LUZ ESPÍRITA
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 10:27 am

− Não está aqui! – brada Sara, cheia de revolta, ao ver que aqueles soldados brutos reviravam e quebravam, propositadamente, toda a mobília da sua casa. – Por que eu iria esconder a minha filha, se nem sabia que ela estava livre?
− Mentes, ordinária! – exclama o notário, a torcer, violentamente, o braço de Sara. – Vamos, diz-me logo onde está a marrana bruxa, ou te arrancarei fora o braço!
− Deixa-me, maldito! – grita Sara, a gemer de dor, diante da tortura que lhe aplicava o notário.
Por fim, depois de várias horas a vasculhar, minuciosamente, a casa, os soldados deram por encerrado o trabalho e deixaram, atrás de si, apenas destruição e ruínas.
− Minha casa!... – geme Sara, deixando-se cair de joelhos, diante de tanta desgraça. – Que farei agora?
Em pouco, o notário estava de volta ao Tribunal.
− Então, nada conseguistes encontrar? – pergunta D. Torquemada.− Nada, Senhor! – responde o notário. – Naquela casa, a bruxa não se encontra, com toda a certeza, pois nada escapou à nossa busca!
− Então, usaremos os nossos métodos de interrogação! – diz D. Torquemada. – Fazei cá trazerem o pai da bruxa!
Em pouco, Yaacov Shlomo estava diante do inquisidor-geral de Toledo.
− Já vos disse que sequer sabia que a minha filha se tinha evadido daqui, Senhor! – exclama o ourives, a responder a pergunta que D. Tomás lhe fizera.
− E tu manténs a teimosia, marrano! – exclama D. Tomás, a impacientar-se. – Mas, hoje, amoleceremos a tua língua, porco! – ameaça ele. E a abrir um sorriso pejado de cinismo, pergunta: – Acaso sabes o que fazemos com gente renitente como tu?... Não?...
Então, logo saberás! – e ordena aos soldados: − Conduzamo-lo aos subterrâneos!
Fortemente manietado, Yaacov nem pôde resistir e se deixou conduzir pelos soldados: D. Torquemada ia à frente do extravagante cortejo, de olhos semicerrados, e, dentro das mãos juntadas, levava rico rosário de pedras brilhantes, presente que recebera da rainha, D. Isabel.
Os subterrâneos do Tribunal já chocavam à primeira vista; tratava-se de ambiente escuro e frio, e uma série de bizarros instrumentos de tortura espalhava-se por todo o local: o triturador de cabeça227, a dama de ferro228, a mesa de evisceração229, o berço de Judas230, a roda231, o corta-joelhos232...
− Yavé santíssimo! – murmura Yaacov, ao perceber os terríveis instrumentos de tortura tão temidos por todos.
− Tens preferência por algum destes? – pergunta D. Torquemada. E, com grande cinismo à voz, diz: − Olha que te deixo escolher um deles!
− Que pretendes, Senhor? – brada Yaacov, altamente indignado.
– Sequer ainda fui julgado por este Tribunal!
− E, acaso precisas de julgamento, marrano? – rebate o inquisidor-geral. – Já te achas condenado, de antemão, por crime de corrupção, insolente! – e, aproximando-se mais do ourives, aplica-lhe tremendo soco à boca e emenda: − Isto é para que aprendas a responder tão-somente o que te perguntarem! – e se voltando para dois carrascos que ali estavam de prontidão, ordena: − A roda!... Atai-o à roda!
Um calafrio intenso percorreu a espinha de Yaacov Shlomo! Ele sabia muito bem o que era a roda!
− Que quereis saber de mim? – pergunta ele a D. Torquemada, ainda antes que o atassem à cruz de madeira.
− Onde se esconde a tua filha bruxa, marrano? – pergunta o inquisidor-geral, aproximando, ostensivamente, o rosto, quase a tocar com a ponta do nariz, a face de Yaacov Shlomo.
− Como posso saber? – responde o judeu. – Acaso eu não estava preso?
− Ah, deves saber, sim! – diz D. Torquemada, com estranho brilho aos olhos. – Vós, marranos, sempre sabeis das coisas... – e, faz sinal para que os algozes prendessem Yaacov à cruz.
− Por Yavé santíssimo, não façais isso! – implora Yaacov, enquanto lhe prendiam, truculentamente, os membros todos aos quatro braços do horripilante instrumento de tortura.
− Ah, queres ver-te livre daí? – diz D. Torquemada. – Então basta que me digas onde se escondeu a tua filha bruxa!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 10:27 am

− Já vos disse: não pude saber para onde foi a minha menina!
− Talvez isso te faça lembrar! − e, com a cabeça, faz significativo sinal a um dos algozes que trazia pesado maço de ferro à mão.
O carrasco levanta a pesadíssima maça e desfere violento golpe à perna do pobre homem, à altura da coxa.
Um grito lancinante, então, ecoou pelos frios subterrâneos do Tribunal da Inquisição de Toledo. O tecido de lã do calção de Yaacov, repentinamente, tingiu-se de rubro, e o pobre, diante de dor tão intensa, imediatamente, perdeu os sentidos.
− Água! – grita D. Torquemada. – Atirem-lhe água às fuças!...
Fazei-o despertar!
Mediante a catadupa de água gelada que o carrasco atirou-lhe ao rosto, Yaacov recobra os sentidos. A dor que lhe advinha da perna estraçalhada era inominável. Contraiu, violentamente, o rosto, diante do inominado sofrimento que lhe impingiam.− Por Yavé santíssimo! – implora ele. – Nada posso dizer-vos porque não sei onde está a minha filha!
− Ah, uma das pernas não foi suficiente? – exclama o inquisidor geral e faz sinal ao carrasco que desce, com toda a fúria, a pesada maça sobre a outra perna do pobre judeu.
Yaacov, então, diante de outra insana agressão, não suportou:
perdeu, novamente, os sentidos.
− Desgraçado! – grita, estentóreo, D. Torquemada. – Água!... Fazei-o recobrar os sentidos!
Um dos carrascos, apressadamente, atira mais água gelada ao rosto de Yaacov. Entretanto, o esperado não aconteceu: o homem sequer se mexeu.
− Acorda, desgraçado!... – grita o inquisidor-geral, a bater, furiosamente, com a mão, à face de Yaacov. – Vamos, maldito marrano, dize onde escondeste a tua filha bruxa!
Entretanto, o supliciado não reagia, e D. Antón Ganzáles, o notário, que assistia calado ao interrogatório, a um canto, aproxima-se.
– Deixai-me ver, Senhor – diz ele e apõe o ouvido ao peito de Yaacov e o ausculta, com atenção. − O coração não mais bate! – exclama ele, após o minucioso exame. − O maldito não aguentou!...
− E agora, como vamos saber sobre o paradeiro da bruxa? – pergunta D. Tomás.
− Esquecestes, Senhor, que temos outros prisioneiros ligados a este caso? – observa o notário.
− Tendes razão, D. Gonzáles. – concorda o inquisidor-geral. E ordena aos esbirros que guardavam a porta do recinto. – Trazei-me cá o moço marrano que se acha encarcerado, o noivo da bruxa!
Aquele um é jovem e forte e aguentará bem o interrogatório!
− E o que faremos com este cadáver? – pergunta o notário a D. Torquemada.
− Mandai que o sepultem numa vala comum − ordena o inquisidor-geral. Depois, quando iam retirar o cadáver: − Um momento! – grita ele. − Acaba de ocorrer-me uma ideia!... D. Gonzáles, ordenai que larguem o infeliz diante da casa da viúva! Esses sustos costumam causar grandes impressões nessa gente desgraçada!
Depois de algum tempo, Andrés é apresentado a D. Tomás, que já estava de volta ao salão de audiências do Tribunal.
− Tu és o noivo da bruxa maldita, não? – pergunta ele, directo.
− Não sei a que bruxa vós vos referis, Senhor – responde o jovem. – De minha parte, não conheço nenhuma bruxa!
− Como não conheces, marrano maldito? – grita o inquisidor geral, furibundo. – A que se achava presa contigo!
− Maria de los Milagros não é bruxa, Senhor! – responde Andrés, firme. – Isso vos posso garantir!
− Garantir!... Garantir!... – repete D. Torquemada, com ares cínicos. – Acho que sequer podes garantir mais os imundos calções que usas, desgraçado! – e a rilhar os dentes de raiva, prossegue: − Pela derradeira vez, vou perguntar-te: onde é que se escondeu a maldita bruxa marrana, imbecil?
− Não sei dizer, Senhor – responde o jovem judeu. – Sequer sabia que ela havia fugido!
− Está bem: tiveste a tua chance! – e se voltando para os esbirros que se achavam a postos, ordena: − Aos subterrâneos!...
Conduzi o prisioneiro aos subterrâneos!
Em pouco, o jovem deu-se conta do local onde se encontrava e, à visão das terríficas máquinas de tortura, sentiu tremendo mal-estar, pois o imaginário popular descrevia aquelas demoníacas engenhocas como monstruosas, a proporcionarem dores inominadas às vítimas ali supliciadas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 10:27 am

− Que ireis fazer comigo? – pergunta o jovem, a encher-se de apreensões.
− Dependerá tão-somente do que sair da tua boca, marrano! – responde D. Tomás. E, voltando-se para o notário, pergunta-lhe: − D. Gonzáles, o que sugeris?
− Não a cruz e a roda juntas, pois o jovem marrano poderá sucumbir logo e, então, perderemos as nossas fontes todas, porque o velho que restou, certamente, suportará bem menos que o outro que já se foi! – e explode numa gargalhada: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...− Sem chistes, D. Gonzáles! – observa D. Tomás, azedo. – A cruz e a roda, de fato, poderão matá-lo, antes da hora, pois presumo que este um deverá ser mais pertinaz que uma toupeira!... Então, ponhamo-lo ao triturador de cabeça!
− Pois eu sugiro a roda, sem a cruz! – sugere o outro. – Somente a roda, a estendê-lo devagar, volta a volta!...
− Perfeito, D. Gonzáles! – exclama o inquisidor-geral, com um brilho de loucura aos olhos. E, voltando-se para os dois algozes, ordena: − Somente a roda!... Atai-o à roda!
− Por que fazeis isto? – grita Andrés, a debater-se, mas logo contido, firmemente, pelos dois fortes carrascos que, a seguir, desnudaram-no, com desmedida grosseria, e o ataram com correias de couro cru, pelos quatro membros, estirando-o sobre a tétrica mesa de torturas.
− Agora que estás tão comodamente instalado, marrano, abre lá a tua boca e diz-nos: onde se meteu a bruxa? – pergunta D. Torquemada.
− Não sei dizer, Senhor! – responde o rapaz, a encher-se de aflições. – Nem não sabia que ela havia fugido!
− Mentes, desgraçado! – grita o inquisidor-geral. E com a cabeça, faz um sinal ao carrasco que empunhava a alavanca da roda.
O algoz, então, com os braços possantes, puxou a haste da manivela, e os membros de Andrés retesaram-se, de pronto, causando-lhe forte ardência aos músculos todos do corpo, ao mesmo tempo em que suas costas feriam-se fundo nas farpas de ferro afiado que surgiam de estreitas frestas da mesa de tortura, ao movimentar da alavanca de estiramento.
− Por misericórdia! − brada o jovem, diante do extremo desconforto que o primeiro estiramento causara-lhe, além da dor lancinante que lhe advinha das costas feridas. – Nada sei sobre Milagros!...
− Ah, sabes, sim! – diz D. Tomás. – E vais dizer-nos! – e faz novo sinal ao carrasco.
− Yavé sagrado! – grita o rapaz, em desespero, pois a dor que sentira, ao novo estiramento, era-lhe insuportável.− Então, tu te lembraste de onde se esconde a bruxa? – volta a perguntar D. Tomás.
− Não sei, Senhor!... Por misericórdia, libertai-me! – grita o rapaz, em desespero extremo.
− Vamos devagar, D. Tomás! – interfere o notário, antes que o outro ordenasse mais uma volta na manivela. – Vamos devagar, ou ele sucumbirá antes da hora!
− Tendes razão, D. Gonzáles! – concorda D. Torquemada. – Por ora, deixemo-lo aí, a esticar-se. Assim, terá bastante tempo para reflectir!
D. Torquemada e o notário deixam o local, e Andrés permanece preso à roda, vigiado pelos dois carrascos. A dor que sentia era extrema, e a língua colara-se-lhe ao céu da boca pela sede intensa que sentia. Com a voz fraca, implora por água.
− Ah, queres água, marrano? – pergunta, irónico, um dos algozes. E, a rir-se, lança volumoso jacto de cuspe à face de Andrés.
– Aí tens: mata a tua sede!... – e se ri debochado: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
A situação de Andrés era desesperadora. A dor lancinante que lhe advinha dos membros retesados era insuportável. Seus punhos e seus tornozelos, firmemente atados pelas correias estiradas, sangravam e lhe era totalmente impossível esboçar qualquer movimento.
Porém, a meio de tanta dor, busca a lembrança de Milagros e, à mente, vem-lhe o angelical rosto da noiva querida.
− Ao menos tu escapaste, meu amor! – murmura ele, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo canto dos olhos. – Eu sei que tu sobreviverás!...
As horas coavam-se, devagar. Andrés agarrava-se à lembrança da amada, com o propósito de suportar o insano suplício que lhe infligiam os inquisidores. Entretanto, a dor e a sede que sentia eram insuportáveis. E, somente quando a tarde agonizava, foi que um dos algozes deitou o conteúdo de uma moringa d’água sobre o rosto do rapaz que, quase nada pôde sorver do precioso líquido, a não ser quantidade mínima que permitiu aliviar-lhe um pouco a secura dos lábios e da língua. Já à noitinha, D. Tomás e o notário retornaram aos subterrâneos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 10:27 am

− E então, marrano, já tens uma resposta a dar-nos? – pergunta o inquisidor-geral.
− Já vos disse, Senhor: nada sei sobre o paradeiro de Milagros! – fala o rapaz, com a voz fraquíssima.
− Mais uma estirada à roda e te lembrarás, com certeza! – diz D. Tomás e ordena que se girasse a roda.
− Por Yavé! – grita Andrés. Desta vez, o solavanco foi tão forte que lhe deslocou um dos tornozelos.
− E então? – insiste D. Torquemada. – Lembraste?...
Mas não obteve resposta: Andrés não suportara a dor terrível e desmaiara.
− Perdeu os sentidos, Senhor! – exclama o notário, após examinar as pálidas feições do rapaz.
− Que lástima! – resmunga D. Torquemada. – Mas, deixemo-lo descansar. Amanhã reiniciaremos tudo de novo!
Enquanto essas coisas aconteciam nos subterrâneos do Tribunal, o corpo de Yaacov, envolto em grosseiro pano de aniagem, fora largado diante da casa onde ainda vivia Sara. E fora Yitzhak, o jovem criado, que, na manhã subsequente, saindo para ir ao mercado, percebeu o estranho volume depositado diante do portão e, enchendo-se de curiosidade, foi verificar o que era.
Ao abrir a boca do grande saco, deu longo salto para trás, horrorizado.
− Por Yavé sagrado! – gritou ele. – É o patrão!... E está morto!
Ligeiro, retornou para casa aos gritos.
− Que gritaria é essa, Yitzhak? – ralhou Sara. – Parece que estás à beira da morte!
− O patrão!... – exclamou ele. – Lá fora!...
− Yaacov?... – gritou Sara, com os olhos a iluminarem-se e a se encherem de lágrimas. – Onde o viste?... Vamos, fala, Yitzhak!
− Lá fora, Senhora, na rua!... E está...
− Está o quê?... Vamos, fala!... – e, diante da palidez e da mudez do jovenzinho: − Ora, deixa para lá!... És um parvo mesmo!... – e, apressada, dirigiu-se para a entrada da casa. Ao se deparar com o cadáver do marido, terrivelmente mutilado, Sara emitiu tremendo grito de dor e rasgou parte da roupa. Depois, devagar, caiu de joelhos e, em prantos, deitou-se sobre o chão da rua e se pôs a rolar, como uma insana. E, por longo tempo, chorou e lamentou a morte do esposo.
− Senhora, levemos o corpo do patrão para dentro! – disse um dos criados da casa, acocorando-se ao lado de Sara. – Está muito quente aqui!
Com um sinal de cabeça, Sara aquiesceu, e três dos criados apanharam o corpo de Yaacov e, pondo-o aos ombros, carregaram-no para dentro da casa.
− Yitzhak, corre à casa do rabino e lhe peça para vir cá, a ter comigo! – ordenou Sara ao jovem criado. – É necessário preparar o corpo para o velório.
Em pouco, o criado estava de volta, em companhia do rabino Mordechai Hagiz.
− Que desgraça, Sara! – exclamou o rabino, abraçando-se à viúva. – Como foi que isso aconteceu?
− Assassinaram Yaacov, D. Hagiz! – disse Sara, em pranto. – E deixaram o corpo aí, diante da casa!
− Infelizmente, é o que acontecerá a todos nós, minha cara, se não partirmos logo daqui! – observou o rabino. – E tiveste notícias dos teus filhos? Sabes se já se encontram instalados em Madrid?
− Nada sei, ainda, D. Hagiz! – respondeu a mulher. – Os pobrezinhos ainda desconhecem que não têm mais o pai!
− Estive a pensar, Sara, enquanto para cá me dirigia – disse o rabino. – Agora, que nada mais te prende por aqui, penso que deves também partir, a juntar-te aos teus filhos.
− Sim, D. Hagiz – concordou Sara. – Nada mais me prende cá; vou, imediatamente, ao encontro dos meus filhos!
− Assim que sepultarmos o corpo de Yaacov, tu deverás partir; deixa a meu encargo resolver as questões da venda do resto dos teus bens. Fica sossegada, que eu mesmo levarei o dinheiro para ti, em Madrid. E, de lá, devereis fugir para Portugal, o mais rápido possível, antes que recapturem os teus filhos!− Assim farei, D. Hagiz! – disse Sara, um pouco mais resignada, diante da brutal vicissitude por que passava. Tão logo sepultemos o corpo do meu querido Yaacov, eu partirei!
Yaacov foi imediatamente sepultado, logo após o ligeiro velório, como era costume entre os judeus, e Sara, em retornando a casa, pôs-se, imediatamente, a arrumar tudo o que lhe era indispensável para a viagem. Aguardaria em Toledo tão-somente aquela noite e, na manhã seguinte, pretendia partir, mesmo antes de o sol nascer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 10:27 am

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227. Instrumento de tortura preferido e aperfeiçoado pelos espanhóis. A cabeça do inquirido era colocada sob uma espécie de capacete de ferro, sobre o qual existia uma rosca sem fim, a ser manejada por uma manivela que pressionava, a cada volta do parafuso, contrapondo com o queixo, apoiado numa barra transversal, e alguns modelos desse horrendo instrumento tinham recipientes especiais para os globos oculares, enquanto o crânio era lentamente esmagado.
O primeiro a quebrar era o maxilar, e culminava com a morte da vítima, após dores lancinantes, causadas a cada aperto da manivela. O cérebro, às vezes, depois de cruelmente esmagado, escorria pelo nariz, ou pelas orelhas.
228. Câmara de madeira ou de ferro, com uma tampa, cheia de pregos e superfícies pontiagudas, que continha um visor, à altura dos olhos, para que se pudesse interrogar a vítima. Os pregos de dentro da dama de ferro não atingiam os pontos vitais, com o intuito de atrasar a morte do torturado. Normalmente, as regiões furadas eram os olhos, braços, pernas, barriga, peito e nádegas.
229. Espécie de mesa sobre a qual o torturado era deitado, com os pés e mãos imobilizados, e, logo acima desse tétrico instrumento de tortura, existia uma manivela com espinhos. O carrasco fazia uma incisão na altura do estômago da vítima e, com um gancho preso a uma corrente, era pinçado um pedaço do intestino que era preso à manivela. Aos poucos, a manivela era girada, e o intestino era enrolado nela.
230. Apetrecho em forma de pirâmide, feito de ferro e sustentado sobre quatro pés. A vítima era colocada despida, com os orifícios naturais baixos sobre a ponta pontiaguda da pirâmide, e era lentamente baixada através de cordas amarradas a ela e, aos poucos, girada sobre o eixo do berço de Judas. Para maior efeito, costumavam amarrar pesos às pernas dos inquiridos.
231. O suplício da roda consistia em, primeiramente, atar o supliciado a uma armação de madeira, espécie de cruz em forma de X, e quebrar-lhe os membros com uma maça e, em seguida, atar o corpo a uma roda, que se fazia girar, esticando esses membros esfacelados, causando dores inomináveis à vítima.
232. Eram duas grossas peças de madeira, colocadas paralelas uma à outra, em cujos lados interiores havia duas fileiras de garras curtas e pontiagudas; as duas traves eram ligadas entre si por dois grossos parafusos de roscas sem fim. Os joelhos do acusado eram colocados no meio dessas garras, para serem esmagados lentamente. Comumente, o aparelho era aquecido, para aumentar ainda mais a dor da vítima. Também outras partes do corpo eram colocadas nas garras, como os pulsos, cotovelos e braços.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 10:28 am

Capítulo XXIX. Suplício de um prisioneiro
Ao cair da noite, nos subterrâneos do Tribunal, Andrés seguia a suportar o seu martírio, estirado sobre a roda de suplícios.
Dois esbirros mantinham guarda, a jogar dados, enquanto o jovem judeu, a sofrer dores acerbas, continuava atado, fortemente, à aterradora máquina de torturar. Devagar, as horas coavam e, noite alta, cansados, os soldados acabaram por dormir, recostados à parede.
O pensamento do rapaz era uma fornalha: onde estariam Milagros, o pai, os outros?... Estariam vivos?... O rosto da noiva, então, desenha-se-lhe vivo à mente.
− Oh, meu amor!... – murmura ele, com os olhos rasos de lágrimas. – Será que, efectivamente, conseguiste fugir?
Nesse comenos, algumas ratazanas enormes foram surgindo
diversos buracos existentes ao rodapé das paredes de pedras e, juntando-se, a chiar, sinistramente, começaram a farejar o ar, sistematicamente.
Os ratos, açulados pelo cheiro do sangue que ainda minava do dorso nu, dos punhos e dos tornozelos feridos de Andrés, subiram-lhe ao corpo e puseram-se a lamber-lhe, avidamente, os ferimentos.
Aqueles enormes e asquerosos bichos, então, principiaram a sugar-lhe, avidamente, as chagas e, quando o sangue minguou, com os dentes afiadíssimos como navalhas, as ratazanas imundas começaram a arrancar pequenas lascas de carne viva dos ferimentos do rapaz. Não suportando a dor inclemente, Andrés pôs-se a gemer e a gritar alto. Os soldados acordaram-se com os lamentos do rapaz e, altamente incomodados, aplicaram-lhe alguns sopapos e voltaram a dormir, pouco se importando com o rapaz e com os ratos imundos que o atacavam, impiedosamente.
Assim, fazendo esforço hercúleo para não sucumbir, Andrés suportou o terrível ataque dos bichos ascosos que se fartaram de roer-lhe os ferimentos, até que os primeiros albores da madrugada coaram-se pelas grades da grande cela onde se instalava a tétrica sala de tortura do Tribunal da Inquisição de Toledo.
Nesse momento, os soldados acordam-se e, percebendo o grande estrago que os bichos haviam causado aos ferimentos de
Andrés, trocam-se olhares de espanto.
− Os ratos fizeram a festa, esta noite! – diz um deles.
− Este um é bem forte, pois não sucumbiu aos “torturadores” da noite! – exclama o outro soldado e gargalha cinicamente: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Trabalharam esses com bem mais afinco que aqueloutros! – observa o primeiro e também se ri desbragadamente.
− Olha cá este tornozelo! – aponta o segundo guarda, com um esgar de espanto. – Os ratos roeram-no até os ossos!
− Ui, credo em cruz! – exclama o outro, persignando-se, horrorizado. – Bichinhos ferozes!
− Se não! Cuidemos cá, nós outros, para que não venham essas pestes roerem-nos enquanto dormimos!
− Mormente às vezes em que estivermos com a cabeça cheia de grapa!
− Tens razão! Bem amortecidos é que, às vezes, vamos dormir!
E esses bichinhos são de morte! Ai!...
Neste momento, chegam ali D. Torquemada, seguido do notário e dos dois algozes.
− Como passamos a noite? – pergunta o chefe da Inquisição, aproximando-se do pobre rapaz que, quase morto, respirava com grande dificuldade, premido pela dor extrema.
− Nada responde ele, D. Tomás – diz o notário, examinando o supliciado. – Acha-se mais morto que vivo!− E que novos ferimentos são esses? – pergunta D. Tomás aos dois algozes que ora retomavam o posto. – Não vais dizer-me que andastes a trabalhar pela noite afora!
− Não fomos nós! – responde um dos algozes. – Quando saímos, ontem pela noitinha, não o deixamos assim.
− E vós? – pergunta o inquisidor-geral aos dois guardas. – Que dizeis sobre isso?
− Os ratos, Senhor! – responde um deles. – Esses bichos é que lhe fizeram tamanho estrago! E, se assim o deixarmos, os ratos darão cabo dele logo, logo!
− E acaso aqui não estáveis, com o propósito de espantardes esses bichos? – diz D. Tomás, furioso. – Se o prisioneiro morrer, vós me respondereis por isso!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 10:28 am

− É preciso que se monte guarda, a espantar os ratos, ou perderemos mais este prisioneiro, D. Tomás! − observa o notário. – Se ainda desejais descobrir o paradeiro da bruxa marrana!...
− Para mim, faz-se sumamente importante queimar essa maldita à praça, D. Gonzáles! – exclama o inquisidor-geral, nervoso. – E isso se me faz ponto de honra, pois essa desgraçada anda a passar-me a perna!
− Ah, esquecia-me de dizer-vos, Senhor! – exclama o notário, a bater à cabeça com a ponta dos dedos: − D. Aníbal Velásquez está morto!
− Morto?! – exclama o Inquisidor-geral, − Morto como?!...
− Assassinaram-no, anteontem, à noite, bem perto da mansão arquiepiscopal!
− Só poderá ter sido coisas desses malditos marranos! – exclama D. Torquemada, altamente estarrecido.
Ao ouvir o relato do notário, Andrés, subitamente, tem os olhos invadidos por intenso brilho de satisfação: o maldito causador de toda aquela desgraça, finalmente, já se achava no inferno e, no íntimo, apesar da intensa dor que sofria, sentiu-se satisfeito. “Agora posso ficar sossegado, pois Milagros não corre mais perigo, por esse lado!”, pensa ele, com uma lágrima a escorrer-lhe pelo canto do olho. “Que o Altíssimo lhe ilumine o pensamento, e ela consiga escapar para bem longe!...”− Estás a ouvir-me, marrano? – pergunta D. Torquemada, aproximando-se mais do rosto de Andrés. – Para que sobrevivas a estes tormentos, diz-me: − Onde se esconde a maldita bruxa que foi tua amante?
− Não sei, Senhor! – responde Andrés, com a voz bastante debilitada. – Se soubesse, já vos teria dito!
− Vais dizer-me, sim! – grita D. Tomás e ordena que dessem mais um giro à roda.
Um lancinante grito de dor ecoa pelos subterrâneos do Tribunal.
Diante de insano sofrimento, o rapaz perde os sentidos.
− Fazei-o acordar-se! – ordena o inquisidor-geral, altamente agitado. – Não tenho todo o tempo do mundo a perder com esse verme imundo!
Um dos algozes, então, apanha um recipiente com água fria e o despeja sobre o rosto do rapaz. Entretanto, ele não esboça qualquer reacção.
− Será que o desgraçado morreu? – observa o notário.
− Examinai-o, D. Gonzáles! – determina D. Torquemada. – Precisamos arrancar a confissão desse maldito, o quanto antes!
− Queimai-lhe a planta dos pés com o ferro quente! – ordena o notário aos algozes.
Entretanto, mesmo à terrível dor causada pelo ferro incandescente a queimar-lhe a pele dos pés, o rapaz reage.
− Nada, Senhor! – diz o notário. – Acha-se sem sentidos!
− Aguardemos que acorde, então! – diz D. Torquemada, sentando-se. E, apanhando o seu rico rosário ao bolso da batina, põe-se a rezar.
O tempo foi passando e D. Torquemada, de olhos semicerrados, mantinha-se a orar. Por fim, cansou-se e, apanhando, ele mesmo, o ferro que se achava a incandescer-se à frágua, num ímpeto, enterra-o ao peito do rapaz que, mesmo sob acção tão cruel, não esboçou mínima reacção. Estava morto...
− Mataste-lo, D. Tomás!? – pergunta o notário, espantando-se com a inesperada reacção do inquisidor-geral!
− Sim, este marrano estava a abusar da minha paciência! – e se voltando para os esbirros: − Trazei-me cá o velho que ainda resta! Aquele um foi secretário da rainha e deverá ter mais miolos à cabeça! – e a abrir um sorriso, prossegue: − Quem sabe não me dará pistas da bruxa, em troca da sua soltura?
Em pouco, os soldados traziam Ben Hanan que, à vista do cadáver do filho que se achava sem vida, ainda preso à roda de torturas, soltou um grito, pejado de dor.
− Meu filho!... Meu adorado filho! – exclama ele, com o peito a encher-se de dor lancinante. – Que fizestes a ele, malditos? – pergunta o judeu, tentando lançar-se sobre D. Torquemada, mas, imediatamente, foi contido pelos fortes esbirros.
− Também esse será o teu fim, marrano maldito, se não me disseres o que desejo saber! E, antes que também te coloque à roda, responde-me: − Onde está a maldita bruxa, que foi amante do teu filho?
− Não sei! – grita Ben Hanan! – E, mesmo que soubesse, não to diria, assassino maldito!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 10:28 am

D. Torquemada, então, num ato de fúria extrema, volta a apanhar o ferro que se incandescia à fornalha e, sem titubear, enterra-o, com toda a força, ao peito do antigo secretário da rainha de Castela que, a sentir dor insana à altura do coração, treme-se todo, num derradeiro espasmo, e sucumbe, imediatamente, ao covarde assassínio.
− Pronto! – exclama o inquisidor-geral. E convida o notário: − Vamo-nos, D. Gonzáles!... Deus haverá de trazer-nos a bruxa de volta às mãos!... Fé na Providência Divina é o que não me falta!...
Enquanto essas coisas ainda aconteciam, Andrés, já liberto das amarras da carne, vê-se espontaneamente livre da roda e, ainda sem nada entender do que lhe sucedia, percebe o seu cadáver preso à tétrica máquina e se intriga: como era possível aquilo?...
Percebia-se, perfeitamente, num corpo, mas lá estava outro – seu próprio corpo, quase irreconhecível, de tão mutilado! – jacente e atado ao infame aparelho de tortura!
− Que se passa comigo? – pergunta-se baixinho. Nesse comenos, percebe que os soldados traziam seu pai. – Pai! – grita ele, abrindo os braços e, aproximando-se, tenta abraçá-lo.
Entretanto, a sua acção torna-se vã, pois Ben Hanan pareceu não lhe perceber a presença. – Pai, sou eu, não me reconheces? – insiste ele.
− Meu filho!... Meu adorado filho! – vê o pai entrar em desespero extremo ao dar conta do seu corpo sem vida, estirado sobre a roda de tortura. E ainda, o pai, enchendo-se de fúria, tentando lançar-se sobre D. Torquemada e gritar, em prantos: – Que fizestes a ele, malditos?
− Pai, cá estou, vivo! – Andrés tenta chamar o pai à razão. – Não sei o que se passa, mas aquele sobre a roda não sou eu!
Entretanto, nesse ínterim, D. Torquemada, tomando da barra de ferro, finca-a, impiedosamente, ao peito de Ben Hanan. Andrés fica atónito e se lança sobre o pai, no intuito de ampará-lo, mas percebe que, logo que foi ferido, o corpo do pai é largado pelos esbirros que o dominavam e, depois de bater, fragorosamente, sobre o chão de pedras, uma nuvem brilhante e vaporosa surgiu, imediatamente acima do corpo sem vida, como num remoinho de cores vivas e, em alguns instantes, condensou-se e tomou, paulatinamente, forma semelhante à do cadáver.
Andrés assistia estarrecido àquele estranho fenómeno, mas, quando divisou a figura amorosa do pai a surgir-lhe, inopinadamente, daquela maneira, deu um grito de alegria:
− Pai, és tu?
Ben Hanan, ainda bastante aturdido pela extrema violência do desencarne, olhou amedrontado em derredor, aparentemente sem dar com a presença do filho.
− Onde estou?... – balbucia ele, com os olhos arregalados, ainda cheios de terror.
− Pai, não me reconheces? – Pergunta Andrés, abraçando-se ao pai e buscando ampará-lo.
− Que se passa, Andrés? – pergunta Ben Hanan, agora se dando conta do filho. – Que nos aconteceu?
− Presumo que estamos mortos, pai! – diz o jovem. – Entretanto, continuamos vivos!... Vê: lá estão o teu e o meu corpo, ao mesmo tempo em que estamos cá!
− Sim!... – exclama o judeu, assaz espantado. – Os malditos assassinaram-nos! Só tal fato pode explicar o que nos acontece!− Tens razão, pai! – concorda o rapaz. – Também eu já andava a cogitar sobre isso! Acabamos de ser assassinados, eu e tu!
E, por alguns instantes, ambos se examinaram calados e, depois, um ao outro, minudentemente.
− Na verdade, acho que não morremos, de fato – diz Ben Hanan.
− Sim, pois o que nos acontece é a prova disso! – concorda o rapaz.
− E, se estamos mortos, também estamos livres! – exclama Ben Hanan. – Vamo-nos daqui!
E, sem qualquer barreira a impedir-lhes os movimentos, pai e filho deixam, apressadamente, o tétrico subterrâneo do Tribunal da Inquisição.
Lá fora, a manhã ia avançada, e um maravilhoso céu estival abria-se.
− Aonde vamos, pai? – pergunta o moço.
− À nossa antiga casa – responde Ben Hanan. – Desejo matar velha curiosidade. – Vens comigo?
O rapaz aquiesce e segue o pai. Ao caminharem, sentiam-se bem mais leves que antes, e lhes pareceu que a distância encurtava-se enormemente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 10:28 am

− Não te sentes diferente, pai? – pergunta o rapaz.
− Sim – responde o outro. – Percebeste que, simplesmente, ao imaginar que desejávamos voltar a casa, e cá já nos encontramos?
− e convida: − Vem, entremos!
− Foi só num piscar de olhos e cá estamos! – observa o rapaz.
A casa estava em total silêncio. Nenhum dos antigos criados ali estava.
− Onde estará Juan? – pergunta Ben Hanan.
− Pepita! – grita conhecida voz. – Onde te meteste, desgraçada?
− Juan! – exclama Ben Hanan, ao ouvir a voz do antigo mordomo. – Vem, vamos ao seu encontro! Está no meu antigo gabinete!
− Pepita!... Ordinária, onde é que te meteste? – volta a chamar o mordomo.
Ben Hanan e Andrés vão encontrá-lo sentado à secretária, no luxuoso gabinete.− Vês?... Bem acomodado à minha secretária e a vestir as minhas roupas!... – observa Ben Hanan.
− E também usa o teu anel de rubi que ganhaste da rainha! – diz o rapaz. E a menear a cabeça, altamente indignado: – Que desavergonhado!
− Mas penso que não está a ver-nos! – exclama Ben Hanan. – Aliás, percebi que ninguém mais nos percebeu a presença!
− Então de que nos vale cá estarmos? – observa o rapaz. – Se ele não pode registar-nos a presença...
− Mesmo assim, ardo-me de curiosidade em saber o que foi feito dos meus bens! – diz Ben Hanan.
Nesse instante, a criada surge à porta do gabinete.
− Chamastes, Senhor? – pergunta a rapariga que aparentava ter uns dezassete anos.
− Cansei-me foi de berrar por ti, cretina! – responde o mordomo, com desmedida estupidez. – Serve-me cá um copo de vinho e, depois, ponhas-te de prontidão à chegada de Esteban. ¡Hoy debe traer las rentas de mi granja!233
− Mas que bandido! – exclama Ben Hanan. – Descaradamente, fez-se dono dos meus bens!... Vou dar-lhe uma lição! – e se lança, furiosamente, sobre o antigo mordomo, com o propósito de acertar-lhe alguns sopapos.
− Desiste, pai! – aconselha o rapaz. – Não percebes que não mais podes atingi-lo? Sequer nos regista a presença!
− Tens razão, filho! – concorda Ben Hanan, altamente desapontado. – Não posso mais atingi-lo com meus socos!
− Vamo-nos daqui, pai, pois presumo que, doravante, a nossa morada também deverá ser outra!
Ambos saem, em silêncio, deixando atrás tudo o que, um dia, pertencera-lhes.
− A vida, certamente, dará a Juan o pagamento que merece! – desabafa Ben Hanan, parando para olhar, uma vez mais, o majestoso palacete em que habitara por longos anos da sua vida.
− Pai – diz Andrés, enquanto deixavam o local, aparentemente, sem qualquer destino. – E Milagros?... Que será que foi feito dela?... – pergunta o rapaz, cheio de tristeza.− Como poderemos saber? – responde o outro. – Certamente conseguiu fugir, com a ajuda da mãe!
− Sara! – exclama o rapaz, animando-se. – Ela deverá saber onde Milagros esconde-se! Vamos para lá, pai!
Em pouco, achavam-se na antiga casa de Yaacov Shlomo.
Entretanto, logo adveio a decepção.
− A casa está vazia, pai! Não há mais ninguém por aqui! Foram-se todos! – exclama o jovem, altamente desolado.
− Sim, conseguiram escapar! – observa Ben Hanan. – Mas para onde poderão ter ido?
− Agora, ser-nos-á difícil descobrir para onde é que foram! – diz o moço, deixando-se tomar por pesado desalento.
− Não te deixes abater assim, Andrés! – exclama Ben Hanan, abraçando-se, ternamente, ao filho, procurando consolá-lo. – Deverá haver algum jeito de descobrirmos o paradeiro da tua noiva! – e se iluminando, depois de instantes: − O rabino!... D. Hagiz deverá saber onde se encontra Milagros!
Andrés reacende-se.
− Vamos, pai, depressa! – convida ele. Entretanto, mal se puseram a caminho, dúvida cruel abate-se-lhe ao peito: − Pai, adveio-me, de repente, um entrave ao nosso intento de achar Milagros: como poderemos falar ao rabino?... Esqueceste que estamos mortos?...
− Tens razão, filho! – diz Ben Hanan, estacando de pronto. – Os vivos não podem ver-nos!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 10:29 am

− É... – fala o outro, deixando-se abater, novamente. – Acho que nunca mais verei Milagros...
− Não! – exclama Ben Hanan. – Não poderemos desistir, mesmo sabendo que há esse pesado entrave entre nós e os vivos! Deverá haver um jeito de descobrirmos o paradeiro da tua noiva!...
Vamos!...
Em pouco, estavam na sinagoga. D. Mordechai Hagiz, o rabino, encontrava-se em seu gabinete, totalmente absorto, a ler pesado rolo da Torah234.
Entretanto, D. Hagiz não se encontrava a sós, pois, ao seu lado, duas venerandas entidades espirituais davam-lhe assistência. − Vê, pai – exclama Andrés −, há mais alguém junto a D. Hagiz!
− Sim e conseguem ver-nos, pois riem para nós e nos olham com simpatia! – concorda Ben Hanan. E convida: − Vem, aproximemo-nos!
− Que buscais? – pergunta um dos Espíritos.
− Senhor – adianta-se Ben Hanan −, precisamos falar ao rabino, para que nos dê informações sobre o paradeiro da noiva do meu filho!
− Falardes ao rabino, não será muito fácil, como bem já pudestes perceber, não é? – responde a Entidade Espiritual, com extremada bonomia. – Entretanto, descobrir onde se encontra a noiva do teu filho, não nos será difícil! – e, a concentrar-se, por instantes, e apondo as mãos sobre a cabeça de Mordechai Hagiz que, naturalmente, a essas coisas achava-se completamente alheio, a ler, com acentuada atenção, um trecho da Torah, o Espírito, logo depois, abriu um sorriso e disse: − Descobri onde se encontra a moça! Maria de los Milagros é o seu nome, não?
− Sim! – o rapaz, felicíssimo, apressa-se em confirmar. E, afoito, pergunta: – E onde está ela?
− Encontra-se em Madrid – responde o Espírito. – Se assim o desejardes, poderei levá-los até lá!
− Sim! – responde Ben Hanan. – Vamos!
Em pouco, mas em pouco tempo mesmo, estavam os três na bela cidade de Madrid235.
− Aqui vive, temporariamente, a tua noiva, juntamente com o irmão e a mãe, que se juntou a eles, ainda ontem – diz o Espírito, diante de singela hospedaria, localizada em rua secundária, escolhida, propositadamente, pelos fugitivos, por se localizar um pouco longe do centro da cidade.
− Oh, somos-vos muito grato, Senhor! – Andrés agradece, efusivamente, o Espírito que os guiara até ali.
A Entidade Espiritual vai-se, e o rapaz, premido pela grande ansiedade, adentra o vetusto edifício de pedras, à procura de sua amada.
E, com sofreguidão, varre os inúmeros aposentos da velhusca pensão, um a um, até que, muito emocionado, dá com amplo aposento onde se achavam os três: Maria de los Milagros, Benyamin e Sara.
− Então, pensas que deveremos aguardar o rabino, a trazer o resto do nosso dinheiro? – nesse exacto momento, perguntava Milagros à mãe que, tão recentemente deixara Toledo e se juntara a eles.
− O que temos em mãos não será suficiente para demandarmos Portugal, mãe? – pergunta Benyamin. – E se descobrirem o nosso paradeiro e voltarem a aprisionar-nos? Oh, se tiver que voltar àquela imunda prisão, prefiro a morte!
− Temos dinheiro, sim, meus queridos, mas não é muito! – explica Sara. – Se pretendemos seguir para Portugal, vamos precisar de bom capital de reserva para nos mantermos por lá!
− Além do mais, mãe, e Andrés e Ben Hanan que ficaram para trás? – pergunta a jovem. – Acaso não me disseste que tu e o rabino empenhar-vos-íeis em corromper os da guarda da prisão inquisitorial para que os libertassem?
− Sim, D. Hagiz prometeu-me que iria tentar libertar Andrés e Ben Hanan, com a ajuda do advogado Moshe Navon, o mesmo que conseguiu libertar-te, Milagros. Acho que devemos confiar neles, uma vez que são pessoas bastante capazes!
− Assim espero, mãe, pois eu jamais deixaria Castela, sem Andrés! – diz a moça, com firmeza à voz. – Preferiria a morte a perder o meu amor!
− Oh, querida! – exclama Andrés, aproximando-se da noiva e lhe acarinhando o rosto com a ponta dos dedos. – Aqui estou, meu bem, a teu lado!
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 9 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 7:33 pm

− Acho que ela não pode ver-te! – observa Ben Hanan. – Na realidade, ninguém pode ver-nos!
− Tens razão, pai! – diz o rapaz, um bocado triste, afastando-se da noiva. E, juntamente com o genitor, põe-se a um canto do aposento, a observar os três que continuavam a conversar, obviamente, sem atinarem com a presença dos dois Espíritos amigos. E Andrés diz, a fitar a sua amada, com lágrimas aos olhos:
– A coitadinha pensa que ainda estou vivo!− E estamos vivos!... – exclama Ben Hanan. – Mas não mais entre eles... – e a questionar-se em voz alta: − Que mistério será este?...
− Certamente o mistério que envolve a morte, pai... – responde o rapaz. – Acaso não crês que estejamos mortos?
− Essa é a única explicação que nos resta, meu filho! – diz o antigo secretário da rainha de Castela. E depois de alguns instantes:
− Sabes, Andrés, eu sempre cogitei, ao longo da minha vida toda, sobre os mistérios que envolvem a morte. Estudei a Torah, por todo esse tempo, e jamais encontrei algo realmente substancioso que me pudesse clarear o entendimento, acerca desse mistério, e não consegui ir mais além que algumas informações sobre aparições de almas do outro mundo.
− Como o relato de Saul sobre a visão que teve de Elias?236 – observa o jovem. – Tu mesmo já me contaste esse fato...
− Sim, tu te lembraste: os escritos da Torah relatam muito bem essa passagem! Mas, sabes que tudo não se resume além da conversa que manteve o profeta Samuel, depois de morto, com o rei Saul...
− Mas não se pode concluir daí que, se o profeta retornou das sombras, a ter com o rei Saul, não é porque a morte de fato não existe? Isso prova que Samuel continuou a viver em outro lugar! – considera, sabiamente, o Espírito do rapaz.
− Sim! – concorda Ben Hanan. – Tal fato clareou-me um pouco o entendimento acerca das questões da morte, mas, se nós dois estamos mortos, porque continuamos a viver por cá, entre os vivos?... Não seria o caso de irmos para outras paragens?
− Tens razão, pai! – concorda o rapaz. – E, por outro lado, que seria de mim, se me visse, para sempre, apartado de Milagros? Não sei por quais secretos artifícios encontro-me cá, a vê-la, mas agradeço ao Altíssimo tal possibilidade, mesmo que ela não me possa registrar a presença!
− Será que não pode, mesmo, perceber que aqui estás? – observa Ben Hanan. – Vê o quebrantamento em que, no momento, acha-se mergulhada!
− É mesmo, pai!... Milagros deixa-se abater, enormemente! − Que tens, minha filha? – pergunta Sara, nesse entrementes, a perceber o profundo desalento em que Milagros, de repente, mergulhara.
− Não sei, mãe – responde a moça, a torcer as mãos, nervosa. – A imagem de Andrés surge-me, ostensivamente, às ideias, pejado de tristezas... – e a abraçar-se à mãe, cheia de desespero, diz: − Será que ele se foi?
− Oh, não, meu bem! – exclama Sara, buscando consolar a filha.– Teu excesso de preocupação é que faz teres esses pensamentos tristes. Olha, em breve, terás notícias do teu noivo! O rabino logo aqui estará, acompanhado de Andrés e de Ben Hanan! Tem fé!
− Não sei, mãe... – diz a moça, a aconchegar-se ao amoroso regaço de Sara. – Às vezes, penso que jamais verei Andrés outra vez...
− Oh, não penses assim, meu bem! – exclama Sara, abraçando mais fortemente a filha, com o intuito de consolá-la. E lhe murmura rente ao ouvido: – O Altíssimo não nos desamparará, confia!... Eu tenho certeza de que este pesadelo, em breve, irá passar!...
Através da janela aberta, percebia-se que, lá fora, a manhã caminhava radiante, banhada pelo cálido sol do outono, totalmente alheia à dor profunda que ia pelo coração de Maria de los Milagros...
___________________________________________________________________________________________________________
233. “− Ainda hoje deverá trazer as rendas da minha fazenda!”, em castelhano.
234. Torah é o nome que recebem os cinco primeiros livros do Tanakh, também conhecidos como Hamisha Humshei Torah, − as cinco partes da Torá, que formam o texto central do Judaísmo. Contém os relatos sobre a criação do mundo, a origem da humanidade, o pacto de Deus com Abraão e seus filhos e a libertação dos judeus do Egipto e sua peregrinação por quarenta anos até a terra prometida. Inclui também os mandamentos e leis que teriam sido dadas a Moisés para a instrução dos israelitas.
235. Por esse tempo, por volta de 1487, Madrid ainda não era a capital da Espanha; somente anos depois, em 1561, é que o rei Felipe II decide transferir a capital de Toledo para Madrid.
236. I Samuel, 28
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 7:34 pm

Capítulo XXX. Na antecâmara da morte
O dia transcorreu-se monótono e cheio de tristezas para Maria de los Milagros. A noite caiu, sem que a jovem tivesse deixado o aposento única vez.
− Não vais descer ao refeitório, querida? – pergunta-lhe a mãe, cheia de apreensões pelo estado de prostração em que mergulhara a filha, desde a manhã. – Tu nada comeste pelo dia todo! Se assim permaneceres, acabarás doente e, então, como terás força para demandarmos Portugal, assim que o teu noivo e Ben Hanan cá estiverem?
− Não tenho apetite, mãe – responde a moça, com a voz fraca. – Ide tu e Benyamin! Eu cá permanecerei e deverei deitar-me logo!
− Se assim preferes, querida! – diz a mãe, dando-lhe um beijo à face pálida. – Hoje eu te perdoo, mas, amanhã, terás de tomar o desjejum comigo e com o teu irmão!
Sara e Benyamin deixam o quarto, e Maria de los Milagros busca o singelo leito. O quarto achava-se à meia luz, iluminado tão somente por pequeno candelabro, a conter algumas poucas velas que ardiam sobre um aparador.
Os olhos de Milagros, acomodados à pouca luz, de repente, notam uma nuvem amarelo-pálida que se formava mesmo à pouca distância do leito.
Sem medo, a moça fixa o olhar no estranho fenómeno e, paulatinamente, vê a estranha nuvem tomar a figura de um homem.
Estarrecida, percebe que lhe era alguém muito conhecido.− Andrés? – grita ela, de repente, sentando-se no leito. – És tu?
− Sim, meu amor! – responde a aparição, aproximando-se. – Sou eu!
− Yavé santíssimo! – exclama ela, com os olhos a tomarem-se de extrema alegria. E, se levanta, tentando abraçar-se ao Espírito.
− Não, meu amor! – diz ele, afastando-se um pouco. – Acho que não me podes abraçar mais...
− Não! – grita ela, aterrada. – Como se explica isso?
− Não mais estou entre os vivos! – diz ele, com a voz pejada de tristeza. – Os malditos inquisidores assassinaram-me a mim e ao meu pai!
− Não!... Não é possível! – exclama a jovem, com a voz entrecortada pelos soluços. – Eu cá estava a aguardar-te, para fugirmos para Portugal!
− É exactamente sobre isso que vim falar-te, querida – diz o Espírito. – Não mais me esperes! Tu e os teus devereis fugir, imediatamente, para Portugal, pois os desgraçados inquisidores ainda andam no teu encalço! Tu e Benyamin correis sério risco de serem recapturados!
− Mas de que me adianta fugir para Portugal, se não mais te terei comigo? – diz ela em pranto pejado de desespero.
− Como não estarei mais ao teu lado?... – rebate o Espírito. − Pelo contrário, meu amor, não te abandonarei um só instante mais de nossas vidas!
− Que vida, Andrés? – geme ela, cheia de dor. – Para mim, esta situação se tornaria insustentável, pois, eventualmente, posso ver-te e até conversar contigo, mas jamais poderia tocar-te, estreitar-te em meus braços ou sentir o sabor inebriante dos teus beijos!... Oh, eu não suportaria viver assim!
− Sei que viver desse modo, para mim, também já se torna um tormento, mas saiba que tudo será transitório! A vida passa, meu amor, e mesmo antes que possamos perceber, tu também estarás deste lado da vida, e, então, que nos poderá mais afastar um do outro?
− O tempo é verdugo cruel, Andrés, tu sabes muito bem! – exclama a jovem, a menear, tristemente, a cabeça. − Percebeste como se tornou insustentável esse pouco tempo em que estivemos separados um do outro?
− Tens razão, querida! – responde Andrés. – Foram alguns meses tão-somente, mas que se me afiguraram uma eternidade!
− E crês, destarte, que nos será fácil essa separação? –pergunta ela.
− Ser-nos-á o inferno, meu bem! – concorda ele. – Entretanto, peço-te: foge para Portugal, com a tua mãe e o teu irmão, o mais rápido possível, amanhã, mesmo, pois, se aqueles demónios voltarem a te capturar, serás queimada viva numa fogueira, em praça pública! Consegues aquilatar o tormento insano que isso te proporcionará?... Não, meu amor, eu não suportaria ver-te sofrer tamanha monstruosidade!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 7:34 pm

− Tens razão, Andrés! – concorda Milagros, depois de cogitar por instantes. – Deveremos fugir para Portugal amanhã mesmo! – entretanto, lembra-se de algo e acrescenta: − Mas, mamãe teima em aguardar D. Hagiz, a trazer-nos o dinheiro da venda do resto dos nossos bens!
− Penso ser temeroso aguardardes a vinda de D. Hagiz, Milagros! – contrapõe Andrés. – Isso poderá demorar bastante, uma vez que se desfazer dos tantos bens que o teu pai possuía não será tarefa muito fácil! Além do mais, e se os inquisidores andarem a vigiar os passos do rabino? Não lhes será difícil segui-lo até aqui!
− Agora me encho de medos e aflições, Andrés! – confessa a moça, a tremer-se toda. – Se me recapturarem, o fim que me aguarda será tenebroso!
− Convence a tua mãe, a partirdes logo que amanheça! – insiste o rapaz. – Não aguardeis mais! Se o dinheiro faltar, podereis buscar trabalho nos campos!
− Mas, ficarás comigo? – pergunta ela, enchendo-se de angústia.
– Como posso ter a certeza de que não me abandonarás, que não mais te verei?
− Juro que não te abandonarei, que me verás todos os dias! – exclama ele. – Se depender de mim, jamais me afastarei de ti!
Depois de acenar, tristemente, com a mão, o Espírito desvanece-se no ar, no momento exacto em que Sara e Benyamin retornavam do jantar. Milagros soluçava, violentamente, e Sara tomou-se de fundas apreensões.
− Que tens, minha filha? – pergunta ela, entrando em desespero.– Estás a passar mal?
− Andrés, mãe!... – exclama a moça, entre fundos soluços.
− Que tem Andrés? – diz Sara, a olhar em derredor. – Não vais dizer-me que ele já aqui esteve!
− Sim! – responde a jovem. – Mas morto!...
− Morto?! – exclama Benyamin, a tomar-se de espantos e a buscar, minuciosamente, pelos cantos do aposento. – Não vejo cá ninguém!...
− Explica-te, Milagros! – ordena Sara. – Como pôde Andrés aqui estar, morto?!
− A alma de Andrés cá esteve a falar comigo, mãe! – e a chorar, em alto desespero: − Os malditos padres mataram-no!
− Como podes ter tanta certeza disso? – pergunta Benyamin. – Acho que sonhaste tudo isso!
− Não, não sonhei! – rebate Milagros. – Estava muito bem acordada e o vi, sim, e ele falou comigo, como me falou comigo a minha irmãzinha Consuelo, uma vez!
− Mesmo, filha?! – pergunta Sara. – Eu creio, sim, que o teu noivo aqui esteve, a falar contigo! E o que te disse ele?
− Aconselhou-nos a demandar Portugal amanhã, mesmo, pois corremos o risco, Benyamin e eu, de sermos recapturados pelos malditos do Tribunal!
− Yavé santíssimo! – brada Benyamin, a tomar-se de desespero.– Vamo-nos, mãe, agora mesmo, pois não quero, jamais, voltar àquele inferno!
− Como fugirmos agora, meu filho? – diz Sara. – Não percebes que já se faz noite alta?... E como iremos conseguir as montarias a esta hora?... E teremos, ainda, de contratar um bom guia e pequena escolta!...Tranquiliza-te que, assim que surgirem os albores de amanhã, nós providenciaremos tudo e nos iremos, sem mais delongas!
− E se for tarde? – exclama o rapaz, a angustiar-se enormemente. – Se não ides as duas, agora, vou-me só! – grita ele, resoluto, a tomar o rumo da porta.
− Não! – exclama Sara, a segurá-lo, fortemente, pelo braço. – Tu ficarás, e iremos todos juntos amanhã! Eu te prometo!
− E se me pegarem, mãe? – pergunta o rapaz, em pânico.
− Não, filho, não te pegarão!... Acalma-te!... Confia em mim!
Ninguém viaja à noite, nem mesmo os esbirros do Tribunal! Sabes o quanto os caminhos são perigosos, e sei que eles não se atreverão a arriscar!
− Tens razão! – diz o rapaz, conformando-se. – Mas, antes mesmo que clareie o dia, nós partiremos!
− Isso eu te prometo, meu querido! – exclama Sara. − Agora, vem, vamos dormir, pois precisaremos estar bem dispostos para a longa viagem que nos aguarda.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 7:34 pm

A noite transcorreu-se e, aos primeiros albores da madrugada, Sara acorda-se e se propunha a despertar os filhos, quando batem, insistentemente, à porta do quarto.
− Que é isso, mãe? – pergunta Benyamin, despertando com o ruído das fortes batidas. E, a tomar mais sentido da realidade, salta do leito, com um pulo, e grita, cheio de desespero: − Os esbirros do Tribunal! Vieram prender-nos!
− Acalma-te e fica em silêncio! – ordena Sara. – Vou abrir, antes que derrubem a porta!
E a terrível surpresa:
− Yavé santíssimo! – exclama Sara, pondo as mãos ao peito. E foi empurrada, violentamente, para o lado.
− Sai pra lá, velha! – grita o capitão da guarda do Tribunal, invadindo, truculentamente, o quarto. E ordena aos quatro soldados que o seguiam, a empunhar pesadas lanças: – Ali estão os dois fugitivos: prendei-os!
− Por Yavé, não! − grita Sara, em desespero, correndo a proteger os dois filhos que, tomados de grande desespero, abraçavam-se um ao outro, em canto do quarto.
− Sai da frente, marrana imunda! – grita o oficial para Sara. – Ou lhe quebro os ossos todos!
E, diante da insistência de Sara em ficar à frente dos filhos, protegendo-os, recebe do irado capitão da guarda inquisitorial violenta porretada à cabeça, dada com o punho da pesada espada, e cai desfalecida, com grosso filete de sangue a escorrer-lhe pelas marinas.
− Mãe! – grita Milagros, lançando-se sobre o corpo inerte de Sara.− Maldito! – vocifera Benyamin e se lança furioso sobre o oficial que, a defender-se, num átimo, enterra ao peito do jovem a pesada espada que trazia à mão.
Benyamin, tolhido pelo ferro que lhe rasgara as carnes como fogo vivo, consegue apenas girar nos calcanhares e fitar a irmã que, aterrorizada ao extremo, consegue apenas lançar dorido e estridente grito de terror e, imediatamente, perder os sentidos.
− Vamos! – ordena o capitão. – Já temos o que nos interessa!
Arrastai a desgraçada marrana pelos cabelos! Os demais deixem aí, estão mortos mesmo! O estalajadeiro que lhes dê um destino aos corpos!
Quando Milagros recobrou os sentidos, estava jogada sobre o lombo duma montaria, que trotava, em pequeno grupo de cavaleiros, segura pelas rédeas por um dos esbirros do tribunal. O pleno sol do meio-dia queimava-lhe, ostensivamente, a pele delicada.
A princípio, Milagros achou-se bastante zonza e, somente aos poucos, foi recobrando a razão e, como uma catadupa gelada, vieram-lhe à mente os derradeiros acontecimentos: a invasão do quarto pelos esbirros do Tribunal e o violento assassinato da mãe e do irmão.
− Yavé santíssimo! – murmura ela, aterrada. – Mamãe, Benyamin... – e os soluços sacodem-na violentamente.
A incómoda posição em que se achava jogada sobre o lombo da montaria judiava dela enormemente. E, premida pela dor que lhe invadia o corpo, acabou por emitir um gemido alto.
− A marrana acorda-se! – adverte um dos esbirros que lhe cavalgava bem próximo.
− Alto! – ordena o capitão da guarda inquisitorial. – Vamos pô-la correctamente sobre a sela. Se ela não chegar ilesa ao nosso destino, o chefe irá esfolar-nos vivos, pois nos recomendou extremados cuidados para com ela! – e a rir-se, debochado: − Presumo que lhe reserve atenção especial!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Bonita que só ela! – exclama, atrevidamente, o esbirro que a ajudava a pôr-se direita sobre a sela.
− Mas não é para o teu bico, Solano! – grita o capitão.
Os demais soldados caem na gargalhada, a zombarem do amigo.
− Soltai-me, desgraçados! – brada Milagros, a rilhar os dentes de tanto ódio.
− Ora, a bruxa quer dar-nos ordens! – exclama o capitão, cheio de ironias à voz, aproximando-se da jovem. E lhe aplica, a seguir, violento bofetão à face, com o dorso da mão pesada. – Melhor que te cales, desgraçada, se quiseres chegar a Toledo com todos os teus dentes dentro da boca! – e ordena, zangado: − Chega de tolices! Vamos, pois temos, ainda, muito caminho a percorrer!
Maria de los Milagros seguia na pequena comitiva como se já estivesse morta. Sua cabeça doía, enormemente, e a saliva dentro da boca secara, a provocar-lhe náuseas e ânsias de vómito. De repente, as suas vistas escureceram-se, não pôde mais se sustentar sobre a sela da montaria e acabou por estatelar-se sobre o chão duro do caminho.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 9 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 7:35 pm

− A marrana caiu! – gritou um dos esbirros que lhe marchava atrás.− Alto! – gritou o capitão da guarda, levantando a mão. – Vamos parar um pouco para tomarmos água!
− Perdeu os sentidos! – disse o soldado que se apeara ligeiro, com o propósito de socorrer a prisioneira.
− Vamos! – ordenou o capitão. – Levemo-la à sombra daquela árvore. Um dos soldados, depois, levantou a cabeça da jovem desmaiada e lhe borrifou as faces com água fresca.
− Dai-lhe a beber da água! – ordenou o capitão, logo que Milagros abriu os olhos. E percebendo a acentuada palidez da moça, observou: − Essa marrana acha-se por demais fraca; certamente, nada deve ter comido ontem. Nessa condição, chegará
morta a Toledo!
− E o que faremos, Senhor? – pergunta um dos esbirros.
− Se ela morrer, todos nós nos daremos mal! – responde o capitão. – Vamos aproveitar a sombra desta árvore para comermos algo, a ver se a marrana toma algum alento! Dê-lhe pão e um naco de chorizo237!
Maria de los Milagros bebeu água, mas quase não conseguiu comer, a não ser pequenos bocados de pão.
Com a jovem um pouco mais refeita, o grupo voltou ao caminho. E, depois de três dias de cavalgada, estavam de volta a Toledo.
Em pouco, o capitão da guarda apresentava a jovem ao inquisidor-geral.
− Fizestes um bom trabalho, capitão! – exclama D. Tomás de Torquemada, felicíssimo, ao ter de volta a sua preciosa prisioneira.
E a medir a jovem, de alto a baixo, rodeando-a, diz ao capitão: − Deixai-a cá, que desejo interrogá-la!
− Como conseguistes chegar até nós e mandar que me prendessem de novo, desgraçado? – grita Milagros, cheia de ódio à voz, pois não se conformava por não ter tido tempo de fugir de vez, com a mãe e o irmão. – Não vos bastava terdes assassinado quase todos os da minha família?
− Oh, acho que menoscabaste a nossa inteligência, marrana! – exclama o inquisidor-geral. E lhe explica, cheio de desdém à voz: − Logo que soubemos que a tua mãe fugira, fechando a casa e despedindo todos os criados, não nos foi difícil apanhar um rapazote – Yitzhak é o seu nome, se não me engano! – e que vivia muito próximo da tua mãe. E, com bastante facilidade, fizemo-lo abrir a boca e nos contar para onde é que sua patroa houvera fugido. De posse dessas informações, mandei que te prendessem, marrana, primeiro, porque escapaste da prisão, à custa de suborno; segundo, porque és uma maldita feiticeira e me cabe, como zelador da fé católica, limpar-te a alma conspurcada pelo pecado!
− Como podeis acusar-me de bruxaria, se não tens provas algumas? – insiste a moça.− Tua boca mesma te condenou, esqueceste? – diz D. Torquemada. E se voltando para D. Antón Gonzáles, o notário, que a tudo acompanhava, em silêncio, pergunta-lhe: − Ouvistes, D. Gonzáles?... A marrana renega o que já nos confessou antes – e se diga de passagem, de moto próprio! −, que andava a evocar o demónio!
− Mentes, maldito! – grita a jovem. – Nunca convoquei demónio algum! Uma vez tão-somente, apareceu-me a minha irmã, morta por aquele padre maldito!
− Ah!... – exclama o inquisidor-geral, com satisfação. – Novamente confessas que chamaste o demónio!
− Não era o demónio, desgraçado! – insiste a jovem, grandemente alterada. – Era a minha irmãzinha!...
− Anotastes bem, D. Gonzáles? – pergunta o inquisidor-geral ao notário, eleito escrevente de mais aquele interrogatório. – A bruxa reitera a confissão!
− Maldito!... Como podeis distorcer tanto assim as palavras? − grita Milagros, tomada de alta indignação. – Eu disse que me apareceu a minha irmã Consuelo, covardemente assassinada por aquele maldito padre que tudo fez para desgraçar-me!
− Pois eu te digo, bruxa ordinária – exclama D. Tomás, aproximando o seu rosto ao da jovem –, se não sabes, eu te explicarei, imunda: as almas não retornam, jamais, a este mundo, muito menos a ter com os viventes! Se, realmente, praticasses a fé católica, saberias coisas tão simples, como essa! Mas eu te ensino, cretina: chegada a morte, a alma é imediatamente julgada pelos seus actos: se bons, ganha o paraíso, pela eternidade; se pouco transgrediu as Leis Divinas, é lançada, temporariamente, ao purgatório; mas, se grande pecadora, como tu, é lançada aos fogos do inferno, sob a tutela de satanás, por toda a eternidade! Entendes, agora, que a tua irmã jamais poderia ter vindo ter contigo? Satanás, o teu pai, certamente, enganou-te, enredando-te nas suas mentiras!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 7:36 pm

− Ah, jamais poderia ter sido enganada de forma tão grosseira! – rebate a jovem. – Ninguém tomaria tão bem as feições, a voz e os modos da minha querida irmã, que eu conhecia tão bem! Nem mesmo o demónio, conforme afirmais! Nem ele...− Não sei se te mostras assim tão ingénua, a ponto de te deixares enganar tão facilmente pelo tinhoso ou se é mais ladina do que eu pensava... – e se voltando para o notário: − Que vos parece, D. Gonzáles?
− A mim, é dissimulada e mentirosa como o seu padrinho, Belzebu! – exclama o notário, persignando-se. – Não confio em nada do que sai dessa boca imunda e mentirosa!
− Também assim penso, D. Gonzáles! – diz o inquisidor-geral. – Parvos seríamos, se nos deixássemos enganar, assim tão facilmente, pelo Pai da Mentira! E, se andamos a pelejar pelo lado de Cristo, que esta batalha seja vencida por nós, Seus fiéis seguidores! – e, apanhando a cruz que trazia ao pescoço, aproxima-a dos lábios de Milagros e ordena: − Beija-a, maldita!... Vamos, mostra de uma vez que és filha de satã!
− Por que não haveria eu de beijar a cruz? – diz a moça. – Nada temo e reverencio, sim, esse símbolo que representa Jesus! – e, tomando a cruz entre os dedos, beija-a, respeitosamente.
− Viste, D. Gonzáles? – grita o inquisidor-geral, a estupefazer-se sobremaneira. − Adoradores de satã andam a beijar a cruz!... – e esconjura: − E sequer se lhe queimaram os lábios sacrílegos!... – e a menear, sistematicamente, a cabeça: − Sinal dos tempos!...
Satanás supera-se!... – e se persigna e beija a cruz que trazia ao pescoço.
− Algum sortilégio deverá andar por trás disso! – exclama o notário, a mover, lentamente, a cabeça. – Comumente essa gente odeia a cruz e outras santas relíquias! Não entendo... – e também se persigna.
− Artimanhas das trevas! – brada D. Tomás. – Somente isso explica o facto de uma adoradora de satã andar a beijar uma cruz! – e, voltando-se para a moça, diz: − Além do mais, percebi que beijaste a cruz sem fé, como se estivesses a beijar um osso de galinha!
− Que mais desejais que eu faça para provar-vos que não sou bruxa e que nada tenho contra a fé católica? – pergunta Milagros, indignando-se diante de tanta hipocrisia. – Sou judia, sim, de nascimento, mas minha família é conversa! Somos todos baptizados, e eu, como todos eles, frequentávamos as missas, confessando-nos e tomando a comunhão! Como podeis afirmar que não somos católicos?
− O baptismo e a prática dos santos ritos, por si só, não nos indicam que és católica, de fato, marrana! – observa D. Torquemada, com notado sarcasmo. – A maioria dos marranos converte-se por medo da perseguição; frequentam as igrejas, participam dos santos ofícios, mas andam a praticar o Judaísmo à sorrelfa! Na verdade, vós, marranos, buscais a servir a dois senhores: a Deus e a satã!...
Acaso pensas que somos todos uns parvos, que não enxergamos as coisas como realmente são?... És, sim, uma bruxa dissimulada e perigosa!
− Se assim pensais, mesmo diante de tantas evidências a provar-vos o contrário, então, nada mais tenho a dizer-vos, Senhor!
– diz a moça, baixando os olhos. Tristeza imensa, então, invade-lhe o ser: sabia que já se achava condenada, de antemão, e qualquer coisa que dissesse a seu favor, não seria levada em conta.
− Basta! Já perguntei tudo o que queria saber a essa bruxa maldita! – exclama D. Torquemada, enfezado. E, alteando a voz, chama pelos esbirros: − Trancafiai essa bruxa e a vigiai, constantemente, para que não intente fugir outra vez! Essa gente é muito esperta e perigosa!
Em pouco, Milagros vê-se novamente presa numa imunda e húmida cela dos subterrâneos do Tribunal Inquisitorial. A tristeza e a dor que lhe atormentavam o peito eram inomináveis. Acocorada junto a uma das paredes de pedra, põe-se a chorar, baixinho.
Estava só, ali, e a noite já caía. Um medo intenso, então, invade-lhe a alma: agora não tinha mais a companhia do pai, do irmão e de Andrés. Andrés... À lembrança do noivo querido, seu pranto intensifica-se, e ela se vê sacudida, violentamente, pelo choro convulso e desesperado.
− Yavé santíssimo! – murmura ela, com a voz molhada pelas lágrimas. – Não vou suportar tanto sofrimento! Que foi feito da minha vida?
Nesse momento, conhecida luminescência surge diante dela. Tamanha foi a emoção a invadir-lhe a alma que não conseguiu articular palavra.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 7:36 pm

− Milagros! – grita o Espírito, a abrir os braços.
− Andrés!... Meu amor!... – balbucia a moça, a tomar-se de alegria intensa. – Tu vieste!
− Sim, querida! – diz ele, aproximando-se mais, a quase roçar-lhe a pele do rosto. – Acaso não te prometi que estaria sempre ao teu lado?
− Oh, como gostaria de abraçar-te, meu amor! – exclama ela. – Que tormento esta situação!
− Tem paciência, meu bem! – diz ele, buscando consolá-la. – Em breve, estaremos juntos de vez!
− Dizes assim, porque já sabes que estou condenada à morte, não é? – fala Milagros, cheia de dor. – Acho que também sabes o que me aguarda...
− Possivelmente, meu amor, a pena a que te condenarão será terrível, mas saiba que cá estarei, todo o tempo, ao teu lado, a dar-te forças para suportares tamanha provação!
− De todos nós, a pior delas se reservou a mim, não é?
− Certamente, querida! – diz ele, com os olhos rasos de pranto, e se colocando de joelhos diante dela. – Mas o Altíssimo dar-te-á forças a suportares essa monstruosidade que pretendem imputar-te os malditos inquisidores!
− Oh, Andrés, tenho tanto medo! – diz ela, a estender-lhe a mão.
O rapaz, apesar de saber ser totalmente inútil essa acção, tenta entrelaçar os seus dedos aos da amada; entretanto, a distância entre as duas dimensões fazia-se intransponível.
− A morte ainda separa-nos, meu bem! – diz ele, tremendamente tocado pela triste situação e, recolhendo a mão, levanta-se e se afasta um pouco, pondo-se de costas para ela. E a lamentar-se: − Agora entendo o que me disseste, em Madrid, que essa situação far-nos-ia sofrer terrivelmente! Posso estar contigo, por todo o tempo, mas não te posso sentir qual acontecia antes!... Oh, como isso se faz tormentoso e cruel para a minha alma!
− Vem! – chama ela. E, a notar-lhe o intenso desespero, tenta consolá-lo: – Volta cá e procuremos não nos lamentar tanto assim! Devemos, sim, render graças ao Altíssimo, por permitir que venhas ver-me, mesmo estando morto!...
− Sim! – responde ele, voltando a postar-se de joelhos, diante dela. − Como isso me pesa sobremodo ao coração: eu cá e tu aí, e uma terrível cerca invisível a segregar-nos um do outro!
− Crês que me enviarão à fogueira logo? – pergunta ela, depois de alguns minutos de silêncio, durante os quais ambos cogitaram acerca da inusitada e pungente situação que os envolvia.
− Quem saberá, meu bem, o que pretendem esses monstros?
− Sabias que o chefe da Inquisição interrogou-me outra vez e insiste em afirmar que sou uma bruxa? – pergunta ela.
− Sim, eu estava lá e a tudo assisti! – responde ele.
− Mas, como, se eu não te vi? – observa a jovem.
− Descobri que tu me vês, tão-somente quando eu desejo que me vejas, entendes?
− Não... – responde Milagros, lacónica.
− Na verdade, ainda não sei como isso acontece – explica o Espírito. – Há ainda por cá tantos mistérios por descobrir!
− Estás só, ou os nossos também estão contigo? – pergunta ela.– E por que eles não vêm me visitar, como tu?
− Não, eles não estão comigo; simplesmente, perdi-os de vista! – responde o Espírito. – Mas acho que se foram para outro lugar!
− E por que para lá não foste também? Acaso não é para onde vão todos os que morrem?
− Ainda não posso responder a todas as tuas perguntas, querida!
– diz ele. – Mas acho que tenho uma explicação para isso: é porque eu te amo muito, sinto-me tão unido a ti que, na verdade, mesmo que desejasse apartar-me de ti, eu não conseguiria!
− Que bom! – exclama ela. – Então sei que, de verdade, jamais te libertarás de mim! – e, no meio de tanta dor, ela achou um pequeno espaço para abrir ligeiro sorriso.
− Tu sorriste! – exclama o rapaz, enchendo-se de alegria. – Sinal de que a dor não é tão poderosa assim!
− Sempre haverá esperança, meu bem! – diz ela. – Não fosse assim, e, neste mundo pejado de sofrimentos, a vida não subsistiria!
− É... Não fosse a esperança...− A dor, fatalmente, far-nos-ia sucumbir a todos!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 7:36 pm

− Sabes, às vezes, a tua sabedoria encanta-me sobremodo! – diz ele. – Onde é que foste buscar tais conhecimentos?
− Não sei! – exclama ela. – As ideias vêm-me à mente, assim, prontas!
− Isso acontece, porque tu tens o coração puro! – diz ele. – E os anjos sopram-te ao ouvido essas palavras!
− Ah, acho que exageras! – fala ela, a abrir novo sorriso.
− Riste outra vez! – exclama Andrés. – E o teu riso, eu sei, acabará por liquidar, de vez, a tua dor!
− Oh, como gostaria que assim fosse! – diz ela.
− E será, meu bem! – exclama o Espírito. − Se estamos do lado do Altíssimo, o que poderá, efectivamente, ferir-nos?
− Tens razão, e a fé sustenta-se, principalmente, no amor! E, como eu te amo muito, deste tamanho também deverá ser a minha fé, não concordas?
− Oh, quem seria eu, se não concordasse contigo? – brinca o rapaz. – Andaria, desse modo, a duvidar dos anjos...
− Ah, assim me pões bem lá no alto: porta-voz dos anjos... – e brinca: − Exagerado!...
− Para mim é o que tu és! – diz ele. – Os anjos andam a falar por ti!
Tanto conversaram e acabaram por rir bastante, conseguindo, desse modo, esquecer-se, ao menos temporariamente, das dores acerbas que lhes corroíam o ser.
− Quando estás comigo, sinto-me fortalecer; entretanto, quando te vais, sinto-me fraquejar! – reclama ela, depois de alguns instantes de silêncio.
− Se a minha presença te traz tanto conforto assim, fica sabendo que não te deixo um só instante! – diz o jovem.
− Sei que tu e eu somos um, meu amor! – exclama a moça. – Só assim temos a coragem necessária para enfrentar tanto sofrimento!
− Somos duas metades a completarem-se! – fala ele. – Se nos separam, enfraquecemos!
− Sim: duas partes iguais, a formarem um ser único! – diz
Milagros. E, depois de emitir longo bocejo, com os olhos a se lhe pesarem de sono, pois estava deveras cansada, pelos apuros e sofrimentos dos últimos dias, exclama: − Oh, faz-se tão tarde que nem percebi!
− Melhor que descanses um pouco, querida – diz Andrés. – Teus olhos me dizem que estás cheia de sono.
− Está bem, confesso que não estou mais a suportar tanto cansaço! Mas, promete-me que, amanhã, aqui estarás de novo!
− Nem te prometo nada, pois não arredarei pé daqui! – afirma ele. – Fica sossegada que, sempre que possível, virei ter contigo! – e, a mandar-lhe um beijo pelo ar, despede-se: − Fica em paz, meu amor!
___________________________________________________________________________________________________________
237. Espécie de linguiça curada, feita de carne suína e temperada com páprica, podendo ser picante ou não.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 7:36 pm

Capítulo XXXI. Suplício na fogueira
Maria de los Milagros, premida pelo cansaço intenso, mal o Espírito amado desvanecera-se no ar, procurou um cantinho sobre a palha que lhe servia de leito e, num instante, adormeceu profundamente.
Quando se acordou, o dia já surgira fazia um bom tempo.
Bastante zonza pelas várias horas de sono profundo, custou a clarear as ideias. Por fim, depois de algum tempo, e sem a presença amorável e segura de Andrés, a realidade tombou sobre ela, fazendo-a tomar-se de intenso desalento.
− Yavé santíssimo! – murmura ela, depois de se levantar e se pôr a caminhar pela cela, em círculos, a fim de desentorpecer o corpo. – Nada mais existe para mim, neste mundo! Estão todos mortos!...
Os dias passavam lentos para Maria de los Milagros. Presa naquele subterrâneo húmido e com pouca claridade, acabou por perder a noção do tempo. Amiúde mantinha contacto com o Espírito de Andrés que, do outro lado da vida, velava-lhe a triste existência, confinada numa das celas da prisão inquisitorial de Toledo. A jovem só não enlouquecera porque tinha a amorável presença do noivo e, nos diálogos que mantinham, hauria forças para continuar viva.
A infindável sucessão de dias e noites confundiu-lhe a mente.
Quanto tempo fazia que já se achava presa ali?... Um ano, dois, três?... Não sabia, efectivamente.
Na realidade, já se estava numa manhã do ano de 1486, e os esbirros vieram buscá-la e, de modo ríspido, manietaram-na e a conduziram para a sala de audiências do Tribunal. Ao darem com a claridade do ambiente, os olhos de Maria de los Milagros custaram a acostumar-se com a intensidade da luz. Estava suja, maltrapilha e, nem de longe, lembrava a suave jovem de tempos atrás; achava-se excessivamente magra, em consequência da péssima alimentação que recebia na prisão; os cabelos, pela falta de limpeza, achavam-se empastados, opacos e sem volume; o rosto estava macilento e cheio de marcas de sujeira. Descalça, suas vestes pareciam mais andrajos de tão puídas que estavam. A figura de Maria de los Milagros suscitava pena de tão maltratada que estava!
− Seu nome, marrana! – pergunta D. Torquemada, rispidamente.
− Maria de los Milagros Shlomo – responde ela, com a voz fraca.
− Acusam-te de quê? – prossegue o inquisidor-geral de Toledo.
− Injustamente, acusam-me de bruxaria... – responde ela.
− Imputas, então, injusto este Tribunal? – pergunta D. Torquemada. E, a folhear o processo de Maria de los Milagros, diz:
− Entretanto, posso aqui ler que tu mesma confessaste a prática de bruxaria!
− Nunca pratiquei bruxarias, Senhor! – rebate a jovem. – Apenas citei que a minha irmã veio ter comigo depois de morta, assassinada que foi por um maldito padre!
− Ah, voltas a confessar! – grita o inquisidor-geral de Toledo, cheio de sarcasmo. E se voltando para o escrevente que lhe dava assistência: − Senhor notário, assinalai mais essa confissão e com um agravo: o de detracção contra um venerando prelado da Santa Madre Igreja! – e a consultar seus pares: − Cónego Arias, resumi a acção dos jurados para este caso!
− Perfeitamente, Senhor – responde o chefe do júri, levantando-se: − Este corpo de jurados já deliberou sobre a sentença: sob séria e minuciosa apreciação do que consta nos autos, concluiu-se que a prisioneira é ré de morte, a expiar seus crimes nefandos, sob acção do fogo purificador.
− Assim sendo, que se cumpra a decisão desta corte, quando da realização do próximo auto-de-fé! 238 – sentencia o inquisidor-geral.
Maria de los Milagros ouve a sua terrível sentença, com a cabeça baixa, sem esboçar qualquer reacção. Na verdade, estava exausta, depois de tanto sofrimento, pelo tempo em que já se achava encarcerada.
E, quando a reconduziram de volta à fria e sombria cela dos subterrâneos do Tribunal Inquisitorial, portava-se como uma morta-viva. Afinal, que mais esperaria da vida?
Completamente extenuada, deixou-se sentar sobre a palha que forrava parte do frio chão da cela. A cabeça doía-lhe, enormemente, e ela premeu fortemente os olhos, por instantes, com o propósito de aliviar a tensão extrema que lhe invadia a alma. Depois, reabriu os olhos, devagar, e, de repente, a cela iluminou-se, e o Espírito amado surgiu-lhe, uma vez mais.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 9 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 09, 2024 7:37 pm

− Oh, meu amor! – diz Andrés, aproximando-se dela. – Estive lá, o tempo todo, a acompanhar o que te fizeram aqueles desgraçados!
− Então já sabes de tudo, não é? – observa ela, cheia de tristeza.
− Sim, meu amor! – responde ele, com os olhos mareados de pranto.
− No fundo, gostaria que tudo já estivesse consumado! – exclama a jovem, com fundo suspiro.
− Mas, infelizmente, o pior ainda está por vir! – diz Andrés, com muita tristeza à voz. – E será preciso que encontres suporte na tua fé!
− Eu sei, meu bem! – responde ela. – E suplico ao Pai Santíssimo que não me faça viver até que esta desgraça chegue ao termo!
− Sim, para ti, seria mais caridoso que te finasses antes dessa hora fatídica! – diz o Espírito.
− Assim também penso – concorda Milagros. – Entretanto, estou nas mãos do Altíssimo, e a Ele compete decidir sobre o meu destino!
− Resta-nos suplicar a Yavé que te dê forças, meu bem!
− Sim, eu preciso tão-somente de forças!
Os dias sucederam-se cada vez mais terríveis a Maria de los Milagros que vivia, precariamente, à espera do cumprimento do seu nefasto destino. Alimentava-se, parcamente, e mal se sustinha de pé, de tão fraca se encontrava. Entretanto, o que lhe trazia ainda algum conforto era a presença quase constante de Andrés, a consolá-la por esses difíceis momentos da sua existência terrena.
− Oh, a tua dor me é tão pungente quanto a ti mesma, meu amor! – exclama ele, certa tarde, ao procurar dar-lhe algum consolo, no meio daquela terrificante espera.
− Sei que também sofres, enormemente, Andrés – geme a jovem, quase sem forças para falar. − A minha dor é a tua dor...
− Essa demora é causticante! – diz ele. – Não sei como consegues suportar...
− Se suporto, é porque estás aqui comigo... – fala ela, com olhos tristíssimos. Sequer tinha mais lágrimas para chorar.
− Yavé prova-te, meu bem! – exclama o rapaz com os olhos chorosos. – E sei que sairás vitoriosa desta peleja!
− Se vencer, a minha gloriosa recompensa será ter-te, para sempre, aos braços! – diz ela, com um resto de brilho que ainda lhe sobrava ao triste olhar.
− Oh, eu te amo tanto! – exclama Andrés, a tentar roçar, baldadamente, a ponta dos dedos à face da amada.
− Amo-te tanto, Andrés! – diz Milagros, a abrir tímido sorriso, que surgia no meio daquelas fragorosas ruínas em que se transformara o seu ser.
Entretanto, o tão nefasto dia, de antemão marcado para o terrífico suplício de Maria de los Milagros, chegou.
Vieram buscá-la, mal o dia raiou, e, brutalmente, manietaram-na e, após literalmente arrastá-la pelos tétricos corredores da prisão inquisitorial, meteram-na sobre uma carroça-jaula, juntamente com mais duas dezenas de pessoas, entre mulheres e homens, também condenadas ao suplício da fogueira infamante.
Depois de algum tempo, esvaziavam-se as celas da prisão, e dantesco cortejo formava-se, a partir dali, em direcção à praça das execuções. Os autos-de-fé caracterizavam-se por apresentarem bizarro espectáculo à plebe ignara e sequiosa de diversão, mesmo que isso custasse a vida, a vergonha e o opróbrio de milhares de pessoas, cujo único crime era pertencerem a condição social e religiosa diferente daquela da terra que os hospedava!
E, à margem das ruas por onde os condenados desfilavam, em direcção ao suplício final, o povo ululava, entre furioso e extático, à passagem da extravagante procissão que se assemelhava a tétrica serpente que ondulava, devagar, a exibir seu excêntrico corpo, constituído da mais variada forma de desgraçados, muitos dos quais a envergarem o sambenito239; outros traziam máscaras de metal presas à face, com a aparência de burros, ou, ainda, eram amordaçados, fortemente, com o propósito de impedi-los de protestarem ou de lançarem impropérios contra os seus algozes. À frente do cortejo, iam os condenados à morte pela fogueira, enjaulados sobre uma carroça.
A multidão apupava, freneticamente, aquelas pobres almas, tão covardemente presas, supliciadas e condenadas à pena última!
Durante o penoso trajecto, Maria de los Milagros, presa dentro da gaiola infamante, com os olhos baços, percorria a multidão exaltada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 10, 2024 10:17 am

Na verdade, pouco podia abranger daquela situação terrível, uma vez que se encontrava totalmente depauperada pelos maus tratos que vinha recebendo, fazia, já, tanto tempo. A cabeça doía-lhe, enormemente, e a sede inclemente maltratava-a, sobremaneira, deixando-lhe a boca e a garganta completamente secas. Lufadas de cálido vento, de quando em vez, brincavam com os seus cabelos sujos e empastados e fazia despencar sobre a sua cabeça uma chuva de folhas amarelas e laranja, a desprenderem-se dos galhos das árvores, mortas pelo verão que se fazia assaz inclemente àquele ano...
Depois do penoso e longo tempo que durou o angustiante desfile, finalmente, chegaram à praça, onde seriam supliciados.
No local, vinte postes erguiam-se, tetricamente, aos pés dos quais, grandes feixes de lenha seca achavam-se adrede amontoados.
Naquela manhã de verão, um pouco esfumada pelo calor e pela estiagem, Maria de los Milagros e seus pares foram atados, firmemente, aos postes, pelas mãos e pelos pés, por grosseiros e ímpios algozes.
Na praça, à frente dos condenados, havia um tablado, armado bem acima do chão, onde se sentavam as principais autoridades civis e eclesiais de Toledo e, no meio deles, achava-se o inquisidor geral de Espanha, Tomás de Torquemada, que, seríssimo, distinguia-se dos demais ali presentes, a levantar-se, para conferir, minudentemente, as feições de cada condenado que se atava aos postes.
Por fim, um meirinho leu, em voz alta, a condenação dos réus e, a um sinal do capitão da guarda real240, os carrascos, com tochas acesas às mãos, puseram-se a atear fogo à lenha seca...
De um lado, o populacho delirava; do outro, os condenados emitiam pungentes gemidos de dor, a contorcerem-se diante das línguas de fogo que, a princípio, com voracidade tamanha, lambiam-lhes, sem dó, os pés e as pernas.
O inquisidor-geral de Espanha, sentado em local de honra, a meio das autoridades toledenses, fria e impassivelmente, assistia à lenta agonia dos condenados que ardiam vivos na fogueira, sem esboçar às feições mínima expressão, fosse ela de qualquer teor: piedade, escárnio ou satisfação... Nada. Dir-se-ia que ele todo se assemelhava a um gélido bloco de granito!
− Gloria in excelsis Deo!241 – murmura ele, por fim, e, persignando-se, põe-se a desfiar, em prece, o magnífico rosário de pedras preciosas, que lhe dera a rainha...
Concomitante ao suplício pelo fogo − reservado aos pretensamente mais culpados, como os praticantes de bruxaria, os sodómicos, os sequestradores de crianças para rituais de magia negra, os bebedores de sangue humano −, também se executavam pelo garrote242 os condenados por judaizarem, por cometerem perjúrio e por praticarem usura, sendo esses considerados crimes menores.
Depois de algum tempo, a praça transformava-se num palco dantesco; dum lado, vinte judeus ardiam em fogueiras; de outro, centenas eram sufocados nos garrotes, aplicados sem dó por truculentos soldados da guarda real!
Pouco antes, Maria de los Milagros fora atada, fortemente, a um dos postes, pelos pés e pelas mãos. E, diante de tamanha atrocidade que lhe aplicavam os algozes e, na iminência de perder a vida, tão precocemente e de forma tão desumana, a jovem judia sentiu-se apavorar, completamente dominada pelo medo. Seus olhos, secos e maltratados pelas inúmeras noites de insónia, mal conseguiam divisar o que lhe ia em derredor. Porém, num rápido esforço de firmar a desfocada visão, foi-lhe possível identificar a bufa figura atarracada e gorda do inquisidor-geral que, altamente compenetrado, movia os lábios, a indicar que rezava.
− Maldito! – murmurou Maria de los Milagros, a rilhar os dentes de tanto ódio. − Tu me roubaste tudo o que eu tinha, mas a pesada mão do Altíssimo haverá de abater-Se sobre a tua cabeça, a fazer-te pagares todos esses nefandos crimes que ora andas a cometer!
Nesse momento, o carrasco aproximava-se e, rapidamente, ateou fogo à lenha seca que se amontoava abundante aos pés de Milagros. Então, um forte arrepio correu-lhe o corpo, de cima abaixo, quando as chamas, ímpia e vorazmente, lamberam-lhe os pés e os tornozelos. Dor lancinante seguiu-se, imediatamente, a corroer-lhe, atrozmente, as carnes e o ardor da fumaça principiou a sufocá-la inclemente. Deus do céu!... Haveria flagelo pior que esse a imputar-se a um ser vivo?... A que ponto desce a consciência humana, desfigurando-se de maneira tão brutal, caindo tanto, a ponto de igualar-se às feras mais sanhudas que há, a proporcionar a um seu igual tamanho flagelo como o da morte pelo fogo?... Nos refolhos dos evos, encontrar-se-ão, é sabido, o rol das mais cruentas formas de judiar e de assassinar os desafectos e os inimigos, já concebidas pelas mentes rasteiras e ainda bem próximas da animalidade grotesca; infelizmente, tal monstruoso proceder é o que faz as consciências, temporariamente perdidas no mal, sentirem prazer imenso em provocarem dor extrema àqueles que lhes caem à sanha impiedosa!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 10, 2024 10:18 am

Pobre Maria de los Milagros!... Em pouquíssimo tempo, a fúria das chamas inclementes já lhe envolviam o corpo todo! Que sentiu nos derradeiros momentos da sua curta existência?... É fato que não se pode medir, com palavras, o que se sente, num terrível momento como esse!... Sabe-se que o desespero extremo é o único sentimento que nos envolve, a priori! Depois, a insanidade toma conta da nossa cabeça, uma vez que a nossa razão não consegue registrar tamanha agressão e, então, vem o amortecimento das sensações, quando os laços que nos prendem ao corpo de carne rompem-se, de forma violenta, a lançar-nos, abruptamente, no mundo além!
Foi o que sucedeu à jovem Maria de los Milagros. Do tremendo desespero, diante da impossibilidade de escapar àquela terrífica situação, sentiu a vista escurecer-se, as ideias se lhe embaralharam à mente e perdeu os sentidos e, em algumas horas, o seu corpo reduzia-se a cinzas.
*******
Maria de los Milagros abre os olhos, devagar, mas, em seguida, preme-os, fortemente, para acomodá-los à forte claridade da manhã radiosa que invadia o aposento, através da ampla janela aberta.
Curiosa, examina, atentamente, o local onde se encontrava: achava-se bem instalada sobre leito limpo e perfumado, e a decoração do quarto era singela, mas cheia de conforto. Estranha o formato da mobília, do cortinado de fina gaze branca, a recobrir a janela... Tudo lhe era totalmente novo, a começar pela consistência do material de que as coisas eram feitas: leve, de acabamento perfeito e de excepcional bom gosto. Tenta erguer-se no leito, mas lhe advém súbita vertigem. Puxa, então, pela memória, mas sente a mente embaralhar-se. Procura, novamente, ordenar o raciocínio; contudo, depois de pequeno esforço, nada consegue lembrar-se de pronto.
Aquele lugar era-lhe completamente desconhecido! Por que estava ali?... Por outro lado, sentia-se perfeitamente bem, mas o esquecimento do seu passado imediato intrigava-a.
A seguir, depois do penoso esforço para recordar-se do que lhe houvera sucedido, advém-lhe teimosa sonolência e, não conseguindo suportá-la, Milagros acaba por cair, novamente, em profundo sono.
Quando volta a acordar-se, logo que abre os olhos, estupenda surpresa aguardava-a!
− Andrés! – grita ela, ao divisar o noivo querido que, ao pé do leito, sorria-lhe, cheio de ternura. – Tu vieste, meu amor!
− Sim, Milagros! – responde ele. E, rodeando a cama, aproxima-se dela, abraça-a e a beija, apaixonadamente, aos lábios.− Ah, agora as coisas aclaram-se! – diz a jovem, ofegante pela emoção excessiva. E, radiante de felicidade, pergunta, pois a chegada do noivo, abruptamente, fê-la lembrar-se do que lhe ocorrera: – Está tudo consumado, não?
− Sim, meu amor! – responde ele, a apertar-lhe, fortemente, a mão. – Tudo está acabado!
− E os meus pais e o meu irmão? – pergunta Milagros. – Por que não vieram contigo?
− Logo virão, sim, ter contigo, meu bem! – explica ele.
− E onde é que nos encontramos?... – pergunta a jovem. − Aqui tudo se mostra tão diferente!...
− Tu estás numa casa de recuperação, querida! – diz Andrés. – Passaste por terrível agressão, lembras-te?
− Sim! – exclama ela. – Agora os acontecimentos afloram-me à memória!... A minha prisão, o julgamento, a fogueira... – e, à lembrança dos horripilantes episódios por que passara, a moça principia a tremer-se toda e a apresentar algum desequilíbrio às feições.
− Acalma-te, meu bem! – diz o rapaz, tomando-a aos braços. – Esquece essas terríveis lembranças ou reviverás toda aquela desgraceira, novamente!... E para que te prenderes nessa terrível dor que tanto te fez sofrer?... Vamos, desanuvia a tua cabeça!...
Tudo já passou!...
− Mas é tão difícil esquecer, Andrés! – geme ela, com os olhos rasos de pranto. – Éramos tão jovens, tu e eu!
− Eu sei! – responde ele. – Mas tudo já estava escrito, e não fizemos mais que cumprir o que o Altíssimo reservava para nós! E, um dia, tu saberás por que todas essas coisas nos aconteceram...
− Se dizes... – murmura Milagros, ora se consolando com as palavras encorajadoras de Andrés. E emite fundo suspiro. Estava nos braços protectores do seu amor e se sente forte, extremamente forte para seguir adiante, para ir ao encontro da nova vida que lhe surgia promissora, cheia de alegrias e, temporariamente, longe das dores acerbas e das terríveis barbáries cometidas pela humanidade ainda tão fortemente atrelada à ignorância e à barbárie...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 10, 2024 10:18 am

___________________________________________________________________________________________________________
238. Entre os anos 1486 e 1492, 25 autos-de-fé ocorreram em Toledo.
239. Hábito de baeta amarela e verde, que os penitentes vestiam pela cabeça à moda de saco, e eram obrigados a trajar nos autos-de-fé.
240. Na verdade, o Tribunal da Inquisição prendia e julgava os condenados, mas quem executava as condenações à morte era a guarda secular, pois à Igreja não competia matar ninguém.
241. “− Glória a Deus, nas alturas!”, em latim.
242. Nem todos os supliciados pela Inquisição eram mortos pela fogueira; grande parte deles morria pelo garrote, ou seja, um pau curto com que se apertava a corda que os estrangulava, a proporcionar um tipo de morte quase rápida, mas não desprovida de dor e de inominável desespero, pela sufocação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 10, 2024 10:18 am

Epílogo
D. Tomás de Torquemada achava-se só, a trabalhar em sua secretária, quando recebe o emissário da rainha.
− Senhor! – diz o mensageiro, fazendo longa reverência e lhe entregando o pergaminho com o selo real.
− Que desejará Sua Majestade? – murmura o prelado, enquanto quebra, afoitamente, o lacre. Com mãos trémulas, desenrola o velino e lê ansioso o conteúdo da missiva: a rainha intimava-o a apresentar-se, urgentemente, ao paço real.
Em pouco, entre curioso e intrigado, o inquisidor-geral de Toledo, de joelhos, beijava, respeitosamente, a mão que Isabel de Castela, nervosamente, apresentava-lhe.
− Acomodai-vos, D. Tomás! – ordena a soberana de Leão e Castela, com a voz firme. – Temos muito que conversar! – e, a caminhar agitada, de um lado para outro, Isabel de Castela diz: − Pesa-nos, imensamente, à alma, o que vos diremos, Señor: mas, a partir desta hora, estais dispensado das funções de inquisidor-geral de Espanha!
− Que dizeis, Señora?! − exclama D. Torquemada, levantando-se, abruptamente. E a pôr-se extremamente pálido, pergunta: − A razão de tal atitude?
− Os desmandos, D. Tomás!... – brada a rainha, nervosa. – Os desmandos causados pelo Tribunal!... O papa pressiona-nos!...
Ordena a vossa demissão do Tribunal!...
− Mas vós tendes o poder – aliás, concedido pelo próprio papa! −, de legislardes, com plena independência da Santa Sé! − Independência, Señor? – exclama a rainha, cheia de ironias à voz. – Quando foi que, de fato, algum monarca deste mundo achou-se independente da Santa Sé?... Ora, não vos façais de parvo! Vós mesmo disso muito bem sabeis!
− Mas sempre segui as vossas recomendações, Majestade... – ousa dizer o prelado.
− Quando foi que vos recomendamos cometerdes as barbaridades que chegaram aos ouvidos do papa, D. Tomás? – observa a rainha, altamente contrariada pela ousadia de D. Torquemada.
− Mas tínhamos que promover a limpeza... – insiste o inquisidor geral.
− Sim, de facto – diz a rainha –, mas que a conduzísseis de modo inteligente e discreto, e não tão repleta de excessos contra os condenados!
− E como desejaríeis que tivéssemos feito? – rebate o inquisidor geral. – Foi preciso que assim agíssemos, pois há gente tão renitente...
− Sempre vos consideramos homem puro e cheio de fé, D. Tomás, tanto que o escolhemos, há tempos, para nosso confessor, mas não nos resta mais nada a fazer! Estais desligado da chefia do Tribunal! – exclama a rainha, a olhá-lo, fixamente, nos olhos. − Além do mais, a limpeza se processa, a contento, depois do decreto243!...
Em breve, a Espanha achar-se-á totalmente livre, e vós já não vos fazeis mais necessário à frente do Tribunal: cumpriste muito bem o vosso papel! − em seguida, estende-lhe a mão a beijar, sinal de que o colóquio encerrava-se.
D. Tomás de Torquemada deixa o paço real cabisbaixo, mergulhado em tristeza profunda. E, enquanto o carro percorria a distância até o Convento de Santo Domingo, local onde passaria a residir, temporariamente, sua cabeça fervilhava, premida pela grande decepção. Que seria da sua vida doravante? Servir a Deus de forma tão intensa tinha sido o seu maior intuito, até então, e a sua única razão de viver. E, proscrever os malditos assassinos do Senhor da face da terra não era o principal empenho que um cristão de verdade poderia fazer neste mundo? Que maior glória poderia ter almejado?... E se ri, no íntimo, cheio de orgulho. Pelos últimos anos, mandara tantos marranos aos infernos...244 Deus, certamente, haveria de recompensá-lo por esse serviço tão bem desempenhado!
Ao chegar ao convento, logo à entrada, encontra velho companheiro que o recebe, cheio de contentamento.
− D. Torquemada! – grita o padre Sebastián Navarrete, a abraçar o amigo. – Que bons ventos trazem o insigne inquisidor-geral a Santo Domingo?
− Ah, mi amigo! – exclama D. Torquemada, cheio de mágoa à voz. – Vamos à tua cela, que tenho novas a contar-te! – e a menear a cabeça, tristonho: − Na verdade, desagradáveis novidades, meu bom Navarrete!...
Em pouco, já na humílima cela do padre Navarrete, D. Tomás de Torquemada relata ao velho amigo a sua desdita, ao ser destituído do seu importante posto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 10, 2024 10:18 am

− A rainha deitou-me fora como se eu fosse um dedo de luva que não mais lhe servisse... – diz ele, magoadíssimo. Depois, a inflar-se, em patente desabafo: − Logo eu que tanto fiz pela limpeza!... – e a crispar os dedos da mão, prossegue: − Oh, não sabes, caro Sebastián, o quanto odeio os marranos! E te garanto que, ninguém, neste mundo de Deus, odeia mais que eu a essa gente desgraçada que assassinou o Cristo!... – e repete, altamente iracundo: − Oh, como os odeio!... E, por certo, não existirá, no mundo, ódio mais intenso que esse!
− Acho que te entendo, Tomás... – diz o bondoso padre de olhos dulcíssimos, mais a tentar consolar o amigo que a concordar com sentimento tão esdrúxulo. Depois de alguns instantes de silêncio que se estabelecera entre ambos, D. Navarrete exclama: − Ah, caro Tomás, tenho eu guardada, cá, comigo, uma carta que velho amigo deixou sob minha responsabilidade para que te entregasse em mãos! – e se levantando, abre pequena canastra de couro cru – um dos pouquíssimos pertences que tinha de seu – e dela retira um velino selado e o estende ao amigo. – Toma, é tua!... Apenas aguardava ocasião propícia a pô-la em tuas mãos!... Deixou-a cá o meu velho amigo, o rabino D. Mordechai Hagiz, antes que fugisse para Portugal, com o propósito de escapar da limpeza! – e, a abrir largo sorriso, emenda: − Esperto e sábio o bom rabino, não achas?
− Um porco imundo, isso sim! – responde o outro, carrancudo. E, com modos grosseiros, rompe o lacre e lê:
“Caríssimo D. Tomás de Torquemada,
Quando vossos olhos passarem por estas linhas, com a graça do Altíssimo, já deverei estar longe, muito bem acolhido em terras portuguesas...
E estas minha palavras encerram dois importantes propósitos, os quais enumero, a seguir, e suplico que os leiais, com atenção:
Primeiro, não deixaria o solo espanhol, terra amada que me foi berço e onde vivia feliz, até então, a apascentar as pobres ovelhas de Israel e também onde, vós e vossos asseclas, sob a ordem desses desalmados monarcas – D. Ferrand e D. Isabel − que, em nome do nefasto propósito de limpar as terras espanholas de gente ignominiosa − que somos nós, os judeus! −, decretaram mais uma infame perseguição – talvez a mais radical de todas que, até então, já atingiram o meu povo! –, sem lançar sobre a vossa cabeça o meu opróbrio, em nome de todos os milhares de inocentes supliciados e mortos pelas vossas mãos assassinas! Que o clamor de todo o sangue judeu derramado nas fogueiras e nos suplícios inquisitoriais recaia sobre a vossa cabeça, por toda a eternidade!
Segundo ponto: a mim, confesso, sempre me intrigou o cego e exageradamente incomum ódio que, por todo o tempo, devotastes ao nosso povo e, como perspicaz observador que sempre fui, a vossa figura, apesar do intenso asco que também vos devotava, chamou-me, sobremodo, a atenção: não é que sempre vos atribuí às feições algum traço semita? E, fortemente intrigado com tal questão, passei a estudar, com a maior das cautelas, a vossa genealogia, em segredo, e declaro, sem qualquer possibilidade de erro, depois de exaustivas buscas nos velhos alfarrábios genealógicos de várias localidades de Espanha – e afirmo, com todas as forças do meu ser, estar excessivamente chocado com o que descobri! – que, pelas deliberações sapientíssimas e insondáveis do Santo Yavé, vós tendes sangue judeu! Vossa ancestralidade revelou-me que um vosso antepassado245 contraiu núpcias com mulher judia, caríssimo D. Tomás de Torquemada!
Fácil foi-me descobrir que tal mulher pertencia a família de cristãos novos, baptizados no seio do catolicismo, na leva da primeira geração de judeus convertidos!
E, encerro esta minha narrativa, dizendo, com fundo amargor à alma: vós vos revelastes mais desgraçado que fôsseis um espanhol comum, pois em vossas veias corre sangue semita, e feristes, traiçoeira e barbaramente, os vossos irmãos de sangue!
Que, pelos terríveis crimes que cometestes contra a vossa gente, o Altíssimo vos torne impuro e maldito por todo o sempre!”
Mordechai Hagiz
Após a leitura das palavras que o rabino lhe escrevera, D. Tomás de Torquemada, extremamente pálido, revirou os olhos e teve um ataque de nervos e difícil foi ao padre Navarrete arrancar-lhe à mão, ferrenhamente crispada, o velino todo amassado...
Entretanto, D. Tomás recuperou-se bem, excelentemente tratado que foi pelas sábias e piedosas mãos do padre Sebastián Navarrete.
− Decidiste, mesmo, partir? – pergunta o padre Navarrete ao antigo inquisidor-geral de Espanha, dias depois.
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