro enfermo hoy?165− Ah, D. Navarrete! – exclama D. Aníbal, com fundo suspiro de desolação. – Acho-me já tão enfadado com esta minha situação!...
Ando às raias da exasperação!...
− Ora, ora!... Vamos!... − diz o padre, sem, aparentemente, ter prestado qualquer atenção às lamuriosas palavras do outro. – Olha que vos ajudo a virar de costas!... – e, ao retirar, delicadamente, as bandagens que cobriam o ferimento, murmura: − Deixa-me ver...
Hum!... Hum!... ¡Muy bien! − e, após ter refeito, paciente e atentamente, o curativo, diz: − Tenho-vos boa notícia: o corte fecha-se!... E, diante disso, a partir de agora, podereis recostar-vos aos travesseiros, se o desejardes! – e arremata, com grande sorriso aos lábios: − Deus não é maravilhoso?
− Sim! – responde D. Aníbal, ainda sem demonstrar muito ânimo.
– Mas as dores ainda persistem...
− Oh, claro! – concorda o outro. – Por dentro, certamente, a coisa ainda está bastante ferida. Mas a parte externa mostra-se muito bem! Sinal de que tudo se refaz, com segurança! Perdestes um dos rins, mas Deus deu-nos dois, não é? E isso não é extraordinário?
D. Aníbal Velásquez resume-se a responder com um grunhido e se fecha novamente.
O padre Navarrete olha-o, por alguns instantes, em silêncio, depois pergunta:
− Lembrai-vos do que vos disse, outro dia, sobre as experiências que fiz com o padre Poveda?
− Sim, como não? – responde D. Aníbal, sem, entretanto, animar-se nem mesmo um tantinho mais.
− E também deveis lembrar que prometi repetir o feito em vossa presença, não? – e diante da afirmativa que o outro fez com a cabeça, prossegue: − Que vos parece se, hoje à noite, aqui mesmo em vossa cela, eu trouxer D. Poveda?...
− Oh, D. Navarrete, faríeis isso por mim? – exclama D. Aníbal, animando-se sobremodo.
− Por que não? – diz o outro, a rir-se satisfeito. Era o motivo que encontrava para que D. Aníbal Velásquez reagisse e saísse daquele estado de prostração que, certamente, dificultar-lhe-ia, ainda mais, a recuperação do ferimento. – Se fizermos tudo, sem chamar a atenção, creio que será possível, sim, repetir aquilo...
− Então, D. Navarrete, por que não fazer? – exclama D. Aníbal.
E, tomando-se de inusitada jovialidade, solicita ao outro: − Vamos, mi amigo, ajudai-me, cá, a levantar-me.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 04, 2024 7:22 pm

Com extremado esforço e auxiliado, diligentemente, pelo padre Navarrete, D. Aníbal consegue, com muito custo, reclinar-se no leito, secundado por um par de grandes travesseiros.
− Ufa!... Como é bom rever o mundo por este ângulo! – exclama o prelado, a abrir um sorriso pálido. Entretanto, um suor gélido principia a borbotar-lhe abundante da testa. A vista escurece-se-lhe, de repente, e ele quase desfalece.
− Vamos!... Vamos!... Reagi, Senhor!... – acode o padre Navarrete, a dar-lhe, com a ponta dos dedos, ligeiros e leves toques às faces que haviam se tornado excessivamente álgidas. – Permanecestes muito tempo deitado, e isso vos enfraqueceu sobremodo!
Aos poucos, D. Aníbal foi recuperando-se. Ainda respirava com dificuldade, mas a sua tez voltava a ganhar laivos de coloração rósea.
− Ai, que quase morro! – geme ele, ao sentir-se mais confortado.
E, depois de instantes, durante os quais procurou respirar fundo, seguidas vezes, segundo as recomendações do padre Navarrete, pergunta: − Esse meu ligeiro incómodo não será impedimento para o que me prometestes logo mais, à noite, não?
− Oh, certamente que não! – responde o outro. E explica: – Esse mal-estar sói acometer todos os que passam por longo período de convalescença como este pelo qual passais – e abrindo um sorriso benevolentíssimo, observa: − Entretanto, como bem o podeis perceber, tudo logo se ajeita!
O dia escoou-se sem mais novidades e, quando a noite caiu, fazendo adormecer todo o mosteiro, dois vultos, com os capuzes dos hábitos colocados sobre a cabeça, a encobrir-lhes, totalmente, as fisionomias, caminhavam, silenciosamente, pelos corredores da vetusta construção. Em pouco, achavam-se diante da cela de D. Aníbal Velásquez.
Entram sem bater, uma vez que, conforme o combinado, encontrariam a porta destrancada. O recinto achava-se iluminado, fracamente, por um brandão de cera que queimava num castiçal de ferro, preso à parede de pedras, ao lado de singelo oratório de madeira rústica.
− ¡Buenas noches, queridos hermanos! – diz D. Aníbal, em voz baixa, ao reconhecer os dois. − ¡Bienvenidos!166
− Como estais, D. Aníbal? – pergunta o padre. E, aproximando-se do leito onde se recostava o prelado, toma-lhe o pulso, demoradamente, e depois, sente-lhe a temperatura, encostando-lhe o dorso das mãos à testa. E, satisfeito com o resultado do ligeiro exame, diz: − ¡Muy bien!... ¡Muy bien!...Tudo se acha em ordem! – e voltando-se para D. Poveda que se mantivera o tempo todo em silêncio, pergunta: − ¿Podemos comenzar el fenómeno?167
−¡Bueno, Señor!168 – responde Juan Poveda, lacónico e fleumático, conforme lhe era usual.
E, diante da afirmativa do outro, D. Navarrete, explica, minudentemente, como se dava o processo de trazer de volta a alma dos mortos:
− Doravante, teremos de baixar ainda mais a luz da cela. Trouxe cá comigo uma vela menor. Apagaremos o brandão e acenderemos esta outra no lugar, pois a luminosidade deverá ser pouca, senão nada se verá; em seguida, farei dormir a D. Poveda.
Ditas essas palavras, D. Navarrete trouxe a única cadeira que havia ali para o centro da cela e nela fez sentar-se D. Poveda.
Depois, retirou do bolso do hábito pequeno frasco de barro vidrado e, destampando-o, aproximou-o das narinas do frei que, após sorver o vapor que do pequeno recipiente exalava, em segundos, pendeu a cabeça e caiu em sono profundo.
D. Aníbal a tudo seguia, atento e cheio de intensa curiosidade.
− Agora, preparai-vos, Senhor! – diz D. Navarrete, voltando-se para o prelado. − Se tivermos sorte, em pouquíssimo tempo, manifestar-se-á o fenómeno que vos prometi!
A seguir e adormecido o padre Poveda, D. Navarrete principia a aplicar-lhe uma série de passes com as mãos, demorando-se, mais, na região do ventre. E, em pouco tempo, uma fumaça leitosa principia a surgir-lhe pelos orifícios naturais: pela boca, pelas narinas, pelos ouvidos e, juntando-se formou espessa nuvem brilhante e fosforescente que, vagarosamente, foi se avolumando e pairando no ar, acerca de dois metros do chão169.
D. Aníbal Velásquez, atónito, seguia, atentamente, o desenrolar do estranho fenómeno. E, pouco a pouco, a nuvem foi adensando-se, mais e mais, e, paulatinamente, foi tomando a forma de um ser humano.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 9:24 am

D. Navarrete prosseguia, compenetradíssimo, a comandar aquele estranho acontecimento. D. Aníbal surpreendia-se, enormemente: que coisa seria aquilo?
Em pouquíssimo tempo, uma pessoa vestia-se, completamente, com aquela estranha nuvem reluzente, fazendo-se plenamente visível à semiobscuridade que reinava na cela.
Era algo inusitado, assaz incomum, ver-se a pessoa que brilhava, tendo os movimentos livres, mas, ao mesmo tempo, como um títere, por um cordão da mesma substância que a envolvia, achar-se ligada a D. Poveda que jazia adormecido e, aparentemente, alheio ao que lhe ocorria em redor.
− Que vos parece, Senhor? – diz D. Navarrete, em voz baixíssima, voltando-se para D. Aníbal que, de tão extasiado pelo que via, quase não conseguiu responder.
− ¿Quién... Quién es él?...170 – tartamudeia D. Aníbal Velásquez, ainda tomado de grande estupor.
Neste comenos, o espírito materializado que se achava velado, descobre-se e se volta para o prelado.
−¡ ‘S me, cabrón! – ouve-se nítida voz feminina, pejada de ódio.
− ¡La desafortunada que has mandado asesinar!171
− Não é possível! – grita D. Aníbal Velásquez, tomando-se de terror. – Tu morreste!
− Ah, não morri, não, maldito! – brada Consuelo Shlomo, a exibir o rosto ainda grandemente deformado pela queda no alcantil profundo. – Encontro-me muito bem viva, conforme bem o podeis conferir! – e aproximando-se, lentamente, do leito onde se recostava o atónito prelado, o Espírito prossegue, com a voz traspassada por rancor extremo: − Vede bem, desgraçado, o resultado da vossa ignóbil acção!
− Arreda!... Vai-te demónio!... – grita D. Aníbal Velásquez, transido pelo terror extremo, diante da tétrica visão.
− Não, lazeirento! – prossegue o Espectro, agora levantando os braços, terrivelmente destroçados pela queda infamante, com o intuito de agredi-lo, fisicamente.
− Acode-me, D. Navarrete! – grita D. Aníbal, encolhendo-se o quanto podia, no leito. – O demónio desgraçado quer matar-me!...
Socorre-me, por Deus!...
O padre Navarrete, então, passa a aplicar ligeiros passes sobre D. Poveda, que se encontrava adormecido, totalmente alheio ao que se passava; a princípio, D. Poveda emitiu uns gemidos e, depois, agitou-se. A entidade materializada, então, voltou-se e, num átimo, contorceu-se, como num vórtice ligeiríssimo e, perdendo as suas características, tornou-se amorfa e, novamente, constituía-se tão somente da nuvem brilhante que pairava a dois metros acima do chão e, paulatinamente, tudo foi retornando ao corpo do religioso, pelo mesmo processo que antes acontecera, só que, dessa vez, em sentido inverso.
O padre Poveda ainda continuava adormecido; a cabeça pendia-lhe sobre o peito e notava-se que ele permanecia tranquilo, apesar dos nefastos acontecimentos que ali acontecia.
Em pouco, nenhum resquício mais havia da estranha substância que dera forma ao espírito de Consuelo Shlomo, e D. Navarrete, então, mui delicadamente, fez D. Poveda despertar.
− Como estás, D. Poveda? – pergunta ele.
− ¡Así, así! – responde o outro, a bocejar, insistentemente, como se despertasse de longo período de sono reparador.
− ¡Muy bien! – exclama D. Navarrete, a esfregar as mãos de contentamento. E, voltando-se para D. Aníbal Velásquez: − ¿Y vosotros, que os parecían esto?172
− Oh, furtai-vos dessas coisas, D. Navarrete! – exclama o prelado, a persignar-se, ainda a tremer-se todo pela forte comoção que lhe causara aquele estranho fenómeno. E com os olhos desmedidamente arregalados, prossegue: – Isso são artes de satanás!... Onde já se viu acontecer no mundo dos vivos tamanho despropósito, a envolver alguém que, pretensamente, já se passou para o lado dos mortos?... Sortilégios do demónio, eu vos asseguro!
− Mas vistes e até dialogastes com aquela entidade que, se não me engano, já vos conhecia muito bem, desde antes!... – assevera D. Navarrete, a olhar, firmemente, nos olhos do outro.
− Arrenego! – diz D. Aníbal, a encolerizar-se sobremodo, uma vez que tivera terrível segredo seu revelado tão claramente. – O demónio mentiu, certamente com o propósito de lançar-me à desdita!... Eu, um homicida?... Quem pensais que sou?!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 9:25 am

− Oh, não vos quis acusar de nada, Excelência! – exclama, humílimo, o bondoso padre. – Deus sabe que não vos desejei incriminar de qualquer coisa que seja!
− Entretanto, quem me garantirá que não vos deixareis levar pelas mentiras do diabo? – explode, assaz nervoso, o secretário do arcebispo de Toledo. − Sei que sois um homem sábio e justo, D. Navarrete, mas o demónio é muito mais ladino do que supõe a vossa grande erudição! − e em tom de manifesta ameaça: − E, advirto-vos, padre: se sequer intentardes passar adiante essa espúria acusação que me fez o demónio, inda há pouco, não titubearei um só instante em delatar-vos ao Santo Ofício, por prática de bruxaria e evocação do demónio!
− Oh, não, Excelência! – exclama D. Navarrete, atónito. – Por Deus, asseguro-vos de que jamais passou pela minha cabeça, única vez sequer, levar adiante o que aqui ocorreu!... Juro-vos!... Tão somente quis demonstrar-vos esse extraordinário fenómeno que suponho poderá provar que os mortos vivem para além da morte!
− Oh, quanta insensatez, D. Navarrete! – exclama o prelado, com os olhos extremamente injectados pela ira profunda. – O que dizeis é um disparate!... Onde já se viu tamanha asneira?... Não percebeis que isso que afirmais é um absurdo, para não dizer uma heresia?...
Decididamente, não sabeis o risco que correis, ao afirmardes tamanha bobagem! E tem mais: isso confronta, veementemente, a nossa fé!... Ah, se essa prática espúria que andais a fazer cair aos ouvidos dos inquisidores!...
Pobre de vós!... O opróbrio público e a fogueira ser-vos-ão poucos!− Mas vós não fareis isso, D. Velásquez! – diz o bondoso padre, com lágrimas aos olhos. – Sois testemunha de que apenas desejei
mostrar-vos algo inusitado, com o propósito único de afastar-vos da melancolia que tentava assenhorear-se da vossa alma!
− Inusitado, dizeis?... – rebate o outro, a esfolegar como um touro afrontado. E, cheio de ironias, pergunta: – Acaso a evocação do diabo é coisa nova, D. Navarrete?
− Oh, sabeis muito bem que não se tratou do diabo... – observa D. Navarrete, humildemente. – Tanto que demonstrastes conhecer muito bem aquela jovem...
− Que jovem, D. Navarrete? – contesta o prelado, a enraivecer-se ainda mais. – E dissestes, inda há pouco, não me terdes feito jamais qualquer acusação!... Como não me acusastes, padre, se, neste exacto momento, acabais de afirmar o contrário?
− Por Deus, Excelência, andais a confundir as coisas! – rebate o outro, trémulo, diante das palavras de D. Aníbal. – Apenas citei-vos o óbvio!
− Ah, o óbvio! – diz o prelado, a vazar ironias. – Então crestes nas mentirosas palavras de satanás!
− Tenho toda a certeza deste mundo de que aquela aparição não era o demónio! – rebate, firme, o padre. – Acho que tenho conhecimento e discernimento suficientes para afirmar que aquilo não era o demónio! Meu propósito nunca foi o de evocar Lúcifer!
− Decididamente, não sabeis o que dizeis, D. Navarrete! O diabo, comumente, anda a enganar até mesmo os escolhidos!
− Se assim, pensais... – diz o padre, cabisbaixo. – Como poderei provar-vos de que a minha intenção foi outra?
− Sim, podereis muito bem provar que a vossa intenção foi outra, D. Navarrete! – exclama o prelado. – Primeiro, que pareis, definitivamente, de evocar satanás; segundo: que a vossa boca jamais se abra para relatar esse nefasto episódio a quem quer que seja! – e, voltando-se para o padre Poveda que até então se mantivera calado, tão-somente a ouvir aquela altercação, sem, naturalmente, abranger o conteúdo do inflamado e estranho diálogo que mantinham os outros dois, diz-lhe, em tão ríspido: − E, naturalmente, essa ordem estende-se a vós também, D. Poveda! Em seguida, D. Aníbal Velásquez despede os dois padres, com um gesto brusco, e se agita, nervosíssimo, no leito, a resmungar, entre dentes:
− Mais essa, agora, a apoquentar-me os miolos!... Já não tinha o suficiente, a tirar-me a paz?...
___________________________________________________________________________________________________________
157. “− De acordo!” (...) “− Efectivamente, o rio é muito formoso neste lugar!”, em castelhano.
158. “− Oh, és de Castela!...” (...) “− Um espanhol verdadeiro!”, em castelhano.
159. “− Sim!...” (...) “− De onde vens, Senhor?”, em castelhano.
160. “− Venho de Córdoba” (...) “− E tu, de onde vens?”, em castelhano.
161. Cristão, em hebraico.
162. “− Deus santo!”, em hebraico.
163. “− É aqui que se encontra o homem que está à morte?”, em castelhano.
164. “− Não merece o doce quem não prova o amargo!...”, em latim.
165. “− Bom-dia, D. Velásquez!” (...) “− Como está nosso enfermo hoje?”, em castelhano.
166. “− Boa-noite, queridos irmãos!” (...) “– Bem-vindos!”, em castelhano.
167. “− Muito bem!... Muito bem!... (...) “− Podemos iniciar o fenómeno?”, em castelhano.
168. “− Perfeitamente, Senhor!”, em castelhano.
169. Fenómeno de ectoplasmia, faculdade que determinados médiuns possuem para a produção do ectoplasma, elemento indispensável para a materialização de espíritos.
170. “− Quem... Quem é ele?...”, em castelhano.
171. “− Sou eu, maldito!” (...) “− A desgraçada que mandaste assassinar!”, em castelhano.
172. “− Muito bem!” (...) “− E vós, que vos pareceu isso?”, em castelhano.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 9:25 am

Capítulo XVII. Fuga para o Porto
Alguns dias passaram-se, desde esse episódio incomum, e D. Aníbal Velásquez, já mais refeito do seu ferimento, encontrava-se de volta à mansão arquiepiscopal.
Àquela faustosa manhã de primavera, o prelado aproxima-se da janela do seu gabinete particular e observa a praça173 toda brilhante pela exuberante luz do sol matinal. Poucas pessoas achavam-se lá em baixo, a tomarem sol.
D. Aníbal Velásquez, ao menor movimento que fazia, ainda sentia grande fraqueza e precisou apoiar-se firme, no parapeito da janela, para não cair. A vista turvou-se-lhe, por alguns instantes, e ele, com grande dificuldade, voltou a sentar-se na poltrona de veludo azul. Em pouco, sua visão voltou ao normal e, neste momento, Gumersindo assomava à porta.
− ¡Bueno dia, Señor!... ¿Como estás?... – pergunta ele.− ¡Así, así!... – responde o outro, a arfar o peito e a passar a mão pela testa coberta de gélido suor.
− Não vos precipitastes, deixando o leito tão cedo? – pergunta ele, a preocupar-se com a patente palidez que o outro ostentava às feições.
− Não é nada, Gumersindo – responde o prelado. – Apenas que me custa retomar a minha normalidade. Quanto tempo não passei no leito, durante a minha recuperação? Deves saber muito bem o que isso significa.
− Sim, Senhor! – diz o mordomo, aproximando-se. E, depois de alguns instantes de silêncio, pergunta: – E aqueles que se encontram em Lisboa, como é que se acharão por este momento?− Só Deus o saberá – responde o prelado, com a tez ainda a apresentar patente palidez.
− A bem dizer, penso não terem tido eles motivo algum para deixarem Lisboa – observa Gumersindo.
− Não sei, pois, às vezes, vem-me a dúvida; entretanto, desejo crer que permaneceram na judiaria – diz D. Aníbal. – E, mesmo sendo muito ricos, penso que se decidiram por manter a discrição.
Afinal, se se meterem a ostentar riqueza, obviamente, serão logo notados, e isso, definitivamente, é o que não desejam que aconteça.
E, aonde é que iriam, se de lá saíssem?... A vida dos judeus não é nada fácil, em qualquer lugar deste mundo! Que se metam a espertos e serão presos e vendidos como escravos aos africanos!
− De fato, é assim que sói acontecer, comumente, aos judeus que se aventuram cá e lá; tão-somente se lhes permitem confinar-se em guetos e, se, eventualmente, desobedecem a essas ordens, sofrem severas punições... Excepção feita, é claro, aos judeus muito ricos que, como se sabe, compram a sua liberdade de morar onde preferirem, além de terem a liberdade de ir e vir. Mas isso se reserva a pouquíssimos deles!
− Aos pobres, entretanto...
− Aos pobres, sabes muito bem o que acontece, sendo judeus ou não!... Contudo, acho que Milagros e seus dois companheiros devem conhecer muito bem o costume: se o monarca português permite que se reúnam em judiarias, e como eles desejam ficar incógnitos, é lá que devem permanecer – assevera D. Aníbal.
− Assim sendo, Senhor, que deveremos temer?... De lá, com certeza, não deverão sair...
− Não sei, Gumersindo – responde D. Aníbal. – Entretanto, amiúde, veem-me à cabeça algumas bobagens...
− O quê, por exemplo, Senhor?
− Que fugiram de lá...
− E sobre quais fatos fundamentam-se tais pensamentos? – pergunta o mordomo.
− Não sei explicar-te, mas comigo sempre foi assim: uma espécie de premonição sobre acontecimentos e fatos que a mim dizem respeito...− Assim sendo... – fala o outro, lacónico.
− Sabemos que eles têm muito dinheiro!... E quem o tem em grande quantidade, não costuma viver em apuros!... Além do mais, pensando bem, Gumersindo – prossegue D. Aníbal, a mostrar-se altamente angustiado −, será que aquele rapazote não terá contado aos outros que encontraste com ele e lhe fizeste uma série de perguntas?... Dizes que o jovem não te conhecia, mas os outros te conhecem muitíssimo bem!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 9:25 am

Se ligaram as coisas!... – e, a mostrar-se assaz decidido: − Não mais aguardarei a minha total recuperação para ir atrás daquela fugitiva! – e, esforçando-se, enormemente, para levantar-se da poltrona (o mordomo, apressadamente, auxilia-o a elevar-se e pôr-se em pé), prossegue: − Tu irás, de novo, a Lisboa, a confirmares se eles ainda por lá estão!
− Perfeitamente, Senhor! – exclama o mordomo, pondo-se de prontidão. – E quando deverei partir?
− Já, Gumersindo! Assim que fizeres a tua bagagem!
Em pouquíssimo tempo, o mordomo achava-se pronto para a viagem e, após receber as derradeiras ordens de D. Aníbal, partiu ele a toda brida rumo a Lisboa.
Após despedir o seu serviçal, D. Aníbal voltou a repousar, mas o seu pensamento fervilhava. Não se aquietaria, enquanto não obtivesse notícias de Maria de los Milagros...
Neste comenos, no Porto, em Portugal, os três jovens judeus fugitivos já haviam se instalado em pequena quinta que ficava a apenas três quilómetros da cidade, uma vez que não desejavam chamar atenção sobre a sua condição de fugitivos e, principalmente, de serem judeus, porque temiam ser atacados por pessoas intolerantes, fato que costumava acontecer com frequência àqueles que viviam longe da relativa protecção das judiarias.174
Entretanto, mesmo lá, não tinham eles mais tranquilidade, desde que foram descobertos pelo mordomo de D. Aníbal Velásquez, na judiaria de Lisboa; agora tinham a certeza de que eram perseguidos e não teriam sossego, aonde quer que fossem. Importante, porém, era que se mantivessem incógnitos, se quisessem permanecer em segurança. A pequena quinta onde foram morar pertencia a Ezri Zev, abastado judeu do Porto que, por recomendação do rabino-mor de Lisboa − que conhecia o rico judeu e lhes recomendara buscarem abrigo junto a ele −, era toda ela plantada de vetustas oliveiras, cuja farta produção era destinada à fabricação de azeite.
Esse fato propiciar-lhes-ia viver em anonimato, pois eram tidos como trabalhadores especializados, vindo de longe e recrutados pelo dono da quinta, a melhorarem a produção das oliveiras.
Os dias sucediam-se sem novidades para os três fugitivos.
Entretanto, algum tempo depois, Gumersindo Acuña chegava a Lisboa e, hospedando-se no mesmo albergue onde ficara da outra vez, logo que descansou da longa viagem, principiou a obter notícias dos três jovens. Indagou cá e lá, às proximidades da judiaria, mas nada conseguiu. Inquietou-se e tratou de buscar pelos três de forma mais directa e, à manhã subsequente à sua chegada, adentrou a judiaria e, apresentando-se como um dos administradores de Ben Hanan, o pai de Andrés, chegou até à hospedaria do velho Mordechai.
O estalajadeiro ocupava-se de esfregar, pacientemente, o piso de pedras, quando Gumersindo interpela-o:
− ¡Bueno dia, Señor! – saúda ele o velho, propositadamente, em castelhano, para dar mais veracidade ao que se propunha fazer.
− Bom-dia! – responde o velho, voltando-se para o forasteiro. – Em que vos posso ser útil, Senhor?
− Procuro pelos três jovens castelhanos que se mudaram para cá, recentemente – diz Gumersindo, directo. – Podeis dizer-me onde posso encontrá-los?
− Oh, lamento, Senhor! – responde o estalajadeiro. – Mudaram-se; deixaram a judiaria faz, já, um bom tempo.
− E sabeis, acaso, para onde se foram? – pergunta o mordomo, sem conseguir disfarçar o seu desapontamento. E, para arrancar do velhote o novo paradeiro dos três, apresenta o seu plano, adrede elaborado: − Sou administrador de Sua Excelência, meu senhor, Ben Hanan, digníssimo secretário de Sua Majestade, a rainha D. Isabel de Castela, e trago uma mensagem para seu filho, o jovem Andrés, que vós, obviamente, deveis conhecer...
− Sim, conheço-o − responde o velho estalajadeiro −, mas, infelizmente, não sei que rumo os três tomaram, após deixarem a judiaria.
− Oh, que lástima! – exclama Gumersindo, a demonstrar grande decepção. – Entretanto, não existirá alguém, de vosso conhecimento, que poderá indicar-nos o novo endereço de Andrés Hanan?... – e exibindo um velino lacrado, naturalmente por ele forjado, de antemão, à guisa de uma mensagem, prossegue: − Importante que lhe ponha às mãos esta carta que lhe enviou o pai, o mais breve possível!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 9:25 am

− Penso que o rabino talvez tenha a informação de que necessitais, Senhor – diz o velho, depois de cogitar por alguns instantes. – Possivelmente ele saberá o novo endereço do jovem que procurais, porque os vi quando se dirigiam à sinagoga, antes de partirem.
Animado, Gumersindo agradece, veementemente, o velho estalajadeiro e toma o rumo da sinagoga. Lá, com facilidade, encontrou o rabino-mor que estudava um rolo de papiro e lhe contou a mesma história.
Aaron, o velho e experiente rabino não se deixou, de pronto, envolver pela conversa do mordomo de D. Aníbal Velásquez.
Demoradamente, sondou-lhe as feições; caminhou, em círculos, em torno do forasteiro, a observar-lhe, minudentemente, os trajes e o modo de portar-se; pediu a examinar o velino que o tal trazia à mão: estava lacrado, com um selo... E, depois de essas e outras observações, não teve como negar.
− Dizeis, então, Senhor, que sois enviado do pai do jovem Andrés... – diz o velho Aaron , a fitar, firmemente, os olhos de Gumersindo. E, a bater o rolo de velino à palma da mão esquerda, prossegue: – E que esta mensagem contém algo que o pai enviou-lhe... − Assim é, Senhor – diz o mordomo, firme, sem mover um só músculo da face.
− Desse modo, não há como saber se o que dizeis procede, Senhor – prossegue o rabino, ainda cheio de desconfiança, enquanto lhe devolvia o velino −, pois a carta encontra-se selada, pretensamente com o sinete do pai do rapaz... Destarte, só mesmo Yavé para saber se dissestes a verdade ou não e, nesse caso, devo confiar em vossas palavras! – e, em seguida, relutantemente e após emitir longo suspiro de desolação, acaba por dizer-lhe onde se encontravam os três fugitivos. Nesse momento, uma dúvida apertava-lhe o coração, enormemente. Estaria fazendo um bem ou estaria, uma vez mais, a desvelar o paradeiro dos três jovens aos seus inimigos? Só Yavé o saberia...
Por seu lado, felicíssimo, Gumersindo agradece, efusivamente, ao rabino e sai. Logo mais, cavalgava rumo ao Norte, em demanda da cidade do Porto.
Em lá chegando, após alguns dias, hospedou-se em singelo albergue e, após um período de descanso, tratou logo de descobrir onde é que residiam os três jovens.
Após indagar cá e lá, não lhe demorou muito localizar a quinta que procurava e, escondendo-se atrás de frondosa sebe que margeava a entrada da pequena propriedade, ali permaneceu por algum tempo, até que, à pouca distância, avistou Maria de los Milagros que, tendo às mãos pequena cesta de vime, deixava a casa e dirigia-se a uma hortinha que se localizava ao lado da singela vivenda de pedras onde, certamente, habitava com o irmão e o noivo.
Sem perceber que estava sendo observada, a jovem, despreocupadamente, acocora-se a colher as verduras que medravam em bem cuidados canteiros. Neste comenos, Andrés, também deixando a casa, rumou para a horta e, agachando-se ao lado de Milagros, passou a auxiliá-la a colher as verduras.
Por um bom tempo, Gumersindo ficou a olhá-los, sem que percebessem, e, depois, foi-se embora, contentíssimo por, tão facilmente, ter conseguido descobrir o novo paradeiro dos três fugitivos. Agora, era só retornar a Toledo e relatar a D. Aníbal o seu achado.
Os dias sucediam-se, sem apresentarem novidades para os três jovens que, aos poucos iam acostumando-se ao novo lugar. Ali era bem melhor que a judiaria de Lisboa, posto que, sendo lugar mais tranquilo, não tinham de expor-se, diariamente, à curiosidade de todos. Certo dia, enquanto almoçavam juntos os três, Milagros observou:
− Que bom seria se ficássemos para sempre vivendo aqui!
− Vejo que gostaste muito do lugar! – exclama Andrés, diante das palavras da noiva. – Da minha parte, só não me sinto plenamente feliz aqui porque ainda não és minha mulher!
− Oh, mas em breve eu sei que nós nos casaremos! – diz a jovem. – É só escrevermos aos nossos pais, para que venham para cá, e oficiaremos as nossas núpcias.
− Almejo tanto a chegada desse dia! – fala Andrés, a tomar a mão da noiva e a beijá-la, ternamente.
− Mas viveremos cá, na quinta dos outros? – pergunta Benyamin. – Por que é que não adquirimos uma para nós?
− Dinheiro nós temos para tanto, meu caro! – explica Andrés. – Mas, por ora, é bom não chamarmos a atenção de nenhuma forma, pois não nos achamos ainda fora de perigo. E se os malditos descobrirem o nosso novo paradeiro? Uma vez mais teremos de
partir às pressas e assim será, eternamente, enquanto não acharmos o lugar ideal a escondermo-nos.
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