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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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Mensagem  Ave sem Ninho 31/3/2024, 14:41

– Porque todos nós sabemos que ela virá, mais cedo ou mais tarde, meu filho – responde Yaacov. – E muitos sabem que, quando o papa a restaurar, no reino de Castela – e é o que maioria dos castelhanos deseja intensamente –, não haverá tempo de sequer apanharmos o Kipá62, e teremos que fugir para salvarmos a nossa vida. Infelizmente, é isso que prevejo para nós, e os que emigram para Portugal, apenas se antecipam a isso. Já aconteceu antes, não te esqueças!
– E se retornássemos ao Oriente? – observa Sara, depois de longo silêncio que se estabelecera entre eles. – Sei que muitos escolheram retornar à terra dos nossos pais.
– É uma saída, querida – diz Yaacov. – Conheço alguns patrícios que rumaram para lá, mas não sei, efectivamente, o que lhes sucedeu. Estarão vivos ou terão sido massacrados pelos muçulmanos? Não te esqueças de que, em Jerusalém, persiste o eterno conflito muçulmano-cristão...
– Por mim, ficaria por aqui mesmo – observa Benyamin. – Pelo que me consta, seremos perseguidos aonde quer que formos!
– Tens toda a razão, meu filho – diz Yaacov. – Nosso povo sempre foi acossado e perseguido desde a Diáspora63.
Um silêncio pesado, então, estabelece-se entre eles. No íntimo, cogitavam sobre a tensa situação que se armava para as suas vidas.
– Papai, preciso contar-te algo que anda a apoquentar-me as ideias – diz Maria de los Milagros, de repente, quebrando o silêncio.– Se não me aconselhares como lidar com tamanho desgosto que me aflige a alma, não sei o que será de mim!
– Oh, minha menina! – exclama Yaacov, a tomar a mão da filha entre as suas. – Diz-me lá o que tanto te atormenta a vida!... És tão jovem ainda, e o que te poderia trazer tanta aflição ao coração?
– Sinto-me acuada, papai! – revela ela. – Um homem ignóbil anda a perseguir-me aonde quer que eu vá!
– Quem é esse desgraçado, minha querida? – pergunta Yaacov, altamente exaltado. – Diz-me o nome desse imundo e eu o estrangularei com as minhas próprias mãos!– Não sei se poderás fazer isso com ele, papai! – retruca a jovem, a torcer as mãos, a demonstrar profunda aflição a varrer-lhe a alma como intenso vendaval. Trata-se de D. Aníbal Velásquez...
– O quê?! – espanta-se Yaacov. – O secretário do arcebispo?!...
Que quer ele de ti?
– Ao certo ainda não sei – responde a moça, a baixar os olhos. – Mas presumo o que seja...
– Miserável! – brada Yaacov, a tomar-se de intensa ira. – Que quererá ele de formosa e pura donzela como tu? – e a rilhar os dentes de tanto ódio, prossegue: – Desgraçar-te a vida, por certo!
– Mas como pode um sujeito como aquele, revestido de tão nobre posição, perseguir uma jovem indefesa como Milagros? – questiona Sara. E a fitar, firmemente, o rosto da filha: – Acaso não andaste a dar-lhe motivos, pois não?
– Oh, mãe! – rebate a mocinha, a encolher-se toda, vexada pelas palavras da mãe. – Por Yavé, que nunca, sequer olhei aquele homem às fuças!
– Digo-te isso – prossegue Sara –, porque sei como agem os homens! Para alguns deles, que são extremamente vis e mundanos, todas as mulheres do mundo são rameiras, não te esqueças disso!
– Mas D. Velásquez é um padre! – observa Benyamin, a entrar na conversa. – Como pode agir dessa forma, a prevaricar, tão patentemente?
– Oh, como és ingénuo, Benyamin! – exclama Yaacov, com a voz cheia de mofa. – Os senhores prelados são os que mais andam a prevaricar, às escondidas, neste mundo de Yavé! Por quem os tomas?... Por santos, acaso?... Saiba que, por baixo daquelas sotainas, o fogo da luxúria queima-os como a qualquer um de nós! – e a menear a cabeça: – Oh, como a hipocrisia anda de mãos dadas com essa gente!
– Diz-me, minha filha – fala Sara, deixando o seu lugar e se sentando ao lado da filha. E, envolvendo-a aos braços, pergunta: – Que te fez aquele lascivo?... Acaso já te molestou alguma vez?
– Oh, não, mamãe! – retruca a jovem. – Apenas que, quando me percebe só, seja nas recepções a que somos convidados, seja na igreja ou na rua, vem ele a admoestar-me com conversas e propostas inoportunas.
– E que tipo de propostas faz-te aquele lúbrico desgraçado? – pergunta Yaacov.
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Mensagem  Ave sem Ninho 31/3/2024, 14:41

– Diz achar-se perdidamente apaixonado por mim; que, se eu o aceitar, apostatará e fugirá comigo para o estrangeiro. E insiste que eu vá ter com ele, às escondidas, no palácio arquiepiscopal – responde a moça.
– Apostatar?! – exclama Yaacov, indignado. – Acaso ele é doido?!... Não sabe que a apostasia é crime, e que o caçarão aonde quer que ele vá? E, além do mais, condenada à exprobração pública e à prisão, também será a infeliz que com ele se for!
– Oh, papai, não sei o que fazer! – diz a moça, a soluçar e a tapar o rosto com as mãos.
– E o teu noivo disso já sabe? – pergunta Sara. – Seria bom que nada dele escondesses.
– Andrés de tudo sabe, mamãe! – responde a moça. – Só espero que não venha a tomar uma atitude drástica contra aquele homem!
– Oh, bom seria se Andrés enfiasse-lhe bem afiado punhal ao peito! – exclama Sara. – Assim, o mundo ver-se-ia livre de mais um calhorda como aquele!
– Acalma-te, mulher! – diz Yaacov. – Não te esqueças de que aquele ordinário é um homem poderoso, e nada lhe custará jogar o arcebispo contra nós! Aí então é que teremos de fugir, bem depressa, se quisermos salvar a nossa vida!
– Se tivermos tempo de fugir! – observa Benyamin. – E até acho que ele ainda não nos desgraçou, porque não possui meios suficientes para fazer isso!
– Tens razão, meu filho – diz Yaacov. – Quem nos garante que aquele maldito não anda a esperar tão-somente que a oportunidade chegue-lhe para fazer isso? Já vi essas coisas acontecerem antes!
Se um desgraçado desses se interessa por algo que não lhe pertence, ninguém o impedirá de tomar o que deseja à força!
– Até pessoas? – pergunta Maria de los Milagros, a abrir os olhos, espantada.– Principalmente pessoas, minha cara! – responde Yaacov. – Já vi tantos serem desgraçados, por conta da cobiça e da cupidez desses amaldiçoados! E quem é capaz de fazer-lhes frente?
Ninguém, pois esses demónios têm a justiça e o poder do lado deles!
– E o que faremos? – pergunta Sara, a mostrar-se altamente desolada. – Já tínhamos problemas suficientes a enfrentar e, agora, surge mais esse!
– De todos, acho esse o mais difícil – observa Yaacov. – Se esse maldito, de fato, interessou-se por nossa filha, ele não desistirá de seu abjecto intento e nos perseguirá até a morte!
– Oh, papai, tenho tanto medo! – exclama Maria de los Milagros, abraçando-se ao pai, aos prantos. – Temo que ele faça mal, também a Andrés!
– A esse lhe será mais difícil atingir, porque Ben Hanan é alto funcionário da rainha, mas quanto a nós...
– Tu te esqueces de que Ben Hanan, antes de ser protegido da rainha, é também judeu! – rebate Sara. – E ninguém escapa de bem armada velhacaria, ainda mais sendo judeu! Tu, de antemão, sabes muito bem que, ao ter de escolher entre um judeu – mesmo sendo de confiança – e um prelado, de que lado recairá a preferência da rainha!
– Acho que tens razão, minha cara... – fala Yaacov, meditabundo. – E não sei o que devemos fazer – e, depois de curto silêncio, pergunta à filha: – Disseste, há pouco, que Andrés já de tudo sabe; que lhe disse, então, quando a ele contaste?
– Revoltou-se, imensamente, e concluiu que devemos casar-nos, o mais brevemente possível, e emigrar, sem perda de tempo.
– É o que deveis fazer! – conclui Yaacov. – Teu noivo pensou sabiamente, e é preciso dar-lhe todo o apoio, antes que a mão daquele infeliz vos alcance e, se isso acontecer, só o Altíssimo a livrar-nos da sanha daquele demónio!
Um longo silêncio estabelece-se, então, entre os membros da família Shlomo. Dir-se-ia que todos cogitavam, intimamente, sobre o futuro cheio de incertezas que a todos aguardava. No alto, o sol marchava lentamente em direcção do seu ocaso, a demonstrar que o seu destino mostrava-se tão certo e tão inexorável quanto preciso e inabalável certamente deveria ser o que se reservava à vida daquelas pessoas...
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Mensagem  Ave sem Ninho 31/3/2024, 14:43

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51. Na Espanha, a partir de meados do século XIV, sob forte pressão do clero, a perseguição aos judeus acirrou-se. Em Toledo, em 1355, 12 mil judeus morreram vítimas de perseguição religiosa; o número atingiu 50 mil, em Palma de Mallorca, em 1391.
52. Um dos vários nomes com que os judeus invocam a Deus.
53. Antiga moeda divisionária, de cobre, que teve curso na Espanha e em Portugal.
54. Cerimónia judaica realizada quando o jovem atinge a maioridade religiosa, aos 13 anos de idade. Esse ritual ressalta a importância de cada um dos judeus na corrente ancestral do Judaísmo. É nessa ocasião que o jovem coloca, pela primeira vez, os filactérios – um par de pequenas caixas de couro, usadas ritualmente e amarradas à testa e ao braço por correias também de couro e que contêm trechos das Escrituras Sagradas.
55. Em meados do século XIV, desencadeia-se na Espanha a perseguição aos judeus. Uma série de massacres, violências, leis discriminatórias, conversões em massa sucederam-se ao longo do século XV, e, em 1449, é posta em vigor a primeira “limpeza de sangue”, que proibiu o acesso de descendentes de judeus a inúmeros cargos, honras e profissões. Face à existência de judeus e cristãos novos, alguns deles marranos, havia obviamente um conflito latente entre estes estratos.
56. Os Reis Católicos Fernando e Isabel, depois de muita insistência, conseguiram com que o papa Sixto IV finalmente recuasse em seu propósito de suspender o Tribunal em Castela, em vista da imensa importância da Espanha para a propagação do Cristianismo e, em outubro de 1483, Castela, Aragão, Leão, Catalunha e Valência, com o beneplácito do Sumo Pontífice que, de imediato, começou por reorganizar e reformar os Tribunais do Santo Ofício nesses reinos, com o propósito de reprimir e perseguir as heresias em terras espanholas.
57. Finalmente, em 1491, os Reis Católicos ordenaram a expulsão dos judeus que não quisessem converter-se ao Cristianismo. Milhares de judeus deixaram a Espanha em direcção a Portugal, malbaratando as suas fortunas por ninharias. Isso pareceu ser uma conclusão inevitável da situação que se tinha criado, já que, se grande parte dos judeus se tinha convertido, tornava-se difícil a existência dos não convertidos. Com isso, a situação na Espanha caracterizou-se até 1491 pela existência de três grupos: os judeus mosaicos, os judeus cristãos e os judeus marranos. Estes últimos tinham um pé no grupo mosaico, e outro pé no grupo cristão. A expulsão do grupo mosaico, em 1492, acarretou, automaticamente, o desaparecimento do grupo marrano. Destruído o ponto de atracção mosaico, os marranos foram absorvidos pelo Cristianismo, e o espaço de apenas uma geração bastou à Inquisição espanhola para acabar com eles todos.
58. Na verdade, o clero miúdo foi instruído e usado com o propósito de sublevar a plebe mais rasteira e ignorante contra os judeus, com a promessa de repassar-lhes os bens confiscados a esses.
59. Pequena placa de madeira, marfim ou metal, escavada para conter camada de cera, na qual os romanos escreviam com um estilo. Usava-se frequentemente em grupos de duas, três, cinco ou mais unidades (díptico, tríptico, pentáptico, políptico), ligadas por charneiras, formando conjunto, igualmente chamado códex, que se fechava como um livro e podia receber atacas, as quais se lacravam quando continham mensagens sigilosas.
60. Por essa época, final do século XV, na Península Ibérica, a medicina era quase que exclusivamente praticada pelos judeus, uma vez que, para a fé católica de então, apenas Deus tinha o privilégio de curar e se, eventualmente, não se conseguisse a cura pela fé, a hipocrisia era tanta a se permitir que se procurassem os médicos judeus pelo motivo de estes, não sendo cristãos, não incorreriam em falta perante a Igreja.
61. Na Espanha, a partir de meados do século XIV, sob forte pressão do clero, a perseguição aos judeus acirrou-se. Em Toledo, em 1355, 12 mil judeus morreram, vítimas de perseguição religiosa, e o número atingiu 50 mil, em Palma de Mallorca, em 1391.
62. Barrete semelhante ao solidéu, usado pelos judeus, em determinadas ocasiões.
63. A dispersão dos judeus pelo mundo, no decorrer dos séculos. Após a contenção da revolta judaica, iniciada em meados da década de 60 d.C., e a destruição de Jerusalém em 70 d.C., os judeus dispersaram-se pelo mundo – foi o início da Diáspora Judaica.
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Mensagem  Ave sem Ninho 31/3/2024, 14:43

Capítulo IV – A Inquisição em Espanha
Corria o ano de 1483. Após uma série de pressões feitas pelos reis de Espanha, Fernán e Isabel, o papa Sisto IV decide-se por autorizar a restauração da Inquisição em Castela.64 A partir de então, uma onda de inquietação varreu o solo espanhol. Os judeus mosaicos e os judeus marranos eram os que mais se sentiam ameaçados, pois, doravante, tudo o que lhes fosse impingido por parte dos castelhanos teria o apoio da lei; não mais as perseguições far-se-iam de forma indirecta, uma vez que, agora, passavam a ter carácter explícito e seriam apoiadas pela justiça. A preocupação e a insegurança dominavam os lares judeus e muçulmanos. Que lhes reservaria o destino, a partir dali?
Naquela tarde, Yaacov Shlomo chega a casa, com os ânimos baixos e com as feições intensamente tristes.
– Que tens, Yaacov? – pergunta Sara, a recebê-lo com um copo de refresco de romã às mãos, pois o calor fazia-se insuportável.
– Oh, o que temíamos, finalmente, concretiza-se, minha cara! – exclama ele, tomando o copo das mãos da esposa e se deixando sentar, desoladamente, numa almofada. – O papa acaba de permitir a restauração da Inquisição e, desta vez, em todo o território espanhol!...
– Oh, por Yavé!... – grita Sara, também a tomar-se de funda inquietação. – E, doravante, o que será de nós, Yaacov?
– Somente o Altíssimo saberá o que nos aguarda, Sara!... – responde Yaacov, a segurar o copo às mãos, sem ânimo de beber o seu conteúdo refrescante. – Mas, já presumo que boas coisas não se reservam a nós! Mesmo sem a Inquisição por estas bandas, já éramos alvo de perseguições e de ignomínias; o que dirá, agora, então, que têm o endosso da Igreja! A desgraça, por certo, visitará todos os lares judeus!... Creio que ninguém escapará à sanha dos que nos odiaram pela vida inteira!
– Referes-te àqueles que sempre olharam com olhos grandes para a fortuna que os judeus amealharam, anos a fio, com o suor do rosto, não é?... Que lhes move a perseguição contra nós senão a cobiça desmedida que sempre lançaram sobre o que nos pertence?
– desabafa Sara, a demonstrar funda indignação. – E sei que não nos respeitarão!... Mas, que me aguardem: de mim só levarão cinzas!
– Haverá uma guerra civil, por certo – observa Yaacov. – Ou achas que entregaremos, passivamente, tudo o que temos a esses ordinários que nunca tiveram o arrojo, a coragem e a esperteza dos judeus? Sempre foram uns parvos inúteis!
– Falta-lhes atitude perante a vida, Yaacov – diz Sara. – Acham que o ouro brota, espontaneamente, tão-somente às mãos dos judeus!... Que despropósito!... Yavé sabe o quanto nos custou amealhar cada moeda!
– Tens toda a razão, Sara! Ninguém sabe o que passou cada judeu, para sobreviver entre esses estúpidos que em nós lançam a culpa por todas as desgraças que acontecem no mundo inteiro!... Se as doenças matam-lhes os rebanhos, os judeus é que lhe deitaram olhos gordos; se uma criança morre, os judeus é que lhe botaram quebranto; se as tempestades arrasam as lavouras, os judeus é que as conjuraram por meio da magia negra!... Sempre fomos os bodes expiatórios dessa gente ignorante e má!... Além da eterna e abjecta pecha de assassinos do Cristo!...
– Oh, esse maldito estigma que sobre a nossa raça paira nunca será retirado, creio, mesmo pelo desfiar dos séculos! – geme Sara.
– E, pergunto-te eu: que culpa, efectivamente, temos por esse enfado?... Não fui eu a meter o Cristo numa cruz!... Quem costumava crucificar os condenados eram os romanos, não os judeus!– Mas o fato ocorreu em nossa terra, Sara! E, por isso, lançam-nos a culpa por esse desdouro! E eu, particularmente, nada nunca tive contra o Judeu Crucificado!... Até O considero um homem valoroso, um ilustre profeta, que defendeu muito bem as suas ideias! Se o que pregou não me interessa, por que é que O iria perseguir?
Penso que cada um de nós deveria ser dono da própria vida, pois, se não temos liberdade de pensar e de fazer o que desejamos, tornamo-nos escravos como qualquer um daqueles desgraçados que os antigos compravam e vendiam como sói fazer-se aos animais! – e a abrir amplo gesto com as mãos: – A liberdade é tudo, neste mundo, minha cara!... Tudo!...
– Acho que tens razão... – concorda a mulher. – Contudo, a realidade principia a fazer-se muito pesada aos nossos ombros, Yaacov! – diz ela, com fundo suspiro. – Temo tanto pelos nossos filhos!... Nós até que já vivemos bastante, mas, e eles?... São quase crianças, ainda!...
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Mensagem  Ave sem Ninho 31/3/2024, 14:44

– É verdade, minha querida! – diz Yaacov, acercando-se da esposa e a envolvendo, ternamente, com os braços. – Pouca coisa os nossos filhos já viram deste mundo! E, voltando ao que nos preocupa, no momento, fiquei sabendo que o Tribunal da Inquisição instaura-se, sem perda de tempo, agora, aqui, em Toledo, e saiba que esse monstro voraz estenderá as suas garras por toda Castela, e ninguém lhe escapará à sanha!
– E por que não nos precavemos, de antemão? – pergunta Sara.
– Por que não deixamos a Espanha, antes que a desgraça, efectivamente, venha bater-nos à porta?
– A princípio, penso que tens razão, pois ainda há tempo de arrumarmos as nossas coisas e buscarmos Portugal ou mesmo as terras da Palestina; mas, por outro lado, que fizemos nós aos castelhanos, para que venham esbulhar as nossas propriedades?...
Acaso não sou amigo e quase parente de Ben Hanan, o protegido da rainha?... Às vezes, penso que a nossa soberana não permitirá que as mãos desses desgraçados cobiçosos venham atingir-nos.
– Eu, no entanto, acho que, quando o incêndio da desgraça abater-se sobre os da nossa raça, ninguém será poupado!... Leio-lhes aos olhos o tamanho da inveja que têm de nós, e a cobiça que alimentam por nossos haveres, e a rainha, por certo, tomará o lado dos castelhanos! Quanto a isso, não tenho a menor dúvida! A coisa arrebentará para o nosso lado!
– No fundo, tens toda razão, querida! – diz Yaacov, enchendo-se de desalento. – É preciso cogitar muito sobre o rumo que deveremos tomar. Ficar aqui não será prudente, e, deixar para trás tudo o que nos pertence, sem dúvida, arrancar-nos-á fora o coração! Mas, é justamente pelos nossos filhos que penso isso fazer! O que temos guardado em ouro irá suprir as nossas necessidades por muito tempo e nos facultará, ainda, estabelecermo-nos em qualquer cidade de Portugal, ou mesmo, no Oriente. Se uma dessas medidas tomarmos, creio que estaremos a salvo!
– E haverá tempo para isso, pergunto-te. E se, de repente, aquela maldição começar a funcionar, antes que te decidas sobre o caminho a tomar, e aquele desgraçado que teima em deitar os olhos sobre Milagros resolver-se por agir mais rápido que tu, a delatar-nos ao Tribunal, que farás? – pergunta Sara, cheia de angústia à voz. – Ele pertence à Igreja e o que lhe custará fazer uma denúncia qualquer contra nós?
– É um risco, minha cara! – responde Yaacov. – É um sério risco que corremos. Se o maldito, de fato, deseja meter as mãos em nossa menina, quem lhe poderá fazer resistência?
*******
Enquanto Yaacov e Sara enchiam-se de apreensões pelo destino que, possivelmente, aguardá-los-ia, D. Aníbal Velásquez recebia o velho amigo, D. Fernán Guillén.
– Por onde andaste, D. Fernán? – exclama o secretário do arcebispo de Toledo, abraçando-se ao recém-chegado. – Não me digas que andaste por Valência!
– Oh, agora deste para adivinho, mi amigo?... – responde o visitante, a rir-se. – Sim, por lá estive, a buscar a minha quota dos lucros da hacienda... – e a sentar-se, a convite do anfitrião, prossegue: – Se lá não vou, meus dilectos primos passam-me a perna!– ¡Por supuesto, Señor! – diz o outro, também a rir-se. – Os parentes são os piores! – e se abre em estrepitosa gargalhada: – Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... – e, contendo-se, pergunta, altamente interessado: – E o Tribunal? Viste como não se demorou a restaurar-se em solo castelhano?
– Tinhas razão, D. Aníbal – responde o outro, com um sorriso triunfante. – A balbúrdia e o desespero já se mostram patentes entre os marranos... – e a tornar-se sério: – Entretanto, mesmo antes que se patenteassem as primeiras denúncias, uma vez que os trâmites legais para a instalação do Tribunal demorassem um bom tempo, os desgraçados já se unem contra nós!
– Seria uma imbecilidade de nossa parte, se esperássemos que não se iriam unir, a fazer-nos resistência! Eles são em número expressivo e sabem muito bem se juntar, quando a situação volta-se contra eles!... Se não fossem unidos, a meio de tantas perseguições, através dos séculos, já se teriam extinguido, não é?
– Por certo que sim – responde o outro. – Mas já se sabe que acaba de acontecer uma porção de entreveros entre valencianos e marranos, nos últimos dias. Houve a prisão de pequeno contingente, porém o Tribunal, lá, ainda não se manifestou – e a piscar um olho maroto: – É o que vos digo: os reis vão devagar, pois é preciso muita cautela, ou o papa voltará a cassar o Tribunal, mesmo antes que se instaure de verdade!
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 00:12

– Tens razão, D. Fernán – concorda o prelado. – E, por outro lado, la sangre limpia é questão de honra para todos os espanhóis, pois não se admitirá, em hipótese alguma, a construção de um povo forte, se não tiver as raízes fundadas numa raça pura! Faz-se imperiosa a limpeza dessa escória que nos embota a nação!
– Além de serem eles os donos das maiores fortunas do reino! – diz D. Fernán Guillén, a piscar-lhe um olho. – Detêm às mãos a maior parte do ouro de toda a Península!
– E das terras também! – acrescenta o outro. – Se quisessem articular-se, com o ouro que têm, com facilidade teriam como enfrentar-nos, a criarem o próprio reino, em terras espanholas.
– Pior ainda se se juntassem aos mouros! – observa D. Fernán. – Esses continuam a fazer-nos frente, e creio que, mesmo recuado sem Granada, estão a custar-nos muito empenho, a consumarmos-lhes a expulsão definitiva do solo castelhano!...65 Agora, observa bem: se se unissem, formariam um contingente imenso e não lhes seria difícil fazerem-nos poderosa e imbatível frente! A nossa sorte é que não se dão, a ponto de aliarem-se contra nós!
– Sabemos que apenas se toleram – diz D. Aníbal. – E isso porque ambos os povos são perseguidos. Se estivessem em condição diferente, por certo não se aturariam reciprocamente!
– Mas, vamos ao que ora, verdadeiramente, interessa-nos: que de real sabeis sobre as ocorrências em Sevilha? – pergunta D. Aníbal, a mostrar-se deveras interessado. – Ardo-me por saber qual a reacção dos marranos por lá, após a reinstituição do Tribunal!
– Pouco sei, de facto, o que anda a ocorrer por aquelas bandas, D. Aníbal; entretanto, avistei-me, ainda ontem, com D. Esteban Echeverría que lá esteve, recentemente, e me disse ele que os ânimos andam exaltados: na realidade, grande confusão instalou-se nos guetos marranos, pois os padres, em todas as igrejas, andam a estumar o povo contra aqueles desclassificados, incitando os fiéis a espancarem e a perseguirem qualquer judeu que encontrem à frente!
– E o povo, certamente, leva esse conselho à risca! – diz D. Aníbal, a rir-se. E, a menear a cabeça, prossegue, cheio de mofa: – Só não sei quem é mais porco, nessa história toda...
– Onde se escondem interesses espúrios, D. Aníbal... – observa o outro, a fazer largo gesto com as mãos. – Certamente não será entre pessoas dignas e justas... Na verdade, é difícil saber quem é pior que o outro...
– Tens razão, meu amigo – responde D. Aníbal. – Eu e tu, por certo, não precisamos nos esconder atrás de nenhuma máscara, não é mesmo? Somos instruídos, tivemos acesso às escolas e sabemos muito bem discernir onde as coisas fazem-se sérias e onde medram a trapaça e a enganação! E saiba que não ando a fazer a apologia de nenhuma das partes, pois, se queres mesmo saber a minha opinião, nem uma, nem outra teria o meu aval, uma vez que a própria Igreja, hoje, veste-se quase que exclusivamente de hipocrisia e de interesses mundanos; o povo, inculto e grosseiro, locupletar-se-á, tão-só e exclusivamente, da rapina, se se lhe derem ensejos para isso, e marranos e mouros não são diferentes, pois, se aqueles adoram e fazem da sua verdadeira profissão de fé a onzena e a impostura, estes, cheios de orgulho e de presunção, consideram-se os únicos e verdadeiros filhos de Deus, devendo – por instrução do seu profeta! – exterminar o resto da humanidade, sem piedade ou comiseração!
Quem, de facto, vale algo, nessa embrulhada toda?
– E, nós, os cristão? – observa D. Fernán Guillén, cheio de ironia à voz. – Há algo mais barato e mais abjecto que a venda de indulgências?
– Agora tocaste num ponto crucial, mi amigo! – exclama D. Aníbal, a torcer as mãos, de tanta excitação. – Sabes muito bem o que penso dessa massagada pegajosa em que se meteu a Santa Sé! – e a rir-se, desbragadamente, continua: – Sempre te disse que tal procedimento ainda levará a Igreja a novo e grandioso cisma do qual – se sobreviver! –, certamente sairá toda esfrangalhada!... Se viveres um bom tempo mais, poderás confirmar o que ora te digo!...
Até já te falei sobre os sonhos que ando tendo ultimamente...
– Será isso possível, D. Aníbal? – rebate o outro. – Não te esqueças de que a Igreja foi fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, que a fundamentou sobre a fé de São Pedro!... Tem, portanto, a chancela do Cristo, e nada a derribará, por certo!
– Não vou desconsiderar que a Igreja, ao seu início, fundou-se, efectivamente, sobre a fé de São Pedro – e se cala por instantes, a remoer uma ideia que, de repente, batera-lhe à cabeça –, mas, observa bem, D. Fernán, lá no fundo da tua fria razão – que bem conheço! –, não achas que São Pedro, na realidade, era bem apoucado de fé?...
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 2 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 00:12

O Cristo, por acaso, não vivia a chamar-lhe a atenção sobre os titubei-os que aquele pescador rude e inculto vivia a demonstrar? – e diante do silêncio do outro, prossegue: – Não achas que Nosso Senhor, neste caso, arriscou muito, ao fundamentar a Sua Igreja sobre a fé desse apóstolo? Sempre achei São João Evangelista mais sábio e mais resistente às investidas do diabo...– A priori, penso que tens razão; entretanto, não achas que, talvez, Nosso Senhor tenha escolhido esse apóstolo que se mostrava, no mais das vezes, incrédulo e pusilânime, diante das grandes provações da vida, exactamente por ser ele o protótipo da maioria dos homens deste mundo? – observa D. Fernán. E, antes que o outro respondesse, prossegue: – Contrariamente ao que pensaste, tributo residir, exactamente nessa pretensa e equivocada acção de Jesus, a Sua verdadeira sabedoria: a de mostrar que a Igreja deveria sustentar-se, entre outras coisas, sobre a falta de fé e a covardia dos homens!
– Se obtemperarmos sob esse ângulo, D. Fernán, andas coberto de razão! – exclama D. Aníbal. – Porém, deveria saber o Cristo que, sustentando a Sua igreja sobre a fraqueza humana, ela poderia, um dia, ruir, fragorosamente, se o mundo viesse a constituir-se, em sua grande maioria, de homens de fé apoucada, como sói acontecer nos tempos atuais!
– Em parte, tens razão, D. Aníbal – prossegue o outro –, entretanto bem o sabes – e não é necessário que te faça relembrar!
–: amiúde, o Cristo vem suprindo as nossas deficiências de fé, a enviar-nos emissários Seus, com o propósito de reforçarem a nossa tibieza. Tem sido sempre assim! A igreja tem contado com novos e fortes pilares, a sustentarem a sua debilidade que outra coisa não faz que aumentar, mais e mais, através dos séculos: Santo Agostinho, São Jerónimo, São Tomás de Aquino, São Francisco de Assis...
– E ai de nós, se esses que enumeraste e, ainda, outros mais não tivessem vindo, a reforçarem a nossa fé!... A Igreja já teria ruído há muito tempo!
– E, agora, lembro Wycliffe, o herege inglês: mais lhe reforço a tese de que a Igreja não deveria meter-se em política! A ela deveria caber tão-somente o lado espiritual das coisas!
– E nós nos contentaríamos com tão pouco, D. Fernán?... – observa D. Aníbal. – Sabes muito bem que as coisas da alma não nos fazem fremir de gozo intenso como as do corpo!... Não te esqueças de que, no momento, ainda somos feitos de carne!... E o que nos faz, de fato, bramar de êxtase, ainda é o sangue a gelar-nos dentro das nossas veias, quando nos achamos diante dos grandes desafios da vida, ou, ainda, quando nos deixamos envolver pela desmedida volúpia, a escaldar-nos a alma, frente aos saborosos e impagáveis prazeres mundanos!... – e a abrir um sorriso malicioso: – Como quando nos achamos aos braços de linda mulher!...
– Na verdade, tudo isso sempre acaba por fazer-me doer, terrivelmente, a cabeça, D. Aníbal! – diz D. Fernán, a rir-se, enquanto premia, jocosamente, as têmporas, com a ponta dos dedos. – Trocando em miúdos, queres dizer que, na actualidade, é sobre velhacos como nós dois que a Igreja anda a fundamentar-se, não é mesmo?... Boni pastoris est tondere pecus, non deglubere...66
– e abre-se em gostosa gargalhada: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
– Oh, não me auto-depreciaria tanto assim, D. Fernán! – fala D. Aníbal, fingindo amofinar-se. – Por outro lado, se a Igreja não se sustentasse sobre pessoas desse modo tão especiais como nós, também não teria ido em frente, faz já quase mil e quinhentos anos!... Nada se sustenta por tanto tempo assim, neste mundo, se não for dirigida por gente sábia e esperta ao mesmo tempo! Vide o Império Romano, por exemplo: só subsistiu por séculos, porque os seus governantes, na maioria das vezes, juntavam as duas capacidades às quais imputo o segredo do real sucesso neste mundo: a esperteza, aliada à inteligência!
– E no que se diferem essas duas qualidades? – pergunta D. Fernán.
– Se alguém é esperto e não inteligente, cedo ou tarde, dará com os cornos na cerca, pois lhe faltam a sensatez e o equilíbrio próprios da inteligência; se, por outro lado, se é tão-somente inteligente, falta-lhe o arrojo e até mesmo a ousadia inconsequente dos espertos e, por isso, perderá a maioria das boas oportunidades que lhe baterem à porta! Não estás cansado de ver muitos sábios mourejarem em seus esconderijos, a criarem lodo e musgo às vestes e às feições?... E, por outro lado, muito sujeito esperto – porém falto de inteligência! − pelo excesso de autoconfiança, ser lançado ao lamaçal até as orelhas?... É preciso, portanto, que se seja agraciado com os dois dons: a inteligência e a esperteza, concomitantemente! Eis a chave do sucesso, meu caro!
− Estás coberto de razão, D. Aníbal! − concorda o outro, a rir-se.
E, depois de instantes, prossegue: − A propósito, como vai o coração?... Da última vez em que aqui estive, andavas cheio de tristezas pela paixão que vos despertou certa jovem judia...
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 2 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 00:12

− O coração, D. Fernán... O coração anda a judiar-me sobremodo. Deves saber como são tais coisas, não é mesmo?
− Se sei! − responde o outro. E, depois de cogitar por instantes:
− Entretanto, o que te impede de raptar essa moça, levá-la até uma das vossas propriedades e dar vazão à tua paixão?
− Em tese, nada me impediria de raptá-la e prendê-la em lugar ignorado; contudo, esqueces-te de que o pai de Maria de los Milagros é um judeu muito rico e que, além disso, ela é noiva do filho de Ben Hanan, um dos secretários da rainha. Não achas que, se isso eu fizer, eventualmente, não poderão recair sobre mim as suspeitas do desaparecimento dela? Esqueces-te de que eu já me declarei a ela?... Não achas, acaso, que Milagros já não terá revelado isso ao noivo e aos pais? Por certo que sim!... De caso bem pensado, acho que me precipitei ao abordá-la, por algumas vezes em que nos encontramos em jantares e saraus. Muita gente certamente terá nos visto juntos, durante essas minhas abordagens.
Arrependo-me de tê-las feito em público, mas sabes muito bem como é: pessoas apaixonadas tornam-se ridículas, e isso não percebem. Entretanto, se a submeto à força, raptando-a, tudo terá de ser muito bem feito, a não deixar pistas ou testemunhas... De qualquer modo, o desaparecimento da moça gerará tumulto, pois como muito bem o sabes, ela pertence a família de posses, apesar de judia. O escândalo seria inevitável e chegaria bem depressa aos ouvidos do arcebispo. E como ficariam as minhas pretensões de obter a mitra? Sabes que, pelas inúmeras intercessões de Sua Excelência, tenho, já, promessas de ser sagrado bispo pelo Santo Padre. E se estoura um escândalo a envolver-me?... Minha carreira, por certo, achar-se-á comprometida, como bem podes imaginar.
− Entretanto, se bem o fizeres, nunca ninguém o saberá! − rebate o outro. – Quem não arrisca...− Pode ser que tu tenhas razão... Porém, enquanto não me decido, fico entre a cruz e a caldeirinha! Ardo-me de paixão por Milagros, mas também me interessa, sobremaneira, ostentar o barrete episcopal à cabeça.
− Ah, fosse eu a enfrentar tal situação, digo-te, com toda a certeza deste mundo, que lutaria para meter a minha mão às duas preciosidades! – diz D. Fernán. – Que me valeria a mitra, se não tivesse a mulher dos meus sonhos, a esquentar-me nas noites de inverno?
− Estás certo, meu amigo! − concorda D. Aníbal Velásquez. – Entretanto, como não tens a tua cauda presa sob os tacões da botina do papa, acho que não sabes o que representa manter a maldita castidade, mormente para um prelado como eu que se encontra nessa situação, sem ter a mínima vocação religiosa!
− De facto, a tua condição chega a ser desesperadora, imagino eu! És um homem forte, bem-feito de feições, ainda jovem...
− Oh, não sabes a loucura que é viver abrasado, D. Fernán!... – exclama D. Aníbal, com a face transtornada pelo desespero. E, procurando conter-se, prossegue, com infinita amargura à voz: − Acho que não podes aquilatar a frialdade que possui um leito solitário... As noites tornam-se martirizantes e excessivamente longas; o sono não vem; o corpo queima-se-nos como fogo vivo, a ansiar pelas carícias de uma mulher... Tenho passado extensíssimas noites insones, meu caro...
− Apostatar, raptar a jovem judia e fugir para longe não podes, porque os teus bens foram todos doados à Igreja, quando da tua ordenação, além de te tornares proscrito e de te lançarem a ignomínia à cabeça e de te caçarem como criminoso aonde quer que fores! Sabes muito bem que a apostasia é crime!
− Acaso não sei eu de cor todas essas coisas que enumeraste?
– observa D. Aníbal, cheio de abatimento às feições. – Sem os meus haveres, como é que me iria arranjar por aí? Nem teria condições de manter um lar... E, além do mais, tanto eu como Milagros sempre fomos ricos e nunca soubemos, de fato, o que
viver na pobreza!− Também nunca fui pobre, mas posso perfeitamente imaginar
como deverá ser! – exclama D. Fernán, baixando o rosto, a olhar o bico das botinas.
− Como bem o vês, acho-me sem saída!
− Ainda penso que, por um amor, vale a pena arriscar! − diz D. Fernán, voltando a encarar o seu interlocutor. E, a iluminar-se, com uma ideia que, subitamente, viera-lhe à cabeça, prossegue: − O Tribunal, D. Aníbal!... A Inquisição salvar-te-á!
− Como?!... – pergunta D. Aníbal, sem ainda atinar com o que lhe dizia o amigo.
− Muito simples, meu caro! – prossegue o advogado. – A Inquisição dar-te-á, de presente, a jovem judia!
− Não entendo de que modo...
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 2 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 00:13

− Com o advento do Tribunal, bastará uma denúncia, entendes?
Mesmo sendo judeus conversos, será suficiente que se os denunciem como hereges! Compreendes, agora?
− Mas eles são hereges, mesmo, D. Fernán! – diz o outro. – Todo mundo, neste reino, sabe que, em sua grande maioria, os marranos são todos hereges! Mostram-se cristãos tão-somente na aparência; às ocultas, sempre professaram a sua fé! Por isso que os tenho à conta de falsos, perjuros, e a única coisa que lhes move a existência é a usura!
− Tanto mais fácil para nós, agora, com o aval da Santa Sé, pois poderemos excluí-los todos, definitivamente, da nossa terra!
− Porém há que se formar, antes, muito bem estudado critério, com o propósito de alijá-los todos do reino − observa D. Aníbal. – Ou o papa voltará a suspender o Tribunal, como já o fez recentemente!
− Aliás, o papa sequer desejava conceder-nos o Tribunal. Acho que andou a farejar as nossas reais pretensões!
− Reles imbecis seríamos, se pensássemos que Sua Santidade desconhece o que realmente se passa por aqui!... Bons informantes não lhe faltam...
− Por certo que sim – concorda D. Fernán. – Como pensas que a Santa Sé vem mantendo a hegemonia da Igreja até então? Muito cuidado e atenção e, principalmente, obediência cega e irrestrita à hierarquia e aos cânones!
Sabes muito bem que, sem o respeito absoluto à hierarquia e à lei, o caos estabelece-se.
− E, com o caos, a solvência, a balbúrdia...
− A Igreja descobriu o segredo da imortalidade, D. Aníbal. O elixir da longa vida resume-se a isto: obediência cega à hierarquia e à lei!
− E, paradoxalmente contra o que prega, a Igreja não concede o perdão aos transgressores que fazem parte do seu corpo: punição imediata e inapelável ao transgressor! Fazer calar, inexoravelmente, qualquer voz que se levante contra as suas estruturas!
− Certamente que, D. Aníbal, para manter a obediência cega à hierarquia e aos preceitos que prega, a Igreja tem empregado, no mais das vezes, a força em detrimento da razão. Hajam vistas as perseguições que ela tem deflagrado aos seus mais ferrenhos detractores: Wycliffe, Huss...
− E a muitos ainda terá de fazer calar, D. Fernán, se assim continuar, teimando em não enxergar que o mundo muda, que as coisas evoluem... Muitos pensadores, em toda a Europa, andam a questionar-se acerca dos preceitos aristotélico-tomistas67 sobre os quais a Igreja fundamenta-se.
− Pois te digo mais, D. Aníbal, que aquilo que me disseste, certa vez, que, em sonho, viste as igrejas todas de Barcelona incendiando-se – lembras-te? – poderá, efectivamente, traduzir-se em realidade! Ora creio que grandes mudanças armam-se no horizonte. A Ciência cresce e a fé arrefece... Se a Santa Sé, ao invés de perseguir e fazer calar a voz aos que realmente pensam, neste mundo, passasse ela, outrossim, a apoiá-los, desse-lhes crédito e renovasse os seus conceitos, que já andam bastante corroídos pelas traças do tempo, evitaria, dessarte, muitos dissabores futuros... Caso contrário, creio, muito em breve, perderá a sua hegemonia sobre o mundo cristão!
− Com isso tudo concordo, D. Fernán, mas acabamos ambos por divagar. Dizias, ao princípio da nossa conversa, que a Inquisição ajudar-me-ia a conquistar minha amada. Como pensas ser isso possível?
− Apenas que tenhas um pouco mais de paciência, D. Aníbal – aconselha D. Fernán. – Aguardemos que o Tribunal instale-se, de vez, em Castela. Soube, por informação de D. Julian Carmona, que os reis pensam em nomear um inquisidor-geral, e que terá a jurisdição sobre todos os tribunais, em todas as províncias de Espanha.
− E esse inquisidor-geral terá, então, amplos poderes, com direito a sentenciar, irrestritamente, sobre a vida ou a morte dos indiciados?
− Não dessa forma, D. Aníbal! Não te esqueças de que o papa não concede esse direito ao Tribunal: apenas o de investigar, processar e julgar os condenados. A execução da pena caberá tão somente ao Estado.
− Mas, assim, o Tribunal já nasce coxo!− observa D. Aníbal. – Tudo dependerá da sanção dos reis!
− Aí é que te enganas! Acaso não sabes quais são os reais interesses da coroa em relação aos mouros e aos marranos todos?
– pergunta D. Fernán. E, a abrir um amplo sorriso, prossegue: – Suas Majestades não desejam outra coisa senão promover a limpeza de sangue e, embutido por trás disso – e o que se revela mais importante nessa massagada toda! – é adonairem-se da fabulosa fortuna que esses trastes detêm em mãos...
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 2 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 00:13

Para tanto, o Tribunal deverá investigar as denúncias, prender, julgar, condenar os hereges marranos e mouros, e os soberanos de Castela executá-los-ão!
− E que tipo de denúncia far-se-á? – pergunta D. Aníbal, a mostrar-se altamente interessado.
− As mais variadas possíveis, penso eu − responde D. Fernán. – Mas haverá que se ter critérios – e, depois de sorver grosso gole da sua taça de vinho, prossegue: − Simples denúncias, como afirmar ser alguém marrano, creio que não será suficiente, a justificar uma prisão e, consequentemente, condenar-se alguém à morte, e isso acabará por cair no lugar-comum, uma vez que todo o mundo sabe quem são os marranos e mouros todos da Espanha inteira. Será preciso explorar outros caminhos... – e a abrir um sorriso, continua:
− Sabes muito bem como é o imaginário popular! Muito se inventou sobre a prática do judaísmo, e nós sabemos que quase a totalidade do que dizem é pura imaginação e invencionice das gentes, não é mesmo?
Entretanto, agora vale reforçarmos a ideia de que eles, os judeus, efectivamente, andam a evocar o diabo, durante os sabás68, nas clareiras das florestas, todos nus, a prestarem homenagens ao príncipe das trevas; que raptam criancinhas, com o propósito de beberem-lhes o sangue, a fim de obterem a juventude eterna, e mais outras absurdidades que conheces muito bem, mas bem suficientes para que o povo bruto e insensato volte-se contra eles e os denunciem ao Tribunal.
− Sei que já se instruem os párocos para que insuflem as gentes contra os marranos e os mouros – diz D. Aníbal. – Açular esses ignorantes todos não nos será tarefa difícil; entretanto, e as provas?
Sabemos que os judeus não fazem sabás nas florestas, que não raptam criancinhas nenhumas e que não bebem sangue humano.
Como iremos provar tudo isso? É sabido que há marranos e mouros muito cultos, que muitos são hábeis advogados, médicos, herbanários, escreventes...
− As provas forjam-se, mi amigo... − diz D. Fernán, com um riso de escárnio. – O importante é lançar a suspeita, começar o processo. Em síntese, quebrar a placidez das águas do lago... Uma vez lançada a turbulência, a própria ignorância do povo não deixará que se questione muito. É como o estouro de um rebanho... E o mais importante é criar uma prática tendenciosa no Tribunal, entendes? A priori, o indiciado deverá ser considerado sempre culpado.
− Como excelente advogado que és, tudo o que disseste creio ser válido, D. Fernán; entretanto, como, verdadeiramente, serão instituídas as bases do Tribunal?... Quem será o inquisidor-geral?...
Não concordas que tenha de ser pessoa de inteira confiança dos soberanos, para que venha, sub-repticiamente, dirigir o Tribunal segundo o desejo deles?
− Sim; contudo, não será de todo fácil dominar um prelado culto e capaz, fazendo-o dobrar-se à vontade temporal! Sabes muito bem que a Igreja sempre se achou até mesmo acima dos reis. A quem esse inquisidor-geral terá de obedecer? Aos reis ou ao papa?... Não crês que, uma vez encontrado esse personagem, não se deverá, obviamente, de se lhe colocar o nome à aquiescência papal? Ainda mais em cargo de tamanha relevância!
− Tens razão, D. Fernán. A coisa poderá vir a complicar-se. Não será fácil ao rei encontrar algum prelado capaz de tomar as rédeas do Tribunal e que, ao mesmo tempo, prescinda de obedecer às ordens do sumo pontífice em detrimento de colocar-se sob a jurisdição real.
− Sim − concorda D. Fernán −, ele terá de ser um hábil conciliador, ou se dará muito mal! Se desobedecer, às claras, as recomendações da Santa Sé, será punido; se desobedecer aos soberanos de Castela, ver-se-á em maus lençóis. Eu é que não
desejaria, por nada deste mundo, ocupar tal cargo!
− Vejo que não será fácil aos soberanos escolherem o inquisidor geral!
− A indicação, queres dizer − corrige-o D. Fernán −, uma vez que os reis apenas indicarão o nome; quem, de fato, nomeia o inquisidor-geral é o papa. E se Sua Santidade não estiver de acordo com o nome indicado, não o nomeará. Tal prerrogativa pertence à Santa Sé, não te esqueças disso!
− O papa aceitá-la-á, D, Fernán! – rebate D. Aníbal, com uma pitada de fina ironia à voz. – Tenho a absoluta certeza de que Sua Santidade aceitará a indicação, seja ela qual for, uma vez que será acompanhada de polpuda doação que Suas Majestades farão ao tesouro eclesial! Acaso não tem sido assim, ultimamente? Já faz um bom tempo que a Igreja não tem resistido ao tilintar das moedas de ouro!...
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 2 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 00:13

Naturae sequitur semina quisquis suae.69 − e explode em estrepitosa gargalhada: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− De pleno acordo, D. Aníbal – diz o outro, também a rir-se. E, fazendo-se sério, prossegue: – Sabemos ambos muito bem que é principalmente essa cupidez que está levando a Igreja a esboroar-se toda!... Se tais desmandos, aliados à decadência dos princípios de alta moralidade − que deveriam caracterizar a conduta, a começar pelos papas até os simples curas de almas das aldeias mais singelas! − não forem refreados, e semelhantemente ao rei de Nínive que, diante das admoestações que lhe trazia o profeta Jonas, a mando de Deus, acerca da destruição daquela cidade, resolveu por regenerar-se, renegando a luxúria e a insensatez e, cobrindo-se de trapos e de cinzas, deu o exemplo a seu povo, que o seguiu, livrando-se dos vícios e da abominação, e Nínive não foi destruída.70
− Excelente lembrança, D. Fernán! – observa D. Aníbal. – Muito bem lembrada essa passagem do Velho Testamento, pois, à semelhança da decaída Nínive, também assim se porta a Igreja, nos tempos atuais. Se não se espelhar em tão propício exemplo e não buscar a regeneração, por certo é que cairá, cedo ou tarde!
− Mas não te esqueças, D. Aníbal, de que a reabilitação dos ninivitas diante de Deus só se efectivou porque seu rei, juntamente com seus súbditos, vestiu-se de aniagem e, cobrindo-se de cinzas, postou-se humilde diante de Deus. Credes, mesmo, que os príncipes da Igreja serão capazes de humilhar-se, despojando-se da púrpura e dos ricos anéis e báculos de ouro e do desmedido luxo que andam a ostentar em seus sumptuosos palácios?
− Em tese, não acredito que isso venha a acontecer, meu caro – diz D. Aníbal Velásquez, céptico. Toda a pompa de que se revestem os mandatários da Igreja tornou-se cultural e axiomático; nem mesmo a ralé admitiria a pobreza da Igreja!
− Mas o Cristo era bem pobre...
− Sim, não discordo disso, mas, em sã consciência e sem hipocrisias: ninguém gosta de ser pobre, meu caro! A pobreza degrada e humilha!... Nunca passei fome e jamais me vesti de trapos; contudo, não deverá isso ser lá muito agradável, não concordas?
− Por certo que não! E tributo à pobreza um castigo de Deus!
Não há outra explicação, não achas? E o Cristo, a revelar-se extremamente pobre, não mais nos mostrou que, para não se perder, a alma investida de pobreza, pelo exemplo que Ele nos deixou, poderá reabilitar-se!
− Não neste mundo, não é?... O Cristo vivia a dizer que Seu reino não era deste mundo! − observa D. Aníbal. – E, em relação a este nosso mundo – o de carne −, eu penso que a pobreza é o fracasso da alma!... Pobres, na verdade, não são os que nada possuem de si, mas os que, na verdade, embora a viverem em palácios e a cobrirem-se de ouro e púrpura, são misérrimos de amor e de moralidade! Bem o sabeis que, nos tempos atuais, o fracasso permeia a grande maioria das almas, por culpa da falta de fé!... Não existe outra explicação!
− Tens toda a razão, pois a pior das misérias é essa, a miséria da alma, a aridez dos sentimentos...
− E não concordas que a culpa toda por esse arrefecimento da fé não reside, exactamente, nos desmandos e na falta de moralidade que permeia a Igreja na actualidade? – pergunta D. Aníbal.
− Completamente – responde o outro. – Se o bom exemplo partisse da cúpula da Igreja, o resto acomodar-se-ia como consequência disso!
− Mas eu e tu sabemos que isso não acontecerá, não é mesmo?
− Sim, com toda a certeza, mas fica bem atento, pois as coisas andam a efervescer, sub-repticiamente, a minarem os alicerces da Igreja!...71 E só então, quando advier a desgraça, talvez as coisas principiem a mudar...
− Nesses termos, D. Fernán, tens razão. Somente o frio da desolação talvez possa desviar o rumo das coisas! De outro modo, não vejo como...
D. Fernán levanta-se e abraça o amigo. Era hora de despedir-se, pois o dia agonizava e, em breve, a noite cairia, a cobrir o mundo de trevas...
___________________________________________________________________________________________________________
64. A Inquisição instalara-se, a princípio, em Sevilha, uma das principais cidades espanholas, à época, no ano de 1478, quando os reis católicos Fernán de Aragão e Isabel de Castela, ao estabelecerem a meta nacional, conhecida como a Reconquista, pediram ao Papa Sixto IV o reavivamento da Inquisição, no que foram atendidos por meio da bula Exigit Sincerae Devotionis Affectus que permitia ao poder temporal designar os inquisidores, sem prévia autorização da Santa Sé; entretanto, em virtude dos patentes abusos cometidos pelo Tribunal, desde a sua instalação – hajam vistas as ocorrências que culminaram no primeiro auto-de-fé da moderna Inquisição espanhola, ocorrido no dia 6 de Fevereiro de 1481. Entretanto, o papa, indignado com os desmandos que ali ocorriam, em 31 de Janeiro de 1482, através de uma bula, protestou com veemência acerca de tais abusos e determinou a suspensão do Tribunal; porém, acabou recuando, em vista da forte pressão exercida pelos reis espanhóis, aliando-se a isso a importância que a Espanha representava na propagação do Cristianismo, e, em Outubro de 1483, os soberanos espanhóis, finalmente, alcançaram o objectivo de terem o Tribunal restaurado em seu reino e com total controlo sobre ele.
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 00:14

65. A reconquista só foi finalizada em 1492, com a tomada de Granada por parte dos Reis Católicos, Fernando e Isabel, que a anexaram à Coroa de Castela.
66. “O bom pastor deve tosquiar, e não esfolar o seu rebanho...”, em latim.
67. Referência ao filósofo grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) e a Santo Tomás de Aquino (1395 – 1455).
68. Conciliábulo de bruxos e bruxas que, segundo a superstição medieval, reuniam-se no sábado, à meia-noite, sob a presidência do diabo.
69. “Cada qual conforme seu natural.”, em latim.
70. Jonas, 5.10
71. A personagem pareceu ter razão, pois, apenas alguns anos à frente, inicia-se a Reforma Protestante, movimento reformista cristão, quando, em 31 de outubro de 1517, Marinho Lutero, através da publicação de suas 95 teses, na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, Alemanha, protestou contra diversos pontos da doutrina da Igreja Católica, propondo uma reforma no catolicismo.

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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 00:14

Capítulo V – D. Tomás de Torquemada
Naquela tarde de verão de 1483, a rainha de Castela72 aproxima-se do patamar de alta janela dum dos salões do Alcázar73. Muito ansiosos, seus olhos negros sondam a paisagem que se abria ampla, abaixo, a revelar os telhados brilhantes do casario de Toledo, a estenderem-se até as margens do turbulento Tago74.
Particularmente naquele momento, o belo rosto amorenado da soberana castelhana mostrava-se fechado, toldado pelas fundas preocupações que lhe iam à alma.
− Penso que Vossa Graça tem toda a razão – diz uma voz às costas da rainha, que ainda se postava grandemente absorta, a olhar a paisagem. – Vosso real esposo há de concordar com essa escolha. D. Torquemada75, sem dúvida, é o melhor a ocupar esse posto. Repito: ninguém melhor que ele...
− Sei que temos razão, D. Gonzáles76, pois conhecemos D. Tomás, a fundo, faz anos!... É culto, inteligente e sabemos muito bem o que pensa a respeito da limpieza...
− Então, por que não se efectivar, logo, a nomeação do vosso ilustre confessor?
− Mas o rei... – diz a rainha e suspira fundo, a tentar amainar a grande ansiedade que lhe oprimia o peito. – O rei mostra-se renitente a essa nossa indicação... E, até o presente momento, não entendemos o que pretende ele com isso!
− Difícil é saber o que vai pela cabeça do rei, Señora – diz o arcebispo de Toledo. – Mas penso que Vossa Graça haverá de ter em mãos infindos modos de convencê-lo a aceitar a indicação do vosso confessor para ocupar cargo de tamanha importância...− Oh, não sabemos, Eminência... − diz a rainha, deixando a janela e, voltando-se, acomoda-se em espaçosa poltrona de reluzente veludo vermelho. A seguir, a torcer, nervosamente, as mãos, encara seu interlocutor e prossegue: − Será por orgulho?...
Ou então desconfiança de que nós e tão-somente nós teremos o privilégio de privar dos relatos fieis que nos fará D. Torquemada, por ser ele o nosso confessor?
− Julgo o rei muito inteligente para deixar-se enredar pelo orgulho, numa situação como essa que, como bem o sabeis, também lhe é de grande interesse. Se me permitis, Majestade, a segunda opção mostra-se a mais passível de andar a acometer vosso real esposo, ou, ainda, acaso não desejará ele que algum aragonês ou valenciano ocupe tal posto?
− É possível!... É possível, D. Gonzáles! – exclama a rainha, ainda a demonstrar profundo nervosismo. – Certamente ainda persiste, no coração do rei, algum resquício de sentimento patriótico! Ele não é castelhano, é aragonês, e sei como lhe deve ser difícil esquecer-se disso!... Ou – e como homem, vós também deveis saber muito bem como são essas coisas!... –, deve bater-lhe, muito contundentemente, à cabeça, a secular supremacia dos machos sobre as fêmeas!
D. Pedro Ganzáles de Mendoza limita-se a rir e a aquiescer com a cabeça. A rainha tinha razão. Conhecia muito bem o consorte de sua soberana. D. Hernán era homem embirrento e caprichoso, e ninguém, por certo, conseguiria domar-lhe os impulsos
voluntariosos, com facilidade...
− Por outro lado – prossegue a rainha −, não podemos nos deter diante de questão tão comezinha... Andamos a perder precioso tempo!... Urge que se inicie a limpieza o quanto antes!
− Se Vossa Graça me permitir a intromissão em tão particular empreitada, poderei, eu mesmo, expor as qualidades de D. Tomás ao rei. Sabeis muito bem como é... De homem para homem, os assuntos costumam ser mais abertos, haver mais tolerância recíproca...
− Oh, fazei isso, D. Gonzáles! – diz a rainha, tomando ambas as mãos do arcebispo de Toledo entre as suas. − Ainda mais com homem de vossa posição. O rei ouvir-vos-á, temos a certeza disso!
− A propósito, Señora – diz o arcebispo. – D. Tomás, acaso, já se encontra a par dessa vossa intenção de nomeá-lo inquisidor-geral do reino?
− Não, Eminência, ainda não lhe fiz o comunicado. O conhecimento de tal assunto restringe-se tão-somente a nós e ao nosso esposo e, doravante, também a vós. E como poderíamos convidar D. Torquemada para ocupar tal posição, se o rei não concorda com a sua nomeação?... Primeiro, há que se convencer o nosso esposo!
− E onde se encontra Sua Majestade, o rei, neste momento? – pergunta D. Pedro.
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 00:14

− A caçar!... – responde a rainha, a mostrar-se um pouco mais tranquila. – Que mais fazem os homens, neste mundo de Deus, senão caçar, guerrear e visitar as amantes?
D. Pedro Ganzáles de Mendoza não teve como não rir. Se a rainha andava a lançar chistes de tal monta, era sinal de que acabava de desanuviar-se de suas preocupações.
− Então, como a mim compete, doravante, a difícil tarefa de convencer o rei a aceitar D. Torquemada como inquisidor-geral do reino, peço-vos licença para visitá-lo no monastério77, com o propósito de conhecê-lo mais a fundo, pois vos confesso não lhe ter sido muito próximo, até então.
− Oh, por certo que deveis fazer-nos tal favor, Eminência.
Sondai-lhe, fundo, as ideias, sem, entretanto, nada lhe adiantardes sobre a nossa pretensão de torná-lo o inquisidor-geral do reino. E entre nós: haverá meio mais seguro de controlar o Tribunal, senão por meio do nosso confessor? Fosse outra pessoa, e tornar-se-nos-ia mais difícil determos em mãos as rédeas de tudo, não concordais?
− Sim, Señora, dessa forma também o creio eu, uma vez que deveremos trabalhar juntos, e nossos interesses haverão de firmar-se sempre cônsonos, ou nossos planos poderão falhar: o Estado e a Igreja não poderão, jamais, permitir-se qualquer tipo de conflito!... E reforço: o chefe do Tribunal deverá ser, impreterivelmente, alguém de nossa estrita confiança! E D. Torquemada afigura-se-me o mais indicado para tal mister, sem sombra de dúvida.
− Porém, não será demais repetir-vos, Eminência: agi com muita cautela, com o propósito de que D. Torquemada de nada desconfie da nossa intenção de fazê-lo chefe do Tribunal. A nós caberá o privilégio de fazer-lhe tal convite.
− Podeis ficar tranquila, Majestade, que saberei como estudar, profundamente, o carácter do vosso confessor, sem que nenhuma suspeição do real motivo da minha visita venha turbar-lhe a alma!
O arcebispo despede-se da rainha e, ao tomar a carruagem, ordena ao cocheiro:
− A Santo Domingo!
Enquanto o carro rodava pelas ladeiras de Toledo, em direcção do convento dos dominicanos, Pedro Gonzáles de Mendoza murmura para si: “Como não conheço D. Torquemada?... E abre um sorriso cheio de mofa. “Até que o conheço muitíssimo bem!... Perfeitíssimo para os nossos planos... Até perfeito demais...”
Em pouco, achava-se na imponente construção. Avisado pelo irmão porteiro, o prior do convento aprestou-se em vir-lhe ao encontro.
− Oh, Eminência! – brada o frade, a fazer longa mesura diante do arcebispo. E, depois de beijar-lhe, devotadamente, o anel, entre receoso e lisonjeado por aquela aparição inesperada, pergunta: − Que vos traz a esta humilde casa, Señor?
− Levai-me até D. Torquemada! – ordena, firme, D. Pedro Gonzáles de Mendoza, a ignorar, completamente, a pergunta que lhe fazia o dominicano.
O confessor da rainha encontrava-se na imensa biblioteca do monastério, a examinar, atentamente, um documento.
Antes de tirar D. Tomás de Torquemada da sua profunda concentração, o arcebispo detém-se um pouco, a estudar-lhe o porte: homem de estatura baixa, às raias da obesidade; pescoço curto e grosso; a cabeça grande, um pouco acima da média, encimada pela reluzente tonsura, a aumentar-lhe, ainda mais, o desagradável aspecto do conjunto que se mostrava bastante grosseiro, quase teratológico. Com os olhos baixos, percebia-se que o frade encontrava-se totalmente absorto pela leitura.
− D. Tomás... – chama o arcebispo, em voz baixa.
− Eminência!... – murmura o dominicano, a erguer, lentamente, a cabeça. E, a exibir um par de olhos baços, rodeados por fundas e escuras olheiras, mostra-se altamente surpreso com a inesperada visita.
− Desculpa-nos, D. Torquemada, a ousadia de tirar-te dos teus momentos de estudo...
− Oh, não por isso, Eminência! – exclama o confessor da rainha, levantando-se. E, rodeando a escrivaninha onde estivera sentado, faz longa reverência e beija o anel que o arcebispo estendia-lhe. – Tende a gentileza de sentar-vos, Señor! – diz ele, em seguida, indicando ao visitante uma poltrona recoberta de lã de carneiro.
− Deves andar a estranhar a nossa visita, D. Tomás... – diz o arcebispo, a fixar o rosto do confessor da rainha.
− Para ser bem exacto, desde Segóvia78 não nos falamos com tanta proximidade... – observa o dominicano, a olhar firme nos olhos do arcebispo.
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 00:14

− Sim, quando ainda eras o prior de Santa Cruz – responde o prelado. – Foi aí que te demos a primeira oportunidade de subirdes bem depressa os degraus da escada que conduzem à cúpula da Igreja...
− Bem por isso vos sou eternamente grato, Eminência...
− A nossa proximidade com os poderosos deste reino sempre nos facilitaram tudo, D. Tomás... Ou achas que foi o teu tio79 que te pôs como prior de Santa Cruz? – diz o arcebispo de Toledo, agora, a percorrer com os olhos os milhares de volumes meticulosamente arranjados à infinidade de estantes que preenchiam todas as paredes da fabulosa biblioteca. – Por esse tempo, eu era o capelão80, como muito bem o sabes, e não fora eu a sugerir a D. Álvaro de Luna81 que pedisse ao rei pusesse em tuas mãos as chaves do monastério...
− Sei bem dessas cousas todas, Eminência, e sou-vos grato pela eternidade... Mas, presumo que aqui viestes não com o único propósito de visitar-nos ou de fazer-nos lembrar os favores todos que vos devo... – diz o frade dominicano, a abrir ligeiro sorriso, toldado por quase imperceptíveis laivos da fina ironia que, amiúde, eram-lhe peculiares às palavras.
− Oh, por certo que não, D. Tomás! – rebate o outro, de pronto, fingindo ignorar o fino espinho que o outro acabara de fincar-lhe às fuças. – Afora o sentimento de amizade que sempre por ti demonstrei, tenho algo de suma importância a noticiar-te: acabo de avistar-me com a rainha e dela recebi informação secreta que, para espanto meu, diz respeito a ti!
− Oh, que poderia a rainha pretender de mim? – pergunta D. Tomás de Torquemada, num misto de funda curiosidade e de, repentinamente, tomar-se de extrema ansiedade.
− Contar-te-ei tudo, meu caro. Mas, antes, tens de jurar-me segredo e bem prometeres que a ninguém, nem mesmo à tua própria sombra, revelarás o que ora te narrarei, entendeste?
− Pelo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, juro-vos, Señor! – exclama o confessor da rainha, invadido pela forte expectativa que lhe consumia a alma.
− Pois bem! Mas, antes, quero deixar-te bem claro que é a mim que deves mais esta! – e a acentuar cada sílaba, repete: − Tão somente à minha ingerência junto à rainha, entendeste bem?
− Sim – diz D. Torquemada, a torcer as mãos de inquietação –, tudo o que sou, devo a vós!
− Perfeito! – exclama o arcebispo. E, depois de curto silêncio, continua: − Sabes muito bem que não costumo ser ingrato para com os meus colaboradores mais fiéis e, como tu te tens mostrado bastante eficiente até então, pois, se hoje tenho a rainha em minhas mãos, em parte é a ti que devo tal coisa. Agora, em teu encargo, coloco mais esta empreitada – a mais difícil de todas, creio! −: tu serás nomeado o inquisidor-geral do reino!
A notícia caiu sobre o confessor da rainha como inesperada bomba.
− E... Eu?!... – tartamudeou D. Torquemada, com os olhos a se lhe arregalarem, desmesuradamente, às órbitas. – Por que eu?!
− Porque tu reúnes em ti todas as exigências para tal mister... – diz o arcebispo de Toledo. – E, além disso, em quem mais eu confiaria tanto, senão em ti?
− Se assim dizeis... – murmura o outro, a baixar os olhos.
− Porém há, ainda, pequeno entrave a que te constituas o inquisidor-geral do reino: o rei não aceita a indicação do teu nome, e a rainha anda a titubear... – e, depois de curto silêncio, prossegue: − A rainha incumbiu-me de convencer o rei a aceitar o teu nome, mas não me vejo disposto a ir atrás daquele cabeça de porco que só vive a caçar pombos e lebres e a cortejar todas as damas do reino!...
Pelo caminho, andei a pensar e acho que sei como forçar a nossa soberana a convencer D. Hernán... – e, depois de abrir curto sorriso, prossegue: − E com artifícios que costumam ser bem eficazes...
− Presumo que sim, Señor... – fala D. Torquemada, a abrir tímido sorriso. – e, voltando a encarar o seu interlocutor, continua: − E como pensais fazer isso?
− Sabes tão bem quanto eu que as almas das mulheres são frágeis, não é mesmo? E muito susceptíveis a certas coisas... – e se ri. Depois, faz-se sério e, a encarar o outro, firme, aos olhos, continua: − E, a nossa soberana, por certo, não será diferente das demais... Pois, então, faz-se necessário pressioná-la, através de outros meios.
− O quê, por exemplo? – pergunta D. Tomás, extremamente interessado.
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 13:52

− Pelo medo!... Em vosso próximo encontro, tu lhe contarás o que ora passo a narrar-te, e presta bastante atenção: com extremado cuidado, tu lhe dirás que tiveste um sonho e, nesse sonho, ela e o esposo achavam-se presos pelo povo e que, amarrados sobre um carro, eram conduzidos em procissão pelas ruas de Toledo. Pinta-lhe esse quadro, quanto mais tétrico, melhor, pois sei que és muito capaz e usa, para isso, a tua boa imaginação.
Dize, ainda, que a multidão, enfurecida, apupava-os e pedia-lhes a cabeça. E o mais importante: que o grosso das gentes que os perseguia era de marranos e de mouros, e que tu, de repente, ali surgias e, enfrentando a malta, ameaçava-os e, a empunhar longo látego, logo os puseste todos sob o teu jugo e, em fila, conduziste-os à margem de fundo despenhadeiro e, a chicotá-los, contundentemente, fizeste-os todos, um a um, despencarem para dentro do tétrico báratro!
− Que horror! – exclama D. Torquemada, espantando-se com a extravagante narrativa do outro. – E credes que a rainha engolirá isso?
− Certíssimo, pois eu a conheço muito bem... – diz o arcebispo, a rir-se. – No fundo, é uma caguincha como a maior parte da humanidade o é! A superstição, meu caro!... Por que razão tu achas que a Igreja tem alimentado, no imaginário do povo, a absurdidade das crendices mais pueris, por esse tempo todo?... Por tratar-se de excelente brida, a reter o duro queixo dessa gente tola e inculta!...
Quanto mais bestas, mais dóceis a cavalgar. E abre estrondosa gargalhada: Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Se assim pensais... – diz o outro, lacónico.
Agora te deixo, meu bom Tomás! – exclama o arcebispo, abraçando, fortemente, o outro. – Aguardo-te no palácio arquiepiscopal... E espero que isso ocorra mui brevemente!
Pouco depois, a sós, na imensa biblioteca do monastério, D. Tomás de Torquemada deixava-se levar pelos pensamentos.
Inquisidor-geral do reino!... Ainda não conseguia acreditar que tudo aquilo que o arcebispo lhe dissera, poderia, efectivamente, vir a ocorrer... Abre, então, um sorriso amplo e deixa a biblioteca. Com passos lentos e a sentir-se levíssimo, como se flutuasse no ar, o confessor da rainha dirige-se à igreja do monastério.
Àquele horário, o templo encontrava-se completamente vazio. Extremamente contrito, em pequena capela lateral, o dominicano ajoelha-se diante da imagem de Jesus crucificado.
− Senhor... – murmura D. Tomás, em prece, e a fixar os olhos nos olhos da imagem do Cristo. – Tanto Vos roguei, por esses anos todos, que me pusestes em prova, a resgatar um pouco do sangue que derramastes por mim, na cruz redentora... – e lágrimas sentidas banham-lhe as faces, já bastante emurchecidas pelo passar do tempo. – Porém, ora sinto, Senhor, que bem ouvistes os meus rogos!... Que oportunidade melhor que esta haveria eu de ter, para, plenamente, compensar-Vos, pela redenção da minha alma?... Ser o vingador dos Vossos algozes, os que, tão covardemente, pregaram-Vos na cruz!... – e os soluços sacodem-no, violentamente, por um bom tempo. Depois, a custo, consegue conter um pouco a forte comoção que lhe tomava a alma.
E, então, retoma o seu diálogo com o Crucificado: − Ora começo a compreender que sobre os meus ombros é que resolvestes colocar o pesadíssimo fardo de limpar a nossa amada Espanha dessa canalha que não Vos aceita a supremacia no mundo... Esses malditos judeus e mouros verão o peso que têm a Vossa e a nossa mão!... – e a abrir jactancioso sorriso, no meio das lágrimas: − Haveremos de arrasá-los todos, sem piedade, como sói fazerem-se aos vermes no monturo!
A esfumada manhã de outono seguia a sua marcha. Pelos altos vitrais da igreja, a luz coava-se colorida, a dar um ar feérico ao ambiente carregado de silêncio.
− Por todos esses anos – continua D. Torquemada o seu diálogo com a imagem de Jesus Crucificado −, venho mortificando-me, com o silício e com os jejuns, a fazer calar o demónio que teima em fustigar-me a carne, com o ignóbil propósito de levar-me a perder a minha alma!... – e, desfitando a imagem, olha em redor e, quase a gritar, continua: − Ó desgraçado Lúcifer, imundo príncipe das trevas, diante do meu e do teu Senhor – que teimas em renegar e aceitar como teu Rei! −, juro-te, maldito, que tu perderás!... Aliás, já andas a perder a tua inglória batalha!... Terás todas as almas do mundo, mas a minha jamais a terás! Isso eu te juro, infame, diante de meu Senhor e Deus!...
Por longo tempo, ainda, D. Tomás de Torquemada ali permaneceu, a rezar. Por fim, levanta-se, dificultosamente, e a arrastar os pés, entorpecidos pelo tempo que passara de joelhos, aliando-se a isso a grande comoção que lhe ia à alma, vagarosamente, deixa a igreja.
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 13:53

Lá fora, a luminosidade da manhã deixa-o, temporariamente, cego. O dominicano trazia o rosto muito pálido e os olhos vermelhos pelo choro. Mas a sua alma estava em paz e, com extremado esforço, pôs-se a caminhar. Era preciso, agora, descansar um pouco, e toma o rumo da clausura.
*******
Neste comenos, ocultos por espessa sebe do jardim do palacete de Ben Hanan, Andrés e Maria de los Milagros acabavam de trocar longo e apaixonado beijo. Depois, por alguns instantes e com a respiração ofegante pela forte emoção do encontro, permaneceram em silêncio, apenas a fitarem-se, um ao outro, entre suspiros e olhares carregados de funda paixão.
− Sabes o quanto de amo, Andrés! – diz a moça, a fixar o rosto bem-feito e amorenado do rapaz. – Sequer posso imaginar-me vivendo sem ti!
− Também eu assim me sinto, mi amor! – fala ele, a tocar de leve a cútis da amada, com a ponta dos dedos. – Tu és a razão da minha vida!... Se, um dia, eu te perder, não sei o que será de mim!
− Não me perderás, querido! – exclama ela. – Nada, neste mundo, far-me-á apartar-me de ti!
− Também assim penso, meu amor! – diz ele. Depois, a mostrar-se extremamente apaixonado, toma-lhe as finas e delicadas mãos entre as suas e prossegue: – Eu e tu somos indissociáveis, entendes?... – e, a rir-se, arremata: − Ao dar-nos a vida, acho que Yavé esqueceu-se de separar as nossas almas...
Milagros limita-se, apenas, a sorrir, altamente lisonjeada por aquelas palavras. Depois, em silêncio e por um bom tempo, fixa, firmemente, os olhos negros e profundos de Andrés. Como achava o seu amor lindo e gentil!
− Que pensas? – pergunta ele, intrigado com a repentina mudez da noiva e com a expressão de grande embevecimento que, patentemente, estampava-se-lhe à fisionomia.
− Pensava o quanto és bonito e garboso!... – diz ela, a abrir meigo sorriso, carregado de paixão. − Merecias ser um príncipe!
− E tu, uma princesa! – emenda ele, a roubar-lhe, de inopino, um beijo.
Depois do profundo arroubamento causado pelo beijo, Milagros afasta-se do noivo e passa a brincar com os verdes ramos da sebe.
− Estás feliz? – pergunta ele, abraçando-a por trás.
− Neste momento, sim! – responde a moça, sem se voltar.
− Por que apenas neste momento? – estranha ele. – Não és feliz, sempre? A jovem vira-se para ele e, estranha e repentinamente, revela um rosto profundamente modificado. Era como se, negra nuvem, de súbito, obnubilasse-lhe as feições.
− Oh, como posso sentir-me feliz o tempo todo? – responde ela, a mostrar-se grandemente atormentada. − Acaso não percebes a confusão que se arma, com a notícia da vinda do Tribunal para cá?
− Percebo, sim, meu amor – diz o rapaz, com fundo suspiro. – E quero que saibas que não se tratam tão-somente de rumores da vinda do Tribunal. Ele já está instaurado! Apenas aguardam-se as regulamentações da Santa Sé, para que se ponha a funcionar plenamente.
− Oh, que será de nós, Andrés? – pergunta a moça, a lançar-se aos braços do noivo.
− Estás a tremer, Milagros! – observa o jovem, ao observar que ela se achava totalmente dominada pelo medo. – Não carece que tenhas tanto pavor assim!... Esqueces-te de que aqui estarei, sempre, a defender-te de qualquer mal?
− Oh, temo que nem tu poderás salvar-me! – responde ela, agora, invadida pelas lágrimas. – Acho que nem tu mesmo serás capaz de livrar-te desse mal!...
− Por que assim pensas? – pergunta Andrés. – Tu te esqueces de que papai é um homem poderoso e conta com a protecção da rainha? – e, afastando-a de si, enxuga-lhe as lágrimas da face com a ponta dos dedos. – Ninguém nos fará mal algum, esteja certa disso!
− Queria ser assim tão confiante como tu! – exclama ela entre lágrimas. – Mas tenho tanto medo!...
− Sossega, meu bem! – diz ele, abraçando-a forte. − Juro-te que nunca deixarei que alguém te faça mal!
A moça cala-se, por instantes, a cogitar, profundamente, sobre a situação.
− Oh, Andrés, acho que te mostras excessivamente confiante! – exclama ela, a mostrar-se bastante nervosa. E, depois de pensar um pouquinho mais, prossegue: − Lembras-te de D. Aníbal, o secretário do arcebispo?
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 13:53

− Sim – responde ele, a cerrar o cenho. – Como poderia esquecer-me daquele verme? – e, olhando-a firme aos olhos, pergunta: − Que lhe fez o pulha desta vez?
− Nada – responde ela, baixando os olhos. – Mas, ontem, quando eu e Consuelo íamos ao mercado, ao passarmos pela ruela entre o palácio arquiepiscopal e a catedral, percebemos que ele se achava à janela e, pondo a cabeça fora, seguiu-nos com o olhar até que nos perdêssemos de vista.
− E o que isso poderá ter de mais? – pergunta o rapaz. – Mesmo sendo alguém tão ignóbil e sem nenhum carácter, ele tem o direito de estar à janela e de olhar os que passam pela rua!
− Oh, tu não entendes! – exclama a jovem. – Era o jeito que me olhava!... Parecia querer devorar-me viva!... É disso que tenho medo!
− Repito, meu bem: se realmente não te molestou, que poderemos fazer contra ele?... Não posso sair por aí a tomar satisfações com alguém que, simplesmente, olhou para ti!
Entretanto, se perceberes que o miserável, ostensivamente, passe a perseguir-te, nada me omitas: conta-me tudo, que tomarei providências!... Ouviste bem? Nada me escondas, se esse demónio voltar a incomodar-te!
Maria de los Milagros cala-se, por instantes, a cogitar. Em seguida, morde o canto dos lábios e, sem fixar os olhos do rapaz, diz:
− Oh, Andrés, não sei se devo contar-te! – fala ela, a torcer as mãos, bastante nervosa. – Mas, pensando bem, nada devo, realmente, de ti ocultar! Pois bem: ele tentou molestar-me, sim!
− Ah, é?!... – exclama o rapaz, a inflamar-se de ódio. E a prender, fortemente, o pulso da noiva com a mão, prossegue, a espumar de raiva: − Que te fez o maldito?... Vamos: di-lo!
− Está bem: vou contar-te toda a verdade, sem nada omitir! – diz ela, a encará-lo. − Depois que desaparecemos da vista daquele desgraçado, em pouco, ganhamos a praça do mercado; entretanto, mal nos púnhamos, eu e Consuelo, a escolher as hortaliças, percebemo-lo que se aproximava de nós. Então, eu e minha irmã tratamos de fugir dali, mas ele nos alcançou e, segurando-me pelo braço, disse que precisava falar comigo.
Eu, entretanto, com um safanão, desvencilhei-me e, a correr, gritei-lhe que nada tinha a ouvir dele. Por um bom tempo, ele nos seguiu pela praça do mercado, mas Consuelo e eu, imiscuindo-nos no meio das gentes, conseguimos nos safar e voltar, rapidamente, para casa.
– Maldito! – exclama o rapaz, com um esgar de intenso ódio às feições. E a tornar-se extremamente irritado: − Que descarado!...
Sabe muito bem que somos noivos e, mesmo assim, insiste em deitar-te os olhos tão insolentemente! – e a estringir, fortemente, os dedos de ambas as mãos, brada, a espumar profunda raiva: − Ah, tenho ganas de matá-lo com as minhas próprias mãos!
− Oh, não quero que tu te metas com ele! – diz ela, já arrependida de ter-lhe contacto o fato, pois temia que o noivo, hora ou outra, acabasse por afrontar o secretário do arcebispo. E, rapidamente, acrescenta: – Sabes muito bem que a corda sempre arrebenta pelo lado mais fraco!
− Que peste! – exclama o rapaz, sem dar mínima atenção ao que ela lhe falara. E prossegue, a inflamar-se cada vez mais: – Nada me custa armar-lhe uma escaramuça!... Sabes muito bem que tenho leais companheiros! É só lhes solicitar ajuda!
− Oh, não te quero a manchar as mãos com o sangue desse ordinário! – rebate ela. – E, se isso fizeres, sabes muito bem que haverá represálias! Caçar-te-iam, sem tréguas! – e a abraçar-se a ele, trémula: − Sabes muito bem que eu jamais suportaria ver-te dependurado numa forca!
− Ah, percebo que não me conheces o suficiente, minha cara! – diz ele. − E achas que eu seria tão imbecil, a ponto de atacar o secretário do arcebispo às claras? Existem meios de se fazer isso bem às ocultas...
− Oh, não!... Não!... – geme ela, abraçando-se ao noivo, mais fortemente. – Vamos: jura-me que não cometerás tamanha loucura!
Sabes muito bem o quanto vigiam todos os passos que damos!...
Acaso achas que poderás armar-lhe uma emboscada e abatê-lo sem que testemunhas te vejam?... Além do mais, essa gente não vacila! Nunca saem sós, à noite! Sempre carregam uma escolta bem armada consigo, tu sabes muito bem!− Não subestimes a minha esperteza, Milagros! – exclama ele, irritadiço. – Pensas que sou algum parvo?... Sei muito bem como armar uma emboscada! Mesmo que o infame tenha dez ou doze soldados a fazer-lhe a escolta!
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 13:53

− Mesmo assim, meu amor, ainda não há motivos suficientes para que ensejes matá-lo! – diz ela, tentando demovê-lo daquele estado de sobre-excitação. – Jura-me que nada atentarás, por ora, contra aquele desgraçado!
− Está bem! – diz ele, ainda tomado de funda irritação. – Entretanto, que não se atreva ele a molestar-te outra vez!
− Saberei cuidar-me, meu bem! – fala ela, acarinhando-lhe, delicadamente, a face, com a ponta dos dedos, com o propósito de fazê-lo acalmar-se. – Prometo-te que jamais sairei sozinha; terei Consuelo sempre comigo ou alguém mais da minha família ou, ainda, um ou dois fâmulos armados a protegerem-me... Não te preocupes, está bem?
− Aquele desgraçado caudatário do arcebispo ainda me pagará caro! – exclama o rapaz, a rilhar os dentes. – Ele que se atreva!...
− Não mais me molestará, eu te juro! – diz a jovem, no afã de acalmá-lo. – Tu verás: D. Aníbal Velásquez não mais terá oportunidade ou ensejo para molestar-me!
− Assim espero, Milagros!... – diz ele, um tantinho mais tranquilo.
– Assim espero...
− Agora, anda! – ordena ela, a abrir lindo sorriso. – Dá-me um daqueles beijos que só tu sabes dar, neste mundo, a tirar-me, completamente, o fôlego!...
− Ah, não tens mesmo jeito, marota! – exclama ele, a desanuviar o rosto e a abrir, também, largo sorriso.
E, a tépida manhã de outono foi testemunha de mais aquele voluptuoso beijo que trocou o
jovem e feliz casal de noivos...
___________________________________________________________________________________________________________
72. Referência à rainha de Castela, D. Isabel (1451 -1504).
73. O Alcázar é um palácio fortificado sobre rochas, situado na parte mais alta de Toledo, Espanha, de onde domina toda a cidade.
74. Mais conhecido como rio Tejo, que nasce em terras espanholas e tem a sua foz em Lisboa, Portugal.
75. Referência ao frade dominicano Tomás de Torquemada (1420 – 1498) que ainda era, pela época da narração dos fatos acima (1483), desde 1474, confessor da rainha D. Isabel de Castela.
76. Referência ao arcebispo de Toledo, Pedro González de Mendoza (1428 – 1495).
77. O Monastério de Santo Domingo de Silos, também conhecido como Convento de Santo Domingo, o Antigo, localiza-se em Toledo, Espanha, e foi o primeiro a ser construído, nessa cidade, sob o reinado de Afonso VI (1039 – 1109).
78. Em 1452, Tomás de Torquemada fora eleito prior do Convento de Santa Cruz, em Segóvia.
79. Referência ao cardeal Juan de Torquemada (1388 – 1468), tio de Tomás de Torquemada.
80. D. Pedro Gonzáles de Mendoza foi nomeado capelão da capela real, em 1452.
81. Álvaro de Luna (1388 – 1453), Duque de Trujillo e Conde de Ledesma. Grão senhor que exerceu grande influência sobre o rei castelhano D. João II.
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 13:53

Capítulo VI – Dona Isabel de Castilla
Na cálida tarde de outono, a capela do Alcázar de Toledo encontrava-se vazia, excepção de duas pessoas que conversavam, em voz baixíssima e muito próximas uma da outra.
− Dizeis, então, D. Tomás, que tivestes um sonho perturbador e que nele estávamos envolvidos nós e o rei? – diz a rainha de Castela ao seu confessor.
− Perfeitamente, Señora, assim foi – confirma o frade dominicano. E a estampar à face bem estudado assombro, prossegue: − São acontecimentos horríveis, a envolverem Suas Majestades e o reino, e muito ponderei, antes de trazer a vosso conhecimento assunto que se revela tão cheio de adversos fados!...
− Oh, por certo que nada devereis ocultar-nos, D. Tomás! – exclama a rainha, a tomar-se de fundas apreensões. – Se vosso sonho tem a ver com as nossas vidas, é vossa obrigação relatá-lo e, ainda, em minúcias!
− Bem, se assim achais, Majestade – diz o outro. E principia a narrar à supersticiosa rainha o suposto sonho que tivera, mas que, na realidade, não passava de parte do plano muito bem urdido pelo arcebispo, D. Pedro Ganzáles de Mendoza.
− Oh, muito revelador o vosso sonho, D. Tomás! – exclama a rainha, a tomar-se de notada inquietação. – Muito revelador, mesmo! – e depois de cogitar por instantes e a mostrar-se assaz nervosa, prossegue: − Sois um santo homem, e Deus costuma falar pelos lábios de pessoas como vós. Eu sei que isso é uma revelação, pois há pontos de legítima verdade em vosso sonho. Há forte simbologia implícita aí, sem sombra de dúvida, uma vez que, se interpretarmos bem essas imagens que ora nos revelais, evidencia-se grande exactidão com o momento em que ora vivemos no reino!
− Que verdades, Señora? – pergunta o frade dominicano, fingindo ignorar sobre os fatos a que se referia a rainha.
− Sobre a limpieza, D. Tomás! – responde a soberana de Castela, a torcer as mãos, extremamente nervosa. – Há coisas que desconheceis por completo!... Por isso que o vosso sonho mostra-se verdadeiramente revelador!... – e, a olhar firme nos olhos do seu confessor, prossegue: − Nada vos iria contar, antes que se acomodassem algumas situações pendentes acerca da indicação do vosso nome, mas, como Deus antecipou-Se aos nossos propósitos – sinal de que Ele nos dá, efectivamente, a Sua aquiescência! – revelamos-vos, na íntegra, o que quis dizer o vosso sonho, D. Tomás: comunicamos-vos, oficialmente, que fostes o escolhido por Deus e por nós, para comandardes o Tribunal!
− E... Eu?!... – finge espantar-se o dominicano. – Por que eu, Majestade?
− Oh, porque Deus acaba de revelar-nos! – responde a rainha, a mostrar-se bastante aliviada. – Não sabíeis o quanto estávamos apreensiva acerca de vos nomearmos ou não para chefe do Tribunal!... – e a tomar as mãos do frade entre as suas: − E, pedimos que não tomeis o que ora vos vamos revelar, como ofensa: o rei não deseja a vossa nomeação!
− Se o rei não deseja a minha nomeação, Señora, não vedes, dessa forma, grande entrave para que eu cumpra, a contento, as minhas funções como inquisidor-geral?
− Sim – responde a rainha −, a princípio, sim. O rei mostra-se renitente quanto à vossa indicação, mas sabemos como mudar-lhe a opinião. E já temos, também, D. Pedro Gonzáles de Mendoza do nosso lado. A propósito, não esteve ele convosco, recentemente?
− Sim, lá esteve Sua Eminência, dias atrás, a entrever-se comigo. Não tínhamos tido, até então, relações mais estreitas; contudo, notei que ele buscava aproximar-se de mim, porém não consegui atinar o que desejava, de fato, ao visitar-me, assim, tão de inopino.− Entretanto, ora sabeis: foi ele por nós incumbido de sondar-vos a opinião, mais a fundo, sobre o que, efectivamente, pensais sobre a limpieza e sobre a Inquisição.
− Oh, sequer supus que, ao ir ver-me, andava ele a vosso mando! – exclama o dominicano, a mentir propositadamente. – Entretanto, nada me adiantou ele sobre a escolha que vós fizestes do nosso nome para comandar o Tribunal.
− Nós o proibimos de fazer-vos qualquer antecipação sobre esse assunto, D. Tomás – diz a rainha, a abrir ligeiro sorriso. – Tal prerrogativa, como bem podeis imaginar, a nós cabia, em consequência do forte respeito que a vós sempre despendemos!
− Sou-vos imensamente grato por essa deferência, Majestade! – diz o frade, a abrir um sorriso cheiro de lisonja. – Não merecia tanto!
− Mas ainda não nos destes a vossa resposta, D. Tomás! – fala a rainha, a olhá-lo aos olhos. E pergunta: – Então, aceitais a vossa indicação para inquisidor-geral do reino?
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 13:54

− Oh, como poderia não aceitar tal empreitada, Señora? – responde o dominicano, a abrir orgulhoso sorriso. – Sei que Deus escolheu-me, antes de vós, para executar tão penoso mister!
− Por certo que sim! – exclama a rainha, contentíssima. – Se Deus está connosco, quem poderá pôr-se contra?
− O rei, Señora! – exclama D. Tomás de Torquemada, a mostrar-se apreensivo. – Como pensais dobrar a vontade do vosso esposo?
− Deixai, D. Tomás, que, com o rei, arranjamo-nos nós! E D. Pedro Gonzáles de Mendoza já nos prometeu convencê-lo a aceitar o vosso nome.
− Entretanto, não vos aconselharia meter D. Pedro Gonzáles a persuadir o rei, Señora – objecta D. Torquemada. – Para resolver questão tão difícil, haveria de ser alguém mais preeminente na Igreja, não concordais?
− Pensando bem, acho que tendes razão, D. Tomás – diz a rainha, depois de cogitar por alguns instantes. – Mas quem a superar D. Pedro em importância, em todo o clero de Castela?
− D. Rodrigo Borja82, Señora! – exclama D. Torquemada, sem titubear. – Quem melhor que ele?− Oh, estais certo, D. Tomás! – diz a rainha, a iluminar-se. – D. Borja representa-nos junto à Santa Sé! E, decididamente, em razão à sua forte ingerência junto ao papa é que temos a reinstituição do Tribunal no reino! Muito bem lembrado, Señor!... Tenho a absoluta certeza de que o rei dobrar-se-á à sua intervenção no caso.
− E como fareis para ter D. Borja a confabular com o rei? – objecta D. Torquemada. − Acaso, não vive ele em Roma?
− Deixai esse assunto a nosso cargo, D. Tomás. Despacharei, sem delongas, um missivista a Roma. Sei que o cardeal Borja atenderá ao nosso pedido e virá correndo! Conheceis muito bem quais são as suas pretensões, não é? – diz a rainha, a abrir um sorriso.
− Obter a mitra papal! – exclama o outro.
− Sim! E dependerá muito da nossa ajuda para obtê-la! Negócio que será assaz proveitoso para ambas as partes, não é mesmo? De muita valia ser-nos-á um espanhol, a ocupar o trono de São Pedro!...
− Pensando assim...
− Oh, tenho a plena certeza de que D. Borja não nos decepcionará!
Naquele mesmo dia, um mensageiro saiu célere, a cavalgar para Roma. No alforje, carregava importante mensagem endereçada ao cardeal Rodrigo Borja...
Tempos depois, a sós, em sua humilde cela, no Monastério de Santo Domingo de Silos, D. Tomás de Torquemada encontrava-se a ruminar, insistentemente, acerca do que, havia pouco, confabulara com a rainha. E, conforme bem antes já lhe adiantara o arcebispo, era tudo, mesmo, verdade. A rainha almejava, de fato, fazê-lo chefe do Tribunal. Existia, porém, sério entrave − o rei − a que se efectivasse a sua nomeação para o cargo, mas sabia, também, que a soberana e o cardeal Rodrigo Borja haveriam de contorná-lo. E se ri, consigo mesmo: o que é que as mulheres e os padres não conseguem realizar, quando, de fato, desejam algo?... “Qualquer coisa...”, murmura baixinho. “Qualquer coisa, mesmo...”
Depois dessas cogitações, ajoelha-se em seu oratório, encimado por singelo crucifixo de madeira escura. Seus olhos bacentos buscam ansiosos a cruz de ébano.
− Senhor meu!... – murmuram seus lábios, em quase silente oração. – Não supondes o quanto se rejubila o meu pobre coração, neste momento, diante do colosso que andais a colocar sobre os meus pobres e imperfeitos ombros! – e com os olhos a marearem-se de lágrimas, esconde o rosto entre as mãos e chora pungentemente. Depois, volta a erguer o rosto e, a fitar a cruz, continua: − Oh, não mereço tal deferência, Senhor amado!... – e intensos soluços sacodem-no, por algum tempo. Em seguida, mais aliviado, volta a encarar o crucifixo negro. Abre, então, ligeiro sorriso e murmura: − Sempre me achei fraco e incapaz, se, um dia, quisésseis, porventura, meter-me à prova. Todo o tempo, considerei que nunca estaria pronto se, eventualmente, viésseis chamar-me, a dar-Vos o meu testemunho. Mas, ora, mesmo diante de tamanha fraqueza, sei que me tornareis forte!... É bem dessa forma que costumais fazer, Senhor! – e a abrir um sorriso: − Porventura não foi assim que fizestes a São Pedro, o apóstolo? Haveria, acaso, dentro do colégio apostólico, alguém mais tíbio na fé que ele? – e a rir-se, cheio de júbilo, acrescenta: – É bem assim que agis: fortaleceis os mais fracos e pondes sobre seus frágeis ombros os Vossos colossais jugos... Mostrais, dessarte, que detendes o absoluto poder sobre todas as coisas, e é única e exclusivamente a Vossa vontade que conta!... Nada mais!... E, nesse fortalecimento dos tímidos e fracos é que reside a graça de tudo e revela-se, dessarte, a Vossa incomensurável fortaleza!
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 13:54

D. Torquemada enxuga, então, os olhos, com a ponta dos dedos, e, após persignar-se, contritamente, levanta-se meio trôpego pelo entorpecimento das pernas, uma vez que estivera ali genuflexo por longo tempo e deixa a cela. Caminhava leve e sentia-se imensamente feliz. Deus andava a pô-lo à prova, e isso o deixava tão contente que, não fora a sua costumeira sisudez, teria cantarolado uma musiqueta...
*******
Sentado à escrivaninha do seu gabinete particular, o prelado de cabeça grande e nariz adunco rompe o lacre da missiva que acabava de receber da sua rainha.
− ¿Qué me quiere Dona Isabel?... Vamos a ver... 83 − murmura ele.
Após ler com atenção o conteúdo da carta que recebia da rainha de Castela, D. Borja levanta-se resoluto.
− Miguel!... – chama ele por seu mordomo. – Miguel!... Avia-te a arranjar tudo: vamo-nos a Castela!
Dias depois, D. Rodrigo Borja apresentava-se à rainha de Castela.
− Eminência – diz D. Isabel de Castela ao prelado que se inclinava, respeitoso, a beijar-lhe a mão que ela lhe estendia −, desculpai-nos pelo incómodo de fazer-vos deixar Roma, com o propósito de atenderdes ao nosso chamado!
− Por vós, Señora, a nossa honra e a nossa vida, sempre!...
− ¡Muchas gracias, Eminencia!84 – exclama a rainha, altamente lisonjeada e, convidando o cardeal a sentar-se junto a si, prossegue:
− Chamamos-vos ao reino, D. Borja, porque iremos confiar a vós empreitada de suma importância ao Estado – e depois de silenciar por instantes, a pôr em ordem as ideias, prossegue: − Cremos que não desconheceis os planos que temos para o Tribunal, recentemente restabelecido em Castela por Sua Santidade, não é mesmo? – e, diante da assertiva do outro, continua: − Pois bem: é nosso desejo pôr D. Tomás de Torquemada no posto de inquisidor geral do reino. Conhecei-lo bem, não é certo?
− ¡Por supuesto, Señora!85 – responde o cardeal Borja. – Conhecemo-nos de longa data. E, a propósito, tenho algo muito pertinente a esse respeito, a relatar-vos. Sua Santidade, em nosso último encontro, e, em relação ao assunto do Tribunal em Castela, disse-me que era do seu inteiro agrado ver, nada mais, nada menos que D. Torquemada a comandar aquela corte!
− Que feliz coincidência, D. Borja! – exclama a rainha, contentíssima. – Desse modo, o rei não haverá como ir contra os desejos do papa!
− Não diria ser essa exactamente uma feliz coincidência, não, Majestade – rebate o outro −, uma vez que o papa informou-me, ainda naquela ocasião, que quem lhe houvera sugerido o nome de D. Torquemada a ocupar esse cargo havia sido D. Pedro Gonzáles de Mendoza!...
E por que dizeis, Senhora, que o rei será obrigado a aceitar o nome de D. Torquemada? Acaso Sua Majestade, o rei, não deseja tê-lo a comandar o Tribunal?
− Cá, entre nós, Eminência, digo-vos que o rei não morre de amores por D. Torquemada! E se me perguntardes por que isso acontece, não vos saberei responder... Por nós, achamos serem coisas de antipatias gratuitas: o rei, decididamente, não no tolera. Entretanto, nosso esposo terá de engolir a nomeação do nosso confessor, quando vós lhe disserdes que assim é o desejo de Sua Santidade!
− Se essa for a minha tarefa, Señora... – diz o cardeal. – E, onde se encontra Sua Majestade, o rei, neste momento?
− Onde, D. Borja? – responde a rainha, com notada ironia. – Dizei-nos: do que é que costumam ocupar-se os homens? Ou estão a correr atrás das amantes, ou fazem a caça aos veados... E, a contar com as derradeiras notícias que tivemos acerca do paradeiro do rei, achar-se-á ele, com certeza, pelos campos da Extremadura86, a perseguir aqueles pobres e inofensivos bichinhos...
− E se demorará por lá?
− Não, D. Borja. Ainda hoje, ou, no mais tardar, amanhã, estará ele de volta a Toledo. É o tempo que tereis a pôr descansado o vosso corpo, da longa viagem que acabais de fazer, de Roma até cá.
Pouco depois, enquanto o carro descia, lentamente, a ladeira que conduzia ao Alcázar, D. Rodrigo Borja olhava um tanto alheio o casario das ruas de Toledo. Os transeuntes estacavam a sua caminhada, a observarem, curiosos, qual seria a importante personagem a ocupar o sumptuoso carro, tirado por duas parelhas de fogosos corcéis andaluzes.
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 13:55

− Ah, Toledo!... Toledo!... – murmura o cardeal Borja, a espiar a cidade pela janela, escarrapachado sobre o fofo estofamento de veludo negro do carro. – Do abundante ouro que sobeja, fartamente, às mãos dos marranos que em ti habitam espero ganhar muita força, a favorecer-me a disputa pela mitra! – e, após rir-se, fartamente: − Principalmente, depois que a tua esperta rainha rapinar toda a riqueza que descansa às mãos desses porcos judeus e mouros e despejar boa parte dela em minhas mãos!... Ou espera Sua Majestade que lhe facilitarei as coisas, assim, de graça!... Tola que é, se dessa forma pensa!... Saberei cobrar-lhe tudo, sem nada sobrar!... − e abre um sorriso cheio de malícia.
Dois dias depois, D. Borja é chamado ao paço, a entrever-se com o rei.
− Fez-nos saber a rainha que o papa tem novas para nós. De que se trata, afinal? – diz D. Fernán, o rei de Leão, Castela e Aragão, ao cardeal Rodrigo Borja.
− ¡Sí, Su Majestad! – responde o cardeal, enquanto fazia longa reverência diante do rei. –Trata-se da nomeação do inquisidor-geral do reino.
− Pensávamos que o papa houvesse nos dado autonomia a nomearmos, nós mesmos, o chefe do tribunal! – rebate o rei, a mostrar patente contrariedade às feições. – Acaso a súmula do acordo já firmado entre a Santa Sé e o reino assim não se refere em relação a tal procedimento? Ao menos foi isso que dela depreendemos...
− Quanto ao ponto a que vos referis, Majestade, estais certíssimo! Quis Sua Santidade, à época da assinatura do acordo, deixar a cargo de Suas Majestades a nomeação do chefe do Tribunal; entretanto, a bem do perfeito andamento daquela instituição, ponderou melhor o papa e deliberou ele que, em já havendo, no passado, gritantes desmandos efectuados pelo Tribunal, em Espanha, a ele caberá, dessarte, ao menos, a indicação do nome do chefe da Inquisição, em Toledo.
− E quem pensa Sua Santidade indicar? – pergunta o rei.
− O confessor da rainha, D. Tomás de Torquemada! – responde D. Borja.
Ao ouvir aquele nome, o rei contrai, involuntariamente, o cenho. Saiu-lhe natural, espontâneo, dada a funda contrariedade que lhe trouxera à alma o nome do frade dominicano.
− Mas, logo este? – diz o rei, sem ocultar o descontentamento. – Creio haver gente mais capacitada, a desenvolver tamanho mister! – e a olhar para a esposa que se achava presente ao colóquio: − Nesse um, não confio nada...
− Se nos permitis um aparte, Senhor... – diz a rainha. E, diante da aquiescência que lhe fez o esposo, com a cabeça, D. Isabel prossegue: − Sei que Vossa Majestade desgosta da indicação do nome do nosso confessor, a ocupar o comando do Tribunal, mas penso que não tivestes, ainda, a oportunidade de o conhecerdes bem!... D. Borja, aqui presente, bem como o arcebispo, D. Pedro Gonzáles de Mendoza, e até mesmo Sua Santidade, o papa, conhecem-no, sobejamente, e vêem todos, unanimemente, em D. Tomás de Torquemada a pessoa mais indicada e mais bem preparada e, talvez desconheceis, ainda, Senhor, que ele é doutor nos santos cânones e, por esse motivo, tão bem recomendado foi por Sua Santidade, a ocupar cargo de tamanha relevância. Encurralado por tão bem urdidos argumentos, o rei de Aragão, Leão e Castela não teve saída: levantou-se da poltrona em que estivera sentado, a demonstrar profundo enfado por aquela conversa e disse:
− Está bem: convencido estamos!... Que assim se proceda!
E dando a mão a beijar ao cardeal e, por sua vez, beijando o anel do prelado, deixou o salão, seguido por seu séquito de cavaleiros.
Logo que se acharam a sós, o cardeal D. Borja e a rainha de Castela trocaram-se significativo olhar.
− Tudo consumado, Eminência! – exclama a rainha, ufana. − Como quis Deus, Señora! – diz o arcebispo, contentíssimo. – Já podeis dar as boas novas a D. Torquemada!
− Oh, graças à vossa especial ingerência, Eminência! – diz a soberana de Castela. – O reino deve-vos mais esta excelente interferência! Não sabemos o que fazer por vós!
− A seu tempo, Majestade!... A seu tempo!... – exclama D. Borja, a beijar a mão que lhe estendia a rainha.
Os olhos do cardeal Borja faiscavam. No momento aprazado, saberia como tirar uma montanha de ouro das mãos dos soberanos espanhóis. Para fazer-se papa87, como pretendia, era preciso comprar quase toda a totalidade do colégio cardinalício, e isso lhe custaria uma montanha de ouro. Entretanto, para tal, era só aguardar o tempo certo, pois Sixto88 não andava lá muito bem das pernas... Era só ser paciente e esperar...
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 13:55

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Na tarde daquele mesmo dia, no grande mercado da praça central de Toledo89, Yaacov Shlomo avistava-se com o amigo Ben Hanan e pai do noivo da filha.
− Apraz-me, deveras, Yaacov, saborear um ou outro sambussak90 que vendem aqui no mercado. Hum!... Quando, de longe, sinto-lhes o odor, não há como escapar de vir até o mercado para comê-los!
− Nem me fales, Ben Hanan!... O mesmo se dá comigo: não há como passar pela praça e não saborear alguns deles!... Mas, a propósito, Ben Hanan, foi providencial encontrar-te aqui na praça.
Precisava falar-te! – diz Yaacov, entre as dentadas que dava em seu sambussak.
− Sou-te todo ouvidos, Yaacov – diz o outro. − Mas por que não me procuraste em minha casa? Sabes muito bem que és bem-vindo em meu lar!... Tu e a tua família sois meus amigos, e, em breve, seremos parentes!
− E é exactamente sobre isso que preciso falar-te, Ben Hanan – diz Yaacov. – Sei que és um homem importante e muito ocupado, mas devo advertir-te que negra nuvem anda a pairar sobre a cabeças dos nossos queridos filhos!
− Que nuvem negra é essa, Yaacov? – espanta-se o outro, quase a engasgar-se com o bocado de sambussak que tinha à boca. – Assim me deixas preocupado, homem!
− Oh, nem sei como começar a relatar-te este fato abjecto, Ben Hanan! – e, depois de deglutir o último pedaço de seu pastelzinho de queijo, prossegue: − Sei que conheces o secretário do arcebispo...
− D. Aníbal Velásquez?... Claro que sim!... Tenho me avistado com ele, já, algumas vezes.
− É bem esse o canalha que anda a perseguir Milagros... − O que dizes?! – espanta-se o outro. – Como a persegue?... Para quê?
− Ora, não vais me dizer que não sabes como um homem persegue e para que deseja uma mulher, Ben Hanan!
− Oh, sim, claro! – responde o outro, baixando o rosto, um tanto ruborizado. – Mas quê?! – indigna-se, depois. – Que miserável!... E meu filho já sabe?
− Pelo que me consta, Milagros já lhe contou tudo.
− Entretanto, nada me disse ele ainda.
− É facto que se soube recentemente. Creio que nem teve tempo ainda de falar-te!
− Mas que ordinário revela-se o secretário do arcebispo!... Quem diria!... E como procede o desgraçado?
− Simplesmente revelou-se apaixonadíssimo e propõe a Milagros fugirem juntos!
− E ela?... Ao que sei, tua filha e meu filho eram loucos um pelo outro!
− E ainda são! – rebate Yaacov Shlomo. – O intruso, na história, é D. Aníbal Velásquez!
− E o que temes, então, se a tua filha nada quer com o pulha? – pergunta Ben Hanan.
− Que Milagros não o quer é fato consumado, pois é perdidamente apaixonada por Andrés. O que temo, entretanto, é o poder que detém o secretário do arcebispo. Sabes como é, a volta do Tribunal em Castela tem me causado sérias apreensões...
− E é para nos preocuparmos, sim, Yaacov! – observa o outro. – Nem mesmo a minha posição, que me põe muito próximo à rainha, poderá salvar-nos!... Ontem, mesmo, soube da nomeação do chefe do Tribunal!
− Deveras, Ben Hanan?! – exclama o outro, a arregalar, desmedidamente, os olhos. – Sabia que era tão-somente isso o que faltava para que essa desgraça principiasse a funcionar!... – e, a se mostrar altamente abatido pela notícia, murmura: – Agora, então...
− Sim!... Parece-me que não havia um consenso entre os soberanos sobre a escolha do nome para ocupar o posto, mas chegaram a um acordo: foi escolhido o confessor da rainha, D. Tomás de Torquemada.
− E tu o conheces? – pergunta, altamente aflito, Yaacov Shlomo.
− Conheço-o de vista – responde o outro. – Mas que importa isso? Já sabemos muito bem para que propósito foi instituído o Tribunal, não é mesmo?
− Sim – responde Yaacov, pensativo. E pergunta: − E tu o que pretendes fazer?
− Ainda não sei... – responde Ben Hanan. – Afinal, para qual lado correr?
− Que dizem os rabinos acerca disso, tu que lhes tem maior proximidade que eu?
− Nem mesmo os rabinos o sabem, Yaacov – responde o outro, altamente desolado. – Alguns sugerem que emigramos para Portugal, onde a tolerância se compra...
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Mensagem  Ave sem Ninho 1/4/2024, 13:55

− E quem nos garante que lá nos aceitarão a todos?... Somos muitos, e sabes muito bem que, se a perseguição acirrar-se, possivelmente, haverá nova diáspora!
− Temos dinheiro, Yaacov – diz Ben Hanan. – A maioria dos de nossa gente é bem de vida... E o rei português também gosta de ouro... Penso ser essa a solução: deveremos nos juntar, despacharmos dois ou três embaixadores, a negociarem a nossa permanência naquele reino.91
− Mas o rei português já não andou a expulsar os de nossa gente do seu reino? − rebate Yaacov Shlomo. − Pelo que sei, depois que o benemérito D. Afonso92 se foi, seu sucessor voltou a perseguir e a expulsar os judeus de lá!
− Mesmo assim, Yaacov – diz o secretário da rainha −, mesmo que o rei português actual tenha reiniciado a perseguição aos judeus, que nos custará sondar-lhe as intenções? Sabes muito bem o quanto o tilintar do ouro consegue escancarar as consciências mais empedernidas...
− Tens razão... – concorda Yaacov. – Mas, em relação ao secretário do arcebispo...
− Quanto a este – diz Ben Hanan −, é cria do arcebispo, e essa gente é tinhosa! Não creio que seja fácil nós dois lhe opormos resistência... No momento, não sei o que dizer!...
− Penso ter uma saída! – exclama Yaacov, depois de cogitar por instantes: − E se apressássemos o casamento dos nossos filhos?...
Uma vez casada, a minha filha achar-se-á mais bem guardada em teu palácio. Que te parece?
− Não sei, meu amigo... – responde o outro, um tanto reticente. – Seria uma boa solução, não fosse o Tribunal!... É isso que me causa apreensão... E que diferença faria a tua filha morar em tua casa ou na minha? Secundadas pelo Tribunal, as garras daquele lobo acabariam por alcançá-la em qualquer parte...
− Por esse lado, penso teres razão, Ben Hanan... – retruca o ourives. E, depois de raciocinar por segundos, coloca-se mais próximo do outro e cochicha-lhe: − E se pagássemos um sicário?...
− Não seria má essa ideia... – replica o outro. E depois de olhar, minudentemente, em redor, prossegue: – Mas, e como isso se faria?... E crês que não seríamos descobertos?...
− Se for feito por gente competente... – responde Yaacov. – Sabes tão bem quanto eu que isso tem acontecido, amiúde, e a maior parte dos assassinatos permanece a encoberto...
− Tens razão... – responde Ben Hanan. – É para se pensar sobre essa questão – e depois de instantes, convida: – Venha visitar-me, um dia desses, e conversaremos mais a sério sobre esse caso...
Em seguida, ambos se despedem, e cada um segue o seu destino.
Naquela noite, após o jantar, Yaacov e a esposa conversavam à baixa voz, recostados nas almofadas da sala de estar. Os três filhos, reunidos na varanda, conversavam animados, entre risadas cristalinas e despreocupadas, banhados pela luz opalescente da lua cheia.
− Veja como se riem as crianças, Yaacov! – exclama Sara. – Mal sabem eles sobre a abjecta nuvem negra que paira sobre as nossas cabeças...
− Sim, Sara! – diz Yaacov, com a voz extremamente triste. E após emitir fundo suspiro cheio de desolação, prossegue: − Hoje de manhã, avistei-me com Ben Hanan no mercado.− Ben Hanan? – questiona a esposa, cheia de interesse. – E que novas te trouxe ele?
− Conversamos sobre nossos filhos, sobre o maldito Tribunal e lhe relatei acerca das investidas que dá o miserável do secretário do arcebispo sobre a nossa menina.
− E o que te disse ele?
− Mostrou-se altamente indignado com a ousadia daquele biltre!
− Somente se indignou?... Nada mais te propôs ele?... – observa Sara, com um meio sarcasmo à voz.
− Ben Hanan contou-me que o Tribunal andará a funcionar, mui brevemente, pois o inquisidor-geral já foi escolhido pela rainha, e, com isso, nós, os judeus, poucas chances teremos contra qualquer cidadão castelhano!
− Isso já imaginávamos! E sobre o casamento de Milagros com Andrés?
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