LUZ ESPÍRITA
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 9:26 am

− Se existir tal lugar, querido! – observa Milagros, com tristeza à voz. – Presumo que aquele demónio não terá paz, enquanto não nos desgraçar a vida!
− Oh, não penses assim, meu amor! – diz Andrés, procurando consolá-la. – Aqui não lhe será nada fácil encontrar-nos! Acaso não partimos de Lisboa, sem declarar a ninguém o nosso destino, à excepção do rabino Aaron, que sei, é homem probo e não revelará nunca a nossa pista a quem quer que seja, nem mesmo sob tortura?
− Que Yavé te ouça! – exclama ela, com fundo suspiro. – De minha parte, não sei não... Aquele desgraçado mordomo é muito esperto, e quem nos garante que já não descobriu o nosso sumiço e, de novo, não andará à nossa procura...
− Peço-te que tenhas confiança, minha querida – diz Andrés, confortando-a. – Se se fizer impossível a nossa permanência por aqui, mais próximos de Castela, demandaremos terras mais longínquas.− Aonde iremos, Andrés? – questiona ela, a mostrar-se assaz desencantada. – Se somos sempre perseguidos em qualquer parte?
A nossa sina é terrível!...
− Sei que todos se mostrarão intolerantes para connosco aonde quer que formos, mas ouvi dizer que, na Holanda, costumam mostrar-se mais condescendentes com os estrangeiros – observa Andrés.
− Dizem que o holandês é uma língua difícil de aprender-se – fala Benyamin, entrando na conversa. – E, como ninguém me persegue, depois que ambos se casarem, retornarei a Toledo, a viver com papai e mamãe.
− Foges, assim, tão-somente com medo de aprenderes o holandês? – exclama Milagros, rindo-se. – Garanto-te que, do jeito que gostas de conversar, antes mesmo de todos nós, tu aprenderás a falar aquela língua bem depressa!
− Tens razão! – concorda Andrés. – Se Benyamin ficar sem ir ao mercado, a descobrir o que se fala e o que acontece pela cidade, perderá a razão em pouquíssimo tempo! Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Andam os dois a chamarem-me de bisbilhoteiro, é? – diz o rapazito, a amofinar-se sobremaneira. – Pois fiquem sabendo que sou eu quem vos traz as novidades que andam pelo mundo!... Ah, se não fosse eu!
− Tens razão! – concorda Milagros. – Mas, uma vez mais, lembro-te: não fora a tua desmedida língua, a relatares tudo sobre a tua vida ao primeiro castelhano que encontraste, não necessitaríamos de ter fugido de Lisboa!
− Ora, lá vens tu, novamente, a inculpar-me de todo o mal que acontece às nossas vidas! – rebate o rapaz, aborrecendo-se. – Acho que deveria, mesmo, era retornar a Toledo!
− Ah, voltavas para Toledo e deixavas a mim e a Andrés em maus lençóis, é? – diz a moça. – E, quando lá chegasses sozinho, papai, certamente, viria atrás de mim com um relho, a matar-me de bordoadas!
− Oh, exageras! – responde o rapazinho, enfezando-se. – Por que é que tu e Andrés não vos casais logo e pareis de fazer de mim o vosso escudeiro? – e a bufar, cheio de irritações: – Ai, que já me canso dessa vida insossa, perdido, cá, entre essas malditas oliveiras!
− Acalma-te, Benyamin! – exclama Andrés, procurando abrandar o exaltado ânimo do irmãozinho da sua noiva. – Sei que és, ainda, muito jovem, e te demos essa pesada incumbência aos ombros. É natural que desejes estar em tua terra natal, junto dos teus pais e dos teus amigos; não é nada fácil viver em terra estrangeira, onde a língua e os costumes são diferentes dos nossos. Mas, prometo-te que, mui em breve, deveremos resolver essa questão, e tu poderás, finalmente, viver onde melhor te aprouver! – e voltando-se para a noiva: − Ele tem razão, querida, pois, o que ele, na verdade, tem a ver com os nossos problemas? Estamos, sim, é a tolher-lhe a liberdade e a impedi-lo de viver, plenamente, os melhores anos da sua vida! Temos sido egoístas, sim!
− Desse ponto de vista, meu querido, estás coberto de razão! – concorda a jovem. E, abraçando-se ao irmão, beija-o, ternamente, à face e diz: − Perdoa-me, Benyamin!... Tu não deténs nenhuma culpa sobre a minha desdita!... Eu que me fiz assim egoísta e deixei recair sobre ti essa incumbência! Entretanto, também eu te prometo que tudo farei para resolver bem depressa essa situação! Apenas te peço que tenhas um pouco mais de paciência e estarás liberado dessa tarefa!
Nesse entretempo, após alguns dias de cavalgada ligeira, Gumersindo Acuña regressava a Toledo e, ao chegar à mansão arquiepiscopal, vai logo ter com D. Aníbal Velásquez que lia um livro em seu gabinete.
− Ah, finalmente! – exclama o prelado, contentando-se, enormemente, ao ver o seu mordomo que regressava de Portugal.
E, depondo o livro que estivera a ler, observa sorridente: – Pelo teu semblante, presumo que tiveste sucesso em tua empreitada!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 9:26 am

− ¡Pero sí, Señor! – exclama o outro, a rir-se. – ¡Traigo buenas noticias!175 – e a sentar-se em poltrona que D. Aníbal lhe indicava, prossegue: − Localizei-os: mudaram-se para o Norte; agora se encontram no Porto e residem numa quinta, pertencente a rico judeu, chamado Ezri Zev, que os acolheu.
− E por que achas que se foram para lá? – pergunta o prelado.− Possivelmente, descobriram que eu estava em seu encalço; penso que o rapazinho narrou-lhes o encontro que teve comigo, e tão-somente tiveram que ligar as coisas!
− Certamente, foi isso mesmo o que aconteceu – concorda D. Aníbal, a cofiar com a ponta dos dedos o cavanhaque negro e pontudo.
− E o que pretendeis fazer agora, Senhor? – pergunta o mordomo.
− Ainda não sei – responde o outro, pensativo. – Por ora, faz-se importante não perdê-los de vista e, para tal, necessário faz-se colocarmos um vigia, a acompanhar-lhes os passos.
− E quem para lá enviareis, Senhor? – pergunta o mordomo. – Haverá de ser alguém da vossa estrita confiança.
− Sim, e andei pensando em Manolo Esteves, teu afilhado. Que te parece?
− Oh, escolha perfeita! – exclama o outro, satisfeitíssimo. – Manolito é um rapaz esperto e inteligente!
− Decerto que sim! – diz D. Aníbal Velásquez, a olhar, fixamente, o seu mordomo. E, com uma pitada de mordacidade à voz, prossegue: – Além do mais, ele se parece tanto contigo!...
− ¿Parece a mí?... ¡No entiendo, Señor!...176 – tartamudeia o mordomo, a olhar espantadíssimo para o patrão.
− Ora, Gumersindo! – rebate o outro, a rir-se. – Acaso achas que eu não sabia das tuas relações com a tua comadre Agostina, mesmo antes de o teu compadre Raúl Esteves finar-se? Vamos, mi amigo!... Não me guardes segredo!... Tenho ou não razão?
− ¡Sí, Señor! – responde o outro, baixando o rosto.
− E não te envergonhes disso! – prossegue o prelado. – Sei também que sempre deste o teu apoio à comadre e ao teu filho! És um bom pai... Mas, tal assunto não vem ao caso, pois apenas me referi a isso, para que saibas o quão difícil será para ti ocultares de mim qualquer coisa! E, assim que te refizeres da viagem, vai à casa da tua comadre e traz o teu filho a ter comigo.
Gumersindo vai-se, e D. Aníbal Velásquez põe-se a cogitar. O momento que vivia era-lhe tremendamente penoso. Por um lado, sentia-se moralmente abatido pelo golpe que recebera tão inesperadamente da mulher desejada; por outro, sentia-se tão fortemente atraído por ela que não tinha, de fato, nenhuma coragem para causar-lhe qualquer mal. No fundo, o que desejava, ardentemente, era tê-la ali, em seus braços, a sentir-lhe o delicioso perfume que lembrava as florinhas do campo; sentir ao tato a sua pele macia como a seda... Tais pensamentos contraditórios exasperavam-no, sobremodo. Visivelmente exaltado, passa, nervosamente, a mão pelo rosto, levanta-se e se encaminha até a janela e espia a praça lá embaixo: algumas pessoas aglomeravam-se em pequenos grupos, a conversarem, acaloradamente.
D. Aníbal Velásquez permanece alguns instantes a observar a paisagem que se descortinava a partir da janela, mas, na verdade, nada via, objectivamente: apenas os pensamentos voltavam a fervilhar-lhe à cabeça. Que rumo deveria dar à sua vida?... O amigo Fernán Guillén poderia estar certo; a razão pendia para este rumo: a denúncia. Deveria denunciá-la e ao noivo ao Tribunal; depois de presa, recorreria a D. Torquemada. Acaso não eram amigos, e D. Tomás não era o chefe de tudo?... Bastar-lhe-ia fazer o pedido, e ele a soltaria e então...
D. Aníbal deixa a janela e volta a sentar-se. Apanha de volta o livro que estivera lendo, mas não consegue concentrar-se na leitura.
Sua mente continuava a ferver... Mas, se fizesse a denúncia, e algo saísse errado?... Se D. Torquemada não pudesse mais intervir, e ela fosse julgada e condenada à morte?... Sabia que, para o Santo Ofício, todos eram antecipadamente considerados culpados...
E, com esse terrível dilema a apoquentar-lhe as ideias, D. Aníbal Velásquez depõe, de vez, o livro sobre a mesa e sai. Era preciso clarear as ideias.
Já à noitinha, Gumersindo vai ter à presença de D. Aníbal, seguido de um rapaz amorenado, de vinte e poucos anos.
− Senhor, aqui está meu... afilhado... – diz o mordomo, um tantinho reticente, apresentando o moço a D. Aníbal.
− Ah, sim! – diz o prelado, com um sorriso de satisfação, e, estendendo a mão ao jovem, cumprimenta-o: − Como estás, Manolito? – e gentil, ordena ao mordomo: − Traz-nos vinho, Gumersindo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 9:26 am

Pouco depois, os três, a meio de goles que davam às taças do bom xerez servido por Gumersindo, D. Aníbal Velásquez pergunta ao rapaz:
− Serias capaz, Manolito, de cumprir uma empreitada que te desse a cumprires em Portugal?
− Em Portugal?! – espanta-se o rapaz, enquanto olhava surpreso para o padrinho. – Mas por lá fazer o quê?
− Explico-te, em detalhes, meu rapaz – continua o prelado. – E, pelo que percebo, teu pa... – D. Aníbal quase disse “pai” – quero dizer, teu padrinho nada ainda te adiantou, mas é bem simples o que deverás fazer na cidade do Porto. Em lá chegando, mui discretamente, procurarás pela quinta que pertence a um judeu chamado Ezri Zev. Se agires discreta e inteligentemente, não te será difícil localizar o local, pois se trata de uma propriedade destinada ao cultivo de oliveiras, e o tal judeu é pessoa importante e bem conhecida no Porto.
− Sim, e o que deverei fazer? – pergunta o rapaz.
− Nada, além de observares, a distância, o que fazem três habitantes do local: uma jovem morena e muito bonita, mais dois rapazes, um deles ainda bem jovem – explica D. Aníbal. – E, se perceberes que de lá se mudam, segue-lhes os passos, sem jamais te dares a conhecer, por nenhum dos três, entendeste bem? De lá não deverás sair jamais, até que o teu padrinho, algum dia, vá ter contigo.
− E quando deverei partir? – pergunta Manolito, ansiosíssimo por empreender tão importante viagem, uma vez que, até àquela idade, jamais houvera deixado Toledo.
− Amanhã mesmo. Teu padrinho ajudar-te-á na bagagem e te orientará como deverás proceder, para lá chegares em segurança.
E, acautela-te com os ladrões e salteadores que enxameiam por este mundo de Deus, uma vez que serás portador de expressiva monta, a garantir a tua estada em Portugal. Se, de alguma forma, roubarem-te o dinheiro, terás de trabalhar para viver!
− Ficai sossegado, Senhor! – responde o rapaz, felicíssimo, diante da perspectiva de viver sem ter de trabalhar para manter-se. – Garanto-vos que defenderei a minha bolsa como a minha própria vida!
Gumersindo e o afilhado saem, e D. Aníbal, novamente a sós, suspira fundo. Um misto de satisfação e de aquietação invade-lhe o peito: doravante, as coisas iriam solucionar-se. Pelos menos, era isso o que lhe arrefecia, por ora, o pensamento já tão chamuscado pelo fogo que lhe varria, inclementemente, as ideias e que, já fazia um bom tempo, andava a tirar-lhe a paz.
Depois do colóquio com o afilhado do seu mordomo, D. Aníbal aproxima-se da janela do gabinete em que se achava e espia a praça, lá embaixo. A lua cheia, a apontar linda no horizonte, inundava o mundo com a sua luz opalescente.
O prelado não tinha como perceber, mas um vulto encapuzado, lá no meio da praça, camuflado pela sombra das árvores, mirava-o, insistentemente. Era Ibrahim Assib, o sicário, que, com terrível brilho ao olhar, murmura entre dentes:
− Maldito!... Tu me frustraste os meus planos, mas assim impune não ficarás! Sentirás, desgraçado, o peso da minha ira!
Depois, lentamente, deixa a praça e desaparece, oculto pela escuridão da noite...
______________________________________________________________________________________________
173. Plaza del Ayuntamiento, Toledo, Espanha.
174. Por essa época, era muito frequente o ataque a judeus; comumente, eram eles roubados e vilmente assassinados, e as mulheres eram cruelmente violentadas, sem que esses actos abomináveis fossem apurados, condenados ou sequer coibidos pela justiça.
175. “− Sim, Senhor!” (...) “− Trago boas notícias!”, em castelhano.
176. “− Parece-se comigo?... Não estou entendendo, Senhor!”, em castelhano.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 9:27 am

Capítulo XVIII. Manolito Esteves
Por esse tempo, no Porto, em Portugal, os dias sucediam-se sem qualquer novidade para os três jovens fugitivos que se limitavam a ler, a conversar entre si e a darem pequenos passeios, ali mesmo, pela quinta, pois não ousavam ir mais longe e por muito tempo, receosos que estavam de serem descobertos, e Milagros ser denunciada pelo assassinato de D. Aníbal Velásquez, uma vez que era assim que acreditavam ter sido o destino do prelado, e sequer cogitavam que tivesse ele se recuperado do ferimento e que andava, sim, a persegui-los, com o intuito de recambiá-los a Castela.
Por esse tempo, em Toledo, Manolito Esteves, o “afilhado” de Gumersindo Acuña, contentíssimo com a perspectiva de conhecer outras terras e, principalmente, por viver um bom tempo sem ter que se preocupar com o seu ganha-pão, fato que o deixava nas nuvens e, na tarde do mesmo dia em que se avistara com D. Aníbal, preparou parca bagagem e, na manhã do dia subsequente, ainda bem de madrugada e após ouvir, atentamente, as minudentíssimas explicações e recomendações que lhe fez o “padrinho”, logo ganhou a estrada que o conduziria à fronteira portuguesa.
− Cuida bem da bolsa! – grita Gumersindo, a distância, quando o rapaz já cavalgava, a toda a brida, o seu fogoso corcel.
− Mais que a minha própria vida! – bradeja o rapaz, de volta, para o “padrinho” e logo desaparece na primeira curva do caminho.
− Que Deus te guie, meu rapaz!... – murmura o mordomo de D. Aníbal Velásquez e, em seguida, retorna à mansão arqui-episcopal. Depois de cavalgar por muitos dias, pois a distância a ser percorrida até à cidade do Porto não era pouca, e sem maiores incidentes, finalmente Manolito Esteves chega ao seu destino, sempre maravilhado pela beleza das cidades, das vilas, dos povoados e pelo pitoresco das paisagens por onde passava.
Logo que adentrou a porta da cidade do Porto, procurou por uma hospedaria e ali se instalou.
E, após uma noite muito bem dormida, Manolito, já refeito da longa jornada, tomou o seu desjejum e, com muito tato, inquiriu o estalajadeiro sobre a localização da tal quinta pertencente a Ezri Zev, o que não foi difícil descobrir, uma vez que o rico judeu era muito conhecido no local.
De posse das informações necessárias, o rapaz pôs-se a caminho, a pé, porque a propriedade visada distava apenas três quilómetros da cidade do Porto. E, além do mais, antes, optou por vender o cavalo que lhe dera o padrinho, pois, por ora, não precisaria de nenhuma montaria e, ainda, custar-lhe-ia pequena fortuna manter o animal numa estrebaria. E, enquanto caminhava, aos frescos ares da manhã, pensava numa maneira objectiva e, ao mesmo tempo subtil, de aproximar-se daqueles a quem deveria espionar. E mais, passara-lhe, também, pela cabeça, que, em vez de ficar no bem bom, poderia economizar o dinheiro a ele dado pelo patrão do padrinho e, quem sabe, mais tarde, não poderia dar um bom começo à vida, abrindo o seu próprio negócio?... Besta é que não era!... E foi assim que, ao chegar à entrada da quinta onde residiam os três fugitivos, já tinha um plano bem elaborado: como se fazia a época da colheita das olivas, e as quintas todas da região andavam a contratar gentes para esse serviço, não lhe seria difícil encontrar colocação numa das propriedades vizinhas, fato que lhe propiciaria desenvolver a sua missão, sem chamar mínima atenção, e, ainda por cima, ganhar um bom dinheiro que lhe bastaria, facilmente, ao próprio sustento. E foi o que fez: primeiro, com muito jeito, ocultando-se a meio do arvoredo que circundava a casa onde viviam Maria de los Milagros e os outros dois e, sem muita dificuldade, constatou que os jovens ainda viviam ali; depois, dirigiu-se à quinta vizinha, avistou-se com o capataz dali e, imediatamente, foi admitido para colher azeitonas e se juntou a algumas dezenas de outros trabalhadores que já se ocupavam daquele serviço e, sem levantar qualquer suspeita, poderia desincumbir-se da sua empreitada.
Assim aconteceu pelos dias subsequentes. Durante os momentos destinados às refeições, Manolito, sem chamar a atenção, ia até à quinta vizinha e, escondido a meio da sebe que circundava a casa, podia, com toda a segurança, espionar o que faziam Maria de los Milagros, Andrés e Benyamin.
E os dias foram transcorrendo-se, sem qualquer novidade, até que, ao cair da noite de certo dia, quase ao final da temporada da colheita das azeitonas, Gumersindo Acuña apareceu no Porto, de repente, em busca do seu “afilhado”.
− Oh, que surpresa me fazes, padrinho! – exclama Manolito, ao deparar-se com Gumersindo que o aguardava, impacientemente, à porta da estalagem onde se hospedava, ao retornar, depois de passar cansativo dia a colher olivas.
− Deus te abençoe, Manolito! – exclama o mordomo de D. Aníbal Velásquez, enquanto o rapaz beijava-lhe, respeitosamente, a mão, a pedir-lhe a bênção. E, a mostrar-se assaz ansioso: − Vamos ligeiro ao teu aposento, pois quero saber de tudo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 9:27 am

− ¿Cómo es mi madre?177 – pergunta o rapaz, após chegarem ao quarto.
− A tua mãe está muitíssimo bem, como sempre! – responde Gumersindo. E, com certo ar de ironia à voz, prossegue: – ¿Hay algo en este mundo que puede derrotar a tu madre?178
− Oh, mamãe é firme como uma rocha! – exclama o rapaz, vaidoso, a abrir pequeno sorriso.
− Mas, deixemos as bobagens de lado! – diz Gumersindo Acuña, directo. – Vamos ao que realmente interessa: − E os malditos judeus?
− Ainda andam por lá – responde o rapaz. – Vejo-os todos os dias, pois arranjei trabalho bem ao lado da quinta onde vivem.
− Não te deste a perceber, pois não? – pergunta o mordomo, desconfiado. – Fizeste tudo direitinho, presumo...
− Exactamente como me instruíste, Senhor – responde o rapaz. E, cheio de orgulho: – Gastei muito pouco do dinheiro que D. Aníbal deu-me, pois logo comecei a trabalhar...
− Assim é que se faz! – exclama, vaidoso, Gumersindo. – Tens a quem puxar!...
− A mi padre, por supuesto...179 – diz o rapaz.
− ¡Sí, a tu padre!...180 – responde Gumersindo Acuña, com um sorriso pejado de ironia. Depois, aproxima-se da pequena janela e espiona lá fora. A escuridão era total.
− Vais hospedar-te aqui, também? – pergunta o rapaz.
− Não – responde o mordomo de D. Aníbal Velásquez. − Vou procurar outro lugar para ficar, pois, quanto menos nos virem juntos, melhor. Mas virei amanhã, ao cair da noite, a ter contigo. Tenho novidades para ti. Agora, vou-me; preciso descansar da viagem – e, já à aporta, saúda o rapaz: − ¡Buenas noches, Manolito!... ¡Que Dios te bendiga!181
Na manhã do dia seguinte, mesmo antes que o rapaz deixasse o leito, Gumersindo já lhe batia, insistentemente, à porta.
− Mas, já, padrinho? – pergunta o rapaz, a esfregar os olhos ainda cheios de sono. – Sequer amanheceu!
− Para os de valor, o dia começa no escuro! – devolve
Gumersindo. E apressa o rapaz: − Avia-te, que temos muitas coisas a resolver!
Após ligeiro desjejum, saem ambos para a rua.
− Que tinhas a contar-me, padrinho? – pergunta, curioso, o rapaz.
− Para começar, tu não mais irás à quinta, trabalhar; já recebeste todo o teu salário?
− Sim, o pagamento é diário.
− Então, vamos comprar um bom cavalo para ti!
− E para que deverei ter um cavalo?
− Tu vais retornar a Castela comigo!
Manolito mostrou-se claramente desenxabido: a mamata de viver sozinho no estrangeiro acabava-se.
− Mas, já?! – reclama o rapaz. – Agora que eu me acostumava com os ares desta terra!...
− Mas não é aqui que vives; portanto, vamos ao cavalo...Após visitarem pequena coudelaria nos arredores da cidade, onde fizeram a compra de garbosa montaria, retornam à hospedaria em que o rapaz se instalara por três meses e, apressadamente, apanham a sua pequena bagagem e ganham o caminho, rumo a Toledo.
− Acaso pensaste direito, padrinho? – pergunta o moço, enquanto troteavam, lado a lado. – Fazes-me retornar a Castela, e se, nesse ínterim, os tais resolverem fugir?... E, quem nos dará a pista deles, depois, se isso acontecer?
− Sei que não fugirão! – responde Gumersindo. – Tu me garantiste que estão sossegados naquele quinta, não é assim?
Então, se nada os ameaça, não terão motivos nenhuns para fugir...
O rapaz cala-se, diante do argumento do padrinho. E, depois de um tempo de silêncio, pergunta:
− Vais dizer-me, então, que D. Aníbal Velásquez perdeu o interesse neles?
− Não – responde, lacónico, Gumersindo.
− Não vais contar-me o motivo, não? – insiste o rapaz, a roer-se todo de curiosidade.
− Acho que posso contar-te. E tu não vais dar com língua nos dentes por aí, pois não? – diz Gumersindo, depois de ponderar por algum tempo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 7:08 pm

− Juro-te que guardarei segredo!
– Vê lá, hein?... Se tiveres amor à tua língua, mantém-na dentro da boca! – ameaça, sério, o mordomo. E revela: − D. Aníbal resolveu denunciar os três ao Tribunal do Santo Ofício!
− Deveras?! – espanta-se o jovem. – Mas aqueles lá não costumam assar as pessoas à fogueira?
− Não! – responde o outro. – A Santa Madre Igreja não coze ninguém à fogueira, imbecil! – e, a menear a cabeça, cheio de raiva:
− Ah, saíste à tua mãe: rombudo como um rebolo!
O rapaz abaixa a cabeça, ofendidíssimo pelas ásperas palavras do padrinho. E rebate, cheio de mágoa:
− Eu não tive a sorte de viver ao lado de gente rica e sabida, como o senhor sempre viveu!− Oh, não te quis ofender! – desculpa-se Gumersindo Acuña. E, para levantar o ânimo do afilhado, explica: − A Igreja queima os hereges à fogueira para purificar-lhes a alma, entendes?
− Não... – responde o rapaz. – Sempre achei que matar alguém era pecado... E pecado mortal, conforme me ensinou a minha mãe.
− Oh, a tua mãe! – ironiza Gumersindo. – Que sabe a tua mãe sobre os santos cânones?
− Can... o quê, Senhor?... – pergunta Manolito, atabalhoado.
− Ora, deixa para lá! – responde o outro, enfezando-se. E se põe mudo, vermelho de raiva. Era-lhe difícil aceitar que o afilhado tivesse crescido assim tão ignorante.
− Desculpa-me, padrinho, mas não consegui entender o que disseste!...
− Tu sabes ler, Manolito? – pergunta Gumersindo, depois de algum tempo, arrependido da forma grosseira como tratara o rapaz.
− Não... – responde o moço. E explica: – Minha mãe só me quer ver na lida! Depois, como é que iríamos pagar um mestre?...
Imagino que devam cobrar uma fortuna para ensinar alguém a ler!
− É, tens razão, tu não terias, mesmo, tido condição de frequentar nenhuma escola, sendo filho de um abastardado como era o teu pai! – e, depois de pensar por alguns instantes, diz como se fosse para si mesmo: − Eu é que me atoleimei em não te fazendo aprender a ler! – e depois de momentos de funda cogitação, pergunta ao rapaz: − Gostarias de aprender a ler, Manolito?
− Oh, sim! – responde o jovem, reacendendo-se. – Vais pagar-me um mestre, padrinho?
− Oh, claro que não! – apressa-se em responder o outro, amuando-se. – Pensas que tenho tanto dinheiro assim, para atirá-lo aos porcos, é?... Não!... Eu mesmo serei o teu mestre!
− Ah, sim... – diz o rapaz, sem muito ânimo.
− Parece-me que não te animaste muito... – observa Gumersindo, depois de sondar as feições do afilhado.
− Não é isso... – explica o rapaz. – Queria, mesmo, era estudar com um bom mestre, pago, a usar uma capa vermelha e longa, uma touca de renda à cabeça e um ceptro à mão, como os reis...− Acaso já viste algum rei? – pergunta Gumersindo, a vazar ironias. – Vai lá, diz-me: onde é que já viste um?
− Rei, mesmo, nunca vi; só a rainha...
− Já viste a rainha?! – espanta-se o mordomo de Aníbal Velásquez. – Onde foi que a viste?
− Vejo-a sempre, quando vai à catedral, rezar. Mas, via-a de longe, de bem longe, pois sabes que os soldados não deixam o povo aproximar-se...
− E para que o povo quererá ver Sua Majestade, a rainha? – pergunta o mordomo.
− Não sei... – responde o rapaz, reticente. – Minha mãe diz que a rainha é a nossa mãe, mas que mãe perversa é essa que não deixa os filhos dela aproximarem-se e nem dá a mínima para aqueles que andam a morrer de fome e de frio pelas ruas?... Não consigo entender...
− Ora, que bobagem!... – rebate o outro, enfezando-se. – Que tem a rainha a ver com esse bando de desgraçados que enxameiam pelas ruas e pelas praças?... Ah, a tua mãe!... Sim, a tua mãe é que anda a fazer de ti um moleirão! – e arremete, cheio de fúria e de indignação: − Sou o teu padrinho e, na falta do teu pai – que o diabo o tenha! –, eu é que deveria te ter educado!... Perdi tempo, deixando-te às mãos da desvairada da tua mãe!... Mas, sempre é tempo de reparar o estrago!... Entretanto, vamos começar já: tu não deves ser assim mole, não, meu rapaz! Deves é ser forte, arrojado, olhar de modo aprumado, estufar o peito, que todos te respeitarão!
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 6 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 7:08 pm

Se te fazes, assim, meio adamado, a morreres de pena dos desgraçados que vivem a empestar todos os cantos deste mundo, quem é que te dará respeito?... Nem mesmo os cães das ruas!
Onde já se viu?... – e, a lançar finas ironias: − Ficar a dar espiadelas à rainha!... Ora, esperta-te, homem!... Busca, antes, as delícias que nos podem propiciar as raparigas fogosas, que já passa da tua hora!... Dó dos das ruas?... Apre!... Que se aviem a dar cuidados à própria vida!... Bando de vadios é que eles são!... – e, a bufar de raiva: − E o que tem a rainha com eles?... Ora, vejam só!... – e, após afinar os lábios, a embranquecerem-se de tanta indignação, dispara: − Além do mais, os mestres não usam toucas de finas rendas à cabeça, mas, sim, de veludo negro e, às mãos, levam longas varas de marmelo, a darem às fuças dos aprendizes asneirões, como tu, certamente, o serás!
O rapaz baixa a cabeça, assaz triste. As palavras do padrinho magoaram-no profundamente.
− Desculpa-me, Senhor – diz ele, em voz baixa –, não pensei que errava tanto em ser desse modo!
− Pois erraste! – exclama Gumersindo, bastante alterado. – Doravante, manter-te-ei sob a minha barba! E, em chegando a Toledo, conversaremos sobre os destinos que daremos à tua alma!
Depois de vários dias de cavalgada, Gumersindo e Manolito chegam a Toledo. Na Plaza del Ayuntamiento, diante do palácio arquiepiscopal, despedem-se:
− Vou para casa, a avistar-me com a minha mãe – diz o rapaz, ainda um tantinho magoado com o padrinho. – A tua bênção, Senhor!
− Sim, vai, mata a saudade que sentes daquela doida e aproveita, também, para dela te despedires, pois lá não mais viverás – diz Gumersindo, firme. – Descansa bastante da viagem e, depois, volta cá, a procurar-me!
− Vais dar-me nova empreitada, Senhor? – pergunta o rapaz, reacendendo-se. − Desta vez, aonde é que irei?
− Se depender de mim, tão-somente à baixa da égua é aonde irás doravante! – responde o outro, grosseiro. Entretanto, depois de pensar um pouco, abranda um tantinho a voz e diz: – Estive, cá, pensando e acho que descobri um jeito de trazer-te para bem próximo de mim. Quem sabe D. Aníbal Velásquez não te arruma um posto bem aqui? – e aponta a residência do arcebispo, com o queixo.
− Ali?! – espanta-se o rapaz. – E a minha mãe, vai viver só?
− Ora, não te preocupes; aquela uma saberá ajeitar-se muito bem, sem ti!... Agora, vai-te!
Gumersindo acompanha o rapaz, com o olhar, e, após vê-lo desaparecer numa esquina, cutuca as ilhargas da sua montaria com os calcanhares e, devagar, ruma para os fundos da mansão. Precisava avistar-se com D. Aníbal Velásquez e, depois, repousar, pois tinha os ossos todos moídos pelo cansaço...
Em pouco, o mordomo estava diante do seu patrão que lia, compenetradamente, um opúsculo, junto à janela do seu gabinete particular.
− ¡Con permiso, Señor!182
− Gumersindo! – exclama D. Aníbal, ao ouvir a voz do serviçal que se postava à porta. – Já estás de volta!... Vamos, entra!... E, então, correu tudo bem?
− Sim, Senhor! – responde o mordomo. – Os três ainda continuam por lá, no mesmo lugar!
− Perfeito!... Agora, é só dar continuidade aos nossos propósitos!... Amanhã mesmo, irei ter com D. Tomás, no Tribunal, e fazer a denúncia.
− E credes que, desta vez, teremos como trazê-los de volta a Toledo?
− É o que pretendo, Gumersindo!... Enquanto viajavas a Portugal, tracei os planos, com a ajuda de D. Fernán Guillén que, como bem o sabes, também demonstra muito interesse neste caso!... Mas, agora, vai repousar; mais tarde te porei a par de tudo!
O mordomo sai, e D. Aníbal sorri satisfeito. As coisas, finalmente, voltavam a caminhar. Trazer Milagros de volta a Toledo não lhe seria muito fácil; precisaria de uma ordem de prisão, emitida pelo Santo Ofício; também teria de armar pequeno contingente de homens bem treinados, com o propósito de garantir o sequestro dos três, caso intentassem reagir ou fugir... Correria riscos, mas qual das delícias deste mundo − para se as conseguir − não demandam penosos esforços e perseverança?... Para se ter a mulher desejada aos braços, todos os esforços valeriam a pena. E Maria de los Milagros valia bem a pena...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 7:09 pm

A tarde escoou-se, e a noite caiu. Durante o jantar, D. Aníbal Velásquez pôs o seu mordomo a par dos planos que tinha em mente. E os acertos prosseguiram até a madrugada, quando, cansados, predispuseram-se a dormir.
Ao amanhecer do dia seguinte, bem longe de Toledo, no Porto, em Portugal, os três jovens sentavam-se à mesa, para o desjejum.− Tu pareces triste, meu amor! – exclama Andrés, tomando a mão da noiva e a osculando, apaixonadamente. – Que te vai à cabeça?
− Oh, Andrés! – diz a moça, a mostrar-se assaz ansiosa. – Tive um sonho tão estranho que me deixou assim, bastante acabrunhada!
− E o que se passou em teu sonho? – pergunta o rapaz.
− Na verdade, esse sonho, ou melhor dizendo, pesadelo, já se repetiu algumas vezes, conforme já te contei. É aquele em que nos encontramos eu e tu, em imunda enxovia, presos a correntes, atadas às paredes, e as ratazanas...
− Eu sei, querida! – interrompe-a o noivo, com certo enfado à voz. – As ratazanas esfaimadas vêm devorar-me os pés ensanguentados!...
− Oh, tu te aborreces com isso, mas eu tenho tanto medo! – exclama Milagros, pondo-se a chorar.
− Acalma-te, querida! – diz Andrés, levantando-se da mesa e, enlaçando-a, ternamente, com os braços, beija-a ao alto da cabeça, enquanto lhe diz, com doçura à voz: − Perdoa-me, querida, portei-me qual um imbecil!
− Não me levas a sério, mas viste como as desgraças passaram a emoldurar a nossa existência, depois que tive esses sonhos?
− É verdade! – diz Benyamin que, até então, mantivera-se calado, tão-somente a observar os outros dois. – De uns tempos para cá, a nossa vida desandou: só nos têm acontecido desgraças!
− Será que precisaremos fugir de novo? – pergunta Maria de los Milagros, com a voz marcada pelo desencanto.
− Não sei... – responde Andrés, meditativo. – Não achas que estamos diante de um motivo muito fraco, a exigir que demandemos outras paragens?
− Ah, não! – reclama Benyamin. – Fugir de novo, agora que já me acostumo com este lugar?... Perdidos, cá, neste fim de mundo, quem é que nos encontrará? Além do mais, nunca percebi nenhum estranho a rondar-nos! Milagros anda com tontices à cabeça!...Coisas de mulher!...− Não sei, não, Benyamin! – diz Andrés. – Todas as vezes que a tua irmã teve esse pesadelo, fatos terríveis aconteceram-nos! – e, depois de pensar um pouco: − Não seria o caso, agora, de rumarmos para a Holanda?... Em terras holandesas, estaríamos mais seguros, pois há muitas famílias judias vivendo por lá, sossegadamente!
− Se tencionais ir para a Holanda, retornarei a Toledo! – adverte o rapazinho, taxativo. – Já disse que o holandês é uma língua muito difícil de se aprender!
− E não te permitirá bisbilhotares no mercado, não é? – observa Milagros, jocosa.
− E, certamente, morrerás de tédio, por não tomares conhecimento do que vai pelo mundo! – complementa Andrés, a rir-se.
− Ambos riem-se de mim, mas vos advirto: se fugirdes para a Holanda, voltarei sozinho para Toledo!
− Se soubesses como são lindas as holandesinhas!... – observa Andrés, com o fito de fazer o rapazinho abstrair-se daquelas ideias.
− Ah, e onde é que conheceste alguma donzela de Holanda? – pergunta Milagros, a fingir ciumeiras do noivo.
− Onde?... Onde?... Deixa-me ver!... – responde o rapaz, desconsertando-se todo.
− Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... – explode Benyamin, numa ruidosa gargalhada. – Caíste na ratoeira, espertalhão!
Essa discussão, pejada de observações xistosas, acabou por propiciar novo alento aos jovens que, temporariamente, pareceu eximi-los de preocupações mais sérias.
− Que tal se almoçássemos sob as oliveiras hoje? – convida Andrés, recompondo-se. – Faz muito calor e, à sombra das árvores, teremos mais conforto. Que vos parece?
− Por mim, está feito! – responde Benyamin.
− Acho que nos fará bem! – diz Milagros, animando-se. E, solicita ao noivo: − Vem, ajuda-me a preparar uma cesta com alimentos!
Neste ínterim, em Toledo, D. Aníbal Velásquez preparava-se para avistar-se com D. Torquemada, juntamente com D. Fernán Guillén que o aguardaria à praça, diante da mansão arqui-episcopal; fariam a denúncia em conjunto, e D. Fernán actuaria como advogado de acusação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 7:09 pm

Em pouco, encontravam-se.
− ¡Bueno dia, D. Aníbal!... – cumprimenta-o o amigo.
− ¡Bueno dia! – responde D. Aníbal. E, depois de montar seu garboso cavalo, auxiliado por Gumersindo, e após curto trecho de cavalgada, diz ao amigo: – Acho que deveria ter mandando preparar o carro... Ainda não me acho em total conforto sobre um cavalo... − Que nada!... – diz o outro. – Já estás forte como uma rocha! E, um dia, terias mesmo que voltar a cavalgar!... Então, a hora é esta!
− Queira Deus que não me arrependa disto! – e após frustrada tentativa de melhor acomodar-se à sela do cavalo, prossegue: − E a propósito: presumo que arranjaste tudo direito para alicerçarmos a denúncia em algo palpável!
− Fica sossegado, D. Aníbal! – responde o outro. – Acho que já me conheces o suficiente, para confiares plenamente em mim, não?... Aquila non captat muscas!183
− Sim! – diz o prelado. – Mas não seria mais confiável que me pusesses a par de tudo, antes de chegarmos diante de D. Torquemada? Sabes muito bem como ele é...
− D. Torquemada é um homem inteligente, sagaz, mas te garanto, D. Aníbal: sei como fazer tudo! Não te preocupes!
− Assim espero... – responde o outro.
E cavalgaram em silêncio pelo pouco de caminho que ainda lhes restava a chegar onde se instalava o Tribunal do Santo Ofício.
___________________________________________________________________________________________________________
177. “− Como está a minha mãe?”, em castelhano.
178. “− Existirá algo neste mundo capaz de abater a tua mãe?”, em castelhano.
179. “− A meu pai, naturalmente...”, em castelhano.
180. “− Sim, a teu pai!...”, em castelhano.
181. “− Boa-noite, Manolito!... Que Deus te abençoe!”, em castelhano.
182. “− Com licença, Senhor!”, em castelhano.
183. “− A águia não caça moscas!”, em latim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 7:09 pm

Capítulo XIX. Uma denúncia ao inquisidor-geral
Em pouco, achavam-se diante de D. Torquemada.
− Oh, há quanto tempo que não vos via, D. Velásquez! – exclama o velho dominicano, a abraçar, efusivamente, o amigo. E, voltando-se para D. Fernán Guillén, estende-lhe a mão, em cumprimento: −
Como estais, honorável paladino das leis?... – e a abrir ligeiro sorriso: − Ao que tudo indica, continuais arrojado qual um leão!
− ¡ Es tu bondad, Señor!...184 – retruca D. Fenán Guillén, a apertar-lhe a mão. E, a retribuir o elogio ao chefe da Inquisição, diz:
– Vós é que estais rijo como um rochedo!
− ¡Muy bien! – diz D. Torquemada, voltando a sentar-se à sua secretária. E fazendo sinal aos outros dois que também se sentassem, pergunta, já desconfiado de que ambos ali não tinham vindo tão-somente para uma visita de cortesia: − Não viestes apenas com o propósito de visitar-me, presumo!
− Oh, não! – responde D. Aníbal. – Além de vos visitar, temos ainda algo a informar-vos!
− A mim ou ao Tribunal? – pergunta D. Torquemada.
− Oh, certamente ao inquisidor-geral de Espanha, Senhor! – atalha D. Fernán Guillén que, como advogado que era, sabia muito bem como colocar as questões.
− Uma denúncia?...
− Sim, Senhor – confirma o advogado. – E que envolve, também, a D. Velásquez.− A vós?... – exclama o inquisidor-geral, voltando-se para D. Aníbal Velásquez, cheio de curiosidade. – Se o desejais, podeis relatar os termos da denúncia.
− Prefiro que D. Guillén faça-o, Senhor – diz D. Aníbal. – Eu o constituí meu advogado.
− Creio que ainda não sabeis, D. Torquemada, que o nosso D. Aníbal foi atacado, ferozmente, por uma judia, com o intento de matá-lo! – diz o advogado.
− Deveras?! – espanta-se D. Torquemada. – E onde vos feriu ela, D. Aníbal?
− Feriu-me, cá, D. Tomás – o prelado vira-se e aponta o local do ferimento, à altura do rim direito.
− Por Deus! – exclama o inquisidor-geral. – Mas aí é que se localiza um dos rins!
− Justo, Senhor! – atalha D. Guillén. – E o nosso querido D. Aníbal, conforme nos garantiu o padre Navarrete – que vós deveis conhecer muito bem e que lhe salvou a vida, com a graça de Deus!
− que esse rim secou e para nada mais serve!
− Jesus santíssimo! – exclama D. Torquemada, cheio de espanto. – Foi assim tão grave o ferimento?
− Sim, Senhor! – responde D. Aníbal. – Sequer podereis supor o quanto sofri, durante os dias em que me vi entre a vida e a morte!...
Não fosse a sabedoria e as santas mãos de D. Navarrete, não teria eu sobrevivido a esse covarde ataque!
− E como estais agora? – pergunta D. Tomás.
− Com a vida salva, mas aleijado!
D. Tomás de Torquemada permanece em silêncio, por alguns instantes. Depois, pergunta:
− E com que propósito atacou-vos a infame judia?
− Bem, Senhor – apressa-se D. Fernán Guillén em responder: − Na verdade, apareceu a tal moça, na vivenda que D. Velásquez possui em Las Palmas, com o intuito de procurar por uma pessoa que desaparecera dias antes – a irmã, não D. Aníbal? –, apresentou-se ao mordomo e, cheia de maneirismos fesceninos, tão comum entre as donzelas dessa raça, não concordais?... Pois bem: ainda não se sabe, ao certo, se, de facto, tinha ela uma irmã que desaparecera por aquelas plagas; o correto, D. Tomás, é que a moçoila judia foi entrando e ficando...
− Ora, vejam só a audácia dela!... – exclama D. Torquemada, esconjurando das pretensas licenciosidades que, certamente, demonstrara a judiazinha. – Essa gente costuma ser assim!...
− Correto: assim é, Senhor! – diz o advogado, em seu caviloso ofício de tecer bem urdida trama, com o fim de enredar a pobre Maria de los Milagros e a sua família. – Calhou, então, que o nosso caro D. Aníbal achava-se em repouso, na sua casa de campo, e lhe coube surpreender a mocinha em fortes altercações com o seu fiel mordomo, Gumersindo Acuña, que tentava, debalde, pô-la porta fora.
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E o nosso querido D. Aníbal, como dono da vivenda, sem atinar com o alto grau de periculosidade da infame judia, admoestou-a de que deixasse, imediatamente, a sua casa.
“Então a judiazinha, traiçoeiramente, lépida como uma gata, apanhou uma faca de prata que se achava sobre a mesa, ali posta para o desjejum e, num átimo, antes mesmo que alguém pudesse detê-la, cravou-a ao flanco de D. Aníbal, ferindo-o fundo à altura do rim direito!”
− Mas que mulher maldita! – diz D. Torquemada, rilhando os dentes. – Atacou-vos, assim, friamente, D. Aníbal, sem mais nem menos?
− Assim foi, D. Tomás! – respondeu D. Aníbal Velásquez, fingindo tomar-se de altas ofensas. – Quase perdi a vida, sem que tivesse tempo de atinar com o motivo!
− Essa gente é desgraçada e cruel! – exclama D. Tomás, levantando-se da sua secretária e, pondo as mãos atrás, passou a caminhar em círculos pela sala. E, parando e olhando, fixamente, para D. Aníbal, prossegue, altamente indignado: − Quase que vos tira a vida, por um motivo tão torpe!
− Sim, Senhor! – afirma D. Aníbal, enquanto trocava significativo olhar com D. Fernán Guillén que se mostrava contentíssimo. D. Tomás já se enredara naqueles bem tramados artifícios!
− E, depois disso, como conseguiu evadir-se a infame? – pergunta D. Tomás.− Ah, Senhor – apressa-se em responder o advogado, – vendo que D. Aníbal houvera caído ao chão, esvaindo-se em sangue, o mordomo lançou-se sobre ele, com o propósito de auxiliá-lo, naquela emergência. Aproveitando-se dessa deixa, a maldita judia evadiu-se do local!
− E ora já a localizastes, presumo... – diz D. Tomás.
− Sim, depois de inúmeras diligências e inquirições, realizadas por toda a cidade, descobrimos-lhe o paradeiro e a identidade – observa D. Fernán Guillén. – Trata-se da jovem Maria de los Milagros, filha do joalheiro Yaacov Shlomo!
− Acho que conheço esse ourives – diz D. Tomás – e presumo que não deverá ser nada diferente dos da sua raça! – e depois de cogitar por instantes. – E aqui viestes, certamente, com o intuito de se fazer justiça!
− Sim, D. Tomás! – responde D. Aníbal. – Espero que o Tribunal possa acolher também esse tipo de denúncia!
− O Tribunal de Toledo, D. Aníbal, em tese, como rezam os seus fundamentos, quando da sua criação, tem, desde o início, abrangência bem restrita. Ao criá-lo, o papa procurou precaver-se para que não se repetissem aqui os excessos ocorridos no Tribunal de Sevilha. Em consequência disso, nossas prerrogativas deverão resumir-se, no máximo, em coibir heresias, ou seja, tudo que possa atentar contra a fé católica. Entretanto, cá entre nós, confiou-me a rainha, quando da minha nomeação para o cargo de inquisidor geral, que as reais funções do Tribunal deverão ir mais além:
promover, sub-repticiamente, e sem promover alardes alguns, a limpeza de sangre, alijando do sagrado solo espanhol essa escória humana, judeus e mouriscos!
− Perfeitamente, D. Tomás! – concorda D. Aníbal Velásquez. – Como aspirarmos à criação de um reino único para as gentes espanholas, se temos essa mancha odiosa a macular a pureza do nosso sangue?
− Suas Majestades demonstraram fundo bom senso ao se preocuparem com a limpeza do solo espanhol – observa D. Fernán Guillén. – Uma nação só permanecerá forte e valente, se o seu povo for constituído de gente cristã e temente a Deus! Caso contrário, mostrar-se-á fraca, dividida em sua fé! E a fé é o combustível a movimentar toda a força de trabalho e de coesão dos membros de uma nação, tornando-a unida, forte e varonil!
− D. Fernán tem razão! – exclama D. Aníbal. – E a limpeza de sangre faz-se imprescindível para o surgimento de uma Espanha única e poderosa!
− Considero inadmissível construirmos uma nação dividida em sua fé! – diz D. Tomás. – A Espanha não pode continuar a ter a sua fé constituída de três ramos tão distintos entre si: católicos, judeus e muçulmanos! – e, a mostrar-se cheio de indignação: − Tremo-me de ódio intenso ao ter de passar diante de uma imunda sinagoga ou de uma mesquita infamante!... Quão distantes esses templos malditos encontram-se da paz e da tranquilidade reinantes num igreja...
− E como se encontram díspares e distantes uma fé da outra! – observa D. Aníbal. – E este, a meu ver, é o maior entrave para que a união desses povos, um dia, seja possível!
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− Não, jamais ocorrerá a verdadeira união entre nós! – concorda D. Tomás. – Nada os católicos têm em comum com os judeus e os muçulmanos!
− E considero pura perda de tempo fazer-lhes a conversão à força, como já acontece, desde algum tempo! – diz D. Fernán.
− A conversão de judeus e muçulmanos ao Cristianismo, na grande maioria dos casos, dá-se tão-somente na aparência! – expõe D. Tomás. – Não passa de bem arrematada hipocrisia! Nenhum dos que eu conheço – tanto judeus como muçulmanos −, de facto, abjurou até hoje. Apenas fingem e, por trás das cortinas cerradas, continuam a cultuar Jeová ou Maomé!
− E, voltando à judiazinha que feriu D. Velásquez – diz D. Fernán, mudando de assunto, propositadamente –, observo-vos, D. Tomás, que não nos será nada fácil deitarmos-lhe as mãos, pois, além de ser filha de judeu muito rico, ainda é noiva do filho de Ben Hanan, um dos secretários da rainha!
− Bem, D. Fernán – responde D. Tomás, a abrir um meio sorriso cheio de mofa −, por mim, não vejo aí qualquer impedimento para prendermos a desgraçada judia que tentou assassinar a D. Velásquez. Se Sua Majestade, a rainha, de fato, pretende varrer da Espanha essa raça imunda, deverá livrar-se, primeiramente, dos judeus e mouros que lhe estão mais próximos, e nisso, naturalmente, incluem secretários ou qualquer outro serviço que esses nojentos prestem à coroa!
− E por que a rainha ainda não se desfez de nenhum deles? – observa D. Aníbal. – Acaso não vedes aí uma incoerência, Senhor?
− Sua Majestade é cautelosa, D. Aníbal! – responde D. Tomás, rindo um riso cheio de ironia. – Não vos esqueçais de que sou o seu confessor já há bastante tempo! – e, a mostrar-se cheio de autoconfiança, prossegue: − Conheço a rainha como a palma da minha mão e sei o que, de fato, ela pretende fazer!
− E, principalmente, vós a tendes em vossas mãos, não é, D. Torquemada? – atalha D. Fernán Guillén, a rir-se, com ferino sarcasmo.
− E não será o caso de vós, como confessor, sugerir à rainha que comece a se desfazer de todos os marranos que mantenham qualquer ligação com a coroa? – sugere D. Aníbal Velásquez.− Isso já andamos a fazer, há algum tempo, D. Aníbal – explica D. Tomás, cheio de si. – E a rainha garantiu-me que, tão logo o Tribunal principie a receber as denúncias, também ela se desfará de todos os marranos e mouros que servem à coroa. E nisso, naturalmente, incluem-se os altos funcionários do governo. Ninguém escapará à limpeza, eu vos garanto!
− E existe, ainda, outro entrave para que se prenda, imediatamente, a judiazinha, D. Tomás – observa D. Fernán. – A desgraçada evadiu-se do reino; ora vive em Portugal, com o irmão e o noivo!
− Pelo que percebo, essa mocinha tem se mostrado deveras esperta! – exclama D. Tomás.
− Como bem espertos são todos os da sua raça, não concordais? Esses desgraçados já se acham proscritos, há mil e quinhentos anos, e ainda não se os conseguimos apagar da face da Terra! – diz D. Fernán Guillén.
− Mas os da Espanha, eu vos juro, D. Guillén, esses serão esmagados um a um! – exclama D. Torquemada, cerrando, ostensivamente, uma das mãos.− Assim o espero! – diz D. Fernán. E pergunta a D. Tomás: − E credes, Senhor, que, para prendermos a desgraçada judia em terras portuguesas, não precisaríamos de uma ordem de prisão, emitida pelo Tribunal?
− Certamente, D. Guillén – responde D. Torquemada. E ri-se, quando diz: – Mas isso nos será tão fácil!... Eu é que devo assinar essa ordem, não concordais?
− Perfeitamente, Senhor! Acaso não sois o inquisidor-geral? – diz D. Guillén, com o intuito de adular o chefe do Tribunal. E, trocando significativo olhar com D. Aníbal Velásquez, ri-se satisfeito e emenda: − Consumatum est!185
− Entretanto, aconselho-vos a armardes pequeno contingente de beleguins, a dar-vos segura cobertura nessa prisão – observa D. Torquemada. – Acho que já sabeis de sobra como age essa gente odiosa!
− Sem dúvida, Senhor! – responde D. Aníbal Velásquez.
− Agora, vou preparar-vos a ordem especial de prisão para esses malditos marranos! Aguardai, por favor! – e, apanhando fino velino, põe-se a escrever com capricho.
Pouco depois, já fora, D. Aníbal e D. Fernán conversavam animadíssimos, enquanto cavalgavam de volta para casa.
− Notaste bem o brilho aos olhos de D. Torquemada, ao assinar a ordem de prisão dos desgraçados? – observa D. Fernán.
− Sim! Em D. Tomás, pude pressentir o quão feliz se acha ele, a desempenhar a função de inquisidor-geral! Esses assuntos fazem-no extasiar-se! Dão-lhe impagável prazer!... É o que bem reparei!
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− Sorte a nossa! – diz D. Fernán. – Percebeste como nos foi fácil fazer a denúncia? É como se ele já se achasse bem preparado, de antemão, para acolher qualquer denúncia que se faça contra os marranos!... Qualquer denúncia, mesmo, não importando o teor que ela contenha!...
− Bem, ele mesmo nos declarou que também a rainha se compraz com isso! – observa D. Aníbal. – Percebi muito bem que tudo já se acha bem arranjado, para que se inicie a limpeza!
− Sabes o quê, na realidade, percebi, D. Aníbal?... Que tanto a rainha quanto D. Torquemada apenas aguardavam uma deixa para que se iniciasse, ostensivamente, a limpeza!
− E nós lhes demos esse ensejo! – exclama D. Aníbal, estacando, de chofre, a sua montaria.
− Perfeitamente! – diz D. Fernán. – Nós prenderemos os filhos de Yaacov Shlomo e de Ben Hanan. Com certeza, eles apelarão para a soberana para que lhes revogue a prisão dos filhos; D. Isabel, certamente, negar-se-á a atender-lhes o pedido, alegando que não poderia jamais confrontar as decisões do Tribunal e, dessa forma, o conflito estabelecer-se-á!
− E que conflito, hein? – observa D. Aníbal. – Os marranos todos irão tomar as dores de Yaacov Shlomo e de Ben Hanan, por precaução, pois é assim mesmo que costumam fazer, e o Tribunal deitar-lhes-á o pau à cabeça! – e se ri, desbragadamente: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− E o mistifório estará, finalmente, armado!
− Se não!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− E, acusado de besteirazinha qualquer, nenhum maldito marrano escapará à morte ou ao desterro!... Será apenas uma questão da escolha que fizer!...
Em pouco, estavam diante da mansão arquiepiscopal.
− Certamente, ficarás a almoçar comigo, para comemorarmos mais esta vitória! – exclama D. Aníbal Velásquez, a exibir à mão o velino com a ordem de prisão para os três fugitivos.
− ¡Por supuesto que hacer!... ¿Cómo podría rechazar tal invitación?186 – exclama D. Fernán Guillén, rindo-se satisfeito.
Pouco depois, diante de opíparo almoço que lhes preparara Gumersindo, ambos conversavam animadamente.
− E quando pretendes viajar para Portugal, em busca dos fujões? – pergunta D. Fernán.
− Tão logo consiga armar boa escolta, eu me porei a caminho – responde D. Aníbal.
− Armar pequeno contingente não te será difícil – observa D. Fernán. – É só oferecer polpudo soldo, e te choverá bem mais de uma dúzia de bons quadrilheiros à porta.
− Se quiserdes, poderei recrutar bons guerreiros, Senhor! – atalha Gumersindo que se mantinha de pé, do lado, de prontidão, a servir o seu amo. – Conheço uma porção deles!
− Oh, faz isso, meu bom Gumersindo! – exclama D. Aníbal, pondo-se aliviado. – Desse modo, tiras enorme peso dos meus ombros, pois não tenho lá muito jeito para lidar com esse tipo de gente!
− E poderei fazer mais, Senhor! – continua o mordomo. – Se não desejais empreender tão sacrificatória e arriscada jornada até à cidade do Porto, em Portugal, irei eu mesmo, a executar a ordem de prisão daqueles judeus malditos!
− Oh, não havia pensado nisso, Gumersindo! – exclama D. Aníbal. – Atinava até de como haveria de cavalgar tão expressiva viagem com a minha saúde ainda assim abalada!... Se escolhesse ir-me de carro, mesmo assim sofreria bastante, a sacolejar como uma nau à matroca por esses caminhos esburacados!
− E, ainda, com o risco de lá nunca chegares, se te quebrasse o carro pelos caminhos... – diz D. Fernán. – Ferreiros a trocarem as ferraduras soltas das patas das montarias, achamo-los em todas as estações de troca, mas gente habilitada a consertar carros por esses caminhos ermos nunca os vi!
− Tens razão, D. Fernán! – concorda D. Aníbal. E se voltando para o mordomo: − Meu fiel Gumersindo a tudo dará conta!
− ¡Por supuesto, Señor! – diz o mordomo, a inchar-se todo de orgulho.
Alguns dias se passaram, e o diligente mordomo de D. Aníbal Velásquez conseguira juntar uma dezena de bons guerreiros, com o intuito de prender os três jovens judeus na cidade do Porto, em Portugal e recambiá-los a Toledo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 7:10 pm

− Aqui tens a ordem de prisão dos três, emitida pelo Tribunal, Gumersindo! – D. Aníbal instruía o seu mordomo, à manhã do dia da partida do fiel serviçal, à frente do pequeno contingente armado que se posicionava na Plaza del Ayuntamiento, bem diante da mansão arquiepiscopal. – E, também, guarda este salvo-conduto por mim assinado, se, porventura, tiveres algum problema com as autoridades portuguesas. Este documento facilitar-te-á o trânsito livre tanto em terras castelhanas quanto nas portuguesas. E, mesmo assim, se encontrares algum entrave, procura o bispo local e lhe apresente esta outra carta por mim escrita, a esclarecer o motivo da prisão daqueles desgraçados! Vai em paz!
− ¡Permaneced en paz, Señor!187 – exclama o mordomo, despedindo-se.
D. Aníbal permanece à porta da mansão arquiepiscopal até que o pequeno contingente armado desaparecesse à primeira esquina da rua. À face, trazia um sorriso cheio de satisfação.
− Em pouco, ter-te-ei aos braços, minha querida... – murmura D. Aníbal, com um brilho fescenino aos olhos. – Só mais um pouquinho...
Gumersindo Acuña, depois de alguns dias de cavalgada, finalmente alcança a cidade do Porto, em terras portuguesas, à frente da dezena de quadrilheiros que o seguiram, fielmente, até ali.
− Ah!... − murmura ele, contentíssimo, ao atravessar o portão principal da cidade portuguesa. – Desta vez, levar-te-ei de volta a Toledo, presa pelos cabelos, judia maldita!... E bom seria que o teu irmãozinho e o teu noivo reagissem à prisão!... Seria bem mais fácil matar os dois, a levá-los de volta!...
Com um sinal de mão, o mordomo de D. Aníbal Velásquez faz parar a pequena tropa que o seguia. Primeiramente, era preciso alimentar muito bem aqueles homens que se achavam grandemente extenuados pela longa jornada a que estiveram expostos, por muitos dias, sem muito descanso. Depois, fazê-los descansarem por, no mínimo, dois dias, até que se encontrassem bastante refeitos. E, por esse tempo, ele, Gumersindo, poderia, com bastante folga, conferir se, de fato, os três judeus ainda se encontravam no mesmo lugar.
E foi o que fez: procurou uma estalagem nos arredores da cidade, acomodou muito bem os homens, alimentou-os com comida farta e fê-los repousarem em leitos limpos e macios. Também ele procurou alimentar-se e descansar, mas não por muito tempo, pois a ansiedade que o acometia era tanta que não conseguiria permanecer no leito além do necessário para o refazimento das suas forças.
E foi assim que, logo que raiou o dia subsequente à sua chegada ao Porto, tratou logo de cavalgar até à entrada da quinta que não distava não mais que poucos quilómetros da cidade.
Quando chegou à entrada da quinta, o dia mal raiava. Apeou-se da montaria e, oculto pela grossa sebe que margeava a entrada da propriedade, caminhou, com desmedido cuidado, até se avizinhar da pequena vivenda de pedras onde moravam os três judeus fugitivos. Acocorou-se a meio dos tufos da sebe e aguardou, uma vez que ainda não se notava qualquer movimento dentro da casinha.
Não teve de esperar por muito tempo, pois logo notou que a porta dos fundos abria-se, e o jovem Benyamin surgiu, com um balde à mão, a demandar água fresca no poço, situado a poucos metros da casa.
− Ah!... – o mordomo deixou escapar essa exclamação, todo animado. – Um dos malditos lá está!... Sinal de que ainda moram aqui! – e esfregou as mãos, cheio de contentamento, enquanto murmurou: − Amanhã será o dia propício a esta caçada! – e riu-se satisfeitíssimo.
Um pouco mais ali permaneceu amoitado, a conferir, mais por saborear aquela empreitada que por necessidade de confirmação da estada dos três naquele local, tanto que logo pôde ver Maria de los Milagros e Andrés que, em seguida, também surgiram, a executarem os pequenos deveres comuns às propriedades rurais:
dar alimento às galinhas, tirar água do poço, rachar a lenha para o fogão, estender roupas lavadas no varal...
Satisfeito com o que vira, Gumersindo, cheio de cautelas, deixou a quinta e voltou para a cidade, pois era preciso delinear um plano para a abordagem e prisão dos três jovens.
E foi assim que, pelo transcorrer do dia, o mordomo de D. Aníbal Velásquez conversou com os soldados, a dar-lhes orientações e recomendações para o raiar do dia seguinte, quando deveriam tomar de assalto a casa dos três judeus, assim que eles se levantassem, com o fito de preparar-lhes bem engendrada surpresa, sem lhes darem qualquer chance de fuga ou mesmo de armarem qualquer tipo de resistência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 05, 2024 7:10 pm

Quando anoiteceu, Gumersindo Acuña e seus soldados, depois de tudo muito bem ajustado e combinado, comeram um jantar reforçado e logo se recolheram ao leito, para bem descansarem e estarem prontos para a acção marcada para a manhã subsequente.
Ainda não amanhecera completamente, e o pequeno contingente armado deixou a cidade, rumo à quinta dos olivais, tendo à frente o incansável mordomo de D. Aníbal Velásquez que, em silêncio, mostrava-se assaz ansioso para a abordagem e prisão dos judeus fugitivos.
Pouco tempo depois, achavam-se à entrada da quinta.
− Agora, cavalheiros, é preciso tomar muito cuidado! – adverte o mordomo aos seus comandados, em voz baixa. – Vamos rodear a casa e nos pormos de espreita. Assim que abrirem a porta, eu e mais quatro de vós invadiremos a casa, sem lhes darmos tempo de se armar; os demais ficarão fora, a dar-nos cobertura!
E esperaram até que amanhecesse por completo, quando, sem atinar com qualquer ameaça, despreocupadamente, o jovem Benyamin, com um balde à mão, abre a porta dos fundos, com a intenção de obter água fresca no poço. Como um felino, Gumersindo salta sobre o jovem, subjuga-o, facilmente, e com uma mão tapa-lhe boca e, com a cabeça, faz sinal para que os quatro homens, ali de prontidão, invadissem a casa.
A segunda a ser dominada foi Maria de los Milagros que, na pequena cozinha, preparava-se para acender o fogão de pedras.
Tomada de surpresa, facilmente foi dominada por um dos soldados que, ligeiro, com a mão tampou-lhe a boca, a evitar, assim, que a jovem gritasse. Andrés também foi facilmente dominado pelos outros dois soldados que o tomaram de surpresa, logo que o rapaz, acabando de vestir-se, deixava, despreocupadamente, o quarto de dormir.
Em seguida, manietaram, rapidamente, os três jovens que, tremendamente assustados, mal conseguiam atinar com o que lhes acontecia. Apenas trocavam olhares, entre si, sem realmente entenderem o que, de fato, sucedia-lhes.
− Surpresos, meus queridos? – evidencia-se Gumersindo, com altas ironias à voz. E se ri, satisfeito: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Que quereis de nós? – pergunta Andrés, cheio de indignação.
– E com que direito prendeis-nos dessa maneira?− Ora, com que direito! – ironiza o mordomo. – O direito de quem vos levará à justiça, em Toledo!
− E sob qual acusação? – pergunta o rapaz.
− Acusação?... – responde Gumersindo, a abrir um riso pejado de ironia. – Queres uma acusação?... – e diz, acintosamente olhando para Milagros: − Que tal a de tentativa de homicídio?
− E quem aqui cometeu esse crime? – contesta Andrés.
− Acho que foi esta mocinha... – diz o mordomo, atrevidamente, a segurar o queixo de Milagros, forçando-a a erguer a cabeça que a pobre moça mantinha baixa. – Não é mesmo, senhorita?...
− Deixa-a, desgraçado! – grita Benyamin, baldadamente, a dar solavancos com o corpo, com a intenção de livrar-se das cordas que o prendiam firmemente.
− Oh, que valente o moçoilo! – ironiza o mordomo. E aproximando-se mais do jovem, dá-lhe, com a mão fechada, violento soco à boca.
Grosso filete de sangue desce pelo canto da boca ferida de Benyamin, que se põe a chorar de dor e de ódio intenso pelo desgraçado mordomo.
− Covarde! – grita Milagros, a chorar de fundo desespero. – Maldito!...
− Ora, que valentia!... – diz Gumersindo, agora segurando, grosseiramente, Milagros pelos cabelos.
– Vejamos... A mocinha é uma assassina e ainda quer mostrar-se valente!... – e, com o dorso da mão, aplica violento tapa ao rosto da jovem.
− Desgraçado!... – grita Andrés. – Por que não vindes bater num homem, covarde?
− Não seja por isso! – ri-se o mordomo. E voltando-se para Andrés, aplica-lhe formidável chute ao peito.
O moço treme-se de intensa dor. O maldito seguramente lhe houvera partido um par de costelas!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 10:12 am

− Não, Andrés! – grita Milagros, desesperada. – Não o confrontemos!... Conheço esse homem!... É o mordomo daquele infame que tentou desonrar-me!
− Agora se explica tudo! – diz Andrés, a contorce-se de dor intensa. – O desgraçado descobriu-nos!− Sim!... – atalha Gumersindo Acuña, jactancioso. – E vou levar-vos de volta a Toledo, para responderdes pelo crime que comestes! – e ordenando aos soldados: − Não percamos mais tempo com essa escória!... Trazei-os fora, vamos voltar para casa!
Pouco depois, manietados e colocados sobre montarias, os três jovens, tremendamente tristes, eram recambiados a Toledo...
E, após vários dias de dura cavalgada, durante os quais os três prisioneiros sofreram bárbaro tratamento, sob as agruras da fome, da sede e do cansaço extremo, além da achincalhação constante, por parte de Gumersindo e dos soldados da escolta, finalmente o grupo chega a Toledo e estaciona na Plaza del Ayuntamiento.
− Aguardai por aqui e, especialmente, vigiai bem os prisioneiros!
– ordena o mordomo, apeando-se da sua montaria e, rapidamente, adentra o portal da mansão arquiepiscopal.
Em pouco, o diligente mordomo achava-se diante de D. Aníbal Velásquez que, àquele final de tarde ensolarado e quente, lia, atentamente, um pergaminho em seu escritório particular.
− ¡Señor! – chama Gumersindo Acuña, à porta do gabinete do secretário do arcebispo.
− Gumersindo! – exclama D. Aníbal, com os olhos brilhantes. E, assaz ansioso, pergunta: – Então?...
− Tudo certo, Senhor! – responde o mordomo. E indicando a grande janela do aposento, diz: − Conferi por vós mesmo, na praça!
D. Aníbal, com um salto, ganha a janela e olha para fora, cheio de expectativa. Sim!... Era verdade!... Lá embaixo, manietada e posta sobre um cavalo, estava ela!... Milagros!... E seu coração bate descompassado: mesmo desgrenhada e imunda, pelos tantos dias de viagem através dos longos caminhos empoeirados, estava linda!...
D. Aníbal Velásquez teve ímpetos de descer até a praça e tomá-la aos braços, trazendo-a para dentro e fazê-la assear-se e se vestir como uma rainha! Mas se contém e, voltando-se para Gumersindo, ordena, com a voz dura:
− Entrega aqueles três desgraçados aos esbirros do Tribunal!
Explica ao comandante da guarda quem são eles e que, mais tarde, irei ter com D. Tomás de Torquemada!− Perfeitamente, Senhor! – diz o mordomo, a fazer longa reverência.
D. Aníbal permanece ao lado da janela, a olhar a praça. Seus olhos não se desgrudavam de Milagros que, morta de cansaço, oscilava sobre a montaria e se poderia dizer que cairia da sela, a qualquer momento, vencida pelo cansaço extremo.
Nesse comenos, seu mordomo ressurge lá embaixo e, com a voz ríspida, ordena:
− Vamo-nos!... Depressa!...
E o cortejo põe-se em marcha, rumo ao Santo Ofício, onde, saberia Deus quais agruras mais os aguardaria dali para frente...
Entretanto, oculto detrás do tronco de frondosa árvore, um rapazinho se posicionava a observar, atentamente, o grupo estacionado diante da mansão arquiepiscopal.
− Yavé todo poderoso! – murmura o jovem que carregava pesada sacola de legumes às mãos. – Meus senhores precisam saber disso!... – e, quase a correr, deixa a praça.
Era Ben Izerel, serviçal da casa de Yaacov Shlomo, que estivera no mercado, a comprar legumes, a mando de Sara Shlomo, e se deparara com a escolta a conduzir manietados os filhos dos seus patrões...
O rapazinho já houvera percorrido algumas dezenas de metros, quando pensa: “Mas para onde os soldados estarão conduzindo Milagros e Benyamin?...” e para, de chofre. Faz meia-volta, agora a correr, pois era preciso descobrir o local para onde os filhos dos patrões estavam sendo levados presos.
Ben Izerel corre, a perder as sandálias, e, ao dobrar uma esquina, depara-se com a escolta que cavalgava em direcção a avantajado edifício, localizado próximo ao convento de Santo Domingo.
O mocinho cola-se à parede das casas e fica a observar. A escolta estaca diante dos portões gradeados do imponente edifício.
Um homem apeia-se e entrega um documento ao chefe da guarda que, depois de lê-lo, ordena que se abram os portões. A pequena escolta adentra o estabelecimento, a conduzir os três prisioneiros. O jovem serviçal da família Shlomo aguarda uns instantes mais e, depois, cautelosamente, aproxima-se das altas grades dos portões e sonda, atentamente, o pátio, lá dentro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 10:12 am

Um soldado sai de uma das guaritas e aproxima-se. − Que queres por aqui, fedelho? – pergunta, rispidamente, o esbirro.
− Nada... – responde Ben Izerel, com tímido sorriso. – Quer dizer... Queria saber que lugar é este!...
− A prisão do Santo Ofício! – responde o soldado. E depois de rir-se, debochado, pergunta: − Acaso queres aqui ser internado, é?
− Pelo Altíssimo, não! – responde o jovenzinho, a encher-se de medo. E sai em disparada, gritando de longe: − Yavé me livre disso!...
E toma o rumo de casa, a correr como um doido...
______________________________________________________________________________________________
184. “− É a tua bondade, Senhor!”, em castelhano.
185. “− Está consumado!”, em latim.
186. “− Claro que sim!... Como poderia recusar tal convite?”, em castelhano.
187. “− Permanecei em paz, Senhor!”, em castelhano.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 10:12 am

Capítulo XX. Milagros, Andrés e Benyamin
Atravessados os portões do edifício onde se instalava o Tribunal do Santo Ofício, os prisioneiros foram entregues ao chefe da guarda por Gumersindo Acuña, sob recibo. E, antes de deixar as dependências do Tribunal, o mordomo de D. Aníbal Velásquez percorreu, com olhos frios e ímpios, os três jovens, um a um, e murmurou, quase que inaudivelmente, a que somente eles ouvissem:
− Agora é que começará, em verdade, o vosso calvário, desgraçados! – e deixa o local, com passos firmes.
Em pouco, estava diante do seu patrão.
− E, então, Gumersindo? – pergunta D. Aníbal Velásquez, assaz ansioso.
− Tudo feito, Senhor! – responde o mordomo, passando o recibo de entrega dos prisioneiros às mãos do seu patrão.
− E como está ela?
− Bem, Senhor – diz o mordomo. – Encontra-se um pouco abatida pela viagem, mas creio logo se restabelecerá.
− Assim espero... – murmura D. Aníbal. E alteando a voz: – Amanhã irei ter com D. Torquemada, pois é preciso dar curso ao processo...
Neste comenos, o jovem Ben Izerel chegava à residência dos patrões, esbaforido pela corrida a que se submetera.
− Gueveret!... Gueveret!...188 – grita o rapazinho, ao adentrar os portões da casa.− O que aconteceu, Ben? – pergunta Sara Shlomo, indo-lhe ao encontro. – Por que estás a gritar como um doido?
− Oh, Senhora! – responde o jovem criado, ofegante pelo esforço extremo. – Acabo de ver Milagros e Benyamin!
− Meus filhos?! – espanta-se a mulher, pondo as mãos sobre o peito. – Tens certeza do que dizes?... Onde foi que os viste?...
− Ainda há pouco, ao sair do mercado, vi-os na praça, Senhora! – diz o rapazinho. – E estavam presos!
− Presos?!... – grita Sara, empalidecendo, enormemente. – E quem os prendeu?
− Não sei, Senhora! – responde Ben Izerel. − Achavam-se sobre cavalos, todos com os punhos amarrados e rodeados de soldados!
Também Andrés Hanan estava com eles!
− Por Yavé! – grita Sara. – Que será que aconteceu aos meus meninos? – e a chorar, desesperadamente, ordena ao rapazinho: − Avia-te ligeiro a avisar o teu patrão! Diz-lhe que venha depressa para casa!
O jovem sai a correr, em busca de Yaacov. Em pouco tempo, estava à porta da ourivesaria onde Yaacov discutia, acaloradamente, com um patrício.
− Senhor! – diz o rapazinho. − A Senhora solicita a vossa presença em casa!
Yaacov, a conversar exaltadamente com outro judeu, não dá ouvidos ao serviçal.
− Senhor!... Escutai-me, por Yavé! – insiste Ben Izerel, a puxar, freneticamente, Yaacov pela manga do casaco. – Por Yavé, Senhor!... A Senhora...
− Ora, deixa de amolar-me, Ben Izerel! – exclama Yaacov, irritado com a insistência do rapazinho.
− Por Yavé, Senhor! – persiste o jovem criado. – A Senhora mandou que fôsseis a casa...
− Ah, que amolação!...– grita Yaacov. − Sossega, peste! − e, com um safanão, manda longe Ben Izerel!
O rapazinho perde o equilíbrio e se estatela ao chão. Mas, não desiste: levanta-se, a limpar os trajos com as mãos, e, em lágrimas, volta à carga:− Ouvi-me, Senhor! – grita ele, agora se interpondo entre Yaacov e o outro. – A patroa está desesperada!... Benyamin e Milagros estão presos!... Os soldados prenderam-nos!
− Quem prendeu Sara? – pergunta Yaacov, perdido entre as falas do criado e as do seu interlocutor que também conversava alto e agitava as mãos, estabanadamente.
− Não, não é a Senhora que se acha presa!... Presos estão Milagros e Benyamin!
− Milagros e Benyamin?! – Yaacov consegue, finalmente, ouvir o nome dos filhos. E se dirigindo ao outro judeu, diz-lhe, veementemente: − Cala a boca, Shimon!... Acho que este traste, efectivamente, tem algo sério a dizer-me! – e se voltando para o criado: − Vai lá, desembucha, paspalho!
− Senhor, vi Milagros e Benyamin presos, na praça, inda há pouco! – diz o rapazinho.
− Quê?! – grita Yaacov, surpreso. – E quem os prendeu?!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 10:13 am

− Não sei!... Os soldados da rainha, acho! – diz Ben Izerel.
− Não pode ser! – exclama Yaacov. – Você está mentindo!...
Meus filhos estão em Portugal!
− Também com eles estava Andrés Hanan! – acrescenta o rapazinho.
− Então é verdade! – grita Yaacov, empalidecendo. – Tu não poderias saber isso!... – e a sacudir, violentamente, o criado pelos ombros, diz: − Vamos, conta-me tudo!
E o jovem, entre atropelos e sacolejos que lhe dava Yaacov aos ombros, relata o que vira na praça e no Tribunal do Santo Ofício.
− Por Yavé bendito! – grita o ourives. E se dirigindo ao patrício: – Ouviste bem, Shimon?... Os malditos prenderam meus queridos filhinhos! Corre e conta isso ao rabino Mordechai Hagiz e que venha ele à minha casa, com urgência!
Em seguida, Yaacov Shlomo, seguido pelo serviçal, dispara em direcção da sua casa.
− Oh, Yaacov! – grita Sara, ao ver o esposo adentrar o lar. – Os esbirros da rainha prenderam os nossos anjinhos!
− Acho que não foi bem a rainha que mandou prendê-los, não, Sara! – rebate Yaacov, cheio de preocupações. – E é preciso avisar, também, a Ben Hanan, pois Andrés também se encontra preso.
− Se não foi a rainha, então quem é que mandou prender os meus filhinhos? – pergunta Sara, com os olhos vermelhos de tanto chorar.
− Acho que não foi a rainha! – insiste Yaacov. E, depois de cogitar por alguns instantes, corrige-se: – Mas saberá Yavé se também ela não se acha metida nesse mistifório! – e se complica todo, querendo explicar-se: − Oh, sei lá!... Quero dizer que, se a rainha estiver metida nesta embrulhada, ser-nos-á mais fácil livrarmos os nossos anjinhos da prisão, pois Ben Hanan exerce importante função no governo!
− Oh, assim espero! – geme Sara, a assoar o nariz, ruidosamente. – E o que pretendes fazer por ora?
− Vou aguardar a chegada do rabino Mordechai Hagiz e, com ele, tenciono ir até o local onde se acham encarcerados os nossos filhinhos! – diz Yaacov, extremamente nervoso.
− Oh, Yaacov! – diz Sara, abraçando-se ao esposo. – Será que os nossos filhos foram presos pela Inquisição?
− Tenho certeza de que foram presos pelos esbirros do Tribunal – fala Yaacov. – Quem mais teria interesse em prender os nossos filhos, senão aquele desgraçado?
− O maldito padre?... – pergunta Sara.
− Sim, estou certo de que tudo aconteceu por denúncia daquele ordinário que assassinou nossa Consuelo, covardemente! – diz Yaacov. – Nossos filhinhos achavam-se seguros, escondidos em Portugal! E aquele assassino infame não se contentou até que não descobriu o paradeiro deles, com o propósito de vingar-se de Milagros que o apunhalou e quase o matou!
− Mas a nossa filhinha fez aquilo unicamente com o propósito de defender-se, pois o canalha desejava desgraçá-la, covardemente! – observa Sara, com a voz pejada de rancor.
− Sei disso – diz Yaacov. – Mas, ora, o lazeirento pode,
finalmente, ir à forra, pois tem todas as autoridades a seu favor!...
− Agora entendo tudo! – diz Sara. – Aquele monstro descobriu o paradeiro dos nossos filhos e denunciou-os ao Tribunal!
− Que os mandou prender e trazer de volta, para serem julgados!− Mas o que têm a ver com isso Benyamin e Andrés? – pergunta Sara. – Na verdade, se crime houve, quem o cometeu foi tão-somente Milagros! Por que prenderam os outros dois?
− Prenderam-nos apenas por serem judeus, minha cara!... Esse é o real motivo!... Na verdade, o que querem, mesmo, é uma deixa para atacarem a nossa gente! Sabes muito bem que os espanhóis pretendem escorraçar-nos todos daqui! E isso não é segredo para ninguém!
− Mas então corremos o risco de sermos todos presos! – conclui a mulher, enchendo-se ainda mais de terror. – E nem será preciso termos cometido nenhum crime!
− Faz tempo que venho dizendo isso, Sara! Temo que, uma vez mais, o chão desta terra encharcar-se-á de sangue inocente!
− Oh, Yavé santo, livrai as minhas crianças desse martírio! Que crime cometeram eles?
Neste comenos, batem à porta. Era o rabino Hagiz que chegava.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 10:13 am

− Entrai, Senhor Hagiz! – convida Sara, franqueando-lhe a entrada. – Meu esposo aguarda-vos!
− Yaacov! – exclama o velho rabino. – Que aconteceu aos teus filhos?
− Estão presos, Senhor! – responde Yaacov, com lágrimas aos olhos. – Mas, acomodai-vos! – e indica confortável almofada ao rabino. – Vou relatar-vos tudo, desde o início!
E, minuciosamente, o ourives conta ao venerável rabino o drama que lhe envolvia a família.
− Yavé bendito! – exclama Mordechai Hagiz. – Com isso que me relataste, presumo que nuvens negras pairarão sobre as nossas cabeças, mui em breve!
− Pois eu tenho certeza de que novas perseguições já se iniciam! – diz Yaacov. − E creio que não desconheceis que os espanhóis pretendem acabar de vez connosco!
− Diante disso, penso que seria bom que observássemos isso mais de perto – fala o rabino. – Para não sermos pegos de surpresa!
− Pois vos digo que não há mais surpresas, Senhor! – diz Yaacov. – Não vos esquecestes, é claro, do que aconteceu, há bem pouco tempo, em Sevilha!
− Sim! O Tribunal do Santo Ofício lá fez misérias, sob o beneplácito da rainha e dos padres!
− Não fosse a intervenção do papa, e já estaríamos todos mortos! – exclama Yaacov.
− E crês, acaso, que o papa permitirá desmandos também, cá, em Toledo? – pergunta o rabino.
− Não vos esqueçais de que o papa mora em Roma! – observa Yaacov. – E, além do mais, já está velho e sabemos, acaso, quem o substituirá, se ele vier a falecer logo?
− Nesses termos, tens razão, Yaacov − diz o velho rabino. – E é bom que nos previnamos contra possíveis incidentes desagradáveis!
− E o que sugeris, Senhor? – pergunta Yaacov.
− Primeiramente, que busquemos o Tribunal do Santo Ofício, a descobrirmos o motivo da prisão dos teus filhos; depois, dependendo do que lá nos disserem, deverás constituir um advogado para defendê-los da acusação.
− Não credes que devemos, também, avisar a Ben Hanan? – observa Yaacov. – O filho dele é noivo da minha filha e também se encontra preso.
− Com certeza que o avisaremos, e ele deverá ir connosco. Sabes da importância que Ben detém no governo da rainha!
Em pouco, Yaacov, Ben Hanan e o rabino encontravam-se nas masmorras do Tribunal Inquisitorial.
− Que desejais? – pergunta, rispidamente, o capitão da guarda prisional.
− Sabermos o motivo da prisão dos nossos filhos – diz Yaacov, ousadamente.
− O nome dos prisioneiros! – pergunta o capitão, grosseiramente.
− Maria de los Milagros, Benyamin e Andrés! – responde Yaacov.
− Ah, os três judeuzinhos! – diz o capitão da guarda, com um sorriso cínico. – As visitas para eles estão proibidas!
− Mas insistimos em vê-los! – intervém Ben Hanan. – Sou secretário de Sua Majestade e ordeno que nos franqueeis a entrada!
− Oh, sinto muitíssimo, Excelência! – exclama o capitão, com um sorrisinho sardónico. – Mas são ordens expressas de Sua Excelência, D. Torquemada, para que ninguém tenha acesso a prisioneiros do Tribunal, sem a sua permissão pessoal!
− Então, iremos a D. Torquemada! – responde Ben Hanan, cheio de indignação.
− Estejais bem servidos, Excelências! – diz o capitão da guarda, fazendo longa reverência e com acentuado escárnio à voz.
Em pouco, os três encontravam-se no saguão do Tribunal Inquisitorial, a aguardarem uma audiência com D. Torquemada que, previamente avisado por seu secretário pessoal e sabedor do assunto que os levava até ali, fê-los esperar, de propósito, por mais de uma hora.
− Faz os judeus entrarem! – ordena, finalmente, o chefe da Inquisição ao seu secretário pessoal.
− Sua Excelência irá receber-vos agora! – comunica o secretário de D. Torquemada aos três que, já bastante impacientes, caminhavam de um lado para outro, cheios de revolta.
− Finalmente! – diz Ben Hanan, fulminando o padre secretário com um par de olhos extremamente ferozes.
− Senhores! – diz D. Torquemada, quando os três homens adentraram o seu escritório. – Em que posso ser-vos útil?
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 6 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 10:13 am

− Por que nos fizestes esperar tanto, se sabíeis quem somos? – pergunta Ben Hanan, furioso.
− Como poderia saber quem éreis? – contra pergunta D. Torquemada, com funda ironia à voz. – Acaso serei eu um adivinho?
− Mas nos fizemos anunciar! – rebate Ben Hanan. – E acho que sabeis muito bem quem sou!
− Perfeitamente, Senhor! – responde D. Torquemada, a vazar ironias. – Quem, nesta cidade, não conhece Ben Hanan, secretário de assuntos estrangeiros de Sua Majestade, a rainha?
− E se me conheceis tão bem, por que é que mandastes aprisionar o meu filho? – diz Ben Hanan, directo e com a voz firme.
− Antes de ser o vosso filho, Senhor, o rapaz que mandei encarcerar é um facínora! – exclama D. Torquemada, a arrostar Ben Hanan, firmemente, sem demonstrar mínimo indício de retraimento.
− Como vos atreveis a qualificar o meu filho de bandido? – rebate Ben Hanan ofendidíssimo.− Como não? – diz D. Torquemada. E, a exibir um escrito que apanhara de sobre a sua secretária: − Baseio-me nesta denúncia que recebeu o Tribunal: prisão por tentativa de homicídio!
− E quem o meu filho tentou assassinar? – pergunta Ben Hanan, já bastante alterado pela cólera intensa que o invadia.
− Vosso filho tentou assassinar a D. Aníbal Velásquez, o secretário de Sua Eminência, o arcebispo!
− Meu filho nunca esteve diante dessa pessoa, posso garantir-vos! Isso é uma infâmia!
− Mas a sua noiva, sim! – diz D. Torquemada, a exibir um sorriso de triunfo aos lábios. – Maria de los Milagros Shlomo tentou assassinar, sim, a D. Aníbal Velásquez!
− E que tem o meu filho com isso? – rebate Ben Hanan. – Garanto-vos que ele nunca feriu ninguém!
− Mas a sua noiva, sim! – insiste D. Torquemada. – E o vosso filho deu-lhe guarida e ajudou-a a fugir, escapando das mãos da justiça! Portanto, quem dá protecção a assassinos, do crime é cúmplice!... Assim diz a lei!
− Alto lá! – intervém Yaacov Shlomo. − Andais a repetir que a minha filha é uma assassina, mas podeis dizer-me, acaso, quem foi que ela matou?
− Oh, sois o pai da assassina! – exclama D. Torquemada, a exibir à face um misto de ironia e satisfação. – Que ferazinha pérfida e cruel a vossa filha, não!... Uma verdadeira serpente!... Tendes a certeza, mesmo, de que é uma moça?... Olhai bem, que vós podeis ter sido enganado pela parteira! – e se ri debochado: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Maldito! – grita Yaacov, a rilhar os dentes de tanto ódio. E a fechar os punhos, ensaia em se lançar sobre D. Torquemada.
− Contenha-te, Yaacov! – exclama Ben Hanan, segurando-o firme pelo braço. – Cuida que ele bem poderá usar tudo isso contra nós!
− Ben Hanan tem razão! – cochicha-lhe ao ouvido o velho rabino.
– Mantém-te quieto, não lhe caia nas mãos! Não percebes que ele nos prepara armadilhas, com o propósito de enredar-nos?
− Tendes razão! – diz Yaacov, buscando controlar-se.− Então, Senhor Hanan, não tem razão o Tribunal em prender o vosso filho assassino? – prossegue D. Torquemada, com o propósito de irritar ainda mais os três judeus.
− Os nossos filhos que mandastes encarcerar são inocentes! – prossegue Ben Hanan. – Posso garantir-vos de que não passa de bem armada farsa idealizada pelo secretário do arcebispo, com o propósito de vingar-se da pobre jovem que tão-somente se defendeu dos ataques daquele infame!
− Oh, o que nos narrou D. Velásquez difere bastante do que ora nos apresentais, D. Hanan! – rebate D. Torquemada. − Afirmou-me ele que a judiazinha invadiu a sua casa, com o propósito de feri-lo, a vingar-se da morte de uma irmã, pretensamente mandada assassinar pelo secretário do arcebispo! É o que consta nos autos do processo! Se desejais conferir, é só constituirdes um advogado e pedir vistas ao processo!
− Isso é um a infâmia, eu repito! – grita Ben Hanan, cheio de cólera.
− Acaso estais a acusar-me de mentiroso, Senhor Hanan? – pergunta D. Torquemada, arrostando-o, firme.
− Estou! – responde o outro. – E vou apelar para Sua Majestade, a rainha!
− Fazei o que bem quiserdes! – diz D. Torquemada, dando de ombros. – E voltando a sentar-se à escrivaninha, prossegue cheio de zangas: − Agora, fazei o favor de sair, pois tenho coisas mais sérias a resolver!
Os três judeus deixam as dependências do Tribunal em silêncio.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 6 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 10:13 am

Cada um remoía, em seu íntimo, a raiva extrema, causada pelo infeliz descaso e extremada arrogância com que haviam sido recebidos pelo chefe da Inquisição de Toledo.
− Que deveremos fazer agora? – pergunta Yaacov aos companheiros, a quebrar o silêncio que se estabelecera entre eles.
− Vou ter com a rainha agora mesmo! – diz Ben Hanan. – Ao menos, ela tem me tratado com respeito, até então, e sei que não me negará uma audiência!
− Faze isso, Ben Hanan! – diz o rabino Mordechai Hagiz. – Prevalece do teu cargo, com propósito justo: a rainha, com certeza, mandará que soltem os vossos filhinhos!
− Desejas que vamos contigo, Ben? – pergunta Yaacov. – Poderemos ir em comissão, a pedir uma audiência com a rainha.
− Não creio que seja necessário – responde Ben Hanan. – Sozinho e a ocupar um cargo no governo, ser-me-á mais fácil ser recebido por Sua Majestade.
− Se assim pensas... – diz Yaacov. – Ficaremos a aguardar o resultado da tua entrevista com D. Isabel.
Pouco depois, Ben Hanan achava-se no Alcácer, a aguardar uma audiência com a rainha de Castela. Não teve de aguardar muito e logo foi recebido pela soberana castelhana.
− ¡Majestad!... – exclama Ben Hanan, enquanto fazia longa reverência diante da soberana de Castela.
− Que a Nossa Graça poderá fazer por Vossa Excelência? – diz a rainha, a abanar-se, freneticamente, com longo e luxuoso leque de penas coloridas, pois o calor que fazia em Toledo, àquela época do ano, era muito forte.
− Vossa Graça podereis, efectivamente, muito fazer por nós! – exclama Ben Hanan, a seguir os passos da soberana que caminhava pelo imenso salão de audiências, assaz incomodada, a quase sufocar-se pelo excessivo calor. – O Tribunal do Santo Ofício acaba de prender, arbitrariamente, o meu filho mais dois jovens, pela pretensa tentativa de assassinato do secretário de Sua Eminência, o arcebispo!
− O quê? – exclama a rainha, estacando, de chofre, e se voltando, a encarar Ben Hanan. – Como pode o filho de um secretário do reino portar-se dessa maneira?! Preso por acusação de homicídio?!
− Não é bem assim, Majestade! – rebate Ben Hanan. – Mil perdões, Senhora, mas vos equivocais: nosso filho acha-se encarcerado em consequência de falsas acusações!
− Se assim é, por que é que não defendeis a libertação do vosso filho junto aos juízes?... Estranha-nos esse facto, D. Hanan! Acaso já tentastes esse meio?
− Oh, Senhora, perdoai-nos a insistência, mas meu filho acha-se preso nas masmorras do Tribunal da Santa Inquisição! A justiça comum não alcança essa instância!
− Oh, se o vosso filho acha-se processado e preso pelo Santo Ofício, então se trata de gravíssima acusação! − diz a rainha de Castela, já a demonstrar patentes enfados diante da insistência de Ben Hanan. E se deixando sentar pesadamente sobre imensa poltrona forrada em veludo púrpura, emite longo suspiro de agastamento. E depois de se abanar, freneticamente, com o longo leque de penas coloridas, diz: − Sentimos muito, D. Hanan, mas, por expressas recomendações de Sua Santidade, o papa, os soberanos de Castela não deveremos, jamais, interferir nas questões do Tribunal do Santo Ofício! – e dando a mão a beijar ao judeu, despede-o, sem lhe dar mais quaisquer chances de replicar.
Ben Hanan sente um pesado frio invadir-lhe o ser: a rainha era a oportunidade mais certeira a proporcionar-lhe a libertação do filho preso, mas ela, sem mais nem menos, se negava a fazê-lo! E, enquanto, cabisbaixo e arrasado, deixava as dependências do Alcácer, terrível impressão invade-lhe a cabeça: percebera, com fundo pesar, que a soberana de Castela tratara-o com desvelada frieza, quase às raias da indiferença e, então, um calafrio percorre-lhe a espinha, de alto a baixo. Será que a rainha desdenhara-o daquele modo, tão-somente pelo fato de o seu filho achar-se preso pelo Tribunal da Inquisição, ou aquele indisfarçado desdém significaria ainda outra coisa mais grave?
Ben Hanan era um homem extremamente inteligente. Não houvera galgado tão alta posição no governo de Castela, mesmo sendo judeu, não fosse a sua grande capacidade intelectual e prática, no enfrentamento de quaisquer questões, fossem elas da natureza que fossem. Filho de advogado ilustre de Toledo e sendo, também ele, advogado competentíssimo, formado pela Universidade de Salamanca, fora muito bem treinado pelo pai, tanto que, com quarenta e dois anos de idade, já defendia os variados interesses da coroa castelhana, junto aos países estrangeiros, com competência ímpar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 10:13 am

E, por mais de cinco anos, vinha desempenhando as funções de secretário do governo de Isabel de Castela e dela sempre recebera elogios e mais elogios, além de o recompensar, regiamente, por uma infinidade de negociações e questões de Estado bem resolvidas com nações estrangeiras. A rainha sempre se mostrara afável e gentil, em todas as vezes que se haviam encontrado.
Agora, entretanto, quando mais necessitava de apoio, dela recebera somente frieza e desinteresse! Que estaria acontecendo de facto?
Com tais pensamentos, Ben Hanan deixa o palácio onde viviam os soberanos espanhóis e busca a residência de Yaacov Shlomo, que o aguardaria, juntamente com o rabino Mordechai Hagiz.
Neste comenos, na sala de audiências do Alcácer, as impressões que Ben Hanan tivera sobre o frio tratamento que a rainha lhe dispensara, havia pouco, tinham, efectivamente, reais fundamentos.
− Aconselhai-nos, então, Conde de Sepúlveda, que todos os judeus que desempenham funções no governo devem ser por nós sumariamente desligados? – pergunta a rainha de Castela a um dos seus conselheiros.
− ¡Pero que sí, Majestad! − responde o homenzinho atarracado, de nariz extremamente adunco. – Doravante não mais se conceberão funcionários judeus ou mouriscos no governo, se vamos proscrevê-los todos do solo espanhol! Seria uma incoerência!... E, além do mais, far-se-ia temeroso deixar-lhes qualquer tipo de poder às mãos! E não credes que, uma vez ocupando cargos importantes no governo, não poderiam eles disso se aproveitar, com o propósito de descumprirem ordens e decretos contra eles editados?... Isso seria, deveras, perigoso, Senhora!...
− Tendes toda a razão, Conde de Sepúlveda! – concorda a rainha. – Ainda hoje, decretaremos a exoneração de todos os judeus e mouros que ocupam cargos e funções no nosso governo!
Se vamos promover a limpeza, comecemos por essa!
Neste comenos, Ben Hanan, extremamente triste, chega à residência de Yaacov Shlomo.
− E então, Ben? – pergunta Yaacov, ao recebê-lo à porta da casa. – Como foi com a rainha?
− Nada feito, Yaacov! – diz Ben Hanan, com um suspiro pejado de desolação. − A rainha mal falou comigo!
− O quê? Recusou-se ela, então, de ouvir-te? – pergunta o ourives, com os olhos espantados.− Não, não! – responde Ben Hanan. – A rainha recebeu-me, mas sequer quis ouvir-me direito! – e, depois de emitir longo suspiro, prossegue: − No fundo, percebi que existem outras coisas embutidas nisso, Yaacov.
− O que achas que se encontra escondido nessa recusa da rainha em ouvir-te direito?
− A perseguição aos de nossa raça, Yaacov! – diz Ben Hanan. – Nada justificaria tal frieza da rainha para comigo!
− Diz-me, Ben, essa inusitada indiferença da rainha para contigo acaso não teria tido origem no fato de lhe teres contado sobre a prisão dos nossos filhos? – pergunta Yaacov.
− Não!... – responde o outro. – Isso de modo algum justificaria a frieza incomum com que ela me tratou! A rainha sempre me teve em alta conta! Existirão, por certo, coisas mais sérias por trás disso!
Insisto: na verdade, D. Isabel sequer dignou-se a ouvir o que eu tinha a dizer-lhe!
− Então a coisa faz-se séria, mesmo! – observa Yaacov Shlomo.
– E o que achas que devemos fazer agora?
− Se me permitis um conselho – atalha o rabino −, acho que deveríeis ambos constituir um advogado, o mais breve possível.
Agindo dessa maneira, ao menos, intentareis pleitear um colóquio com os vossos filhos, com o propósito de ouvirdes deles o que de fato se passou!
− Tendes razão, Senhor! – diz Ben Hanan. E se voltando para Yaacov: − Façamos isso, sem mais delongas!
Imediatamente, acompanhados do rabino, Ben Hanan e Yaacov saem, em busca de famoso advogado de Toledo.
Neste comenos, na mansão arquiepiscopal, D. Aníbal Velásquez recebia a visita de seu particular amigo, D. Fernán Guillén.
− E então, mi amigo, a quantas anda o teu malfadado caso de amor? – pergunta o advogado a D. Aníbal.
− Parece que tudo se encaminha da forma como previmos, D. Fernán! – exclama D. Aníbal, a abrir um sorriso pejado de confiança.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 6 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 10:14 am

– Os três acham-se presos nas masmorras do Tribunal, e tão somente aguardava a tua chegada, para nos avistarmos com D. Torquemada!− Perfeito, D. Aníbal! – diz o outro, a mostrar-se assaz contente.
– Mas, antes de irmos ao Tribunal, precisamos combinar algo: já temos oficializada a denúncia contra Maria de los Milagros, por tentativa de homicídio; entretanto, ainda nos faltam fundamentos mais concretos, para efectivarmos a acusação contra os outros dois.
Afirmo-te que simples acção de cumplicidade na fuga de um procurado pela justiça não nos dará direito de pedir a prisão de ninguém! Qualquer advogado de Toledo poderá requerer-lhes a liberdade, com a maior facilidade!
− Nesse caso, o que sugeres, então? – pergunta D. Aníbal.
− Pensei o seguinte: temos de formalizar uma denúncia não somente contra os dois rapazes, mas contra a família deles todos!
Os pais de Milagros e o pai de seu noivo! – e a abrir um sorriso: − Acaso não na queres livre para ti?... E, para tal propósito, teremos de dar um jeito no noivo, não achas?
− Sim! – responde o outro. E a mostrar-se assaz interessado: – Mas como faremos isso? Não te esqueças de que o pai de Milagros é muito rico, e que o pai do noivo é secretário da rainha!
− Ora, acaso esqueceste que eu também quero morder bom naco dessa carniça? – observa D. Fernán. – Tu, certamente, contentar-te-ás com a tua amada; eu, entretanto, como não vivo de uma só mulher, pois me apaixonei por todas, de antemão, só preciso de ouro, muito ouro, para conservar-lhes, permanentemente, sua atenção sobre mim! – e a emitir fundo suspiro, emenda: − Tu nem imaginas o quanto é dispendioso manterem-se, concomitantemente, três ou quatro amantes, meu caro!
D. Aníbal Velásquez limita-se a sorrir, diante da facécia do amigo. E, depois de alguns instantes, pergunta:
− E como pretendes dar o teu bote?
− Disseste que o pai de Milagros é um judeu muito rico. E daí?
Pelo que sei dos fundamentos da limpeza que os reis e o Tribunal
propõem-se fazer, todos os judeus, indistintamente, serão proscritos do solo espanhol! E qual será a alegação para que se lhes dêem caça? Uma simples denúncia de que todos eles praticam o Judaísmo às ocultas!− Mesmo os que são judeus conversos? – pergunta D. Aníbal. – Não te esqueças de que poderão alegar, no Tribunal, que são cristãos e, em assim sendo, não poderão ser proscritos, ao menos legalmente!
− Ora, deixemos de hipocrisias, D. Aníbal! – retruca o advogado.
– Ninguém mais, neste reino, crê nessa besteira! E tu também sabes, muito bem, que todos os marranos e mouriscos nunca deixaram de praticar a sua crença às escondidas! Apenas se tem tolerado, até então, porque sempre se achou que a vivência dessa corja, entre nós, era indispensável, pelos bons ofícios que praticam e pelos conhecimentos de medicina que detêm!... Mas o tempo provará que não precisamos deles! Os espanhóis seremos capazes de produzir tudo o que precisamos! Disso eu tenho certeza. Aliás, a necessidade forçar-nos-á a desenvolvermos as nossas potencialidades!
− Disso tens toda a razão! – concorda D. Aníbal. – Mas volto a insistir: não crês que o pai de Milagros poderá usar o seu ouro para corromper as autoridades e ter a filha livre, em pouquíssimo tempo, e o pai do seu noivo, certamente, apelará para a rainha, valendo-se da posição que ocupa no governo?
− Oh, garanto-te que isso que argumentas não funcionará nesse caso, meu caro! – diz o outro, a rir-se ufano. – Não com D. Torquemada à frente! Por que tu achas que a rainha nomeou-o chefe da Inquisição?
− Porque o conhece muito bem! – responde D. Aníbal. – Não é à toa que o mantém como confessor há tanto tempo! D. Isabel conhece-o muitíssimo bem...
− E ele ainda mais à rainha... – emenda D. Fernán, cheio de ironias. – Tanto que podes concluir quem seja, de fato, que anda a manipular os rumos que o reino toma...
− Ao menos nas questões da Igreja...
− Com toda a certeza deste mundo velhaco!... – e se ri, com vontade: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Mas e então, o que farás? – pergunta D. Aníbal.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 10:14 am

− Simplíssimo, meu caro! – responde o outro. – Denunciaremos todos como praticantes do Judaísmo, mesmo sendo cristãos conversos!
− Aliás, já é o que vem acontecendo, com as famílias judaicas mais eminentes de Toledo! – diz D. Aníbal. – E eu soube, ainda ontem, por fonte mui segura, que já se coordena, no Tribunal, uma acção de prisões em massa!
− Sob a acusação de prática do Judaísmo! – exclama D. Fernán.
− Sim!
− E por que achas que eu me proponho a fazer tal denúncia contra as duas famílias?... Porque também eu já me inteirei desse facto, dias atrás! Fiquei sabendo, como tu, que se arma uma acção de surpresa, de grande monta, com o propósito de gerar pânico e confusão entre a massa marrana e moura! Isso posto, certamente, ficarão desesperados, tentarão defender-se e, obrigatoriamente, terão de optar por duas possibilidades: ou fugirão daqui, como ratos afrontados, ou, então, procurarão armar-se, enfrentando os esbirros do Tribunal! Se confrontarem as forças do Tribunal, serão esmagados como vermes!
− Além do mais, terão, também, que enfrentar os espanhóis todos! Ou achas que os padres já não vêm, há muito tempo, semeando a sublevação do povo contra os marranos e os mouriscos? Ao menos, essa foi a ordem dada pelo arcebispo...
− E podes ter a certeza de que os senhores vigários andaram a desenvolver a sua tarefa muito bem, em suas respectivas paróquias... Estou a par disso, pois costumo ouvir missa não na catedral, como tu fazes, mas na igrejinha perto da minha residência...
− Então assim faremos! – exclama D. Aníbal. – Denunciaremos os familiares de Milagros e do seu noivo como praticantes do Judaísmo às ocultas!
− E, de antemão, advirto-te: isso não será surpresa nenhuma para D. Torquemada, queres apostar?
− Não duvido de ti, meu caro! Não duvido!... – e, com um gesto, convida o amigo a irem-se.
_______________________________________________________________________________________________________________
188. “− Senhora!... Senhora!...”, em hebraico.
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