LUZ ESPÍRITA
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 23, 2024 10:10 pm

O Mosteiro de São Jerónimo
Valter Turini

Pelo espírito Monsenhor Eusébio Sintra

“Todas as cousas me são lícitas, mas nem todas convêm.”
I Coríntios, 6.12

O Mosteiro de São Jerónimo é extraordinário romance de época a desenrolar-se na decadente sociedade portuguesa do final do século XVIII, e em cujas páginas, o insigne Monsenhor Eusébio Sintra, Espírito, relata, séria e objectivamente, o pungente drama de Anjinho, típico malandro do grande porto de Lisboa que, vítima de cruel vingança de inimigo do seu pai, fora raptado, ainda bebê, e deitado na roda dos enjeitados do convento das freiras carmelitas e, mais tarde, lançado à própria sorte, criou-se pelas ruas, a desconhecer, completamente, a sua origem nobre.
Valter Turini

Monsenhor Eusébio Sintra brinda-nos com mais um excelente romance de época: "O Mosteiro de São Jerónimo ". Trata-se de trama envolvente, em que Manuel António Ramalho e Alcântara, o Barão da Reboleira, tem o seu filho mais novo - um bebê de apenas poucos meses - covardemente raptado por seu vizinho de quinta, o Marquês das Alfarrobeiras que, a vingar-se pela derrota que sofrera num litígio de terras contra o pai da criança, e que, depois de furtar o recém-nascido, lança-o, traiçoeiramente, à roda dos enjeitados do convento das freiras carmelitas. A partir desse acto ignóbil, surge, de um lado, o terrível drama a envolver o desespero da família a lançar-se à sistemática e incansável procura pela criança raptada e, do outro lado o real destino dado ao bebê roubado que, adoptado por uma serva do convento, cria-o em lugar pobre e afastado, dificultando, assim consumação dessa busca.
Nestas páginas, além do conflito envolvendo o rapto do bebê, e das terríveis consequências daí advindas, encontrar-se-ão, ainda, o agir sub-reptício das sombras espíritos vingadores a engendrarem contumaz processo de obsessão - e uma série de aparições e de diálogos com espíritos, a provarem que Espiritualidade sempre nos influenciou muito além do que podemos supor!...
O processo psicográfico desta obra, como o das demais já editadas sob a responsabilidade do insigne Espírito Monsenhor Eusébio Sintra e do Professor Valter Turini, dá-se pela "transmentação" (segundo nomenclatura de Edgard Armond, in "Mediunidade", Aliança, 29ª ed., 1994. p. 87), processo através do qual o espírito comunicante projecta o texto na mente do médium que o recebe e - neste caso - escreve-o directamente no computador.
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Índice
Palavras do Autor Espiritual

Capítulo 1 - Anjinho
Capítulo 2 - Uma família fidalga
Capítulo 3 - A Marquesinha das Alfarrobeiras
Capítulo 4 - Estranha aparição
Capítulo 5 - Uma estada em Lisboa
Capítulo 6 - Inusitado encontro
Capítulo 7 - Novos rumos
Capítulo 8 - Tramas e vinganças
Capítulo 9 - Reencontro de corações
Capitulo 10 - Dramático reencontro
Capítulo 11 - Desencontros
Capítulo 12 - Nova Vida
Capítulo 13 - O reencontro
Capítulo 14 - Tramas e traições
Capítulo 15 - Volta às origens
Capitulo 16 - Um baile
Capítulo 17 - Ainda o baile
Capítulo 18 - Maquinações e vinganças
Capítulo 19 - Ódios e desavenças
Capítulo 20 - Tormentos da obsessão
Capítulo 21 - Traição
Capítulo 22 - No cárcere
Capítulo 23 - A luta pela liberdade
Capítulo 24 - Na antecâmara da morte
Capítulo 25 - Diante da rainha
Capítulo 26 - Executa-se um condenado
Capítulo 27 - Revisitando o antigo lar
Capítulo 28 - O despertar no além
Capítulo 29 - Nas malhas da obsessão
Capítulo 30 - A vingança
Epílogo
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 23, 2024 10:11 pm

Palavras do Autor Espiritual
No derradeiro quartel do século XVIII, com o advento da Revolução Francesa - conjunto de acontecimentos, cujo ápice deu-se a 14 de julho de 1789, com a tomada da Bastilha pelos revoltosos -, (a Bastilha era uma fortaleza medieval, transformada em abjecta prisão e símbolo da opressão e do despotismo da monarquia francesa), o mundo ocidental começava a ganhar novas configurações políticas e sociais, pois os poderes constituídos até então, embasados, principalmente, no conceito da origem divina do poder absoluto dos reis, pela primeira vez, em toda a História, principiavam a bambear as pernas, e um coro de estupefacção generalizada ouviu-se das bocas coroadas de todo o mundo, quando os reis franceses, Luís XVI e Maria Antonieta, sucumbiram guilhotinados, em praça pública, pela sanha enfurecida da plebe revoltada e já largamente cansada da soberba e dos desmandos de uma aristocracia cínica e perdulária. "S'ils n'ont pas du pain, pourquoi ne mangeant pas de la brioche?...", respondera a rainha Marie-Antoinette ao ministro das finanças de seu país, quando este, dizendo-lhe que o povo não tinha pão, admoestara-a, severamente, acerca da exorbitância dos gastos do palácio de Versalhes que, literalmente, despejava aos esgotos verdadeiras fortunas em luxo e em desmedidas veleidades (uma interminável sucessão de custosíssimas festas, nababescos banquetes para milhares de convivas e luxuosíssimos bailes temáticos) cuja única finalidade era atender aos desejos e aos caprichos dela, a soberana, juntamente com a sua numerosa corte de parasitas desocupados. "Se o povo não tem pão, por que não come bolo?..." fora a cínica resposta da rainha ao estupefacto ministro que demonstrava séria preocupação com os sinistros rumos que os destinos da França tomavam. Entretanto, faziam-se necessárias mudanças profundas; urgia que a Lei de Progresso, constante e inexorável, prosseguisse sua marcha, apesar de a ignorância dos homens tentar, a todo custo, impedir-lhe o inabalável avanço, cujo único e real intuito é proporcionar mais e mais liberdade às consciências humanas que, desde imemoráveis eras, acham-se aprisionadas aos grilhões gerados pelas mentalidades mais ladinas que, em todas as épocas, encontraram maneiras engenhosas de enganar os simples e incautos e falsear a verdade, com o precípuo e desprezível propósito de se locupletar à custa do sangue e do suor alheios!... Entretanto, nenhuma força humana será capaz de deter o progresso por muito tempo!... Ele, fatalmente, virá, mesmo à revelia dos que se arvoram de "guias da humanidade", como se, a dirigir os destinos do homem, não houvesse Incomensurável Força Oculta e que, soberanamente Sábia, Justa e Bondosa, não soubesse, acaso, qual seria o melhor caminho para a ascensão espiritual de todos os seres da criação!... Pobres desses que se auto constituem de os condutores da humanidade!... Na realidade, não passam de pífios instrumentos da Vontade Maior — reles títeres a executarem involuntária dança que, no mais das vezes, nada mais servem que aos propósitos e interesses dos Grandes Planos propostos para a humanidade, não passando, assim, de simples executores da suprema Lei de Causa e Efeito!...
A França deu o exemplo ao mundo, desalojando os reis de sua pretensa origem divina!... E a prepararem o caminho para o corolário da emancipação do espírito de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, houve a necessidade de homens-gigantes a desafiarem os pretensos donos do mundo; foi preciso que grandes filósofos se reencarnassem antes, verdadeiros batedores a semearem o desejo de liberdade, havia tempos incontido no âmago dos corações de todos os homens!... Ressaltem-se os ideais de grandes pensadores, como Bento de Espinoza, François-Marie Arouet (Voltaire), Denis Diderot, Jean Le Rond d'Alambert..., homens que ousaram contestar os "senhores da verdade" de então e semearam a dúvida; a dúvida conduz à reflexão e a reflexão, à cogitação. Daí para a acção que, de facto, aconteceu, na gigantesca e irreprimível explosão das emoções e das paixões, a muito custo sofreadas no peito dos oprimidos, foi apenas um passo!... O mundo ouviu, então, pela primeira vez, em toda a História da Humanidade, o grito rouco, antes abafado nas gargantas, havia milénios: Liberdade!... Já amadurecido, era chegado o tempo de o homem decidir o seu próprio destino, de autogovernar-se; era a vez da republica!... E certo que, para que isso efectivamente acontecesse, muito sangue foi derramado; muitos excessos foram cometidos; o homem embriagava-se de liberdade e, bêbado de tanta felicidade, não soube, a princípio, o que fazer: cometeu, sem dúvida alguma, barbáries infinitamente muito mais expressivas das que cometeram os déspotas aristocratas!...
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Os horrores desencadeados pela fúria dos revoltosos a ninguém poupavam: primeiro, a odienta aristocracia pagou caro pelos desmandos, pela prepotência e pelo desmedido orgulho, pejado de infames preconceitos; depois, o clero abusado e hipócrita foi desalojado de sua beatífica impostura e vilmente arrastado, humilhado e ultrajado pelas ruas e, por fim, nem mesmo os iguais escaparam à sanha enlouquecida!... Os próprios chefes revolucionários pereceram, vítimas do enfurecido e incontrolável monstro que houveram conjurado!... Mas, o povo precisava aprender a usar a liberdade que ganhava e, mesmo hoje, ainda vai aprendendo, paulatinamente, a usá-la!... Presentemente, encontra-se um tantinho mais humanizado do que foi outrora e, assim, aos poucos, mediante a aplicação da Lei de Progresso, vai permitindo desabrochar em si a Lei de Amor e se cristianiza; deixa o mundo dos instintos e das sensações e passa ao exercício mais efectivo da razão; desabrolha sentimentos fraternos e, assim, cresce, pois só existe uma única fatalidade em toda a existência humana: emancipar-se, através da prática do amor incondicional e da razão, e chegar, por fim, a juntar a sua existência plenamente purificada ao amor e à sabedoria da Divina Luz que o criou!...
O presente romance arma-se a meio das grandes tribulações que sacudiram a sociedade europeia do final do século XVIII. O homem via-se espremido entre duas eras; principiava a deixar a condição de "pobrezinho incapaz" - que, em tal condição, deveria ser tutelado pelos poderosos do mundo e pelos sagazes príncipes da Igreja - e passava a gerir seu próprio destino; libertava-se dos grilhões dos desmandos e dos privilégios de alguns poucos e se armava de força para construir uma nova ordem. Primeiro, foi preciso libertar as consciências do jugo papal, e os reformadores já haviam feito a sua parte; agora, era preciso alforriar-se politicamente, realizar-se integralmente; matar, de uma vez por todas, o homem medieval que ainda teimava em existir e fazer nascer o homem moderno, partidário incondicional do saber, da ciência e da tecnologia!... A humanidade preparava-se para o advento das máquinas, a facilitarem-lhe a tão penosa existência, neste inexpressivo orbe de expiação e de provas, e velhas tradições e conceitos caducos precisavam ser esboroados e, para que isso, efectivamente, acontecesse, fazia-se necessário que antigos vícios sociais fossem banidos para sempre!... Não mais a divisão absurda das criaturas em apenas duas castas: a dos opressores e a dos oprimidos!...
Os factos aqui narrados ocorrem em Lisboa, a capital do Império Português que, então, era um dos maiores centros comerciais do mundo. A ocupar o lugar mais privilegiado de toda a Europa para exercer tal mister, posto que se debruça a contemplar, placidamente, toda a imensidão do Atlântico, Portugal lançara-se, a partir do final do século XV, à conquista dos mares e o fez com maestria incomum!... Amealhou riqueza ímpar, mas pouco soube dela usufruir!... Os portugueses não entenderam que o ouro, a prata e as preciosidades todas não brotam do chão, à semelhança das águas, e, mesmo já no final do século XVIII, tais riquezas principiavam a minguar, vertiginosamente, em suas exauridas colónias de além-mar!... A degradação, aliada aos ventos das novas mudanças que se anunciavam no horizonte, desestabilizavam a sociedade portuguesa dessa época, já tão acostumada aos desperdícios e às facilidades geradas pela desmedida exploração das fabulosas riquezas descobertas alhures... O ouro escasseava, as coisas tornavam-se mais e mais difíceis... A miséria voltava a grassar pelas ruas da grande cidade, e o vício e as degradações morais que, invariavelmente, acompanham os desvalidos do mundo, eram lugar-comum entre as gentes que viviam pelos misérrimos arrabaldes e pelas imediações do grande porto de Lisboa...
Observa-se, nessas linhas, o desfilar de terríveis dramas, gerados pela paixão desenfreada, pela cupidez, pela incúria e pela insensatez humanas!... Entretanto, restam-nos as imarcescíveis lições que a vida sempre nos dá, em todos os tempos, e convém não esmorecer nunca, pois o homem ainda se acha em construção!... Sua marcha, rumo ao infinito, apenas se inicia; costuma, invariavelmente, encontrar o caminho certo, através dos erros, pois as verdades acerca de sua real natureza ainda lhe são desconhecidas quase que na íntegra; porém, apesar das dores infinitas, geradas pela ignorância, pela incompreensão e pelos desencantos com que se tem deparado, até então, não são e nem devem ser motivos ou embargos à sua ascensão espiritual. E preciso orar, esclarecer-se e trabalhar sempre!... "E quando eu for, e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que onde eu estou estejais vós também",1 disse Jesus. Aí está a sublime promessa que o insigne Mestre Nazareno fez-nos alhures; confiemos nela, pois.

Tupi Paulista, inverno de 2007.
Eusébio Sintra
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1. Evangelho de João, 14.3
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Capítulo 1 - Anjinho...
O burburinho da rua concentra-se, temporariamente, num grande círculo, ao centro do qual, dois jovens socavam-se até a exaustão.
- Mata-o, Frederico...
- Dá-lhe, Anjinho... - grita, eufórico, um velho pescador. E prossegue, arreganhando uma boca desdentada: - Arranca-lhe as tripas com os dentes!...
A balbúrdia e os apupos do populacho, a divertir-se, enormemente, com o espectáculo, chamam a atenção dos moradores das casas assobradadas que se erguiam rente à via que margeava o cais do porto.
- Que gritaria será essa no meio da rua, assim tão cedo?... - pergunta-se Gerusa, aproximando-se da janela e, afastando a cortininha de rendas brancas meio encardidas pelo tempo, espicha o pescoço e, curiosa, espiona lá embaixo. - Vê só!... - observa a mocinha para a companheira de quarto. - Dois marmanjos socam-se, em plena rua, debaixo da garoa, a rolarem pelo chão como porcos no chiqueiro!
- Dizes que brigam lá fora, logo de manhãzinha? - pergunta a outra, aproximando-se, afoitamente, da amiga e também espichando o pescoço para melhor observar a rua lá embaixo.
- Sim - exclama a moça -, dois gajos estão a socar-se em plena rua!...
- Mas, espera aí!... - observa a outra. - Não é João Manuel a brigar lá embaixo?
- Sim, Madalena, pois e é!... - exclama Gerusa para a companheira, após estudar, meticulosamente, um dos rapazes que se encontrava totalmente encharcado pelo lamaçal que a insistente garoa formara sobre o precário pavimento da rua. - Não é que o doidivanas mete-se em encrencas de novo?... - e, alteando a voz a plenos pulmões, grita para baixo, pondo as mãos em concha sobre a boca: - Ei, Anjinho, dá-lhe sem dó!... Arranca-lhe as orelhas com os dentes!... Vamos!...
- Mata-o, Anjinho!... - grita Madalena, juntando sua voz à da companheira.
Alheios ao vozerio que os rodeava, os rapazes engolfavam-se em luta feroz. Rolavam na lama da rua e trocavam violentíssimos golpes, posto que se tratavam de dois rapagões fortes e bastante musculosos. Súbito, um grito destaca-se do meio da buliçosa assistência:
- A milícia!... A milícia!...
De fato, de uma esquina, repentinamente, pequeno pelotão de milicianos armados de longos porretes marchava em direcção da balbúrdia que principiava a instalar-se na rua do cais do porto.
- Fujamos!... Depressa!... - gritavam, afoitos, e a se dispersarem como doidos, os do magote que, até então, divertiam-se, enormemente, com o espectáculo que apresentavam os dois brigões.
E, num piscar de olhos, a rua esvaziou-se, restando apenas os dois contendores a rolarem na lama, alheios ao que se passava em redor.
- Foge, João Manuel! - gritam em coro Gerusa e Madalena, do alto da janela. - A milícia!... Foge, depressa, João Manuel...
O rapaz, então, reconhece a voz das mulheres e, escutando a advertência que elas lhe faziam, desvia-se, ligeiro, dos golpes que o outro tentava aplicar-lhe e, confirmando, com rápido olhar, a chegada dos policiais, levanta-se apressado e, correndo em velocidade espectacular, alcança a pequena amurada de pedras do cais e, alçando salto formidável, arroja-se às águas geladas que bramiam furiosas, batendo nas rochas da fundação do porto e explodindo em gigantescos borrifos de espuma branca que se elevavam bem alto, como se fossem fugazes lençóis alvinitentes a farfalharem ao vento, presos a imensos varais. E, num átimo, João Manuel mergulha nas águas escuras e profundas do porto, desaparecendo, em seguida, no meio dos terríveis redemoinhos do imenso caudal encapelado.
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O comandante da pequena guarnição, após os soldados haverem rapidamente subjugado o outro rapaz e o manterem fortemente manietado, ordena que alguns de seus homens vasculhassem o destino do outro que escapulira, saltando, ousadamente, para as águas revoltas. Os soldados, então, apesar de se encharcarem com a água que fustigava, violentamente, a amurada do cais, nada puderam ver, pois o estuário do Tejo, naquela manhã, não se achava para brincadeiras, tamanha era a violência da arrebentação que impedia qualquer exame mais minucioso da orla do porto.
- Matou-se o infeliz! - brada o comandante, ao notar que os soldados nada avistavam no rio. E, dando por encerradas as buscas ao fujão, prossegue: - Ninguém, em sã consciência, arrojar-se-ia às águas, em tais condições!
Entretanto, escondido e se agarrando, firmemente, ao imenso cadaste de um bergantim, fundeado a algumas braças de onde saltara às águas, João Manuel, pondo apenas o nariz e os olhos acima da linha d'água, observava, entre atento e divertido, o apuro dos soldados a procurarem-no, enquanto se encharcavam da água gelada. Passado o perigo, o rapaz, com impetuosas braçadas, vence a nado a pouca distância que o separava do cais e, escalando, com relativa destreza, as pedras limosas da fundação do porto, salta para a amurada do cais e, atravessando ligeiro a rua, desaparece pela porta lateral que dava para um dos sobrados fronteiriços.
- Anjinho!... - exclama Gerusa, ao abrir uma fresta da porta em que alguém batera insistentemente. - Estás todo lanhado e sujo de lama!... Vem, entra, seu doudo!... Queres morrer congelado, é?...
O rapaz entra e, sem demonstrar um mínimo de bambeza ou de preocupação pelo lastimável estado em que se achava, impetuosamente, agarra a moça e a beija, arrebatadamente, aos lábios.
- Oh, és um verdadeiro furacão, Anjinho!... - exclama Gerusa, emitindo fundo suspiro de gozo e de satisfação pelo eloquente arroubo de paixão tresloucada que lhe proporcionara o rapaz.
- Por favor, Gerusa, deixa que me esconda aqui, contigo!... - diz João Manuel, com os olhos súplices. - A milícia persegue-me e, se me deitam as mãos, desta vez, apodreço nas enxovias!... Sabes o quanto desejam prender-me!...
- Se sei!... - exclama a moça, tomando-o pela mão e o fazendo adentrar o pequeno quarto onde residia com a companheira. - E, se te pilham aqui, levam-me junto contigo!... Sabes muito bem o que acontece a quem dá guarida a perseguidos!... - diz ela, olhando-o, fundo, nos olhos.
- Não me acharão em teu reduto!... - diz o rapaz, tomando-a nos braços e lhe afagando, ternamente, os cabelos negros e ondulados. -Prometo-te que, por um bom tempo - e até que se esqueçam de mim! -, não meterei as fuças para fora daqui!...
- Tu?!... - exclama ela, com um riso de deboche nos lábios. - Que será das prostitutas do cais do porto sem ti?... Como se arranjarão, sem que as visites, assiduamente, como fazes, já, mesmo quando ainda eras um frangote de doze ou treze anos?
- Oh, exageras, minha doce Gerusa\... - diz ele, enlaçando-a nos braços fortes. - Sabes muito bem que tenho os olhos voltados somente para ti!...
- Neste exacto momento, sim!... - diz ela, brincalhona. - Porque Madalena saiu para comprar pão!... — Depois prossegue, em tom jocoso: - E, também, porque tens metade de toda a milícia de Lisboa em teu encalço!...
- Oh, como me rebaixas o conceito!... - diz ele, beliscando-lhe, ousadamente, as ancas avantajadas. - Olha que me ofendo e não mais aqui virei a visitar-te!...
- Se me fizeres tal desfeita, mato-te a punhaladas!... - exclama a jovem, enlaçando-lhe o pescoço com ambas as mãos. E, após trocarem longo e voluptuoso beijo, ela prossegue: - Agora vem, que encho a banheira para que te laves!... Estás sujo de lama até a alma e fedes qual um porco!
Em pouco, João Manuel encontrava-se sentado na banheira, e Gerusa esfregava-lhe as costas com uma esponja.
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- Estás todo lanhado, Anjinho!... - exclama ela, observando-lhe a enormidade de escoriações e arranhões que ele exibia por todo o corpo, à proporção que a sujidade aderida à pele ia sendo lavada pela água. -Afinal, com quem estavas a brigar e por que brigáveis?
- Acertava velhas contas com Frederico Melgaço, o filho do carniceiro - responde ele, sem abrir os olhos, os quais ele mantinha semicerrados pelo peso da modorra que, atrevida, tentava dominá-lo, embalada pela tepidez e pela gostosura da água morna do banho que lhe fora relaxando, aos poucos, toda a musculatura do corpo.
- Tais velhas contas, na verdade, são mulheres, não é? - pergunta ela, com um risinho de desdém.
- Que te importa se são mulheres ou não? - diz ele, rindo-se e, levantando-se, abruptamente, da banheira, exibe-lhe a plena nudez do corpo forte e amorenado.
Gerusa percorre-lhe, demoradamente, todo o corpo, com os olhos.
- Nada me tira da cabeça, João Manuel, que vens da nobreza!... -diz ela, olhando-o nos olhos. - Tens um corpo perfeito!... Não é à toa que te apelidaram de Anjinho!...
O rapaz devolve-lhe o olhar, cheio de orgulho. Tinha consciência da beleza de que era possuidor. Todas as mulheres da cidade não viviam correndo atrás dele?... Entretanto, se vinha da nobreza ou não, como poderia saber?... Nada conhecia de sua origem, além do que lhe contara a velha Ofélia, sua mãe de criação. Pouca coisa, por sinal, pois nem mesmo Ofélia tivera conhecimento sobre os pais dele. Sabia que fora recolhido na roda dos enjeitados, no convento das freiras carmelitas, e que sua mãe adoptiva, na época, trabalhava como criada das monjas, auxiliando-as a criarem os órfãos. E que Ofélia, encantada com a beleza e a graça do bebê que haviam rejeitado, suplicara às freiras que lho dessem a ela, para criar, posto que era sozinha e solteira. Ofélia tomara-se de amor pelo bebê, mal lhe deitara os olhos, e tanto suplicara às freiras que lho dessem, que as irmãs se viram obrigadas a doar João Manuel à insistente criada que, uma vez de posse da criança, sumiu do convento para sempre e foi tratar de criá-lo às suas expensas. Entretanto, a mãe de criação não viveu muito e, quando João Manuel contava cinco anos de idade, viu-se órfão pela segunda vez e foi recolhido ao orfanato, mantido pela cúria, e onde cresceu à míngua de tudo - de comida, de roupas, de carinhos, de educação... - e, posteriormente, fora lançado à rua, depois que completara doze anos, e tendo, a partir daí, de viver às próprias expensas, no meio dos mendigos e das prostitutas do cais do porto.
- Além do mais - prossegue Gerusa -, tens um brasão tatuado à espádua direita!... Acaso sabes o que é?...
- Não faço a mínima ideia do que seja isso aí! - responde o rapaz, contorcendo o dorso e tentando enxergar o desenho que trazia às costas, acima, na espalda direita. - Já me disseram, possivelmente, ser o brasão de alguma família de fidalgos!...
- Não seria uma pista de quem seriam teus pais verdadeiros? -observa a moça, tomada de intensa curiosidade. - E, se realmente forem fidalgos cheios da grana os teus parentes?... Acho que estás a perder tempo!... Por que não te metes a investigar isso?
- Sabes o que penso acerca de tal coisa? - observa o rapaz, olhando-a, sério, nos olhos. - Meus pais poderão, de fato, ser nobres, mas me lançaram na roda dos enjeitados do convento das carmelitas. E, se fizeram isso, é porque não me queriam, não concordas?...
- Entretanto, não sentes nenhuma vontade de conhecê-los, embora sabendo que não te desejavam? - insiste a moça. - Nem mesmo curiosidade tens acerca deles?
- Sabes o que sinto sobre meus pais, Gerusa1.... Nada sinto!... Não convivi com eles, não lhes posso sequer adivinhar as fisionomias, as vozes, o porte; não sei se são altos ou baixos; ainda, se são gordos ou magros, se têm pêlos nos braços e nas narinas ou se são louros ou morenos!... - diz ele, agora, com uma ponta de amargura à voz. - Simplesmente, deitaram-me fora; desprezaram-me, minha cara!... Que desejas que eu sinta por eles?... Nada!... Para mim, não passam de estranhos!... Amor e carinho senti e ainda sinto por Ofélia!... Ela, sim, deu-me amor e cuidou de mim, dentro de sua simplicidade e de sua pobreza!...
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Mas, sempre foi digna!... Esfalfou-se a limpar o chão das casas fidalgas para prover-nos de pão o singelo lar!... Se há alguém, neste mundo, a quem devo algo, é a ela, Gerusa, minha mãe de criação!...
- Não achas que estás a condenar teus pais verdadeiros, sem conheceres a real causa de teu abandono?... - observa Gerusa, enquanto o rapaz enxugava-se com uma toalha. - Será que eles não te abandonaram porque não te podiam criar?... Penso que os pais não se desfazem de um filho, assim, deliberadamente, apenas porque não o querem!... Costuma haver sempre uma razão muito forte para que isso aconteça!...
- De minha parte, meu amor - diz o rapaz -, agora sou eu quem não os quer!... - e prossegue, enquanto enrola e prende a toalha à cintura: -A propósito, tu não tens algo para se comer?... A briga com o filho do açougueiro, mais as boas braçadas que me vi forçado a nadar, logo de manhã, deram-me uma fome de lobo!...
- Só um doido como tu lançar-se-ia em águas assim terríveis quais as de hoje!... - exclama Gerusa, atraindo-o para si e o beijando, voluptuosamente, à boca.
- É que tu não conheces o peso que têm os porretes dos milicianos, minha cara!... Prefiro mil vezes lançar-me ao olho de um furacão a enfrentar a ira daquelas bestas desumanas!... - exclama ele, desvencilhando-se dos braços dela. - Aqueles sujeitos batem sem piedade!... A essa hora, o filho do carniceiro deve estar moído pela tunda que lhe deram os tais!...
- Aí é que te enganas, meu bem!... - diz ela, enquanto apanha, de um pequeno armário, uma meia botelha de vinho e um queijo curado. -
Frederico Melgaço não terá ficado, nadinha de nada, preso nas enxovias!... Sequer lhe terão tocado num fio de cabelo!... O velho açougueiro é cheio do ouro, esqueces-te?... Aposto o que quiseres que, neste momento, aquele ricaço inescrupuloso já terá corrompido metade dos comandantes da milícia, e que o filho dele já repousa em casa, fresco e banhado, em seu cheiroso e confortável leito de penas de ganso!... Tu, entretanto...
- Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... - explode João Manuel numa estrepitosa gargalhada. E prossegue, rindo-se: - Diferentemente de mim, se me apanham, não é mesmo?... Neste preciso momento, eu já me encontraria moído de pau, pois não possuo nem a sombra de um único dobrão, para matar a sede do comandante da milícia e de seus subordinados!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... - prossegue ele, gargalhando. - Sabes o que admiro em ti, Gerusa!... A praticidade que demonstras para as coisas!... Se um dia resolver casar-me, não me esquecerei de ti!...
Gerusa limita-se a olhá-lo com ar de deboche e, depois, enquanto ele comia, ela lhe sondava as feições: a basta cabeleira castanho-escura e ainda bastante molhada caía-lhe até os ombros nus; o pescoço grosso, bem feito; a barba negra, espessa, com apenas dois dedos de comprida, emoldurava-lhe o rosto bem torneado, amorenado e curtido pelo sol e pelo sal do mar; os olhos, também castanho-escuros, brilhavam vivazes; os lábios, bem torneados, abriam-se num sorriso brejeiro e constante e deixando entreverem os dentes correctamente delineados e alinhados numa dentição perfeita. João Manuel era lindo!... E Gerusa já tinha estado com ele tantas vezes!... Gostava dele, de seus carinhos... Não conseguia tirar os olhos do rosto do rapaz. Como era bom tê-lo ali, só para ela; cuidar dele, dar-lhe comida!... Anjinho!... Gerusa ri-se, no íntimo. Com que prazer as prostitutas do cais do porto cuidavam dele!... E ele se criara na malandragem, entre aquela gente do porto; não trabalhava, era analfabeto, vivia bebendo nas tavernas e arrancando dinheiro dos marinheiros nos dados e nas cartas. Ninguém o superava em tais labores!...
Lá fora, o dia marchava cinzento, molhado pela chuva fina e persistente. Gerusa levanta-se e vai até a janela. Afasta as cortinas de rendas encardidas e espiona a rua.
- Madalena demora-se!... - exclama ela, com um suspiro.
- Deve ter arranjado algum freguês!... - observa o rapaz, com ar divertido.
- Com este vento e com esta chuva, duvido que isso tenha acontecido!... - responde ela, voltando-se para dentro. E prossegue, encarando-o: - Aliás, tu sabes muito bem que os navios não se atrevem a atracar com tal arrebentação. Sem navios ancorados no porto, sem serviço, meu caro!
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 23, 2024 10:12 pm

- E sem patos para depenar nos dados e nas cartas!... - observa ele. - Vês como o mau tempo pode estragar o ganha-pão de tanta gente?
- E os estivadores, os estalajadeiros, os bodegueiros!... - completa ela. - Nossas vidas dependem da chegada dos navios!...
- Não só o porto, mas toda a nação depende dos navios, minha cara!... Portugal é o mar!...
João Manuel termina sua breve refeição e estica os braços acima da cabeça, espreguiçando-se e bocejando ruidosamente.
- Estou morto de sono!... - exclama ele. - Não dormi um só instante esta noite.
- Não dormiste, porque andavas na borga, naturalmente!... - observa ela, com um a ponta de ironia. - E, certamente, foi nesse lugar que começaste a briga com Frederico Melgaço, suponho...
- Não sabia que te iniciavas na arte da adivinhação, minha bela!... -exclama ele, brejeiro. E, tomando-a nos braços, abraça-a forte, enquanto diz: - Como pudeste acertar com tamanha precisão?
- Adivinha é que não sou!... E muito menos idiota!... - responde ela, zombeteira. E prossegue, rindo-se: - Vamos, vai lá!... Desembucha!... Por qual par de belos olhos é que tu e Frederico Melgaço quase vos matastes logo de manhã?
- Além de qualificadíssima adivinhadeira, tu me sais, também, excelente bisbilhoteira, senhora dona Gerusa!... - exclama ele, rindo-se e a lançando de costas sobre o leito que geme ruidoso com o peso da moçoila. Em seguida, João Manuel deita-se sobre ela e a beija, longamente, aos lábios. Depois, torna-se sério, olha-a, firme, nos olhos e diz: - Melhor que não saibas, querida!... Melhor para ti que não saibas em que vespeiro eu e o idiota do Frederico andamos metendo a mão!...
Depois, o rapaz senta-se no leito, ao lado dela, e olha, demoradamente, para o vazio, enquanto parecia reflectir, profundamente, sobre algo. Gerusa acariciava-lhe, ternamente, o dorso nu e observava o estranho desenho que ele trazia tatuado ao ombro: dentro de um escudo, duas espadas cruzadas e encimadas por um elmo com um penacho. Que mistério envolveria a vida daquele rapaz?... João Manuel não tinha mais que dezassete anos; era ainda tão jovem!
- Anjinho...
- Ahn...
- Não queres que eu te ajude a procurar por teus pais verdadeiros?
- Por que insistes em tal asneira, Gerusa!... - responde ele, levantando-se e, demonstrando alguma contrariedade, prossegue: - Já te disse que pouco me importam meus pais verdadeiros!... Eu não desejo saber quem são!...
- Está bem!... - diz ela. - Não é preciso que te agastes assim comigo!... Só desejava auxiliar-te!... E se teus pais te procuram?... Não pensaste na hipótese de que, eventualmente, foste sequestrado e que te doaram às carmelitas, por vingança?... Sabes o quanto as pessoas podem ser más, quando querem se vingar de alguém!... Não é nenhum absurdo o que te digo, não concordas?... Acho que deverias, ao menos, procurar saber quem são!
- Se me procuram, pior para eles!... - responde o rapaz, às raias da zanga. - Se os inimigos de meus pais me furtaram e me doaram à caridade das carmelitas, que tenho eu com isso?... Por que é que não tomaram mais atenção com o bebê que tinham?... Agora, azar o deles!... Eu não os quero!... Ouviste bem, Gerusa!... Agora sou eu quem os abandona, sem ao menos conhecê-los!...
Gerusa cala-se, diante de tal veemência. No fundo, entendia que o que João Manuel manifestava nada mais era que grande desgosto pela sua situação. Quem é que não sentiria tamanho agravo por ter sido abandonado, ainda bebê, e relegado à própria sorte?
- Vem, deita-te aqui e dorme!... - exclama ela, convidando-o a ocupar o leito. - Por certo, não farei uso do meu quarto hoje, e tu poderás repousar tranquilo. Enquanto dormes, aproveito para sair à procura de Madalena. Onde é que se terá metido aquela doida?...
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 23, 2024 10:13 pm

O rapaz deita-se, e Gerusa cobre-o, gentil e amorosamente, com velhas cobertas de lã. Depois, beija-o, longamente, aos lábios. Em seguida, apanha seu surrado manto de gorgorão verde-escuro; depois, devagar, amarra as pontas das tiras ao pescoço, com um laço caprichado, e apanha o chapéu de feltro preto e o ajeita à cabeça. Pelo desgaste natural das entretelas, as abas do chapéu despencam-lhe à testa, desgraciosamente, quase a lhe encobrir os olhos. Remetidas vezes semelhante. Nascida no interior do país, em aldeia miserável, para fugir às agruras da fome e da pobreza infamante, houvera buscado a capital, na expectativa de arranjar emprego mais remunerativo e mais decente; porém, logo descobriu que a disputa por colocação como criada nas casas ricas era muito concorrida, pois as patroas fidalgas mostravam-se muito exigentes em questão de habilidades e prática de serviço e, como a pobrezinha não possuía quase nenhumas das qualificações exigidas, restara-lhe apenas uma opção, para não sucumbir à fome: prostituir-se. Terrível situação para os que não têm a firmeza de carácter necessária ou a mão segura e experiente dos pais, de parentes ou de amigos sérios, para conduzi-los pelas estradas tortuosas e pejadas de traiçoeiras armadilhas que se escondem em cada canto da vida!... E, pouco ou nada fazem os que detêm os destinos deste mundo, para minorarem o sofrimento dos que, pretensa e temporariamente, encontram-se abaixo deles, na disposição dos valores sociais!... Enquanto os ricos locupletam-se, esbanjando o que lhes sobra - certamente, despojos da rapina, da concussão e da corrupção -, o grosso da população - a grande maioria que nada tem de seu - prova do fel da miséria, do abandono e da ignorância absolutos que lhe proporcionam esses poucos que muito têm!... Como consequência, advém o aumento da miséria extrema, que já, a sobejo, abunda por todo o canto, semeando mais orfandade, mais criminalidade e mais prostituição!... Muito caro, por certo, pagarão à Vida, os que solapam as oportunidades de se construir um mundo mais justo e mais humano, atraindo e juntando para si o que deveria ser de todos!...
Gerusa andava com dificuldade, a meio do vento forte e da chuva gelada. Depois de caminhar pelos arredores, a jovem envereda para os becos escuros e desolados que se escondiam entre o casario abandonado do porto. Vasculha uma porção deles e, após algumas tentativas, com o sangue a gelar-lhe ainda mais às veias, observa, estarrecida, em estreito corredor escuro e espremido entre dois armazéns abandonados, um corpo caído à lama e ensopado pela chuva. Com o coração batendo forte, adentra o beco e se aproxima do corpo. Um grito de horror escapa-lhe da garganta, ao constatar que, ao lado do corpo, formara-se uma extensa poça de sangue, já bastante lavada e desbotada pela chuva.
- Bom Deus!... - exclama Gerusa, abafando a voz com a mão. – É Madalena!
Em seguida, ajoelha-se ao lado da amiga e a toca, primeiro, com a ponta dos dedos; depois, sacode-a, violentamente. Só então lhe observa, atentamente, as feições pálidas, os olhos desmesuradamente abertos, guardando as derradeiras impressões que tiveram neste mundo.
- Jesus!... - exclama Gerusa, com a voz banhada pelo pranto. -Mataram-te, Madá!...
Depois, com um pungente gemido de dor, soergue, ternamente, o corpo da amiga e o aconchega ao colo. Fortes soluços convulsionam-na, e suas lágrimas misturam-se aos pingos da chuva teimosa que lhe lavava o rosto.
- Queridinha!... Que monstro terrível tirou-te a vida?... - murmura Gerusa, abraçando forte o corpo da amiga.
Depois, afasta-a de si e lhe observa o peito: terrível e fundo golpe de punhal rasgara-lhe as carnes, atingindo-lhe, fatalmente, o coração.
- Por que te mataram, meu bem?... Eras, ainda, tão jovem, tão bonita!... - murmura Gerusa, meneando a cabeça, muito triste e chorosa. - Para roubarem de ti alguns míseros cobres que levavas para o pão?... Oh, mundo desgraçado, em que tiram a vida de uma criança, para roubarem alguns centavos que quase nada compram!... Que nos vale a vida?... Alguns reles tostões, nada mais?...
Atraídos pelo choro e pelas lamentações de Gerusa, alguns transeuntes foram aglomerando-se à entrada do beco.
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 8:30 am

Em pouco tempo, surgem dois milicianos que, após interrogarem Gerusa, insistentemente, acerca do crime ocorrido, a seguir, dispersam a multidão e procedem ao recolhimento do cadáver. Recostada à parede do armazém abandonado, Gerusa segue, com os olhos inchados pelo pranto, a carroça que desaparece numa esquina, levando Madá. A jovem meretriz seria sepultada numa vala comum...
Um calafrio percorre a espinha de Gerusa, de alto a baixo. Seria esse também o seu fim?... De repente, o que vira acontecer com tantas outras colegas de profissão, acontecia tão perto dela!... Madá se fora!... E, agora, estaria só!... Quem lhe faria companhia, quem dividiria com ela os momentos alegres e, também, os tristes?... Um choro convulsivo, cheio de desespero, domina-a. Já nem sentia mais o vento forte fustigando-lhe o rosto vermelho e enregelado pela chuva que continuava a cair, insistente e monótona. A roupa molhada e suja de lama grudara-se-lhe ao corpo, e ela nem percebia. Somente a dor, a terrível dor a apertar-lhe o coração, como uma tenaz em brasa.
Por quanto tempo Gerusa ficou ali, perdida no tempo, presa de sua dor do tamanho do mundo?... Somente quando a noite principiou a chegar é que caiu em si. Tiritava de frio e tinha o estômago enjoado. Precisava voltar para casa.
Quando abre a porta de seu singelo quarto, João Manuel ainda dormia. O rapaz desperta assustado, com o ruído da chave estalando na fechadura.
- Por Deus!... Que te aconteceu, Gerusa?!... - exclama o jovem, saltando do leito e correndo ao encontro da moça. - Estás toda desgrenhada, enregelada e coberta de lama!
Gerusa limita-se a olhar para o rapaz, com um par de olhos inchados pelo pranto excessivo. Em seguida, atira-se aos braços abertos que ele lhe oferecia. Estarrecido, constata que a jovem tinha as carnes trémulas. O estado de choque era patente.
- Vamos, mulher!... - exclama ele, apertando-a em forte abraço. -Dize o que te aconteceu!
Obteve, como resposta, apenas uma sucessão de soluços.
- Oh, machucaram-te, por certo! - exclama o rapaz. - Mas, vamos, coragem, diz-me quem foi o canalha que te fez tal maldade, que saio a rachá-lo ao meio, agora mesmo!
Gerusa apenas emite fraco gemido e prossegue soluçando insistentemente.
- Como posso caçar o miserável que te surrou, se nada dizes? -observa o rapaz, fazendo-a sentar-se ao leito, junto dele.
Gerusa olha-o, com os olhos molhados de lágrimas, e murmura baixinho:
- Madá!...
- Não vais dizer-me que Madalena surrou-te assim?! - exclama o rapaz, agora, abrindo a expressão e mal sofreando um sorriso de galhofa.
- Madá... está... morta!... - balbucia Gerusa, com a voz trémula.
- Que dizes?!... - exclama o rapaz, levantando-se do leito, com tamanha rapidez, como se uma cobra o houvesse picado. - Como pode isso ser possível?!...
Gerusa lança-se aos braços do jovem, e os soluços convulsionam-na, violentamente. Sentia muito medo. De repente, parecia dar-se conta de que o mundo era um lugar deveras perigoso para viver-se. João Manuel limita-se a abraçá-la forte, enquanto lhe acariciava as espáduas com ambas as mãos. Também ele se chocara muito com aquela notícia. Era amigo de Madalena. Gostava muito dela.
- Madá morreu!... - diz Gerusa, por fim, afastando-se um pouco dos braços do rapaz. Depois emite longo e pesaroso suspiro e, olhando para ele, prossegue, com terrível expressão de dor profunda num par de olhos inchados e molhados pelo pranto: - Deram-lhe uma facada no peito!...
- Não é possível!... - exclama o rapaz, deixando-se sentar, pesadamente, à beira do leito. E, apoiando a cabeça em ambas as mãos espalmadas ao queixo, numa atitude de plena inaceitabilidade diante de tão terrível fato, prossegue: - Quem terá sido o infame a fazer-lhe tamanha monstruosidade?
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 8:30 am

- Só Deus sabe, Anjinho!... - exclama Gerusa, sentando-se ao lado dele no leito. - Só Deus sabe quem é o maldito que teve a coragem de tirar a vida de criatura tão doce e tão afável como era Madá!...
- Diz-me, Gerusa - pergunta o rapaz -, onde aconteceu o assassinato?...
- Mataram-na no beco, ao lado dos armazéns abandonados da Companhia Três Coroas.
- Tão perto daqui?! - admira-se o rapaz. - Pobre Madalena!.... E nada pudemos fazer para livrá-la de tão terrível fim!...
- O mesmo fim de tantas que andavam a praticar tal ofício, meu caro!... - observa Gerusa, com um fundo suspiro. - Tu sabes o quanto vale a vida de uma meretriz do cais do porto...
- Oh, meu bem! - exclama o rapaz, atraindo a jovem para si e a abraçando forte. Em seguida, beija-a, delicadamente, à face e prossegue: - Para mim, todas vós valeis um montão...
- Mas, nem todos pensam como tu, Anjinho!... - diz ela, abrindo um sorriso triste. - Para a maioria dos homens, não valemos nada!... Para eles, não passamos de lixo e menos somos que a coisa mais abjecta que existir neste mundo!
Apiedado, o rapaz limita-se a olhá-la, por um longo tempo. E, então, presos de cogitações íntimas, pesado silêncio se abate entre ambos. Lá fora, a noite caía gelada e molhada pela chuvinha miúda e incessante.
- E o corpo de Madalena? - pergunta o rapaz, de repente quebrando o silêncio.
Gerusa tenta levantar as abas, mas elas, teimosamente, caem-lhe sobre os olhos. Por fim, desiste de ajeitá-las e sai, sustentando-as com o dedo indicador levantado. Antes de trancar a porta atrás de si, espiona o rapaz no leito. Comum sorriso nos lábios, a jovem percebe que eleja ressonava tranquilamente...
Lá fora, Gerusa recebe o golpe do vento gelado que lhe levanta o chapéu e lhe desmancha os cabelos, num redemoinho de mechas. Descompõe-se toda para segurar o chapéu, que ameaçava escapar-lhe da cabeça, e um calafrio fá-la tremer e bater os dentes. A rua do cais encontrava-se quase deserta; poucos se atreviam a enfrentar o chuvisqueiro gelado que caía insistentemente. Na amurada do cais, a rebentação explodia contra as pedras da fundação do porto e lançava furiosas saraivadas de água gelada a altura razoável e molhava até o meio da rua que margeava as docas. A jovem levanta a longa gola da capa e tenta proteger a cabeça do vento cortante que lhe assoviava furioso aos ouvidos, juntamente com a chuva que enregelava até os ossos. Onde andaria Madalena, no meio daquele tempo horrível?...
Meio cambaleante e se encostando rente às paredes das casas, Gerusa meteu-se a caminhar, empurrada pela força do vento. Precisava achar Madalena. A amiga saíra, fazia já algumas horas, com o propósito de ir à bodega comprar pão e ainda não voltara. O dia estava escuro, sem sol, e nuvens negras passavam céleres, tangidas pelo vento ululante. Não era um bom dia para deixar a casa e ir para a rua. Gerusa mortifica-se: deveria ter ido com a outra, pois o porto não era um lugar seguro, mesmo durante o dia. As pessoas que, comumente, frequentavam aquelas paragens não eram confiáveis: bêbados, desocupados, ladrões e salteadores, crianças órfãs e velhos desamparados, além dos violentos cáftens e das prostitutas que enxameavam por toda a parte. Gerusa habituara-se àquele lugar, pois desde muito jovenzinha, mal completara doze anos, vira-se obrigada a fugir para a rua. Morrera-lhe a mãe, e o padrasto passara a persegui-la, diariamente, quando chegava bêbado e violento, todas as noites, após o estafante trabalho na estiva. Para não sucumbir aos maus tratos e à brutidade daquele homem desprezível, optara por viver nas ruas; entretanto, logo percebeu que a rua não era lugar seguro para uma jovenzinha e, caindo nas lábias de velhaco proxeneta, cedo enveredou para os tenebrosos caminhos do meretrício. Madalena, sua companheira de quarto e de profissão, tivera destino
- A carroça que recolhe o lixo e os cadáveres das ruas já o levou. -responde a moça, com grande tristeza. - Não teríamos mesmo dinheiro para pagar-lhe um funeral, não é?
João Manuel apenas sacode a cabeça afirmativamente. Depois, levanta-se e caminha um pouquinho pelo exíguo espaço do quarto pobre. Afasta as cortininhas de renda encardida e espia a rua escura lá fora.
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 8:30 am

- Pobre Madalena... - diz ele, sem se voltar para Gerusa, que permanecia sentada à beira do leito. - Restou-lhe apenas a vala comum da indigência, junto com os mendigos, os bêbados, os velhos e os órfãos..,
- E este será também o meu e o teu fim, Anjinho... - observa a moça, com funda amargura à voz. - Quando a velhice ou a doença abater-se sobre nós, esse será, certamente, o nosso destino...
- Ou se, antes, não nos abaterem a facadas, como fizeram a Madá!... - completa o rapaz, voltando-se para Gerusa e a olhando com um par de olhos mareados de pranto.
Gerusa compadece-se dele. João Manuel também estava sofrendo muito pela morte de Madalena. Então, ela se levanta da cama e lhe estende os braços.
- Vem, vamos rezar pela alma de Madalena. Ela só tinha a nós dois neste mundo!...
Lá fora, o vento uivava raivoso, fustigando, com seu chicote implacável e cortante, todos aqueles que, eventualmente, tivessem de enfrentar-lhe a fúria inclemente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 8:30 am

Capítulo 2 - Uma família fidalga
O solar da família Ramalho e Alcântara erguia-se na Quinta da Reboleira, ao norte da cidade de Sintra, mesmo subindo a famosa serra que dá nome a esse lugar. Tratava-se de amplo palacete de dois pavimentos, de aspecto senhorial e imponente e erigido em matacões de granito cinza-claro, em estilo neoclássico, do século XVI; contava, assim, à época, mais de duzentos anos de construído. As janelas do andar superior eram de madeiras de lei trabalhadas em fino lavor e entintadas com verniz escuro. O telhado cobria-se de telhas caneladas de barro e já bastante escurecidas pela acção do tempo. À frente da imponente escadaria de mármore branco da entrada principal, estendia-se amplo pátio calçado de pedras quadranguladas e, depois deste, abria-se esplendoroso jardim de feições clássicas, muito bem cuidado e pejado de plantas exuberantes e bem conduzidas. Mais aquém, arvoredo frondoso vicejava em profusão, ensombrando espectacular parque, plantado em quarteirões regulares e separados entre si por ruelas estreitas e calçadas de pedras hexagonais.
A direita do casarão, erguia-se enorme caramanchão de hidranjas a despejarem longos cachos de flores rosa-desmaiadas e à sombra do qual, nessa tarde, sentavam-se distinta senhora e outra mulher, em cadeiras de vime e ao lado de mesinha posta para o chá. Solícita criada, em uniforme e touca impecáveis, servia-lhes o chá de um rico bule de porcelana branca, alindado em arabescos dourados a tirarem faíscas do esplêndido sol vesperal.
- Hoje estás particularmente mais pálida, senhora dona Rosália!... - exclama a mulher que se sentava na outra cadeira. - Estais a sentir-vos bem?
- Oh, preocupas-te à toa, Amélia!... - responde a matrona. E leva a chávena aos lábios altamente descorados. E, depois de degustar, por algum tempo, o primeiro gole do líquido fumegante e reconfortante, prossegue: - Ligeira indisposição, apenas, nada mais que isso!
- Vossas feições desmentem o que dizem vossos lábios, senhora!... - exclama a governanta, de forma incisiva. - Não achais que devamos comunicar isso ao vosso augusto esposo?...
- Para que vamos tirar a paz do senhor barão, Amélia?... - responde a matrona, um tanto desalentada. - Se lhe dizes que não ando bem, toca a chamar o senhor doutor Eustáquio Boaventura e lá virão mais vomitórios, sangrias e xaropes de gosto horrível!... Não suporto mais tais coisas!... Desejas é matar-me antes do tempo, isso sim!...
- Oh, senhora, acho que dona Amélia tem razão!... - diz a criada que, até então, permanecera muda, ali do lado, a empunhar, pacientemente, o bule de chá.
- Ora, cala-te, Margaridinha!... - responde, ríspida, a baronesa. -Até tu te metes a perturbar-me o sossego?... Mais essa!... Bom mesmo é que te vás embora para a copa e me deixes em paz, sua tonta!...
A um ligeiro e significativo sinal de olhos da governanta, a criada faz rápida mesura, e sai, altamente magoada com a ofensa recebida.
- Pensais enganar-me; entretanto, por trás de tudo isso, tenho quase a absoluta certeza de que se esconde outra coisa, não, senhora dona Rosália? - observa a governanta, encarando-a nos olhos.
-Acho que não te posso mesmo enganar, teimosa!... - diz a matrona, agastando-se com a pertinácia da outra. E, depois de emitir expressivo suspiro de aborrecimento, explode, com os olhos a encherem-se de lágrimas: - Sim, há!... Não adianta querer esconder, fazer de conta que não há!... Há, sim!... Hoje faz dezassete anos que mo roubaram!... E somente eu me lembrei disso!... Ninguém mais nesta casa!...
- Oh, querida!... - exclama a governanta, levantando-se de sua cadeira e, rodeando a pequena mesa que as separava, abraça-se à outra, comovidamente. - Também eu me lembrei da tragédia, sim!... - prossegue ela, agora juntando suas lágrimas às da patroa. - Apenas nada disse para que não vos entristecêsseis ainda mais, senhora!... Oh, como poderia esquecer-me desse fato horrível?
- Pensas que me esqueci, por um só dia, do meu bebê, Amélia?... - diz a matrona, com a voz cheia de dor. - Não, não poderia jamais esquecer-me de Francisquinho!... - e, mirando o nada, como se buscasse nos refolhos de sua memória, prossegue, abrindo um sorriso, no meio das lágrimas: - Lembras-te de como ele era lindo?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 8:31 am

- Se me lembro!... - exclama a outra, com os olhos tomados de súbito brilho. - Ele era o vosso retrato!... Tinha os vossos traços em profusão!... - e, baixando a voz, prossegue: - Do senhor barão, não tinha quase nada!...
- Sim!... - concorda Rosália, abrindo ligeiro sorriso de cumplicidade com a sua governanta. - E Manuel António tinha um pouquinho de despeito disso, não é?
- Um pouquinho?!... - exclama a outra, quase a cochichar. - Tinha era inveja mesmo!... Ficou todo desapontado, quando o bebê apresentava mais os vossos traços que os dele!...
- Entretanto, João Miguel tem as fuças do pai!... - observa a matrona, rindo-se.
- E também o génio irascível e quase cruel!... - completa a governanta. - Não suporto ver como ambos tratam-vos, senhora!...
Rosália abaixa o rosto altamente pálido e se cala. Seus olhos marrom-claros, uma vez mais se toldam de tristeza profunda. E, depois de conseguir deglutir, com penosíssimo esforço, o imenso nó que lhe entupia a garganta, diz:
- Contudo, os dois são a única família que tenho, Amélia!... Ninguém mais me restou no mundo a não serem eles!
- Como será Francisquinho agora, senhora? - pergunta a governanta, rompendo o pequeno silêncio que se estabelecera entre ambas.
- Não sei, Amélia!... - diz a outra, imensamente triste. - Por mais que tente, não consigo imaginá-lo um rapaz de dezassete anos!... Para mim, sua imagem permanece paralisada no tempo!... Em meu coração, guardo a única lembrança que tenho dele: um adorável bebezinho de apenas três meses de vida que ainda sugava, vorazmente, o meu seio!... - e o pranto explode-lhe violento, sacudindo-a com insistência.
A governanta nada diz. Naquele momento, sabia que as palavras seriam absolutamente inúteis diante de tanta dor. Limita-se, então, a tomar ambas as mãos de Rosália entre as suas e a apertá-las, sendo-lhe solidária, uma vez mais. A Baronesa da Reboleira sofria muito a perda do filho em tão tenra idade!... O pranto caía em profusão, encharcando-lhe as faces já altamente marcadas pelos embates do tempo.
Rugas de expressão marcavam-lhe, insistentemente, a testa, em redor dos olhos e dos cantos dos lábios. Apesar de contar quarenta anos, a baronesa era ainda uma mulher de traços finos e elegantes. Permanente palidez, entretanto, dominava-lhe o semblante, apontando-lhe a precariedade da saúde.
- Acompanha-me aos meus aposentos, Amélia - diz ela, quase num sussurro. - Não me sinto bem.
- Oh, senhora dona Rosália... - exclama a governanta, altamente preocupada, enquanto auxiliava a baronesa a levantar-se da cadeira. -A lembrança de Francisquinho fez-vos mal!...
Pouco depois, a combalida baronesa instalava-se no leito, auxiliada pela prestimosa governanta e por mais duas criadas.
- Melhor comunicarmos ao senhor barão, senhora!... - diz Amélia, com as feições tomadas de intensa preocupação. - Estás mais pálida que o usual!... Quereis que vos propine a água de flor de limoeiro?...
- Sim, Amélia - aquiesce a baronesa, mal movendo os lábios altamente descorados -, a apneia sufoca-me.
Com mãos nervosas, a governanta deixa verter, de pequeno frasco de alabastro, algumas gotas de líquido transparente, misturando-as num copo com água e, em seguida, dá-as a beber à baronesa, que arfava, pesadamente.
- Com isso, ireis melhorar, senhora! - diz Amélia, amorosamente, enquanto, com uma das mãos, segurava levantada a cabeça da matrona e, com a outra, levava-lhe, delicadamente, a taça aos lábios.
A Baronesa da Reboleira bebia o remédio em pequenos goles. Gemidos baixinhos cortavam-lhe os estertores, enquanto calafrios percorriam-lhe o corpo, fazendo-a tremer.
- Acho que estou morrendo, Amélia... - diz a baronesa, levantando um par de olhos vermelhos e inchados pelo choro insistente.
- Oh, que tolice estais a dizer, senhora dona Rosália... - exclama a governanta, achegando, nervosamente, as cobertas de lã até o pescoço da outra. - Acalmai-vos, que vou avisar o senhor barão!
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 8:31 am

Amélia sai apressada em busca do patrão e vai encontrá-lo que lia na biblioteca, sentado em confortável poltrona de veludo vermelho.
- Senhor barão, vossa augusta esposa está a passar mal!... - diz ela, fazendo ligeira mesura com a cabeça.
- Que tem a senhora baronesa? - pergunta o homem, sem levantar os olhos do livro que estava a ler atentamente.
- Passou mal, enquanto tomávamos o chá no jardim, Excelência!...
- diz a mulher, torcendo as mãos, nervosa.
- Avia-te, então, a mandar que chamem o senhor doutor Boaventura - responde, ríspido, o Barão da Reboleira, fechando, bruscamente, o livro que lia e se pondo de pé.
Amélia sai, quase a correr. Manuel António Ramalho e Alcântara encaminha-se até a ampla janela e observa o jardim lá embaixo. Cofia o basto bigode grisalho, e seu olhar percorre a paisagem: o arvoredo, uma ponta da estrada de saibro amarelo e as torres da basílica, lá embaixo, na cidade. Para além, via o mar - azul e imenso - a perder-se no horizonte sem fim. Mais uma vez, a mulher a encher-lhe as paciências, a tirar-lhe o sossego!... Não sentia nenhuma vontade de vê-la. Tinha a certeza de que aquele não passava de mais um de seus inumeráveis faniquitos!... Cansara-se de suas lamúrias e de suas arengas chorosas, depois que lhes haviam sequestrado o filho. Que culpa tivera ele?... Mas, ela o culpava, sim. No fundo, achava-o o culpado pelo sumiço do filho, ainda tão novinho. Logo de manhã, ao acordar-se, ainda na cama, lembrara-se de que fora num dia como aquele, dezassete anos atrás, que o maldito surripiara-lhe o segundo filho, ainda mamão. Longamente, olhara para a mulher que lhe dormia ao lado. Como a vida deles se despedaçara, depois daquele infausto acontecimento!... Como tudo mudara, repentinamente!... Tivera ímpetos de acordá-la, de tomá-la aos braços e, com ela, chorar, uma vez mais, a perda do filho!... Mas, não esboçara o mínimo movimento. Para que sofrer de novo?... Quem sabe ela não esquecesse, não se lembrasse?... Era-lhe difícil manter-se durão, fazer de conta que não sofria, que não tinha vontade de chorar, de dar evasão àquela dor que, havia tanto tempo, roía-lhe, inclementemente, o peito!... Achavam, então, que ele não sofrera, imensamente, a perda do filho?... Que endurecera, paulatinamente, até se sentir às raias da petrificação?... Trocaram-se tantas acusações, ele e Rosália, pois é assim mesmo que acontece, quando uma tragédia dessa monta atinge um lar!... Alguém devia ser o culpado; alguém falhara, alguém tinha de pagar pelo sumiço do filho, que se desvanecera no ar, sem deixar qualquer rastro!... O amor deles murchara até ressecar-se, até estratificar-se, sem conter sequer uma só gota de sentimento!... Apenas a pedra fria restara!...
Quase não conversavam mais; olhavam-se, somente, e, amiúde, com rancor até!... Entretanto, era preciso continuar a olharem-se, para mais se odiarem e mais se agredirem, mais se martirizarem, a fim de expiarem a culpa por aquela tragédia!...
Manuel António deixa a janela e volta a sentar-se, pesadamente, na poltrona e, desolado, apoia o queixo na mão fechada. O maldito!... Sim, tinha a absoluta certeza de que fora o desgraçado que lhe mandara sequestrar o bebê!... Mas, não tinha provas contra ele. Tivera ímpetos de denunciá-lo ao Marquês,1 mas, como o faria, sem provas?... Tudo levava a crer que fora ele, o miserável, a vingar-se, de forma tão monstruosa!... E, uma vez mais, seu pensamento volta atrás, para dezassete anos antes... E, fora ali mesmo, na biblioteca, que tudo acontecera. Manuel António avistava-se com Jerónimo Dantas e Melo, o Marquês das Alfarrobeiras: "Vossas últimas palavras, senhor barão, acerca da escritura?", perguntara-lhe, colérico, o vizinho de propriedade. "O senhor notário reafirmou as divisas, senhor marquês. Vós mesmo ouvistes-lhe as palavras, não é assim?", respondera ao outro que, visivelmente, enfurecia-se com a derrota, diante do litígio de terras que ambos disputavam fazia décadas. "Mas, não penseis que isso ficará assim, não, senhor barão!", ameaçara-o o outro, rilhando os dentes de ódio. E prosseguira, enquanto, intempestivamente, deixava a sala: "Ladrão!... Pagar-me-eis caro por esta humilhação!..."
Manuel António, ao ouvir a pesada afronta que lhe dirigira o outro, sentiu o sangue subir-lhe todo à cabeça e, extremamente enfurecido, correra-lhe ao encalço, conseguindo alcançá-lo, mesmo quando o outro tomava o coche que o aguardava diante da escadaria de mármore branco.
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 8:31 am

E se lançara como um doudo sobre o desafecto, puxando-o, violentamente, pela casaca e o lançando sobre o pátio de pedras. E, saltando sobre o Marquês das Alfarrobeiras, facilmente o dominara e, à custa de infinitos socos e bofetões que lhe desferira, sobejamente, à face, descarregara nele toda a sua fúria e indignação.
Jerónimo Dantas e Melo, mesmo a vazar muito sangue pelos inúmeros ferimentos que os pesados punhos de Manuel António abriram-lhe à face, não se rendia. Ofegante, continuava a lançar altas ofensas ao rosto do outro que lhe cavalgava o ventre e não se cansava de esmurrá-lo.
Finalmente exausto, Manuel António levantara-se e, trôpego e falto de ar, encaminhara-se para a escadaria, bradando furioso: "Ide-vos daqui, maldito, antes que vos mate de pancadas!" O outro se resumira a lançar-lhe um olhar horrível, carregado de ódio extremo e, com gestos bruscos, ordenara ao atónito e estupefacto cocheiro que tocasse o carro.
Manuel António suspira fundo e olha em redor. Nunca mais se havia avistado com o Marquês das Alfarrobeiras, desde então. Alguns dias após aquele derradeiro e horrível entrevero que ambos tiveram, seu segundo filho, Francisco de Assis, misteriosamente desaparecera da casa. Quanto desespero, quanto esforço envidara na tentativa de reencontrar o bebê!... Tudo em vão!... A criança simplesmente desaparecera, sem deixar rastros!... Como o maldito teria conseguido entrar em sua casa e roubar seu filhinho de poucos meses?... Por certo, subornara algum de seus criados!... Sozinho, sem a ajuda de pessoa de dentro da casa, seria impossível alguém estranho entrar, sem ser visto pela criadagem. O infame teria comprado, a peso de ouro, a cumplicidade de um de seus criados!... Não haveria outra maneira!... Na ocasião, Manuel António houvera interrogado, pessoal e incisivamente, toda a criadagem, um a um, insistentemente, por muito tempo, mas fora tudo em vão. O cúmplice - se é que existia - mostrava-se tão incógnito, por detrás de uma máscara de impassibilidade, diante da dor e do desespero dos pais da criança roubada, que não esboçara um mínimo gesto que o traísse. Jerónimo Dantas e Melo houvera escolhido muitíssimo bem o seu comparsa para realizar tão nefando crime!... Nem mesmo o inspector de polícia, com sua habilidade extrema em lidar com facínoras e indivíduos altamente capazes de dissimular a verdade, conseguira descobrir a mínima pista. E, a polícia acabara por abandonar aquele caso, fazia já alguns anos, por falta de provas contundentes que levassem à prisão dos culpados. Até então, aquele crime mostrava-se perfeito!... Manuel António havia, inclusive, contratado hábil investigador para tentar descobrir o eventual paradeiro da criança, mas até o momento, nenhuma pista concreta surgira.
O silêncio da biblioteca, de repente, pareceu sufocá-lo e ele se levanta da poltrona de veludo vermelho. Lúgubre pensamento perpassa-lhe o cérebro. E se Rosália estivesse, realmente, morrendo, naquela vez?... Não teria tempo de despedir-se dela!... Mesmo estando tão distantes um do outro, não desejava que ela morresse, odiando-o. Era preciso pedir-lhe perdão, dizer-lhe, mais uma vez, que ele não tinha culpa pelo sumiço do filho, que o verdadeiro culpado era o Jerónimo Dantas e Melo, o maldito, e que ele, Manuel António, ainda iria matá-lo, para vingar o sequestro do bebê. Decidido, deixa a biblioteca e se encaminha para os aposentos onde se achava a esposa.
Rosália limita-se a olhar para o marido com um par de olhos desmesuradamente vermelhos e inchados pelo pranto. O Barão da Reboleira fica, por alguns instantes, parado, de pé, diante do imenso leito, olhando para a mulher que, de tão pálida, parecia fundir-se às cobertas de lã alvinitente. Desta vez, terrível pressentimento acomete Manuel António, ao deparar-se com a mulher em tão lastimável estado. Repentino sentimento de profunda piedade pela esposa acomete-o, e toda a fria distância que os mantivera afastados, um do outro, por toda aquela enormidade de anos, de repente, pareceu delir-se no ar.
- Por que te prendes, ainda, tanto a isso? - pergunta ele, sem tirar os olhos dos olhos dela. - Desejava que tivesses tudo à conta de uma provação, diante da vontade de Deus...
Rosália nada diz. Apenas se limita a soluçar um pouco mais forte.
- Peço-te, por caridade, senhora, que te mostres forte diante do que já é consumado!... - prossegue ele, agora se aproximando e se sentando ao lado dela no leito.
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 8:31 am

- Manuelito... - murmura ela, entre lágrimas, e, tomando-lhe a mão, achega-a aos lábios e a beija ternamente.
- Rosália... - murmura ele, arqueando o dorso e a beijando, delicadamente, à testa.
- Por que tudo teve de ser assim?... - sussurra ela, segurando-lhe, fortemente, a mão. - Por que a vida teve de ser-nos, assim, tão cruel? -e as lágrimas descem-lhe em catadupas dos olhos encharcados.
- Acalma-te, meu bem - diz ele, afagando-lhe os cabelos desmanchados -, não são nada bons para ti tais impulsos de mortificação e de angústia pelo sumiço de Francisquinho...
- Manuelito...
- O que é?...
- Por que não choras tu também?... - pergunta ela, olhando-o, firme, nos olhos. - Sei que tua dor não é menor que a minha!... Entretanto, por que é que teimas em te manteres, aparentemente, assim tão insensível à dor?... Sei, querido, o quanto sofres...
- Oh, Rosália!... - exclama o Barão da Reboleira, desarmando-se, completamente, e, afundando o rosto nos cabelos da esposa, dá evasão às lágrimas de dor, consistentemente contidas, havia tanto tempo, atrás de uma aparente máscara de dureza e de crueldade.
- Chora, Manuelito, chora!... - murmura a baronesa, acariciando, ternamente, os cabelos do esposo. - Chora, que o pranto aliviar-te-á o fogo que te consome a alma!...
Longos e intensos soluços de dor sacudiram, por muito tempo, Manuel António que permanecia abraçado à esposa. E ele se lembra, então, de como era bom tê-la aos braços, sentir-lhe o perfume. Quanto tempo fazia que não se abraçavam, que não se tinham, assim, um nos braços do outro?... Rosália continuava a acariciar-lhe os cabelos e a niná-lo, como se ele fosse um garotinho.
- Perdoa-me, Rosália!... - exclama ele, de repente, abraçando-a forte e a beijando, desesperadamente, às faces e aos olhos inchados pelo pranto insistente. - Tu me perdoas?...
- Sim, perdoo-te, Manuelito!... - diz ela, de repente, abrindo um sorriso que lhe ilumina, temporariamente, o rosto altamente maltratado pelo choro e pela dor. - E tu também deves perdoar-me por tê-lo acusado de tudo!
- Perdoemo-nos, então, mutuamente, querida -, diz ele, olhando-a nos olhos. - Mas, por favor, luta, reage!... Não quero que morras!... Como será minha vida, neste mundo, sem ti?
Rosália olha-o com renovada ternura. Que o fizera, de repente, mudar tanto assim?... Haviam passado quase duas décadas mal se falando, trocando-se acusações e se atirando culpas, um às fuças do outro! De repente um vazio imenso tomou conta do peito dela. Meu Deus!... Que havia feito da sua vida?... Metade da sua existência, ela não tinha vivido; havia, simplesmente, assistido, impassível, ao desfilar daqueles anos cruéis, cheios de dor e de lágrimas! Que tempo houvera dispensado ao esposo e ao outro filho, que crescera, que se tornara um homem de vinte e dois anos, e ela mal percebera?...
- Manuelito...
- Sim, meu amor...
- Eu é que te devo pedir perdão... - diz ela, cheia de angústia à voz. - Fiz-te sofrer tanto, acusando-te por seres tão mesquinho, em questão do litígio das terras, com o Marquês das Alfarrobeiras... Que, se tivesses dado ao infame os palmos de terra que ele reclamava, no pretenso avanço das tuas divisas sobre a propriedade dele, nada disso teria acontecido!... Entretanto, tu te meteste a demandar com o demónio, nos tribunais, e colhemos o resultado cruel: ganhaste o processo, mas perdemos o filho!... Tenho a certeza de que foi ele, o miserável, que nos roubou o nosso bebê!...
- Também eu creio, piedosamente, ter sido ele que nos roubou o filhinho, querida!... - exclama Manuel António, levantando-se e se pondo a caminhar, nervosamente, pelo quarto, enquanto falava: - Mas, não desistirei nunca!... Continuarei a minha busca, indefinidamente!... Já batemos o país, palmo a palmo, de todos os lados, cidade após cidade, aldeia após aldeia, mas nenhuma pista foi encontrada, nenhum traço!... Entretanto, a busca continua!...
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 8:32 am

Agora, João Miguel busca pelo irmão!... Sei que acabará por encontrá-lo!... Algo me diz que irá encontrar o irmão desaparecido!... Tu verás, minha cara!...
Rosália seguia-o com os olhos, enquanto ele falava com veemência. Desejava acreditar nas palavras dele, compartilhar de sua boa fé; entretanto, sentia-se enfraquecer mais e mais, vítima das dores fortes que lhe acometiam o tórax. Sabia, no íntimo, que definhava, que estava perto do fim.
- Vem, Manuelito - chama-o ela, com a voz débil -, senta-te aqui, perto de mim... Desejo sentir-te o calor das mãos e o teu cheiro...
- O senhor doutor Boaventura demora-se a chegar! - exclama ele, de repente preocupando-se com a algidez das mãos da esposa. - Tu estás fria como uma defunta!
- Manuelito...
- Sim, o que é?... - pergunta ele, chegando as pontas dos dedos dela aos lábios e os beijando, ternamente.
- Se um dia encontrares Francisquinho, diz-lhe que o amei, imensamente, apesar de tudo, e que ele sempre esteve em meu coração e em meu pensamento, todas as horas, durante todo esse tempo...
- Direi a ele, querida - diz o Barão da Reboleira, com os olhos húmidos de pranto. - Fica tranquila, que nosso filho saberá tudo sobre ti!... - e, como se, de repente, percebesse, cheio de terror, que a vida da mulher escoava-se-lhe, por entre os dedos, exclama: - Não, Rosália, meu amor!... Que asneiras estou eu a dizer!... Não te vás, por Deus, luta!...
- Inútil lutar, querido!... - exclama ela, com a voz cortada pela forte apneia. - É chegado o meu fim...
Neste comenos, o doutor Eustáquio Boaventura adentra o aposento, seguido pela nervosa Amélia.
- Oh, senhor doutor Boaventura]... Finalmente chegastes!... - exclama o Barão da Reboleira, indo ao encontro do médico e lhe estendendo a mão. - Depressa, que nossa Rosália está a passar mui mal!...
O médico senta-se ao lado da baronesa e, apondo-lhe rudimentar estetoscópio de madeira ao tórax, ausculta-lhe, demoradamente, o coração. Em seguida, estirando-lhe a pálpebra inferior de um olho, afere-lhe a coloração. Depois, delicadamente, com o dorso dos dedos, toma-lhe a temperatura à fronte, altamente descorada. E, finalmente, segura-lhe o punho da mão e, com a ponta dos dedos, percebe-lhe o pulso. Só depois do meticuloso exame é que levanta os olhos e encara o barão e, com ele, troca significativo olhar. Manuel António toma-se de repentina palidez. Entendera o que o médico lhe dissera com os olhos. Meu Deus!... Rosália estava mesmo no fim!... O chão, de repente, pareceu sumir-lhe de debaixo dos pés. Sua vista escureceu-se, e lhe pareceu advir uma síncope.
- Fazei o favor de seguir-me até a biblioteca, senhor doutor Boaventura - consegue dizer, por fim, após tremendo esforço para conter a forte emoção que o invadira.
Uma criada oferecera ao médico um cálice de licor que o homem degustava devagar, segurando a haste do minúsculo cálice de cristal com a ponta do polegar e do indicador em pinça.
- Sinto, imensamente, dizer-vos, senhor barão, que vossa augusta esposa tem pouquíssimo tempo de vida - observa Eustáquio Boaventura, encarando o outro com olhos graves. - Infelizmente, nada há que possamos fazer para salvar-lhe a vida. Seu coração está fraquíssimo; penso mesmo que, em dois ou três dias, estará morta!
- Tão grave assim, senhor doutor? - pergunta Manuel António, ainda se mantendo altamente pálido, evidência da extrema dor que lhe ia ao peito. - Tendes certeza de que não há mais nada que lhe possais prescrever, com o intuito de protelar-lhe o fim?
- Infelizmente, assim é, senhor barão - responde o médico. E, depois de reflectir por alguns instantes, prossegue com a voz pausada, como lhe era de costume: - A senhora baronesa vem sofrendo deste mal há muito tempo e, como sabeis, o desgosto só fez por exacerbar-lhe a doença, enfraquecendo-lhe, paulatinamente, o coração, durante esse tempo todo. O que sempre tenho feito foi propinar-lhe pequenas doses de digitalina, mais água de flor de limoeiro, para minorar-lhe os ataques de angina; entretanto, a doença avoluma-se, incontinenti, e os remédios não lhe alcançam a potência. Um dia, fatalmente, essa luta terá um vencedor e, invariavelmente, a vitoriosa será a doença!...
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 8:32 am

Na verdade, poucos recursos temos, senhor barão! - exclama o doutor, com profundo suspiro e, levantando-se, dá a entender que precisava ir-se.
Manuel António acompanha o doutor até a porta principal da mansão e, após o outro partir, celeremente, em seu coche, o Barão da Reboleira permanece parado, no alto da escadaria de mármore branco. O jardim, que se abria imenso, ali diante dele, vicejava verdejante e bem cuidado. Era o alto da primavera, e as árvores encontravam-se carregadas de flores. Entretanto, ele pouca atenção prestava às árvores e às flores. O forte sol da tarde queimava-lhe o rosto, mas ele nada sentia. Seu pensamento encontrava-se mais afogueado que o próprio escaldar do sol. Se Rosália morresse, que seria de sua vida? Por todo esse tempo, magoara-a, talvez, por se encontrar fechado em sua própria dor. Entretanto, dúvida atroz passa a mortificá-lo: será que a houvera magoado, propositadamente, porque ela, acintosamente, culpava-o pelo sumiço do filho e, por ela assim agir, havia se vingado, judiando, propositadamente, dela, esse tempo todo?... Deus do céu!... Era, então, um monstro e só agora se dava conta disso!... Que vida terrível proporcionara à esposa!... Rosália tinha sido sempre tão meiga, tão fina, educada, gentil!... Que lhe fizera?... Manuel António nunca houvera admitido a culpa pelo sequestro do filho! No entanto, em seu íntimo, sabia ser ele o único e exclusivo culpado por tudo!... Pela teimosia, pelo orgulho em não admitir a perda de alguns palmos de terra, sobreviera a desgraça!... E, logo que cessaram as mútuas e pesadíssimas agressões verbais, desgastadas pelas incessantes repetições, sobreviera, depois, a acusação muda, seguida, mais tarde, pela indiferença um pelo outro e culminando, consequentemente, no pleno afastamento, na frieza do relacionamento conjugal, no desgosto profundo, no martírio incessante e cruel... Eram duas sombras que viviam lado a lado... E João Miguel, o outro filho, crescera no meio daquela tenebrosa arena em que se digladiavam os pais, em luta feroz, culpando-se, ferindo-se, matando-se, aos poucos. João Miguel, sem o devido acompanhamento dos pais, tornara-se um rapaz frio e intolerante, altamente calculista e ambicioso, e para quem as coisas materiais eram as únicas e exclusivas razões da existência. Pouco se educara; não era amigo de leituras ou de quaisquer manifestações artísticas. Outrossim, valendo-se de expressiva beleza física de que era possuidor, revelara-se mulherengo ímpar e passava a vida nos bordéis e à cata de aventuras fáceis, nos braços das donzelas tresloucadas e despudoradas que enxameavam na promíscua sociedade lisboeta, do final do século XVIII, onde o luxo desmedido e o desperdício inconsequente dilapidavam fortunas e riquezas inomináveis, invariavelmente, rapinadas às sofridas colónias de além-mar, como o Brasil e as várias possessões, na África e no Oriente - terras barbaramente espoliadas pelo dominador bruto e impiedoso que se locupletava, descaradamente, do suor e do sangue dos colonos e dos escravos que traziam do Continente Negro.
Manuel António sente um calafrio percorrer-lhe o corpo de alto a baixo. Deus, que fizera da sua vida?... Ligeiro, volta-se para dentro e, em pouco, encontrava-se, novamente, nos aposentos onde a esposa descansava. Rosália houvera adormecido, e Amélia, pacientemente, guardava-lhe o sono agitado, cheio de tremores, de gemidos e de estertores que a sacudiam amiúde. Ele, então, faz um sinal à governanta que sai, deixando-o a sós, com a esposa. Delicadamente, toca-lhe a fronte com o dorso da mão e lhe sente a algidez da pele extremamente pálida, de cera.
- Oh, meu amor!... - murmura ele, com os olhos a encherem-se de lágrimas. - Como fui mau e desalmado para ti!...
Em seguida, toma-lhe a mão e a beija, com patente ternura. A esposa, sentindo-lhe as carícias, abre os olhos.
- Ah, estás aí, Manuelito... - murmura ela, abrindo meigo sorriso, nos lábios ceráceos.
- Procura descansar, querida - diz ele, beijando-lhe, ternamente, as mãos. - É preciso que não te desgastes!... Procura descansar, meu anjo!
Rosália fecha os olhos. Como era bom tê-lo de volta, como antes!... Mesmo que fosse no fim!... Terrível seria ir-se, eternamente brigada com ele. Sentiu-se tão bem que seu combalido coração pareceu bater mais acelerado, um pouquinho mais forte, e deliciosa tepidez pareceu envolvê-la. Como era delicioso sentir aquele alento, depois de viver tantos anos, completamente mergulhada na frigidez da censura mútua, do afastamento proposital e, até mesmo, dos laivos de ódio recíproco. Que vida difícil haviam vivido!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 7:17 pm

- Manuelito...
- O que é?...
- Onde está João Miguel?... Há dias não o vejo...
- Nosso filho encontra-se em Lisboa - responde ele. - Esqueces-te de que ele vive a procurar pelo irmão?...
- Oh, meu amor - diz ela, de repente, tomando-se de um pouco de vivacidade, no meio de toda aquela terrível prostração -, e se Deus tivesse, finalmente, ouvido minhas preces e desta vez, João Miguel regressasse, trazendo o irmão?... Oh, para mim seria a maior glória morrer, depois de ter posto meus olhos sobre nosso Francisquinho, nem que fosse por uma única vez...
Manuel António nada responde. Apenas se limita a olhar para a mulher e a lhe sorrir um sorriso triste. Sabia que o desejo da mulher dificilmente se realizaria. Pobre Rosália... Possivelmente, deixaria este mundo sem rever o filho!... A luz do sol coava-se pelos interstícios da janela fechada, e o Barão da Reboleira passa a afagar, delicadamente, os longos cabelos da esposa que, despenteados, achavam-se esparsos sobre o travesseiro de cambraia alvinitente. E ela, tocada pelas doces carícias da mão do esposo, deixa-se levar pela sonolência teimosa que, devagar, foi vencendo-a.
- Dorme, meu bem - murmura ele, com os olhos húmidos de pranto -, dorme, que estarei sempre aqui a proteger-te...
______________________________________________________________________________________________
1. Referência a Sebastião José de Carvalho, Marquês de Pombal (1699 - 1782), primeiro-ministro português, durante o reinado de D. José I.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 7:17 pm

Capítulo 3 - A Marquesinha das Alfarrobeiras
Naquele momo anoitecer de primavera, o solar dos Dantas e Melo, Marqueses das Alfarrobeiras, encontrava-se amplamente agitado por esplêndido sarau, pois se comemoravam os anos de Teresa Cristina, a caçulinha da família. Expressiva parcela da sociedade sintrense achava-se presente, na rica mansão senhorial, rodeada de frondoso parque, constituído de infinidade de árvores floridas, a exalarem doce e penetrante perfume que impregnava todos os recantos da exuberante propriedade. O som de alegre minueto, executado por uma excelente bandinha, espalhava-se pelo ambiente, onde pares de jovens - moçoilas esvoaçantes e vivazes rapazotes - executavam a dança, com leveza e maestria, seguidos pelos olhares embevecidos dos mais velhos que se achavam sentados em redor e ao longo de todo o imenso salão principal da casa. Pequeno batalhão de criados, enfatiotados em impecáveis librés de seda azul e branca e primorosamente engomadas com claras de ovos, percorriam todo o espaço, sobraçando bandejões com guloseimas variadas e vinho, muito vinho, a proporcionar, em profusão, risos de satisfação e fáceis gargalhares, alardeando o contentamento geral, reinante na festa. Os pares de dançarinos ora postavam-se, frente a frente, trocando os passos, em graciosa marcha, saudando-se e se dobrando em delicadas mesuras, ora se davam os braços e rodopiavam, saltitantes, seguindo os complexos passos da dança francesa.
Pouco depois, num intervalo do minueto, duas jovens, grandemente afogueadas pelo esforço despendido durante o intricado bailado, conversavam, recostadas junto a uma das amplas janelas do salão, a fim de haurirem a fresca que vinha de fora.
- Então ele não veio? - pergunta uma das donzelas à outra, que era a dona da festa.
- Pois não é então, Carmo? - responde Teresa Cristina, a Marquesinha das Alfarrobeiras. - Viajou a Lisboa, a mando do pai.
- Mesmo sabendo que completarias anos, ele não ficou? - pergunta Carmosina.
- Que importância faria, se ficasse ou não?... - responde Teresa Cristina, com os olhos a encherem-se de tristeza. - Tu sabes que papai não o toleraria aqui...
- Oh, querida Tina - diz a outra, apertando forte a mão da amiga -, não sei como suportas um amor assim!... Tua família odeia a família de teu namorado!... Como fareis para ficardes juntos?
- Não me perguntes tal coisa, Carmosina] - exclama a outra, cheia de revolta nas palavras. - Nossas famílias odeiam-se, mesmo antes de eu nascer!... Que culpa tenho eu nesta história toda?... Amo João Miguel e enlouqueço só em pensar que nosso amor possa tornar-se impossível, irrealizável, entendes?...
- Hoje tu completas quinze anos!... Estás pronta para te casares, e teu amor sequer pôde aqui vir, a festejar e a dançar teu baile contigo!
- E eu toco a dançar com Vasco, meu primo, com quem meu pai deseja ver-me casada!... - diz Teresa Cristina, com a voz carregada de ironia.
- E acho que, infelizmente, será este com quem, possivelmente, tu acabarás por casar-te, minha cara! - observa, preocupada, a outra.
- Não suporto meu primo, Carmo! - explode a Marquesinha das Alfarrobeiras, cheia de revolta. - Imagina ter de viver toda a minha vida ao lado de um homem - e isso te deixo bem claro! -, que só tolero, por ser meu primo!... E que, ainda por cima, é calvo, sardento e manco de um pé!... E, além do mais, já tem vinte e cinco anos!... E velho demais para mim!... Oh, meu Deus, não sei o que fazer!...
- Porém, esqueces-te de um bom detalhe, minha cara: Vasco é também cheio de ouro!... - objecta, incisiva, a amiga. E prossegue, cheia de ironia: - Por aparentar velho para ti, teu primo não o é muito mais que João Miguel, que já tem vinte e dois!... E, pelo que me consta, tu não consideras o teu amado um velho!...
- São apenas sete anos a mais, sua tonta!... - responde a outra. - A mesma diferença de idade que têm os meus pais!...
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- Os meus têm dez anos!... - diz Carmosina. - E, no entanto, actualmente, não se parecem muito distantes um do outro.
- As mulheres envelhecem mais depressa que os homens - observa Teresa Cristina. - Mas, tu bem sabes que o empecilho maior não é este!... É o amor, Carmosina]... É necessário que haja amor, entendes?... Por amor, casar-me-ia até com o teu avô! - e explodem ambas em estrepitosa gargalhada.
- Não creio que o Visconde do Soveral, meu adorado avô, queira desposar-te, minha cara!... - prossegue Carmosina, a gargalhar: - Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... O pobre do vovô só caminha às palpadelas, com os olhos esbranquiçados pela catarata!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
- Melhor esse que não me vê, Carmo! - diz Teresa Cristina, divertida. - Melhor esse que não me vê, aqueloutro que vive a perseguir-me, feito um imbecil!
- És mesmo uma pândega, Tininha\... - exclama a outra, a chorar de tanto rir. - Imagina só!... Tu a te casares com vovô!...
- Preferiria o convento a casar-me com Vasco\ - exclama a Marquesinha das Alfarrobeiras, de repente, tornando-se séria.
- Deveras?!... - espanta-se a outra. - Terias mesmo coragem?
- Que experimente meu pai forçar-me a fazer o que não desejo!... -diz a jovenzinha, com um par de olhos marrom-mel a fixar o vazio. -Que experimente o senhor meu pai atrelar-me àquele imbecil, e verá do que sou capaz!...
Neste ínterim, a bandinha, após o ligeiro descanso, põe-se a executar alegre melodia, incitando os jovens pares a formarem novo cordão de minueto. Vasco Trancoso d'Arrabal, o primo de Teresa Cristina, que dela não tirara os olhos, durante o pequeno intervalo da dança, aproxima-se, claudicando, ligeiramente, de uma das pernas.
- Dás-me a honra, cara prima? - pergunta o rapaz, abrindo um sorriso que lhe deixou entreverem os dentes, grandemente amarelados pelo hábito de mascar tabaco.
Mal sofreando a intensa contrariedade que lhe ia à alma, a jovem olha o primo e, sem muita animação, estende-lhe a mão, e saem ambos para o meio do salão, onde o grupo de bailarinos já se formava. De um canto reservado do salão, Jerónimo Dantas e Melo, o Marquês das Alfarrobeiras, conversava com o primo, pai de Vasco:
- Caríssimo Tomás, creio já podermos contar como certo o casamento dos nossos filhos!
- Pois não é mesmo, caro primo? - responde, satisfeito, o outro. -Porque não aproveitas e não anuncias, hoje mesmo, o noivado de ambos?... Elisa e eu faríamos muito gosto nisso!
- Sim, estás a dar-me excelente sugestão, caro primo! - concorda o Marquês das Alfarrobeiras. - De antemão, sei que Bárbara não se oporá a que eu anuncie o noivado da nossa filha, em data tão especial!
Depois de algum tempo, o minueto encerrava-se, e os jovens dançarinos espalhavam-se pelo salão, indo recompor-se, bebericando taças de vinho ou de refrescos. Jerónimo Dantas e Melo, então, encaminha-se para o centro do salão e, batendo palmas, brada:
- Senhoras e senhores!... Um instante da vossa atenção!... - e, obtendo o silêncio desejado, prossegue, em tom altamente enfático: - Temos, hoje, grata revelação a fazer-vos!... Minha família e a de nosso augusto primo, o Visconde d'Arrabal, que cá mui nos honra com sua prestimosa presença, temos a grata satisfação de anunciar o noivado de nossos filhos Teresinha e Vasco!
A jovenzinha, que se sentava ao lado da mãe, recobrando-se do esforço despendido na última contradança, ao ouvir as palavras do pai, empalidece e, fitando o rosto da genitora, exclama:
- Que absurdo está meu pai a dizer?!... Tu estavas a par dessa sandice e nada me disseste?!...
- Acalma-te, meu bem! - diz a mãe, apertando-lhe, forte, a mão. -Eu, realmente, desconhecia essa imbecil intenção do teu pai de anunciar o teu noivado com Vasco!...
- Não!... - explode Teresa Cristina, estupefacta. - Papai não pode fazer isso comigo!
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Neste momento, o pai chamava-a, insistentemente, para que se encaminhasse até o meio do salão onde o noivo, Vasco, já se encontrava, derretendo-se de satisfação e sorrindo até as orelhas.
- Não vou!... - murmura a jovenzinha, mordendo os lábios, transida de ódio.
- Melhor que te vás, meu bem! - cochicha-lhe a mãe. - Não te indisponhas com o teu pai no meio de tanta gente!... Vai, que depois daremos um jeito!... Coragem!... Ainda não é o teu casamento!... Vai!... Prometo-te que, depois, com calma, daremos um jeito nesta tremenda asneira que contigo pretende o teu pai fazer!...
Altamente emburrada, Teresa Cristina encaminha-se para o centro do salão. Com um sorriso de satisfação, o pai beija-a na testa e, delicadamente, tomando-lhe a mão, oferece-a a Vasco que, como um cão louva-minheiro, principia a beijá-la, longa e apaixonadamente. A mocinha resume-se, apenas, a olhar para o rapaz com indiferença e, instintivamente, recolhe a mão, cheia de repulsa.
Os convidados, altamente contagiados pelo anúncio que acabava de lhes fazer o dono da casa, explodem em aplausos e vivas aos noivos. A bandinha, tocada pelo inesperado do acontecimento, resolve participar do episódio e executa uma valsa. Tocado pelo momento, Vasco faz ligeira mesura, diante da prima, e lhe diz, cavalheirescamente, enquanto lhe oferecia o braço:
- Senhorita...
E, o casalzinho passa a rodopiar pelo salão, embalado pelos alegres acordes da melodia envolvente, enquanto centenas de olhos acompanham-nos, altamente interessados pela novidade, e intensa onda de cochichos ao pé do ouvido espalha-se, rapidamente, pelo salão todo. Teresa Cristina rodopiava, ao sabor da música, habilmente conduzida pelos braços do primo. Não tirava os olhos dos olhos dele. "Tu me pagarás, Vasco!...", pensava ela, com o coração cheio de ódio. "Não penses que irás meter as tuas patas imundas sobre mim, não!... Tu e papai pagar-me-eis caro por isso!..."
* * * * * * *
Enquanto o baile de aniversário de Teresa Cristina prosseguia noite adentro, um cavaleiro solitário estaca sua montaria, diante do imenso portão de ferro fundido que dava entrada à Quinta das Alfarrobeiras. Permanece montado e, apurando os ouvidos, consegue perceber os acordes da música que se espalhava pelo ar momo da noite de lua cheia. Pelos interstícios dos troncos das árvores do bosque, o cavaleiro podia divisar a luminosidade que se projectava dos imensos janelões do salão principal da mansão senhorial.
- Teresinha comemora os anos!... - murmura o belo cavaleiro, com os olhos inflamados pela paixão. Depois, meneia, melancolicamente, a cabeça e sorri. - Que saudade, minha doce pombinha!...
Por alguns instantes mais, permanece parado, diante do portão de ferro, ouvindo a música e a distante alacridade das pessoas. Retalhos de risadas e gritinhos de alegria com maior expressividade chegavam até ele. Finalmente, cutuca as ilhargas de sua montaria com as esporas e retoma o trote. Mais umas poucas centenas de metros e estaria, finalmente, em casa. Cavalgara, por longo tempo, regressando de Lisboa, e se encontrava bastante exausto. Ansiava por banhar-se em água fresca, comer e se deitar.
- Fizestes boa viagem, Excelência? - pergunta o solícito criado, auxiliando João Miguel a desapear do cavalo.
- Muito boa, Epitácio! - responde o moço. - Esplêndida viagem!... O serviçal espanta-se com as amáveis palavras do rapaz, que jamais
se dignara a responder a qualquer um deles. O patrãozinho sempre os tratara com desprezo e lhes falava com rispidez, cobrindo-os de maus tratos. E, enquanto conduzia o combalido cavalo para as cocheiras, meditava sobre qual teria sido a causa da repentina felicidade do patrão, que se mostrara sempre tão intolerante e malvado para com todos.
- João Miguel!... - exclama Amélia, vindo recebê-lo ainda à entrada do salão principal, pois o tinha visto, quando chegava, da janela de seu quarto, no andar superior. - Que bom que já retomaste!... A senhora baronesa não se encontra nada bem!...
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 7:18 pm

- Que pode ter a minha mãe, além dos cansativos achaques que sempre teve? - responde, ríspido, o rapaz.
- Desta vez é grave, conforme afirmou o senhor doutor Boaventura! - exclama a governanta, enquanto, literalmente, corria atrás do rapaz que, apressado, enveredava para os seus aposentos. - Tua mãe encontra-se, mesmo, às portas da morte, e tu não vais vê-la?!... Chamou tanto por ti, à tardinha!...
- Hoje, não, Amélia, por favor! - diz o jovem, agastando-se com a mulher que o seguia, insistentemente, pela escadaria que dava ao andar superior. - Estou cansado, faminto e desejo, ardentemente, descansar!... Por favor, amanhã, sim?... E, se desejas, realmente, ajudar-me, avia-te a mandar que me preparem o banho e o jantar!
Amélia pára, estarrecida, enquanto observa o rapaz desaparecer pelo extenso corredor que dava a seus aposentos. A mãe estava morrendo, e ele nem se importava!...
João Miguel despe-se das roupas de viagem e, enquanto aguardava o banho que um criado lhe preparava, pensava. "Só mais um pouco e toda essa embrulhada acabar-se-á!...", e, com um sorriso cínico que lhe brotara aos lábios, prossegue pensando: "A derradeira pista acaba de ser apagada!... Ninguém, jamais, descobrirá o teu paradeiro!...", e seu rosto ilumina-se de plena satisfação. A voz tímida do criado tira-o das íntimas cogitações:
- O banho, Excelência...
- Pois não, Jacinto!... - responde ele, gentil. - Já me avio!...
O pobre serviçal permanece estático, boquiaberto. Que dera no patrão, para revelar-se, assim, de repente, tão amável com os criados?... Sempre se mostrara tão ríspido, tão mal-educado!...
Após se banhar e tomar a refeição, João Miguel meteu-se na cama e dormiu feito uma pedra. No dia seguinte, levantou-se bem tarde, por volta das dez horas, pois se encontrava altamente cansado pela viagem que empreendera na véspera. Veste-se, toma o desjejum e resolve ir ver a mãe. Nem com o pai ainda havia se avistado e vai encontrá-lo à cabeceira da mãe.
- João Miguel!... - exclama o pai, vindo recebê-lo à entrada do quarto. Abraçam-se, efusivamente, e o pai prossegue: - Tu te demoraste tanto em Lisboa!... Já principiava a temer por ti!...
- Prendi-me, perseguindo pistas falsas, que só me fizeram perder tempo, papai! - exclama o rapaz e, encaminhando-se para o interior do quarto, pergunta: - Como está mamãe?
- Mal, querido, mui mal!... - sussurra-lhe o pai, seguindo-o.
- Oh, meu tesoiro!... - exclama a baronesa, estendendo os braços, ao ver o mancebo que se aproximava, e, com muita dificuldade, consegue erguer um pouquinho a cabeça. E, tomada de forte apneia, motivada pela ansiedade do reencontro com o filho, prossegue, com a voz fraca, mas cheia de expectativa: - Trazes alguma novidade?...
O rapaz olha, por alguns instantes, para o rosto grandemente pálido e macilento da mãe, sente-lhe a expectante ansiedade e se enche de piedade dela.
- Nada, mamãe - responde ele, meneando, tristemente, a cabeça. - Segui algumas pistas, mas eram todas falsas!... Meu irmão parece ter-se, decididamente, desvanecido no ar!
- Oh, meu Deus!... - exclama Rosália, deixando-se cair, desoladamente, no travesseiro. - Agora sei que morrerei sem deitar uma vez mais os olhos em meu Francisquinho... - e as lágrimas brotam-lhe, aos borbotões, dos olhos rodeados de negras olheiras.
- Acalma-te, meu bem!... - diz Manuel António, tomando-lhe as gélidas mãos e as cobrindo de beijos. - Busca coragem para lutar!... Não te entregues, assim, à morte, não!
- Tudo está consumado, Manuelito... - diz a mulher, com a voz débil, quase inaudível. - Deixa-me partir...
- Oh, mamãe, não te desesperes, assim! - exclama o rapaz, lançando-se de joelhos ao lado do leito e, com a ponta dos dedos, acaricia-lhe o rosto descorado. - Juro-te que continuarei a busca por Francisquinho!... Por ti, buscá-lo-ei em toda a parte!... Revisitarei até mesmo os lugares aonde papai já foi.
- Não!... - diz Rosália, categórica. - Esta foi a derradeira busca; não te quero por aí, correndo riscos inúteis!... - e, depois, segurando as mãos do filho, prossegue, olhando-o, firme, nos olhos: - Oh, querido, não sabes o quanto rezei e implorei a Deus que tu o achasses que adentrasses meu quarto, conduzindo-o pela mão!...
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