LUZ ESPÍRITA
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 10:40 am

Teresa Cristina debatia-se, tentando livrar-se daquelas tenazes que a seguravam forte, tão forte, como jamais sentira em toda a sua vida!... A mão possante do rapaz tapava-lhe, completamente, a boca, impedindo-a de gritar. Com os olhos tomados de pleno terror, sonda as feições do moço. Feio não era. Os ladrões não costumavam ser homens tremendamente feios?... Aquele não era nada feio; era até muito bonito, por sinal!... E, como ele a mantinha fortemente jungida a si, ela constata, estarrecida, que ele se encontrava completamente desnudo!... Deus do céu!... Seria o seu fim!... Debate-se, com veemência, tentando libertar-se dos braços dele; tenta morder-lhe a mão, mas era um nada, no meio daquela fortaleza de músculos que quase a esmagavam. Por fim, desiste de lutar e se mantém parada, sem esboçar qualquer reacção. Arfava muito pelo esforço e passa a olhá-lo com olhos súplices.
- Posso soltar-te?... - pergunta ele, com a voz baixa, quase um sussurro, rente à orelha dela. - Prometes que não vais gritar?... Olha, não te quero fazer mal!... Apenas cometi um engano, entrando no teu quarto!...
Ela o encara com um par de olhos marrom-mel, que brilhavam na penumbra do quarto, como duas pedras preciosas. O hálito quente do rapaz, sua voz robusta desarmaram-na. Que estranha sensação seria aquela?... De repente, achou que poderia confiar nele. Faz um gesto com a Cabeça, e ele, então, retira, devagarinho, a mão, entre confiante e desconfiado da promessa dela.
Mas, ela cumpre o combinado e, altamente extenuada pelo esforço despendido na luta desigual, deixa-se sentar, pesadamente, sobre uma poltrona.
- Quem és tu?... - pergunta ela, após ligeiro refazer da respiração ofegante e, sem tirar os olhos dele, um segundo sequer.
- Sou João Manuel... - responde ele, de pé, diante dela, fitando-a, ousada e firmemente, com olhos embevecidos, e com ambas as mãos espalmadas aos flancos amorenados, bem torneados e luzidios. - E tu, quem és?...
- Ora, vai vestir-te primeiro!... - responde ela, de repente, irritando-se com a plena nudez que ele ostentava, ali diante dela, sem demonstrar o mínimo traço de pejo.
- Oh, desculpa-me, senhorita!... - diz ele, só então percebendo que se achava nu em pêlo. - Desculpa-me a ousadia!...
João Manuel volta-se e, apanhando as roupas que largara, displicentemente, pelo chão, põe-se de costas para ela e se veste.
-Agora, vai-te daqui, sem delongas, ou chamo o mordomo para que te entregue ao comissário da milícia!... - diz ela, pondo-se de pé, em atitude ameaçadora. - Que ousadia!...
Cabisbaixo, João Manuel deixa o quarto, sem nada dizer. Teresa Cristina, então, rapidamente, passa a chave na porta e se põe de novo no leito. Que coisa, meu Deus!... Será que Manuela saberia de tais acontecimentos?... Rapazes totalmente nus, entrando, na calada da noite, assim, na mansão?... Visitariam as criadas da casa?... Ou visitariam Manuela?... Jeito de ladrão aquele não tinha, de modo algum!... Era até educado demais!...
Teresa Cristina tentou reconciliar o sono, mas ele não vinha. Apertou forte as pálpebras, pois desejava, ardentemente, dormir. Mas, nada!... Que coisa!... As feições do rapaz não lhe saíam da cabeça. Os olhos marrons profundos, os cabelos escuros, ligeiramente ondulados a lhe caírem, desmazeladamente, até as espáduas fortes. Deus do céu!... E os braços?... Nunca se sentira abraçar daquela forma!... Precisou esforçar-se muito, e já era madrugada alta quando, finalmente, conseguiu adormecer. E sonhou. No sonho, o rapaz desconhecido e forte invadia, inopinadamente, o seu quarto e a tomava nos braços; ela, então, segurava-se, fortemente, ao pescoço dele, e ele, lançando-se janela abaixo e se agarrando, perigosamente, aos tufos de hera, carregava-a para bem longe, para um prado verdinho, onde se abraçavam e se beijavam... Beijavam-se tanto que Teresa Cristina até perdia o fôlego...
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1. Como desencarnou de forma violenta, o Espírito de Madalena ainda carrega consigo as fortes impressões da materialidade - facto que, comumente, não ocorre aos que deixam o mundo pelo método natural, quando se dá a quase completa exaustão do fluido vital.
2. Quando o espírito encontra-se imbuído desse tipo de pensamento, possivelmente, instaurar-se-á um processo de obsessão - condição em que passa a perseguir e a vingar-se de Seu desafecto encarnado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 10:40 am

Capítulo 7 - Novos rumos
Deixando a casa de Manuela, extremamente maçado, muito aborrecido mesmo, pelo inesperado incidente, João Manuel percorria as escuras ruas da cidade, devagar, sob a luz das estrelas faiscantes, lá nas alturas infinitas. Que chateação!... Sequer se avistara com Manuela, que ainda o deveria aguardar, por certo, amaldiçoando-o e cheia de fúria, até a raiz dos cabelos!...
- Que coisa!... - murmura ele, ainda grandemente aborrecido. -Como poderia adivinhar que havia outra pessoa dormindo naquela mesma ala?...
De repente, sorri. Lembra-se do rosto da mocinha, altamente aterrorizado em vê-lo, ali, em seu quarto, totalmente sem roupas!... Como ela era linda!... Estranha sensação de júbilo invade-o, ao recordar-se das feições de Teresa Cristina. Um anjo de candura!... Que pele, meu Deus!... Que olhos!... João Manuel rememorava, com bastante prazer, o curto, mas intenso momento que a tivera fortemente jungida a si, sentindo-lhe o perfume adocicado, a maciez dos cabelos sedosos, a perfeição do corpo, das formas feminis que acabaram por deixá-lo maluco. De repente, não conseguia tirar a mocinha da cabeça!... Quem seria aquele anjo?... Parou, no meio da rua, e teve ímpetos de voltar à casa de Manuela e de arrojar-se aos pés daquela deusa!... Seu coração bateu mais forte. Que coisa estranha era aquilo!... Jamais se sentira assim, antes!... E olha que estivera nos braços de tantas mulheres que até perdera a conta!...
Por instantes, ele permaneceu parado, no meio da escuridão da rua, sorrindo, embevecido pelas lembranças daquele inusitado encontro. Entretanto, o frio da madrugada fê-lo voltar à realidade. Era preciso sair do relento, pois poderia apanhar uma constipação da frialdade do sereno. Estuga os passos, ganhando a direcção do porto. Voltava ao seu mundo, seu elemento. Precisava, urgentemente, de um gole de rum; sentia o coração doer, de repente, de uma dor diferente, dor de amargura, de frieza, de abandono, de solidão... Que estranha agitação seria aquela que principiava a tirar-lhe a paz?... Adveio-lhe então, um nó enorme, do tamanho do mundo, a bloquear-lhe, totalmente, a garganta, sufocando-o. Pela primeira vez, depois que crescera, teve vontade de chorar. O vento frio da madrugada queimava-lhe as narinas, enquanto ele caminhava, agora, apressado, descendo a ladeira que dava ao cais do porto. Precisava achar uma taverna aberta. Certamente, o velho Egídio ainda estaria a servir, pacientemente, os beberrões da madrugada. Com um pouco de alento, divisa, ao longe, as luzes da tasca projectando-se sobre as pedras do calçamento da rua. Que bom!... O velho bodegueiro ainda não cerrara as portas e ele, João Manuel, poderia afogar aquela angústia toda numa garrafa de rum!... Por instantes, estaca diante da porta e espiona lá dentro: apenas dois bêbados postavam-se frouxos, sentados ao lado das mesas, e olhando, inexpressivamente, para as respectivas caldeiretas de chope. O velho Egídio cochilava, com os cotovelos apoiados sobre o encardido balcão. João Manuel olha em redor, antes de entrar. Ninguém estava na rua. Só o negrume da noite. Acima de sua cabeça, a placa aparafusada a duas correntes pendentes, fixadas num mastro transversal de ferro, gemeu, embalada pelo ventinho gelado. O rapaz olhou para o alto e correu os olhos pelos dizeres balançantes, escritos em tinta negra: Toca do Lobo. O enigma das letras!... João Manuel era analfabeto. Por instantes, cogitou sobre aquela triste deficiência da sua existência, mas se conformou. Até então, saber ler não lhe tinha feito a menor falta, e a quase totalidade dos seus amigos e dos que o rodeavam era de ignorantes. Deu de ombros e entrou. O taberneiro, com os olhos tomados pelo peso da sonolência, ao vê-lo entrar, acende-se.
- Anjinho!... - exclama o velho Egídio. - Que vai ser?
- Rum, meu amigo!... - responde o moço, encostando-se ao balcão encardido. - Preciso matar uma talzinha afogada!...
- Oh, tu e tuas aventuras amorosas, Anjinho!... - exclama o velho bodegueiro, rindo-se das palavras do rapaz, enquanto lhe preparava a bebida. - Sabias que Gerusa anda em teu encalço?... - prossegue ele, agora, estendendo o copo para João Manuel. - Ainda agorinha passou por aqui, a perguntar por ti!...
- Disse-te o que desejava de mim? - pergunta o jovem, depois de sorver extensíssimo gole da zurrapa e de fazer uma careta.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 10:40 am

- Não, apenas que te buscava e que tinha algo a dizer-te - responde o velho.
- Ia afogar-me na tua horrível morraça, porém mudei os rumos!... - exclama o rapaz, atirando um dobrão de cobre sobre o balcão. - Resolvi é matar-me de amor nos braços da Gerusa!... - e sai, explodindo numa gargalhada: - Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
- Não tens mesmo jeito, ó Anjinho!... - exclama o velho Egídio, apanhando o dinheiro, rindo-se, divertido, e, meneando a cabeça, prossegue: - Vai, vai, danadinho!... Toca a consolares a bela Gerusinha!...
Gerusa abre uma fresta da porta e espia.
- Sou eu, Gerusa! - cochicha-lhe João Manuel. - Anda, abre e me deixa entrar!...
- Procurei tanto por ti!... - diz ela, fazendo-o sentar-se sobre o leito e se acomodando ao lado dele. - Fiz até bolhas nos pés de tanto que caminhei e não te encontrava!...
- Andava por aí!... - responde ele, sem encará-la. - Mas, o que desejas de mim?
- Madá voltou... - diz ela, olhando-o nos olhos.
- Não me digas!... - exclama ele, empertigando-se no leito. - E o que te disse desta vez?
Gerusa fixa, demoradamente, o rosto do rapaz. O que lhe ia dizer, por certo, mudaria, completamente, os ramos da sua existência. Mas, dizer-lhe, assim, de chofre?
- Não queres beber um pouco de vinho?... - pergunta ela, levantando-se e, apanhando uma botelha que guardava sobre a minúscula mesinha de cabeceira, exclama, a sorrir um tanto nervosa: - Veja!... Comprei-o para nós dois!...
João Manuel virou o copo de bebida de uma só vez.
- Mais um, Anjinho! - pergunta ela, segurando a botelha de terracota pelo gargalo.
- Acho que estás é a fazer rodeios, Gerusa!... - exclama ele, quando ela lhe passou outro copo de vinho. - Que é que pretendes, na realidade?... Deixar-me bêbado, antes da hora, é?... Vamos, desembucha depressa, que estás a matar-me de aflição!... Diz logo!... O que te revelou Madá desta vez?...
Gerusa levanta-se da cama e caminha até a pequena janela. Afasta as encardidas cortinas de renda e espiona lá fora. Noite pesada, tudo escuro. Depois se volta e fixa o amigo nos olhos.
_ Madá contou-me quem és tu, na realidade!... - diz ela, de uma só vez.
O rapaz levanta-se de um salto e agarra a mulher pelo punho. _ O que dizes?!... - pergunta ele, quase a estourar de ansiedade. -Acaso brincas comigo, Gerusa?...
- Não!... Não!... - exclama a mulher, altamente nervosa. - Tu me machucas, apertando-me assim, Anjinho... - geme ela, tentando libertar o punho que ele segurava forte.
Sério, ele a olha no fundo dos olhos e, depois, solta-lhe o braço, devagar.
- Não brinques com tais coisas, Gerusa!... - diz o rapaz, com ar grave. - Advirto-te que hoje não estou para brincadeiras!... Já me ocorreram dissabores, por demais, esta noite!...
- Vem, senta-te aqui!... - convida ela. - O que tenho a dizer-te não é brincadeira, mas coisa séria!... Repito-te: Madá contou-me tudo...
E, com riqueza de detalhes, a jovem prostituta conta ao amigo a extraordinária revelação que, de forma tão inusitada, fizera-lhe o fantasma da companheira assassinada. O rapaz, à medida que tomava conhecimento do que, na realidade, era a sua verdadeira identidade, tomava-se de assombro. Amiúde, levantava-se e, exasperado, caminhava em rodas pelo exíguo aposento de Gerusa. Em seguida, voltava a sentar-se, tomado de intenso assombro. Deus do céu!... Que lhe haviam feito da vida?!...
Terminada a narrativa, João Manuel achava-se em frangalhos. Sentado no leito, ao lado da companheirinha de uma vida de misérias e de infortúnios, ele tremia, tomado de estupor incomum. Então tinha família, um nome!... Sempre tivera um lar, Deus do céu!... E, tão pertinho!... Sempre tivera um pai, uma mãe e um irmão, vivendo a pouquíssimos quilómetros dele!... E ele, ali, levando uma vida de misérias, de abandonos, de rejeição!... De repente, uma intensa onda de revolta acomete-o. Que tinham feito com ele?... Assomam-lhe à mente, então, de inopino, as terríveis lembranças do orfanato.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 10:40 am

Quanta privação!... O mínimo do mínimo!... As míseras migalhas que mal lhe sustentavam as forças para a teimosia de viver!... Os órfãos!... Os pequenos e esquecidos opróbrios da humanidade que todos fazem questão de esquecer trancafiados nos horríveis orfanatos!... Quanta necessidade de carinho e de atenção!... Em seguida, lembra-se da vida de extrema privação e de miséria ao lado da mãe adoptiva. E, depois que ela morrera, tão cedo ainda, ele fora levado por frias mãos ao orfanato e, lá, esquecido, sepultado vivo!... E, quando completara doze anos, chutaram-no fora, para o abraço mordaz da vida e, sem o amparo e a protecção dos adultos, fora perseguido como um cão hidrófobo, pelas ruas do porto, tendo de sobreviver às próprias custas!... Tanto sofrimento, tanta desventura, tanta vergonha, tantas perguntas sem resposta!... Uma vida anónima, sem passado, sem começo, nada mais que isso até então!... Pequenos retalhos de uma vivência obscura e miserável!... Haviam lhe roubado o melhor pedaço da sua existência!... João Manuel sentiu a cabeça latejar e a vista escurecer-lhe de repente. Forte náusea invade-o e, inopinadamente, um jacto de vómito sobe-lhe à garganta, e ele não consegue sofrear o intenso gorgolão azedo que lhe brota da boca, emporcalhando-lhe os lábios, a barba, o pescoço, o peito, as roupas, o chão...
- Sinto-me mal, Gerusa, muito mal!... - consegue balbuciar, antes de perder a consciência e de ver tudo apagar-se, de súbito.
Cheia de desespero, Gerusa tentou reanimá-lo, ao vê-lo que tombava para trás, sobre o leito em que se achavam ambos sentados. Intensa palidez tomava as feições do rapaz, sinal de que a falência dos seus sentidos era patente. Fora forte demais para ele!... Em vão, ela o chamou pelo nome, sacudindo-o e lhe dando ligeiros tapinhas às faces altamente descoradas. Só depois de muita persistência de Gerusa em fazê-lo retomar os sentidos é que João Manuel passou a emitir fracos gemidos e a revirar, desconexamente, os olhos que deixavam à mostra apenas as escleróticas esbranquiçadas. A jovem prostituta, então, embebendo um pano em água fria, limpou-lhe o vómito e, desnudando-o, ajeitou-o no leito. Ai, Jesus Cristo!... E se ele morresse?... Um arrepio percorre o corpo de Gerusa. Não, Deus não permitiria isso!... Tremendo, a meretriz ajoelha-se ao lado do leito e, tomando as mãos geladas do amigo entre as suas, beija-as repetidas vezes.
- Tu não vais morrer, Anjinho!... - murmura ela, com as palavras molhadas pelo pranto. - Tu não vais morrer, agora, que descobriste tudo!... Oh, Deus do céu!... Valei-nos, Senhor!... Devolvei-lhe, Pai amado, a razão e o bem-estar!... - suplica ela, entre lágrimas.
Paulatinamente, o dia foi clareando, e o rapaz continuava no mesmo estado; apenas que, agora, febre pertinaz acometia-o, sacudindo-o, em agonientas convulsões. Gerusa desesperava-se. No fundo, considerava-se um pouco culpada por aquela situação. Sentada ao lado do leito, incansavelmente, enxugava a excessiva sudorese da testa do rapaz, com um pano molhado, e lhe refrescava, assim, o calor da febre contumaz. Entretanto, estarrecida, constatou que, à medida que o tempo passava, a situação do amigo piorava.
- Vou à botica buscar-te um remédio, meu querido!... - murmura, ela levantando-se, resoluta. - Felizmente, tu tinhas alguns dobrões em teu bolso, e farei uso deles para salvar a tua vida!...
Algum tempo depois, Gerusa retornava, trazendo a mezinha que lhe vendera o boticário, segundo a ligeira anamnésia que ela lhe fizera de João Manuel. E, pacientemente, passa a propinar-lhe o remédio de acordo com as recomendações que lhe fizera o herbanário.
O dia transcorreu-se, sem que o rapaz apresentasse qualquer indício de melhora em seu estado; entretanto, Gerusa, persistentemente, continuava a ministrar-lhe a droga recomendada, até durante o avanço da noite subsequente, sem que ela mesma tivesse tido um só instante de repouso ou saído para tomar algum alimento. Porém, quando a manhã do dia seguinte surgia, Gerusa é despertada pela luminosidade do sol nascente. O cansaço vencera-a, e ela dormira sentada ao lado do leito de João Manuel. Ainda zonza pelo excesso de sono, esfrega os olhos e observa o amigo. De repente, anima-se: as feições dele voltavam a rosar-se e, agora, ele parecia ressonar tranquilo. Delicadamente, sonda-lhe a testa com o dorso da mão. Graças a Deus!... A febre desaparecera. Ao levíssimo toque da mão de Gerusa, João Manuel pareceu esboçar ligeiro sorriso, porém sem despertar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 10:41 am

Sorria, enquanto sonhava; entretanto, a protagonista do sonho do rapaz, não era ela, Gerusa, mas, sim, uma outra mocinha, de olhos ligeiramente amendoados, cor de mel...

* * * * * * *
Teresa Cristina abre os olhos, naquela manhã, e tem um sobressalto. Deus do céu!... De repente, lembra-se do estranho que aparecera pelado, em seu quarto, no meio daquela noite transcursada!... Cheia de medo, chega a coberta até o pescoço e passa a varrer, com os olhos, minuciosamente, cada canto do aposento, agora, iá mais bem iluminado pela claridade que se coava pelos interstícios da janela. Depois de constatar que estava realmente a sós, afasta as cobertas e se senta no leito. A lembrança do desconhecido da véspera assoma-lhe à mente, e forte emoção invade-lhe o ser. A figura máscula e imponente do rapaz desenha-se-lhe forte na tela mental: o olhar firme, os traços nobres - o nariz perfeito, os lábios bem torneados, os dentes brancos e grandes, o pescoço grosso... -, todo o conjunto fazia dele um rapagão de beleza incomum.
Meio aérea com as lembranças do rapaz, Teresa Cristina levanta-se e se senta, diante do imenso espelho do toucador, e observa, minuciosamente, a sua bela figura reflectida no cristal. Depois, apanha a escova e principia a pentear-se, lentamente, olhando-se, estudando-se. Quem seria ele?... Quem, na realidade, viera visitar, na mansão, a altas horas da noite?... Estava patente que ele se enganara de quarto... Puxa, queria tanto saber quem é que aquele belo mancebo viera visitar!... Uma ponta de quase ciúme invadia-a. Na verdade, ele estivera ali, para encontrar-se com outra mulher, não com ela!... Era tão forte, tão bonito!... Sua voz firme e máscula ainda ecoava em seus ouvidos!... De repente, sente-se confundir. E João Miguel?... Na realidade, amava, mesmo, era João Miguel e, por que é que agora, então, dava para ficar pensando no outro?... Deus do céu, que confusão!... Que engraçado!... De repente, constata que ambos eram até bem parecidos: o mesmo porte, a mesma compleição!... Até a tonalidade da voz dos dois rapazes era bem semelhante!... Apenas que João Miguel tinha um jeito meio brusco de falar, como se mastigasse as palavras, e vivia carregado de ódio e de despeito. Já o da véspera, não. Apesar de as vozes serem bastante semelhantes, esse era gentil e afável no falar e não parecia morder as palavras, enquanto falava, mas as acariciava, como se as beijasse. Como é que duas pessoas que sequer se conheciam poderiam ser tão parecidas, assim, uma com a outra?... Isso a intrigava e, ao mesmo tempo, dividia-a, machucando-a. Sente-se, então, encher de remorso. Como poderia esquecer-se do seu amor?... Não estava ali, exactamente, por causa de João Miguel!... E, por que cargas d'água metia-se, agora, a pensar em outro?... Não, aquilo não estava correto. O que precisava, mesmo, era esquecer aquela experiência incomum e, bem depressa!... Por ora, urgia toucar-se, rapidamente, e descer para o desjejum. Manuela, certamente, já se teria levantado àquela hora. Terminando de vestir-se, a mocinha pára, uma vez mais, diante do espelho, e se olha, crítica.
A imagem do desconhecido jovem ainda bailava em sua mente. Que coisa!... Por mais que desejasse, não conseguia expulsar as feições do estranho rapaz que, insistentemente, invadiam-lhe o pensamento.
Teresa Cristina deixa o quarto e vai encontrar a prima que a precedera e já quebrava o jejum, na imensa sala de jantar da mansão. Inácia, altamente solícita, servia lauta mesa, pejada de delícias.
- Oh, bom-dia, queridinha!... - exclama Manuela, ao vê-la assomar o limiar da porta da sala de jantar. - Vem!... Acomoda-te, aqui, ao meu lado, que Inácia servir-te-á, em seguida.
Teresa Cristina senta-se ao lado de Manuela. A esposa de Afonso Albuquerque e Meneses era uma mulher altamente perspicaz e logo percebeu ligeira agitação nos modos e nas feições da mocinha.
- Estás a te sentir bem, prima? - pergunta Manuela, estranhando-lhe a inquietação, àquela hora da manhã.
- Oh, sim!... - responde a outra. - Por que a pergunta?
- Porque te noto um pouco desassossegada - responde Manuela. -Acaso não dormiste bem?
- Oh, sim!... Digo... Não sei!... - titubeia Teresa Cristina, olhando para Manuela e, depois, para Inácia que, postada do lado, espichara as orelhas de lebre para melhor escutar a conversa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 10:41 am

- Oh, não te intimides com Inácia, queridinha!... - observa Manuela, percebendo que a priminha retraía-se com a presença da criada. - E discretíssima como um túmulo...
- Aconteceu-me, sim, algo, no mínimo, muito estranho, cara prima... - diz Teresa Cristina, passando a narrar a inesperada visita que recebera na noite transcorrida.
Manuela, enquanto ouvia a narrativa da prima, trocou uma série de significativos olhares com a criada. "Ah, então o miserável preferira o quarto da priminha, é?...", pensa ela, roendo-se de ódio. "Bandido!... E eu a esperá-lo, a noite inteirinha, feito uma tonta!... Cão traiçoeiro, aguarda-me, que terás o troco!..."
- Acaso conheces rapaz com tal descrição, cara prima? - pergunta Teresa Cristina.
- Não, queridinha - mente Manuela. - Certamente, esse atrevido costuma visitar alguma das minhas serviçais... Sabes como costumam ser namoradeiras essas criadas!... - e lança um olhar carregado de falsa censura para Inácia que se encolhe e finge limpar a garganta de um pretenso pigarro. - Mas, prometo-te investigar, seriamente - e, voltando-se para a outra, pergunta: - E tu, acaso, conheces o tal, Inácia!..,
- Não... Senhora... Dona Manuela!... - responde, titubeando, a criada, altamente nervosa e torcendo as mãos. - Jamais vi esse homem em minha frente!...
- Pois aí tens, queridinha - observa Manuela, sarcástica -, sequer a mais esperta das minhas criadas conhece esse que dormiu contigo esta noite...
- Oh, não, Manuela!... - apressa-se a mocinha em corrigir a outra.
- Entendeste errado!... Ele não dormiu comigo, apenas entrou em meu quarto por engano!...
- Sei... - diz Manuela, abrindo um sorriso de mofa, enquanto trocava um divertidíssimo olhar com sua criada. - Oh, acho que me enganei, queridinha!... - e, em seguida, levanta-se da mesa e, ainda mantendo um resquício de riso escarnecedor aos cantos dos lábios, prossegue:
- Entretanto, fica bem claro que, enquanto aqui permaneceres, não te censurarei por nada, meu bem!... Em minha casa, serás livre para fazeres o que bem entenderes, correto?... Não sou como teu pai, que vive a botar-te bridões e a amarrar-te aos pés das mesas, para que não fujas!... Faze o que desejares e não precisas dizer-me nada, entendeste?... - e, depois de beijá-la à testa, ordena à criada: - Inácia, segue-me a meu quarto, sim?... Preciso de ti para acabar de toucar-me!...
Ainda muito chocada, Teresa Cristina olha para Manuela que sai acompanhada de sua fiel criada. A jovenzinha mantivera-se boquiaberta o tempo todo diante daquelas palavras e nada conseguira dizer. Por que se sentira tão apatetada perante a outra que, obviamente, enganava-se a seu respeito e que não lhe dera a mínima chance para explicar-se?... Que comportamento estranho apresentava a prima!... Poder-se-ia até pensar que se encontrava um tanto despeitada ou algo assim!...
A mocinha permanece a sós, na imensa sala de jantar, e acaba por mal tocar nos alimentos. Ainda altamente magoada com o comportamento de Manuela, Teresa Cristina sai e se dirige para a parte fronteiriça da mansão. Conhecia, ainda, muito pouco do ambiente e precisava familiarizar-se. Deixa a casa pela entrada principal e se põe, então, a caminhar sob as árvores de pequeno bosque que se iniciava no limiar do jardim e se estendia por algumas dezenas de metros até a divisa com a propriedade vizinha. A luz do sol primaveril coava-se por entre as copas das árvores, lançando raios dourados a petiscarem minúsculos arcos-íris das gotas de orvalho que ainda persistiam sobre o gramado bem cuidado que recobria o solo do bosquete como se fosse um tapete esmeraldino. Teresa Cristina caminhava, mas não prestava muita atenção às coisas, não. Seu pensamento estava longe, perdido em cenas da noite transcorrida. A imagem do rapagão amorenado de olhos marrom-escuros e penetrantes não a abandonava. E, à lembrança daqueles braços potentes, apertando-a forte, emitia profundos suspiros. Deseja, então, ardentemente, rever aquele rapaz. Mas, como?... Sequer lhe sabia o nome... E, Manuela, à simples menção do que lhe sucedera naquela noite, já suspeitara de um montão de absurdos!... Que coisa!... Como é que a prima podia insinuar daquela forma tão directa que ela, Teresa Cristina, vivia recebendo rapazes à noite?... Que despropósito!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 10:41 am

Fora pega tão de surpresa pela reacção de Manuela que sequer tivera tempo de defender-se!... Ah, mas a prima iria escutar!... Ah, se iria!... O que é que pensava aquela prepotente?... Ela que aguardasse!... Mas, ai, os olhos profundos do moço perseguiam-na, sem trégua!... Deus do céu!... Não devia ficar pensando em outro homem!... Não era apaixonada por João Miguel!... De repente, a imagem do namorado pareceu-lhe distante, perdida no meio de brumas, e suas feições tornavam-se borradas, desbotadas, inexpressivas...
Teresa Cristina recosta-se ao tronco de vetusto carvalho negro. De repente, começa a tremer, e um medo estranho invade-a, de inopino. Jesus Cristo!... Que seria aquilo que estava acontecendo?... Nunca sentira tais coisas antes!... Por que é que teimava em pensar no rapaz desconhecido?... Não queria pensar nele, não desejava lembrar-se mais dele; queria, mesmo, era desvencilhar-se daquelas imagens perturbadoras; entretanto, elas teimavam em invadir-lhe a tela mental, insistentemente, tirando-lhe a paz!... E as perguntas, obstinadamente, tomavam-lhe o pensamento: quem seria ele?... A quem visitaria a altas horas da norte?... Alguma das criadas ou a própria Manuela!... Deus do céu!... Não deveria estar a julgar a prima daquela maneira, tão levianamente!... Mas ela, a prima, mostrara-se tão estranha, tão despeitada, quando lhe narrara o acontecimento!... E o primo Afonso não andava a viajar pelo mundo, a deixar a jovem esposa sozinha por longos períodos?... Será que, quando o marido viajava, Manuela não viveria a receber aquele tipo de rapazes em sua casa?... Oh, Deus!... Que complicação!... Não tinha o direito de julgar a outra, sem ter a certeza de nada!...
Tais pensamentos, mais a persistente lembrança do moço desconhecido judiavam de Teresa Cristina. Por que é que sua vida estava tomando um rumo tão ruim, tão difícil de resolver?... De repente, teve saudades de tempos atrás, de quando era menina e ainda não ligava para essas coisas ditadas pelo coração!... Amar seria sofrer tanto assim?... Que incoerência!... Como é que o amor - sentimento que se dizia ser tão sublime, tão cheio de prazeres e de felicidades que traria à alma! de repente, mostrava-se assaz incomodativo, tão infelicitador?... A mocinha sentiu-se mais e mais confundir. Lembra-se de João Miguel. Tenta recordar-lhe as feições, o jeito, a voz. Precisava substituir as lembranças do intruso pelas do namorado. Entretanto, constata, terrificada, que não conseguia!... A imagem do moço desconhecido sobrepunha-se, insistentemente, à do outro!... Sentia que a vontade de rever João Miguel afastava-se do seu coração; na realidade, não tinha, mesmo, era mais nenhuma vontade de revê-lo!... Apavorada, lembra-se de que o namorado poderia aparecer por ali, a qualquer momento, para vê-la!... Não, ele não poderia encontrá-la naquele estado!... Precisava, urgentemente, livrar-se da imagem do outro ou se trairia, por certo!...
E, premida por esse terrível dilema, resolve retornar a casa. Quando deixa o pequeno bosque, observa Manuela que saía, trajando-se, impecavelmente. O coche aguardava-a, estacionado diante das escadarias de mármore branco.
- Oh, estás aí, queridinha!... - exclama ela, efusivamente, para Teresa Cristina. - Procuramos-te por toda a parte e não te encontramos!... Não queres acompanhar-me?... Vou à cidade, para as compras semanais!
- Não sei se te serei boa companhia, prima... - responde a jovenzinha, aproximando-se cabisbaixa e ainda bastante desanimada.
- Oh, tenho a certeza de que a tua companhia far-me-á muito bem, queridinha!... - diz Manuela, levantando-lhe o queixo com a ponta dos dedos enluvados. - Vem!... Eu e tu nos divertiremos bastante, a fazer as compras!...
Teresa Cristina acaba por aquiescer, e ambas acomodam-se no coche, que sai ligeiro, em direcção do centro da cidade.
- Estás assim, porque o teu namorado ainda não veio visitar-te, não é mesmo? - diz Manuela, piscando-lhe um olho, marotamente.
A mocinha ia dizer que não, que a coisa tornava-se mais complicada, mas resolveu nada dizer à prima. Contrariamente ao que pensava antes,
ora percebia nada saber, de facto, sobre Manuela que, a cada dia, revelava-se dona de uma personalidade altamente fútil e mundana. Em que lhe poderia ajudar pessoa assim?... Certamente, em nada, além de insinuar coisas inexistentes...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 10:41 am

_ João Miguel, por certo, encontra-se ocupado com o pai, que vive doente, depois que lhe morreu a esposa - decide-se, então, por responder. E prossegue, sem encarar a outra: - Mas, tenho a absoluta certeza de que virá!
- Oh, se virá!... - diz Manuela. E continua, com uma ponta de zombaria: - Contudo, cuida para que ele não te pilhe em outros braços, hein?... Não quero escândalos à minha porta!... Já te disse que podes fazer o que quiseres com a tua vida, mas sê discreta, cara priminha!
- Manuela!... - exclama Teresa Cristina, ruborizando-se com o comentário da outra. E, demonstrando alta indignação, prossegue: - Por quem me tomas?... Acaso insinuas que eu...
- Oh, nada insinuo, queridinha! - observa a outra, abrindo um sorriso cheio de sarcasmo. - Tu mesma disseste que tinhas dois na mira!... Não fui eu, portanto...
- Não, Manuela!... - replica a mocinha, contestando. - Entendeste-me mal!... Não tenho dois namorados, não!... Papai arranjou-me um, Vasco, à minha revelia, mas eu gosto de outro, João Miguel!...
- Sei... - diz Manuela, com desdém. - E o de ontem à noite, quem é?... Por certo, está a entrar um terceiro na dança!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
- Oh, arrependo-me de ter vindo contigo, Manuela]... - exclama Teresa Cristina, cujos olhos enchiam-se de lágrimas, pois altamente ofendida sentiu-se com a observação ferina que lhe fazia a prima. E prossegue, sacudida pelos soluços: - Aliás, arrependo-me, extremamente, de ter buscado refúgio em tua casa!... - e as lágrimas descem-lhe, abundantes, dos olhos cor de mel.
-Oh, como és melodramática, Tininha!... - diz a outra, olhando-a de soslaio. - Não te quis ofender!... Mas, acaso, disse eu alguma inverdade?...
- Sim!... - explode a outra, entre lágrimas. - Desde a manhã, vives a insinuar que eu trouxe um homem para dentro da tua casa!... E que tenho dois namorados, também!... Por quem me tomas, afinal?... Uma rameira?...
- Como és temperamental, cara prima!... - exclama Manuela. Viste no que deu teres crescido agarrada à barra da saia da tua mãe? Não passas de uma boboca mimada!... Tens de crescer, Tininha! Não estou a censurar-te porque tens três namorados, não!... Censuro-te porque não assumes o que fazes!... Se queres, de fato, ser uma mulher liberal como eu, terás de assumir tudo o que fizeres, entendeste?... - espiando pela janela do coche, observa: - Vê!... A praça do mercado!... É aqui que vamos parar primeiro!... Quero mostrar-te os sapatos de cetim que estão a trazer de Macau!... São uma graça, uma delícia aos pés!...
Teresa Cristina olha para a prima. Como Manuela era insensível!... Não conseguia enxergar nada além do que acontecia com ela mesma
- Sabias que Macau fica na China?... O país tem uma possessa por lá!... - diz Manuela, enquanto ambas, deixando o coche, encaminhavam-se para a grande variedade de lojinhas da praça do mercado.
Rapidamente, as duas mulheres perdem-se no meio do burburinho da rua. Teresa Cristina seguia a outra que se perdia a admirar as mercadorias expostas nas portas das lojas. A mocinha trazia o peito apertado. Nada daquela imensidão de novidades apregoadas pelos vendedores em altos brados, ao menos naquele momento, conseguia fazê-la sor ou ganhar algum ânimo. Estava sofrendo as primeiras dores de amor verdadeiro, e dores de amor verdadeiro não são de brincadeira; judiam demais, até não mais quererem...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 10:42 am

Capítulo 8 - Tramas e vinganças
João Miguel olha-se, demoradamente, no grande espelho do toucador do seu quarto. Levantara-se havia pouco; eram ainda seis da manhã. Não que fosse habituado a madrugar; é que, depois de uns tempos, passara a dormir pouco. Uma insónia persistente acometia-o, invariavelmente, todas as noites, e, quando conseguia dormir, já bem de madrugada, seu sono apresentava-se altamente agitado e cheio de pesadelos horripilantes em que um vulto escuro e tétrico perseguia-o, tentando sufocá-lo com as mãos carcomidas por vermes e a exalar nauseabundos odores de carne em putrefacção. Acordava sempre enjoado, com fortes dores de cabeça, além de apresentar amarga e pegajosa baba à boca. Tais pesadelos principiavam a maltratá-lo muito, e ele se sentia deveras muito mal, a cada manhã, e só conseguia melhorar um pouco, à medida que o dia avançava, e ele se enfronhava nos negócios da família, pois o pai encontrava-se bastante enfermo, depois que lhe morrera a esposa, meses antes. O rapaz, então, obrigara-se a tomar o gerenciamento das inúmeras propriedades e negócios que possuíam, função que o pai sempre exercera, mas que, no momento, definitivamente, dela se desobrigava, passando-a às mãos do filho, uma vez que o velho Barão da Reboleira definhava a olhos vistos, tomado de doença crónica e grave a lhe consumir as forças, rapidamente. Entretanto, a despeito de tais atribulações que lhe tiravam a paz de espírito e, depois que se livrara de Madalena e, consequentemente, de suas ameaças, João Miguel sentia-se um pouco mais aliviado de suas apreensões mais evidentes. Alimentara um excedido temor, em relação à descoberta do paradeiro do irmão desaparecido, havia tanto tempo, que perdera completamente a Paz, pensando no ressurgimento do "bastardo" - modo de como ele, impiedosa e infundadamente, em seu íntimo, sempre se referira ao irmão fato que, em nada se alicerçava, posto que João Manuel nunca fora membro ilegítimo da sua família, apenas que, sequestrado ainda bebê, criara-se longe da tutela e sem nunca se relacionar com os seu parentes consanguíneos. Entretanto, João Miguel via nele não o irmão zinho surripiado tão covardemente, mas um usurpador inoportuno que lhe vinha roubar metade da fortuna que herdaria sozinho. Na realidade, não se perdoava por ter sido ele mesmo a encontrar o irmão desaparecido; se houvesse esperado um tantinho mais, os pais acabariam morrendo sem reencontrarem o filho, e ele, finalmente, poderia meter as mãos na grandiosa fortuna da família e mandar o outro às favas, para sempre!... Que idiota fora!... Talvez, premido pelo remorso de ver os pais sofrendo tanto, principalmente, a mãe, que se finava, a cada dia, numa agonia inominável, é que se empenhara tanto em encontrar o paradeiro do outro. E, aplicara-se demasiadamente em tal diligência que, mesmo a contragosto, acabara por localizar o sujeito. Mas, no íntimo, sabia que só o fizera, exclusivamente, pelos pais. E, agora, arrependia-se. Afinal, que lhe importavam os pais?.. Estavam, já, velhos e amargos. Aliás, sempre viveram amargos, culpando-se, reciprocamente, por aquela tragédia que se lhes abatera sobre o lar. E, que culpa tinha ele, João Miguel, nessa história toda?... Nenhuma. Apenas sofrera as agruras de ter suportado, sempre, uma mãe chorosa e lamurienta e um pai fechado em sua rispidez infinita e carrancuda!... Jamais vira o pai sorrir uma única vez!... E não se lembrava de ter recebido dele um mínimo agrado ou um só afago, sequer, durante toda a sua vida!... Criara-se, na realidade, pelas mãos das pajens e da velha governanta. Amélia sempre lhe fora mais presente que a mãe que só o olhava de longe e, raríssimas vezes, acariciara-lhe os cabelos e lhe dera um ou dois beijos, apenas, quando era ainda um garotinho...
Naquela manhã, particularmente, João Miguel encontrava-se mais enjoado que de costume. Tinha a boca amarga, e a cabeça martelava-lhe, insistentemente. Olhou, demoradamente, para o seu belo rosto moreno de olhos escuros e profundos, projectado no imenso cristal do espelho; a barba negra, cerrada; o basto bigode, bem aparado; as sobrancelhas finas e ligeiramente arqueadas... Entretanto, sinais de olheiras escuras já se lhe delineavam em derredor dos olhos - consequência das inúmeras noites insones.
João Miguel deixa o espelho e se senta numa poltrona. Sentia-se tão cansado, mesmo sendo de manhãzinha, que não tinha ânimo para vestir-se e partir para a cidade. Tinha alguns importantes encontros de ócios e urgia que se aviasse, entretanto a lassidão dominava-o; tinha ^ais era vontade de retornar ao leito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 10:42 am

De repente, lembra-se do sonho que tivera' a mesma sombra de sempre a persegui-lo - o espectro horripilante tentava sufocá-lo com as mãos fétidas e descarnadas, corroídas por vermes brancos a lhe fervilharem por todo o corpo, no afã de devorá-lo, vorazmente. Ainda guardava nas narinas o odor pútrido que o vulto exalava!... Que seria aquilo?... Nunca tivera, até então, pesadelos assim!... De repente, lembra-se de Madalena, a prostituta que ele apunhalara num beco escuro, numa fria e chuvosa manhã de início da primavera. A imagem da moça desenha-se-lhe, então, à mente. Nitidamente, João Miguel rememora aqueles brutais momentos; lembra as feições da jovem, mostrando-se cheia de assombro, diante do inesperado. Sente-lhe o corpo tremer, quando a lâmina do punhal cravou-se em suas carnes túmidas. Ouve-lhe, ainda, o gemido de dor intensa, e os olhos revirando-se, perdendo o brilho, tomando-se opacos e ainda carregados dum misto de incompreensão, de surpresa e, principalmente, de ódio. Madalena fixara nele seu derradeiro olhar, enquanto seus lábios murmuravam: "Por que fizeste isso, maldito?...", e sua voz afogara-se num intenso gorgolão de sangue que lhe respingara todo o casaco de lã...
Um arrepio percorre o corpo de João Miguel. Agitado, levanta-se e se encaminha para enorme aparador que ostentava uma porção de botelhas de terracota. Destampa uma das garrafas e enche um copo de vinho. Irrita-se. Por que é que aquelas lembranças nojentas tinham de, amiúde, invadir-lhe a mente?... Entorna o conteúdo do copo de uma só vez e volta a enchê-lo. Em seguida, senta-se, novamente, na poltrona. As horas passavam. Era preciso vestir-se e ir ao encontro dos negociantes. Entretanto, insistentes, as lembranças voltavam a atormentá-lo. Madalena tombara, pesadamente, sobre o chão lamacento, e suas roupas, rapidamente, encharcaram-se de sangue, de chuva e de lama. Seu rosto empalidecera, e os olhos permaneceram abertos, bem arregalados, guardando as derradeiras impressões que tiveram neste mundo.
Era só uma vagabunda!...", murmura João Miguel, quase inaudivelmente, só para si. "Uma vadiazinha do cais do porto...", e sôfrego, engole de uma só vez o conteúdo do copo que tinha às mãos. Depois, resolutamente, levanta-se e se põe a vestir-se com primor. Era preciso ir ao encontro dos negociantes...

* * * * * * *
Manuela e Teresa Cristina sobraçavam uma porção de pacotes e atravessavam a praça, para tomarem o coche de volta ao lar. O sol já ia alto no céu e, acaloradas pela incidente e altamente brilhante luminosidade primaveril, ansiavam por regressar a casa, a fim de se refrescarem o mais rapidamente possível. Quando se achavam caminhando, já no meio da praça, imiscuídas no meio de relativa multidão de transeuntes, depararam-se, de chofre, com alguém muito conhecido que também atravessava aquele espaço, em sentido contrário ao delas.
- Anjinho!... - exclama Manuela, pega pela surpresa. O rapaz, não menos espantado com tal coincidência, mal olha para Manuela. Seus olhos buscam, rapidamente, os de Teresa Cristina e prendem a eles de forma ostensiva e atrevida. A mocinha empalidece e se põe a tremer. Seus braços amolecem, e ela deixa cair, desastradamente, a série de pacotes que sobraçava. Instintivamente, a jovem se ajoelha para recolhê-los, e o rapaz acocora-se-lhe, rapidamente, ao lado, sem, entretanto, tirar os olhos dela por um só instante. Solícito, mete-se a recolher os pacotes e, gentil, ajeita-os aos braços de Teresa Cristina que permanecia branca como um fantasma e tremia com insistência.
- Por favor... - diz ele, ajudando-a a erguer-se.
- Grata... - responde ela, ainda trémula e mal conseguindo articular a palavra.
Da lividez, Teresa Cristina passa, instantaneamente, ao rubor. Baixa, então, os olhos. E se a prima desconfiasse e descobrisse tudo?... O maluco mostrava-se tão insistente, olhando-a daquela forma!... Será que ele não percebia que, agindo assim, a esperta Manuela iria desconfiar?...
- O que andas a fuçar por aqui, Anjinho?... - pergunta Manuela, olhando para o rapaz, com a voz carregada de ironia e, aparentemente, sem demonstrar que pescava algo no ar.
- Oh, vadiava, tão-somente!... - responde ele, abrindo um sorriso amarelo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 7:39 pm

- Pelo visto, ainda não mudaste de profissão!... - observa, sarcástica, Manuela. - Além de viveres, todo o tempo, a beber e a espoliar os imbecis marinheiros no carteado e nos dados, ainda te sobram horas suficientes para, regularmente, medires quantos passos há do porto até a cidade e vice-versa, não é mesmo? - e se escancara numa gargalhada debochada: - Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
O rapaz enrubesce de raiva, diante das palavras ferinas da mulher. Ia responder-lhe que permanecia, sim, mas era na profissão de consolador de esposas desprezadas pelos maridos; entretanto, olha para o rosto angelical que se postava ali do lado de ambos e, em respeito à mocinha, cala-se. "Pagar-me-ás caro a afronta, depois, maldita!...", pensa ele, fervendo de ódio por dentro. "Quando me encontrar a sós contigo, verás qual é a minha verdadeira profissão!..." Entretanto, por ora, era preciso judiar um pouco daquela ordinária.
- Enganas-te, prestimosíssima Manuela!... - exclama ele, mudando, rapidamente, as feições, de ódio, para sarcasmo. E, enquanto tomava, cheio de delicadezas, os pacotes dos braços de Teresa Cristina e a aliviando, completamente, da incómoda carga, prossegue: - No momento, dedico-me a ajudar donzelas sobrecarregadas de pacotes!...
Manuela lança-lhe um olhar terrível, frio e cortante como uma navalha. Então o vagabundo metia-se com a priminha, é?... Desaforado!... A ela é que deveria ajudar a carregar os pacotes; não à outra!... Entretanto, não se deixou levar pelo despeito; no momento era mister que a priminha não desconfiasse de nada, que não metesse nenhuma caraminhola à cabeça. Manuela não queria nem pensar na hipótese de a bobinha desconfiar de algum relacionamento torto que ela, Manuela, vinha tendo com aquele vagabundozinho do cais do porto!... Se essas coisas caíssem na boca da indiscreta Bárbara, seria o fim, e ela, Manuela, encontrar-se-ia, irremediavelmente, perdida!... O país inteiro, por certo, ficaria sabendo!... Se havia alguma coisa que a esposa de Afonso Albuquerque e Meneses temia era a língua da prima Bárbara!...
- Então, Anjinho!... - exclama Manuela, fingindo plena despreocupação. - Já que te prestas a carregador de pacotes, toma lá também os meus!... Ufa!... Que alívio!... - prossegue ela, depois de entulhar os braços do pobre rapaz com todos os pacotes que ela carregava.
- Queres é tirar proveito de mim!... - geme João Manuel, mal conseguindo sobraçar aquela montanha de embrulhos.
- Vamos, avia-te, homem!... Sem lamúrias!... - exclama Manuela, pondo-se a caminhar, resoluta. - Nosso coche encontra-se mesmo ali, do outro lado da praça!... Não é preciso que te exasperes tanto assim, não é para Roma que tens de transportar toda essa carga!...
Teresa Cristina e João Manuel trocam-se um ligeiro olhar. Pela Primeira vez, ela lhe sorri, divertida, dando de ombros. Que fazer diante da insistência de Manuela!... A ele restava, compulsoriamente, ter de carregar aquele incómodo monte de pacotes.
Uma vez acomodadas as duas e também a profusão de pacotes no coche, João Manuel permaneceu de pé, sobre o calçamento da rua embevecido, extasiado mesmo, diante das feições delicadíssimas da mocinha que o olhava da janela do carro, também altamente interessada. Deus do céu!... Que criaturinha mais linda!... Não poderia deixá-la partir assim!... Corre, então, os olhos, ligeiro, para os lados, e ali bem próximo, uma velha florista, sentada à sombra de um vidoeiro, vendia exuberantes violetas, expostas num cesto de vime. Apressado, corre até a mulher e toma da cesta um expressivo ramo das tais florezinhas mimosas. A mulher olha-o, atónita, sem compreender, de imediato o que ele fazia. João Manuel lança-lhe um olhar desesperado e ela entende, devolvendo-lhe um sorriso cúmplice. E, em seguida, quando o coche já partia, o rapaz, a correr, emparelha-se ao lado da janela e, beijando as flores, atira-as ao colo de Teresa Cristina.
Tomada de surpresa pela inesperada acção do rapaz, a mocinha apanha as flores e, ainda bastante espantada, olha com admiração para o pequeno buquê de florinhas roxas. Depois, empertiga-se no assento do coche e se volta para trás. Lá no meio da rua, ele permanecia de pé, com largo sorriso aos lábios. Seus olhos brilhavam intensamente. Quando ele a vê voltar-se para olhá-lo, manda-lhe um beijo pelo ar e lhe acena a mão em adeus. Ela, então, endireita-se no banco. Estava altamente impressionada com a atitude do rapaz. Intensa emoção invade-a.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 7:39 pm

Depois, acaricia, ternamente, as violetas, com as pontas dos dedos e, delicadamente, leva-as às narinas, aspirando-lhes o perfume subtil. Violetas!... As flores da paixão!... Seu coraçãozinho principia a bater mais forte.
Manuela, estranhamente quieta em seu assento, apenas observava; não perdera um só detalhe daquilo tudo. De repente, algo lhe perpassa pela cabeça. Conhecer-se-iam, de antemão, os dois pombinhos?...
- Diz-me, queridinha - pergunta ela, tomando-se altamente intrigada com a atitude dos dois jovens -, acaso tu já conhecias Anjinho?-
- Oh, não!... Não!... - responde Teresa Cristina, grandemente nervosa diante da pergunta da outra. - Jamais o vi antes!
- Sei... - diz Manuela, olhando-a, fundo, nos olhos. Tinha a absoluta certeza de que a prima mentia. - Poderias jurar, então, que Anjinho não é o tal que te visitou ontem à noite?
- Oh, não, Manuela!... - responde a jovem. - O quarto encontrava- se
às escuras, e mal lhe pude divisar o vulto!...
Manuela resumiu-se a olhá-la, cheia de desconfiança. Como era uma pessoa volúvel e mundana, pescava logo quando lhe mentiam. "Quem usa, cuida, safadinha!...", pensa ela, lançando um olhar cheio de desprezo para a priminha. "O descarado do Anjinho preferiu-te a mim!..- Não sei eu, acaso, que tens as carnes mais tenras que as minhas?..."
Naquela noite, Teresa Cristina não conseguia conciliar o sono. Ainda tinha à mão o pequeno ramalhete de violetas. As flores já emurcheciam por acção do soão1 que soprara com insistência, desde a tarde até o início da noite. Quantas vezes já não beijara e aspirara o subtil, mas insinuante perfume daquelas florezinhas roxas?... Algumas centenas de vezes, por certo!... Olhava para o pequenino buquê, que quase cabia todinho em sua mão, e se ria. Que delicadeza!... A imagem do rapaz, sorrindo e lhe enviando beijos pelo ar, fazia-a ter acessos de delírio!... Deus do céu!... Já teria visto alguém mais bonito?... Que jeito suave tinha ele de olhar!... Sentia-o forte, decidido, um homem valente e que sabia ser autêntico!... Quem seria ele?... Agora tinha a absoluta certeza de que Manuela conhecia-o; aliás, que ambos conheciam-se, reciprocamente, e muito bem, por sinal!... Notara-lhes a intensa intimidade, a troca de olhares, o espanto no casual encontro. De onde se conheceriam?... Não tivera coragem de perguntar à prima. Além do mais, Manuela não se mostrava confiável; poderia mentir.
Teresa Cristina vira-se no leito, mantendo o pequeno buquê entre os dedos, olhando-o, insistentemente. Anjinho... Ri-se, ao lembrar-lhe o nome. Nome ou apelido?... Poderia alguém chamar-se assim?... Sonda a memória e descobre não ter conhecido ninguém com tal nome. Deveria ser apelido, pois Anjinho não poderia ser nome de gente; se ainda fosse Arcanjo, ela conhecia alguns. Então, como seria o verdadeiro nome dele?...
Teresa Cristina acorda-se e sonda o ambiente com um par de olhos sonolentos. Pela claridade que se fazia pelos interstícios da janela, a manhã deveria estar bem avançada. Súbito, as lembranças do dia anterior vem-lhe à mente. Anjinho... Apressada, procura pelo ramalhete. Havia dormido, segurando as flores e vai encontrá-las bastante murchas a seu lado, sobre o lençol de cambraia branca. Que pena!... Pouco lembravam das exuberantes florezinhas da véspera!... Com desmedido cuidado, recolhe as flores sem viço e as guarda dentro de um lencinho de seda.
- Aqui eu as manterei desidratadas e durarão por muito tempo!... -murmura ela, baixinho, beijando a trouxinha que depositou, a seguir, delicadamente, no fundo de uma gaveta.
Depois, espreguiçando-se até o exagero, a mocinha sentou-se diante do toucador. Detalhadamente, espia a sua imagem reflectida no espelho. Tinha os olhos brilhantes, o rosto radiante. E imagina as feições de João Manuel desenhando-se no cristal brilhante, ali, ao seu lado. "Como és bonito, meu anjo!... ", pensa, abrindo um sorriso. "Que delícia foi ouvir de novo, a tua voz forte e decidida!... Quem és tu, na realidade?...', e, cheia da preguiça matinal, principia a pentear-se, languidamente, sem pressa. Entretanto, uma comichão estranha, um desejo premente de descobrir e, mesmo, de rever aquele rapaz, paulatinamente, invadia-a, ao tempo em que escolhia, no armário, a roupa que iria vestir.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 7:39 pm

- Manuela, por certo, não me dirá quem é o tal Anjinho - murmura baixinho, só para si, depois, enquanto ajeitava a gola alta da blusa de renda branca. - Preciso encontrar um jeito de descobrir quem é ele, onde vive...
E, quando acabava de fechar a porta do quarto atrás de si, e ia descer ao salão de jantar para tomar o desjejum, de repente, tem uma ideia.
- Inácia!... - diz baixinho. - Sim, Inácia, dir-me-á, por certo, quem é Anjinho... - e desce, apressada, as escadas para o térreo.
Adentrando o salão de jantar, Teresa Cristina depara-se com a prima que a precedera.
- Oh, bom-dia, queridinha!... - exclama Manuela, sorridente, ao vê-la surgir à porta. - Ferraste no sono, hoje, hein?...
- Oh, dormi como uma pedra!... - diz a mocinha, sentando-se à mesa.
- Em pouco, irei à modista - diz Manuela. - Não queres acompanhar-me?
- Oh, prima, se não te importas, acho que preferirei ficar!... -responde ela. - Desejo pôr minhas leituras em dia!... Desde que aqui cheguei, não li sequer uma única página!...
_ Tens de tomar o hábito que adquiri, há tempos, queridinha - diz Manuela, levantando-se da mesa, pois já terminara seu desjejum. -habito de mulher abandonada pelo marido: leio na cama, até que o sono me venha!... - e, beijando a prima à testa, prossegue: - Mas, fica à vontade e faze o que quiseres, que tenho de me aviar, ou não retomarei antes do almoço!... - e, voltando-se para a fiel criada, ordena: - Inácia, vem, que preciso de ti!...
"Daqui a pouco, tu me contarás tudo o que sabes, Inácia!...", pensa Teresa Cristina, observando a criada que seguia a patroa como um cão fiel. "Veremos até onde vai essa tua fidelidade!... ", e esboça um sorriso matreiro...
Uma hora depois, com o rosto colado na grandiosa vidraça do salão de visitas, a mocinha acompanhava com os olhos a prima que tomava, nervosamente, o coche estacionado diante da escadaria de mármore branco. "Vai-te, Manuela, para o mundo, e me deixa, cá, agora, a descobrir os teus podres!...", e abre um sorriso de plena satisfação. Em seguida, encaminha-se à copa e encontra Inácia envolvida em afazeres domésticos, juntamente com outras criadas.
- Inácia - chama ela pela serviçal -, vem até meus aposentos, que preciso que me cosas de volta um botão que se desprendeu de um de meus vestidos.
Pouco depois, a criada mantinha-se de pé, em expectativa, diante de Teresa Cristina, que se sentara numa poltrona.
- Onde guardastes o vestido, senhorita? - pergunta a criada.
- Não há vestido algum, Inácia! - exclama a jovenzinha, rindo-se. E, indicando com a mão uma outra poltrona, diz-lhe: - Senta-te, aí!... Vamos conversar eu e tu!...
Meio abobalhada, a criada olha para a outra. Será que ouvira direito?... Ali naquela casa, ninguém, em toda a sua vida, uma única vez sequer, tratara-a daquela forma!... Estranhava, enormemente, tudo aquilo.
- Que... Que... di... zeis..., senhorita? - balbucia ela.
- Sim, Inácia, senta-te aí!... Estou a convidar-te para um dedo de Prosa!...
~ Não, senhorita!... - responde a outra, decidida. - Agradeço-vos o convite, mas não posso aceitar!... Se a senhora dona Manuela, ao menos, disso suspeitar, estarei no olho da rua!...
- Ora, que bobagem!... - exclama a mocinha. - Acaso não te recomendou ela que me servisses?... Então, estou a ordenar-te: senta-te aí, mulher, e não faças drama!... - e, estalando os dedos, prossegue animadíssima: - Pensando bem, faze melhor!... Apanha duas taças de vinho: uma para mim e outra para ti!...
- Não, senhorita Teresinha!... Por misericórdia, não!... - exclama a criada, cheia de terror. - Imaginai se me pilha a tomar tais liberdades a senhora dona Manuela!... Ai, Jesus!... Não quero nem pensar!... A mendicância ser-me-á pouca!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 7:40 pm

- Oh, que grã covarde és, Inácia!... - exclama a jovenzinha, altamente contrariada. E ordena, já perdendo a paciência: - Anda, faze o que te mando!... Ninguém ficará sabendo!...
- As demais criadas, senhorita!... - desabafa, chorosa, a outra. - Já vivem a se arder de inveja, porque é a mim que a patroa solicita sempre!... Se me sabem a fazer tais despautérios, matar-se-ão umas às outras, aos bofetões e aos arranhões, para verem qual delas cuspirá o mexerico primeiro!... Oh, não conheceis a criadagem, senhorita!...
- Oh, se não fazes o que te ordeno, então, faço-o eu! - exclama a mocinha. E, resolutamente, levanta-se e se encaminha para o aparador onde havia algumas botelhas de bebida. Enche dois cálices de bom vinho, passa um deles à trémula Inácia e volta a se sentar. - Cuida para não espatifares a taça de cristal, com tanta tremedeira, sua tonta!... - observa Teresa Cristina. - Aí, sim, terás de prestar contas à tua patroa!... Agora, senta-te aí e bebe esse vinho comigo!
- Sim, senhorita... - responde a serviçal, acomodando-se, temerosamente, bem à beirada do assento da outra poltrona, como se andasse a sentar-se sobre ovos.
- Inácia, conheces, acaso, um sujeito chamado Anjinho!... - pergunta a jovem, sem fazer rodeios.
- Não, senhorita!... - responde a criada, com ligeiro sobressalto e arregalando os olhos. - Não conheço nenhum gajo baptizado com tal nome!...
- Hum!... Sei... - diz a outra, sem tirar os olhos da dissimulada criada. - Juras, então, que nunca viste ou nada sabes sobre um homem com esse nome?...
- Oh, pelos santos todos do céu, juro-vos, senhorita!... - apressa-se em responder a outra, sem titubear.
"Não existe muita diferença entre ti e a tua patroa!...", pensa Teresa Cristina. "Sois, na realidade, farinha do mesmo saco!...", e, abrindo um sorriso amável, diz: - Mas, bebe o teu vinho!... Vamos!...
A criada, com mãos trémulas, aproxima a taça da boca e sorve pequeníssimo gole do líquido que lhe tinge, temporariamente, de rubro, os descorados lábios. "Preciso abrir o bico dessa galinha velha!...", pensa Teresa Cristina, enquanto observa, divertidíssima, a figura patética da mulher, toda encolhidinha, em seu impecável uniforme de cambraia azul-escura, sentada na poltrona de veludo vermelho, ali, diante dela. Amiúde, Inácia esticava os olhos em direcção da porta, e a mocinha não sabia se a outra sentia fortes desejos de sumir, rapidamente, dali, ou se temia que uma outra pessoa entrasse, intempestivamente, pilhando-a em tão folgazãs atitudes.
O tempo escoava-se, e um silêncio se estabeleceu entre ambas. A mocinha percebeu, então, que a outra, dificilmente, deixar-se-ia tomar pelo vinho, e era preciso mudar, rapidamente, a abordagem.
- És muito pobre, não, Inácia?... - pergunta Teresa Cristina, de repente, rompendo o silêncio.
- Sim, senhorita... - responde a criada, baixando os olhos.
- És sozinha no mundo ou tens algum parente?
- Sou só, senhorita dona Teresinha... A ninguém tenho neste mundo de Deus!... - diz a serviçal com os olhos carregados de tristeza.
- Então, não terás ninguém que te socorra, quando ficares mais velha, e as forças abandonarem-te, não é mesmo?
- Sim, senhorita... Assim é... - concorda, triste, a criada.
- E tens algum dinheiro guardado para a tua velhice?... - pergunta a mocinha.
-Pouca coisa, senhorita... Alguns míseros tostões, apenas!... Teresa Cristina anima-se. Levanta-se e se encaminha até um móvel e abre uma gaveta. Em seguida, volta a sentar-se, trazendo pequeno saco de veludo cinza. Inácia seguia-a com os olhos, sem nada entender.
- Vê, Inácia!.... - exclama a mocinha, exibindo o estupendo conteúdo da sacolinha.
Ao ver a profusão de dobrões de ouro que faiscaram nas mãos da Jovem, a criada arregalou os olhos cheios de espanto. Jamais havia visto tanto dinheiro assim em toda a sua pobre vida!
- Dou-te tudo isto, para que tenhas um fim de vida sem nenhuma preocupação, se me contares, direitinho, tudo o que sabes sobre Anjinho... - diz Teresa Cristina, olhando firme nos espantadíssimos olhos da criada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 7:40 pm

- Ai, Jesus!... - exclama a criada, sem tirar os olhos daquela profusão de brilho. E prossegue, agitando-se, grandemente, na poltrona: - E não é que não posso, senhorinha dona Teresinha?... Por Deus, ai, que não!...
- Ah, se não podes, é porque sabes, não é?... - diz a jovem, fazendo, propositadamente, o punhado de ouro passar de uma mão à outra, numa cascatinha tilintante que lançava uma exuberância de brilhos coriscantes.
Agitando-se, enormemente, na poltrona, a pobre criada olhava para aquela imensidão de ouro e também para a porta e para o rosto de Teresa Cristina que a encarava, insistentemente, com um sorriso triunfante nos lábios. Sabia que a outra estava presa!... Como caíra fácil em sua armadilha!... Que é que o ouro não comprava, meu Deus?...
- Então, Inácia!... - persiste a mocinha. - Decide-te depressa, antes que retome a tua patroa!...
- Ai, Virgem Maria!... - brada a criada, passando, nervosamente, ambas as mãos pelo rosto. - Deus do céu!... E se descobre tudo a senhora dona Manuela?...
- Só descobrirá, se uma de nós duas contar-lhe, não é mesmo?... -diz Teresa Cristina, já lhe estendendo a sacolinha de veludo cinza. - E, como somos ambas interessadas para que isso jamais aconteça, levaremos esse segredo para o túmulo!...
- Ai, e é!... - exclama a criada, excitadíssima, tocando o ouro com a ponta dos cúpidos dedos. - Ai, bom Deus, e é!... - e, hesitando, ainda um pouquinho, prossegue: - Mas, e se descobre tudo a minha patroa, que farei eu?...
- Que farás?... - observa Teresa Cristina, passando a sacolinha para as mãos trémulas da criada. - Ganharás o mundo e viverás no bem bom com o teu ouro, não é mesmo?...
- Oh, assim será!... Assim será!... - exclama a criada, rindo-se nervosa, com a testa húmida de gélido suor.
- Agora, acalma-te e desembucha tudo!... - diz a jovem, directa.
A criada guarda, apressadamente, a sacolinha no bolso do avental e passa a narrar, com riqueza de detalhes, tudo o que sabia sobre o caso que Manuela vinha mantendo com João Manuel. Teresa Cristina, por sua vez, tinha ligeiros sobressaltos, à medida que as coisas lhe eram narradas. Entretanto, seu rosto irradiava alegria. Seus olhos brilhavam intensamente. Agora, nenhum mistério mais sobre aquele homem existia... Nenhum mesmo...
______________________________________________________________________________________________
1 Vento ,quente que, na latitude de Portugal, sopra entre leste e Sudeste.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 7:50 pm

Capítulo 9 - Reencontro de corações
João Miguel, a cada dia que passava, encontrava-se mais sorumbático, mais casmurro do que, normalmente, fora até então. Trancava-se, amiúde, em seu quarto e dali só saía quando necessidades prementes solicitavam-lhe a presença. O pai encontrava-se mal, muito mal, e se poderia supor que o seu decesso, fatalmente, dar-se-ia em pouco tempo. Da intensa alegria que, a princípio, invadira o jovem herdeiro da fabulosa fortuna dos Barões da Reboleira, quando se havia achado na iminência de vir a ser, em pouquíssimo tempo, o único dono daquela imensidão de dinheiro, de propriedades e de negócios vultosos que a sua família amealhara por séculos, agora, entretanto, o que mais sentia era amargura - estranha e singular amargura - aliada a certa insipidez, diante das coisas da vida. Inexplicavelmente, tudo lhe parecia, de repente, sem atractivos e nada no mundo era-lhe realmente merecedor de qualquer atenção. Ele próprio não sabia o que lhe acontecia, tanto que já procurara famoso especialista de Lisboa, que lhe ministrara alguns remédios, embora se sabendo que a medicina e a farmacopeia fossem extremamente incipientes e quase inexistentes, no derradeiro quartel do século XVIII. Entretanto, confiantemente, passara a utilizar-se dos medicamentos a ele prescritos, mas, altamente desolado, observava que, depois de duas semanas de uso, nenhum efeito marcante deles obtivera e, mais desanimado ainda, deixava-se consumir por extravagantes ideias e por sensações esquisitíssimas que lhe tomavam o corpo todo como se alguém, insistentemente, mantivesse-o manietado e teimasse em conservá-lo preso naquele quarto abafado. Não se conformava!... Era primavera, o tempo estava perfeito para sair, para passear, para ir ao teatro... Sabia que encenavam peças extraordinárias na temporada; companhias de óperas de Paris e de Viena traziam a Lisboa as últimas novidades de toda a Europa, mas ele se sentia sem o mínimo ânimo para deixar a casa.
Apenas, conseguia perceber que aquele incomum abatimento acometia-o, inexplicavelmente, havia algum tempo. Sabia, também, que o pai estava no fim. Que estava morrendo, mas não tinha nenhuma vontade de vê-lo, de estar presente, ali ao seu lado, em seus derradeiros dias neste mundo. Às vezes, sentia-se culpado por essa atitude, mas se achava impotente para lutar contra esse quebrantamento que dele se apoderava. E, por outro lado, sentia-se mal, vendo o extremo sofrimento por que passava o velho pai. A doença comia-o devagar, implacável, trazendo-lhe dores impensadas. Tinha consciência de que dava ao pai todo o conforto e a assistência que o dinheiro, àquela época, poderia proporcionar; houvera lhe providenciado os enfermeiros necessários, os médicos mais competentes da cidade, além de pequeno batalhão de pajens e de criados, sempre à disposição. Entretanto, não conseguia dar a atenção que o pai exigia. Pouquíssimas vezes havia ido até seus aposentos para vê-lo. Da última vez em que lá estivera, horrorizara-se ao encontrá-lo tão magro e tão desfigurado pelo sofrimento. Mal trocaram meia dúzia de palavras e ele saíra, alegando a grande quantidade de afazeres que acumulava então. O velho pai sorrira-lhe, amargamente, ao despedir-se dele, pois sabia que o filho estava mentindo. Mas, desculpava-o. Quem é que gostaria de estar ao lado de alguém que sofria tanto, literalmente, apodrecendo vivo?...
Naquela tépida e ensolarada tarde de primavera, João Miguel encontrava-se trancado em seu quarto, sentado numa poltrona. Fraca luz coava-se pelos interstícios dos caixilhos da janela fechada, proporcionando formar-se leve penumbra no ambiente. O rapaz permanecia imóvel, de olhos abertos e inexpressivos, fitando o vazio. A cabeça pesava-lhe tanto que ele mal conseguia sustê-la sobre o pescoço. Forte irritação acometia-o. Pensamentos desconexos advinham-lhe à mente: ora pensava em viajar para bem longe, ora tinha vontade de se desfazer de tudo o que possuía e de se lançar às ruas, como mendigo; outras vezes, tinha vontade de abrir, intempestivamente, a janela e de se arrojar lá embaixo, espatifando-se no pátio de pedras... Outras vezes, ansiava por se embebedar até cair. Por que será que a vida vinha, paulatinamente, tomando aqueles rumos?... De repente, lembra-se de Teresa Cristina. Ela já deveria estar em Lisboa, hospedada na casa da prima, fazia alguns dias... Não lhe prometera ir até lá para se encontrarem?...
Entretanto, nem a namorada ele tinha vontade de ver, naquele momento Que inferno!... Levanta-se, com certa dificuldade, e se encaminha para o aparador. Apanha um copo e uma botelha de vinho e volta a sentar na poltrona.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 7:50 pm

Enche o copo de bebida e o leva à boca, engolindo o líquido sofregamente. Depois, volta a encher o copo e o bebe da mesma forma que o anterior. Repete essa acção por mais duas vezes e recosta cabeça no longo espaldar da poltrona. O álcool principia a relaxar-lhe toda a musculatura corporal. Leve torpor toma-lhe a cabeça, e uma ligeira sensação de bem-estar, a princípio, acomete-o. Temporariamente, a bebida causava-lhe conforto, amortecendo-lhe a sinapse cerebral e provocando passageiro estado de euforia. Sorri, então, olhando para o copo vazio que mantinha à mão. As feições de Teresa Cristina desenha-se-lhe, lindas, à tela mental.
-Ah, minha bela!... - murmura ele, com laivos de embriaguez à voz. E, estendendo o copo vazio, à guisa de saudação, prossegue, abrindo um sorriso: - Anseio por teus lábios, minha pequerrucha!...
Em seguida, apanha a garrafa que deixara depositada no chão, lado da poltrona, e volta a encher o copo de vinho.
- À tua saúde, meu bem!... - exclama ele, estendendo a taça e brinde. E explode numa etílica gargalhada: - Ha!... Ha!... Ha!... Ha!
Depois, entristece e se cala. Por algum tempo, seus olhos permanecem perdidos na penumbra, fitando o nada. Então, a cabeça principia a pesar-lhe mais ainda, e ele cochila levemente. Luta, para manterem vigília, mas a sonolência pesada atormenta-o, com insistência.
- É preciso ir ao teu encontro, urgentemente, meu bem... - murmura ele, com os olhos pesados de sono.
Vencido pela sonolência, o rapaz tomba a cabeça e dorme. Entretanto, num canto do quarto, perdida no meio da penumbra e qual felino à espreita da caça, tétrica sombra olhava-o que dormia. O espírito aproxima-se e, lançando um olhar de intenso desprezo, aguarda que a alma se desvencilhe do corpo, para ganhar a sua forma espiritual. Aos poucos e, liberto, temporariamente, da prisão do corpo, João Miguel retoma a consciência e, abrindo os olhos, emite um grito de horror:
- Tu?!...
- Sim, maldito!... - grita o espírito, segurando-o, fortemente, pelo braço. - Achei-te, afinal, e, agora, teu inferno principia!...
- Não é possível!... - grita o jovem, tomado pelo terror extremo. -Matei-te, e tu estás morta!...
- Sim, desgraçado!... - brada o espectro, tomado por fúria insana. -Mataste, de fato, e da forma mais vil e traiçoeira, o meu corpo ainda jovem e cheio de anseios pelas coisas da vida!... Arbitrariamente, tu te arvoraste em meu algoz e, impiedosamente, interrompeste, sim, maldito, com um certeiro golpe do teu punhal, todos os meus sonhos de mocinha!... A mim, entretanto, como vês, não pudeste matar!...
_ Afasta-te de mim!... Tu estás morta!... Matei-te, sim!... - grita o rapaz, tapando o rosto com as mãos, enquanto se deixava tomar pelo pavor intenso.
O espírito de Madalena, altamente descomposto e a exibir laivos de loucura no rosto desfigurado pela dor intensa, arroja-se, furioso, sobre o rapaz, agredindo-o com violentos bofetões e tentando, insistentemente, lanhar-lhe o rosto com as unhas. Tomado de intenso desespero, João Miguel defende-se com as mãos e se lança, rapidamente, sobre seu corpo que permanecia adormecido, sentado na poltrona, com a cabeça ligeiramente tombada sobre o ombro, e nele busca, dessa forma, o refúgio imediato contra o intempestivo ataque do espírito obsessor. Num átimo, o jovem desperta, abrindo os olhos, assustado. O coração batia-lhe, descompassado. Deus do céu!... Aquele terrível pesadelo outra vez!... Suava, abundantemente, e tinha as carnes trémulas. Altamente estarrecido, lembra o horrendo pesadelo que se repetia, mas que, desta vez, viera revestido de violência ímpar. A boca amargava-lhe, tremendamente, tomada por saliva espessa. Com extrema dificuldade, levanta-se da poltrona e, servindo-se de um reservatório de água potável, bebe, sofregamente, duas taças do líquido, dissolvendo, assim, a baba pegajosa e absintada que lhe ia à boca. Depois, vertendo água na bacia de louça branca, lava o rosto repetidas vezes. Em seguida, põe-se a se vestir com lentidão, pois tinha as forças combalidas. Resolvera, por fim, viajar a Lisboa para ver Teresa Cristina.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 7:50 pm

* * * * * * *
Depois que reencontrara Teresa Cristina, João Manuel mudava de comportamento. Antes, era a coisa mais difícil do mundo encontrá-lo quieto, num canto qualquer, sem estar a contar casos numa roda de amigos ou de curiosos, ou ainda, sempre folgazão, a bulir com alguém, fazendo-lhe troças ou brincadeiras. Entretanto, nessa tarde cálida de meio de primavera, o jovem encontrava-se sentado ao lado de uma mesa, na bodega de mestre Branquinho, diante de uma caldeireta de chope Mantinha os olhos tristes, fixos no nada, e a cabeça apoiada em ambas mãos, espalmadas ao rosto.
- Ô, Anjinho, encontras-te derreado assim, por que, ó homem?... _ diz-lhe o bodegueiro, pondo-se diante dele e lhe estranhando a falta da costumeira loquacidade. - Contou-me um passarinho, inda agorinha, que te achas de asa caída por alguma donzela!... Acertei?... Anda!... Vai, diz-mo lá!... - insiste o homem, tentando fazê-lo abrir-se.
- Ó, Branquinho, se nada tens a fazer, no momento, senta-te aí e me faze companhia - responde o rapaz, sem nenhuma animação, tamanha era a prostração que dele se assenhoreava.
- Ai, e não é que acertei?... - exclama o bodegueiro, abrindo breve sorriso e, puxando uma cadeira, senta-se ao lado do rapaz. - Vamos, abre lá o teu coração ao velhote aqui!...
- Oh, caro amigo!... - diz o rapaz, encarando o outro, comovidamente. - Não sabes o fogo que me domina o coração!... Já te apaixonaste, de verdade, alguma vez, Branquinho?...
- Como não, meu rapaz?... - responde o velho taberneiro. - Não existirá uma só criatura neste mundo que já não se tenha encontrado, alguma vez, enroscada nas malhas dalguma paixão!... Acaso seria eu excepção?... Não, meu caro!... E como me apaixonei!...
- E sofreste, também, Branquinho?... - pergunta o rapaz, animando-se um tantinho mais, com a atenção que lhe dispensava o velho taberneiro.
- Ora, que pergunta fazes, ó meu amigo!... - responde o velho. -Existirão, acaso, paixões que não doam?... Todas doem, meu caríssimo!... E, se assim te encontras, prepara-te: vai doer bastante!... Mais doerá, se o teu amor não te corresponder, ou, o que será ainda pior, seja se encontrar nos braços de outro!... A minha paixão doeu-
- me muito, porque o meu amor deixou-me por um desgraçado cigano tocador de violino!...
- Oh, que lástima, Branquinho!... - responde João Manuel, condoendo-se do amigo.
- Sim, o miserável enfeitiçou-me a minha Clementina, que me deixou, literalmente, a ver navios, aqui na baixada do porto, anda a fazer já mais de trinta anos!...
_ Aí, e é?— - pergunta o rapaz, interessando-se pela história do amigo. - Levou-te a mulher o maldito?... E não intentaste matá-lo?
_ Sim, saí-lhes ao encalço, doudo da vida, com uma coceira danada à ponta do meu punhal!... Entretanto, embarcaram numa nau que rumava ara as índias e, até hoje, deles nada mais sei!... Sofri feito um louco; comi o pão que Belzebu desdenhou, mas acabei por esquecê-la, a desalmada!.. - Que o diabo os carregue para as profundas do inferno!...
_ Pobre Branquinho!... - diz o rapaz, tocando de leve na mão do amigo. - Deveste ter sofrido bastante, não?
-Sim, e como!... - responde o outro, comum fundo suspiro. - Éramos casados de pouco, Clementina e eu; havia estabelecido minha bodega, e trabalhávamos os dois, aparentemente felizes, construindo a nossa vida, até que apareceu o maldito, a tocar o violino como um demónio!... Vinha, amiúde, distrair meus fregueses, executando sua envolvente música cigana e nada cobrava, além de alguns goles de zurrapa que eu lhe oferecia; em contrapartida, o maldito alegrava muitíssimo o ambiente, e eu, inocente, de nada desconfiei, porém o verme conquistava-me a esposa, insinuando-se com seus lascivos olhares!... E, tanto a tentou, que acabou por enredá-la!... Oh, Anjinho, não sabes o que é perder o amor, assim, de uma hora para outra!... Nem imaginas o que seja a dor da solidão!... Não atinas, ainda, por certo, o que seja rolar, insone, num leito que se toma imenso e frio, sem o teu amor ali ao teu lado!... Quanto os amaldiçoei!... Se abateu sobre eles apenas a metade das pragas que lhes roguei, já devem estar ambos mortos há muito tempo!... Oh, não sabes o quanto lhes desejei a desdita suprema, a infelicidade eterna!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 7:51 pm

Grandemente consternado por aquela história pungente de dor e de traição, João Manuel olha para o velho amigo que ora se mantinha calado e com as feições tomadas por tristeza intensa; certamente, achava-se envolvido em íntimas reminiscências - lembranças daquele passado distante, que ora se lhe apresentava pejado de duras cicatrizes - cicatrizes de ferimentos profundos, feridas de amor que, na realidade, nunca se fecham por completo. Pode passar o tempo; pode passar uma enormidade de anos; pode-se envelhecer e se pode até fingir que se esquece, mas, sempre que se lhes revolvem os talhos aparentemente cicatrizados, voltam a sangrar. Ferimentos de amor são assim, jamais se curam por completo; é só remexer neles que sangram, copiosamente, ate não mais quererem. Paixão verdadeira é doença incurável...
- Branquinho - diz o rapaz, quebrando o longo silêncio que se estabelecera entre ambos -, pelo que acabaste de relatar-me, posso depreender que sofreste muito, durante esse tempo todo em que viveste sem o teu amor. Entretanto, não intentaste substituir a tua esposa por outra?... Nenhuma outra apareceu em tua vida?
- Não, Anjinho... - responde o velho bodegueiro com os olhos mareados de lágrimas. - Acaso poderia haver substitutos para o amor?... Não, meu amigo!... Se fosse possível substituir um amor por outro, decididamente, não seria amor!... Como se poderia trocar o ar que se respira por uma outra coisa qualquer?... Inconcebível essa ideia!... Só trocam de amores os que, efectivamente, não amam!... Tal troca, para quem realmente ama, é algo impensado!... Sequer lhe passa isso pela cabeça!... Seria a pior de todas as tragédias!... Quando se ama de verdade, a pessoa já não mais se pertence; pertence, exclusivamente, ao outro; sequer tem vontades ou desejos próprios, pois vive, integralmente, a atender às solicitações do seu amor!... Tudo declina e a tudo renuncia em favor da pessoa amada!... Move céus e terras para ver o outro sempre feliz!... E, está feliz, quando seu amor está feliz!... O verdadeiro amor é por demais sublime; é cheio de renúncias voluntárias; não gera sofrimentos nem angústias. O amor é a plenitude dos sentimentos!... Como poderia a maior de todas as afeições trazer dor e sofrimento?... Seria uma grande contradição!... Não, meu caro, se nos faz sofrer, decididamente, não é amor!... Poderá ser qualquer outra coisa, menos amor!... Só que, para a sua plena realização, precisa de dois corações!... Quando toca apenas um coração, nem queiras saber, pois será uma tragédia sem par, um calvário de dores infinitas!... Mas, mesmo assim, não se buscará, jamais, um substituto!... Clementina deixou-me pelo cigano tocador de violino, certamente, porque não me amava de verdade!... E eu, que a amava muito, como poderia trocá-la por outra?... A mim, restou-me sofrer a terrível dor da solidão e do abandono por todos esses anos. Até poderia ter tomado uma outra mulher, pois, à época, pretendentes à vaga deixada por Clementina apareceram-me às dezena-entretanto, se houvesse escolhido alguma delas, mas, sem amor, apenas tê-la-ia feito infeliz. Teríamos sido ambos muito infelizes, ela e eu...
Pesado silêncio, a seguir, estabelece-se entre ambos - sinal de que profundas cogitações passavam a invadir-lhes o pensamento. João Manuel sente o quão sofrida fora a vida do seu amigo. Mestre
Branquinho torcia, nervosamente, a ponta do seu encardido avental, enquanto as suas feições permaneciam tomadas de profundo sofrimento. João Manuel respeitava-lhe a dor; no íntimo, até se arrependia de tê-lo feito remexer e, consequentemente, de ter trazido à tona aquele imenso cabedal de lodo que se fora depositando, paulatinamente, no decorrer de toda a miserável vida do amigo, e que, até então, se encontrara assentado, quieto, lá no fundo do seu velho coração. Mas, como poderia adivinhar o terrível drama que se escondia no íntimo do outro?... Sempre o conhecera até relativamente alegre e jovial, envolvido na azáfama diária da sua bodega, a cozinhar muitíssimo bem os seus guisados de miúdos de porco...
O velho bodegueiro, depois daqueles minutos de sofrimento intenso, sacode ligeiramente a cabeça, com o firme propósito de espantar aquelas terríveis lembranças e, abrindo um sorriso que ainda trazia laivos de tristeza, levanta-se e, batendo, amorosamente, a mão ao ombro do amigo, diz-lhe:
- Deixemos de bobagens, não é mesmo?... Clementina e o maldito cigano tocador de violino que se ardam nas profundas do inferno!... E, quanto a ti, se te achas na iminência de perderes o teu amor, luta por ele até a morte, pois te será imensamente preferível morrer, Anjinho, a viveres a eterna desgraça da perda do amor da tua vida!
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 26, 2024 7:51 pm

O rapaz olha comovido para o amigo. Sim, tinha a certeza absoluta de que encontrara o amor da sua vida e sabia que teria de lutar como um mouro, se quisesse realizar o sonho de ter Teresa Cristina em seus braços.
- Mestre Branquinho - diz o rapaz, aproveitando-se da possibilidade de ouvir alguém com toda aquela experiência de vida -, se tivesses, hoje, nas tuas mãos, a condição favorável, lutarias com todas as armas Por tua Clementina!
O bodegueiro olha para o rosto do amigo, por instantes, antes de responder, como se estivesse a avaliar, com bastante propriedade, o Peso daquela pergunta.
- Sim, Anjinho - responde o velho, por fim. - Hoje, para manter Clementina ao meu lado, eu até mataria aquele cigano infame!
~ Obrigado, Branquinho!... - exclama o rapaz, levantando-se de chofre e se abraçando, efusivamente, ao amigo, prossegue: - Acabas e indicar-me o caminho certo a seguir!...
João Manuel ganha a rua apressado. Ia ao encalço de Gerusa Precisava, urgentemente, avistar-se com a velha companheira.
- Podes jurar-me, Gerusa, que Madalena, efectivamente, disse-te tudo a respeito da minha infância?... - pergunta ele, muito ansioso, pouco tempo depois, sentado ao lado da jovem prostituta, no sórdido leito do quartinho da rua do cais.
- Por que todo esse interesse, agora, Anjinho!... - pergunta-lhe a moça, altamente espantada, olhando-o nos olhos. - Quando te contei tudo pela primeira vez, tu nem quiseste ouvir-me direito e até disseste que não irias jamais procurar por teus pais verdadeiros!...
- Oh, Gerusa!... - diz ele, profundamente agitado, tomando as mãos dela e as beijando, efusivamente. - Tu não sabes o inferno que ora vivo!...
- Vamos!... - ordena, desconfiadíssima, a jovem meretriz. - Anda, senhor João Manuel, pois te conheço muitíssimo bem!... Desembucha logo que, quando assim estás, é porque andas metido em encrencas!... E das sérias!... De que se trata desta vez?...
O rapaz olha-a, um tanto consternado. Teria de dizer a ela que estava apaixonado. E, apaixonado por outra...
- Sabes, Gerusa... - começa ele, tergiversando. - Há coisas em que a gente não pode, efectivamente, mandar, entendes?... Há assuntos nos quais não se pode, directamente, interferir, compreendes?...
- Não! - responde ela, secamente. - Não entendo nada do que estás a dizer-me!... Estás, sim, é a fazer rodeios!
Puxa vida!... Gerusa era apaixonada por ele desde longa data. Ele o sabia!... Se dissesse a ela que agora andava doidinho por uma donzelinha aristocrata, dona de um par de doces olhos marrom-mel, assim um tantinho amendoados, a amiga, certamente, não aceitaria ajudá-lo de forma alguma!... As mulheres costumavam ser muito cruéis em relação às suas rivais.
- Sabes, Gerusita - diz ele, beijando-a, gentilmente, à face -, preciso que me ajudes, o quanto antes, a encontrar a casa dos meus pais verdadeiros!...
- Ai, e é?... - espanta-se a moça. E prossegue, olhando-o, fixamente, nos olhos, altamente desconfiada: - E posso saber o que te fez mudar, assim, de ideia, tão repentinamente?... Inda outro dia, não querias ver os teus pais nem polvilhadinhos, por inteiro, com ouro em pó!... Entretanto, a que se deveu tamanha mudança, hein, senhor Anjinho!...
- Curiosidade, apenas, Gerusinha... - responde ele, mentindo. Decididamente, não poderia dizer a verdade a ela. Não poderia
dizer-lhe que andava perdidamente apaixonado por uma doce donzelinha da nobreza e que ele, João Manuel, era um pobretão de fazer dó!.-- Como poderia apresentar-se à mocinha, sem oferecer-lhe o conforto e os mimos a que estivera sempre habituada?... Certamente que ela não declinaria o luxo e a riqueza para segui-lo, simplesmente para viverem de amor...
-Ah, sei... - diz ela, fingindo acreditar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 27, 2024 12:07 pm

João Manuel agita-se um pouco mais. Gerusa era por demais desconfiada. A rua ensinara-a a ser astuta. Se lhe dissesse a verdade, a amiga seria capaz de, por ciúme, jamais lhe dizer com detalhes como encontrar a residência dos pais verdadeiros. Agora lamentava, enormemente, o fato de, à época, ter dado pouca atenção aos fatos que Gerusa lhe relatara sobre a sua até então obscura origem. Precisava ser-lhe altamente convincente ou a amiga, por certo, nada lhe diria.
- Gerusinha - diz ele, retomando o assédio -, se me disseres, de novo, tudo o que te contou Madá a meu respeito, e eu, efectivamente, for um ricaço daqueles, fica certa de que te recompensarei regiamente por essas informações!... Juro-te!...
- Ah, é?... - diz ela, levantando-se, abruptamente, e, colocando-se diante dele, diz-lhe, inflamando-se grandemente: - Pensei que fosses mais esperto, caríssimo Anjinho!... Mas, percebo que és um néscio!... Ou pior, que me rebaixas à condição de uma parva qualquer!...
- Oh, não, Gerusinha!... - diz ele e, levantando-se, toma-a aos braços, procurando acalmá-la. - Como podes, agora, pensar tais asneiras de mim?... É certo que não te desampararei se, efectivamente, for herdeiro de alguma fortuna!...
- Pressinto que estás a mentir-me, Anjinho!... - diz ela, altamente magoada.
- Como poderia mentir-te, meu bem?... - diz o rapaz, acariciando-me o rosto com a ponta dos dedos. - Não estivemos sempre juntos?...
-Ainda se tivesses dito que te casarias comigo... - diz ela, baixinho, com os olhos a inundarem-se de lágrimas.
João Manuel olha para o tecto largamente enegrecido pela fuligem do tempo. Segue, aleatoriamente, com os olhos, os arabescos de tisne agregados à madeira do forro, preiteada pelo desfilar dos incontáveis anos. Mais essa agora!... De repente, foi percebendo que a meretriz principiava a fazer-lhe chantagem emocional. Gostava dela e não desejava magoá-la. Mas, sabia também que não amava Gerusa a ponto de desposá-la. Seu coração, já o trazia fortemente comprometido com a outra, a jovenzinha de pele alva como a neve e cabelos acobreados...
- Olha, Gerusinha - diz ele, já se enfarando daquilo. Mas, precisava urgentemente, dar nova direcção à sua vida. E optou, então, por mentir, por enganá-la: - Olha, meu bem, caso-me contigo, sim!...
- Verdade?... - explode Gerusa em efusiva alegria. - Casar-te-ás comigo, então, quando meteres a mão naquele ouro todo?...
- Se o ouro de fato existir... - diz ele, sem encará-la. Estava-lhe sendo horrível ter de mentir para sua leal amiga de desgraceiras.
- É claro que existe!... - exclama a moça, puxando-o pela mão, altamente excitada, e o fazendo sentar-se a seu lado, no leito encardido. - Assegurou-me Madá que és rico, Anjinho, que vens, de fato, da alta nobreza!...
- Então, vai lá, conta-me tudo, com detalhes!... - exclama ele, ansioso até as orelhas.
- Não sem antes me jurares, de joelhos, que te casarás comigo, tão logo metas as tuas mãos naquela dinheirama toda!
- Juro-te!... - responde o rapaz, pondo-se, rapidamente, de joelhos, diante dela. E, juntando as mãos, prossegue, olhando-a nos olhos: - Juro-te, que me casarei contigo, Gerusinha!... Mas, anda, vai lá, solta tudo o que sabes sobre minha origem!...
E, a incauta Gerusa passa a narrar-lhe, com riqueza de detalhes, tudo o que ouvira dos lábios do espectro de Madalena.
- Mas, vê, lá, hein, Anjinho!... - adverte-o Gerusa. - Não te esqueças de que tens um irmão e, ao que nos consta, é ele o assassino de Madá!...
- Crês, mesmo, que tenha sido o meu irmão? - pergunta o rapa altamente intrigado. - Não se teria enganado Madá!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 27, 2024 12:07 pm

- Não, Anjinho - responde Gerusa, agora se deixando tomar pela preocupação. - Madá afirmou-mo com toda a certeza. E, se ele teve a coragem de matar nossa companheira, por que não desejará matar-nos, também?... Creio ser ele um homem deveras perigoso!
- Difícil é-me crer que o sangue do meu sangue esteja por aí a fazer tais barbaridades!... - observa o rapaz, altamente entristecido.
- Não te esqueças de que ele teve uma educação diferente da tua!... - diz a moça. - Na realidade, tu nem sabes que tipo de gente é os teus parentes consanguíneos, não é mesmo?
- Tens toda a razão, Gerusa - concorda João Manuel. - Entretanto, o que devemos fazer?... Ora sinto-me perdido mais que nunca!...
- E, se consultássemos Dom Eusébio outra vez? - sugere a jovem. _ Lembras-te de que ele nos foi de grande valia, ao aconselhar-nos em relação às aparições do fantasma de Madalena!
- Tens razão, Gerusa! - concorda ele. E prossegue, animando-se: -Dom Eusébio terá os sábios conselhos a dar-me!...
- Não vais levar-me contigo?... - pergunta ela ao ver que ele se predispunha a sair sem convidá-la. Principiava a magoar-se. João Manuel já começava a se esquecer dela...
- Oh, claro!... - exclama o rapaz, de repente percebendo que a magoara. - Por certo que vais comigo até Dom Eusébio, querida!
No íntimo, ele já começava a perceber que não lhe seria fácil desvencilhar-se da antiga parceira. Mas, que fazer, se precisava dela, pelo menos naquele momento?... Depois, com mais tempo, deveria livrar-se dela de vez, ou teria sérios problemas com Teresa Cristina. Como a jovem aristocrata reagiria, sabendo que ele mantinha um outro caso?... E nem era sua pretensão continuar enganando a ambas. No momento certo, teria de deixar Gerusa para sempre. E, a jovem prostituta teria de entender. Ele gostava muito da velha companheira de miséria e de abandono; sentia-se bem a seu lado; era-lhe imensamente grato pelas inúmeras vezes em que ela o socorrera, nos momentos difíceis da sua vida, mas que fazer, se ele não a amava?... Amor era coisa diferente... Era coisa séria!...
- Apressa-te, então!... - diz ele, estendendo-lhe a mão. - Apanha o teu chapéu e a capa...
Minutos depois, caminhavam ambos, lado a lado, subindo a ladeira do porto, rumo a tradicional bairro da cidade. Iam em busca de Dom Eusébio...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 27, 2024 12:07 pm

Capítulo 10 - Dramático reencontro
Diante da mansão episcopal, João Manuel e Gerusa, um pouco ofegantes pelo esforço da longa marcha que haviam empreendido ladeira acima, param e olham para o imenso portão de grades negras e altas. Após trocarem ligeiro e significativo olhar, o rapaz, resoluto e com a mão firme, acciona a sineta que tilinta seu som metálico e agudo, dando o aviso aos de dentro da casa. Em pouco, o padre-gigante apareceu, arrastando seus pesados pés.
- Que desejais? - pergunta o religioso, sem um mínimo de animação a se lhe estampar aos olhos baços e quase a se sumirem no recôndito de umas pálpebras pesadonas e sempre tomadas de eterna sonolência.
- Desejamos avistar-nos com Dom Eusébio, senhor... - apressa-se em responder João Manuel. - Dizei-lhe, por favor, que sou Anjinho...
O padre-gigante emite um grunhido ininteligível e se volta para o interior da mansão, com sua costumeira fleuma, como se tivesse que raciocinar um pouco, antes de mudar os pesadíssimos passos. Uns bons vinte minutos escoaram-se, até que o homem estivesse de volta, e, sem qualquer expressão ao rosto, franqueia a entrada a ambos os jovens que lhe aguardavam o retorno, cheios de ansiedade. E, a seguir, e, sempre dentro da sua paciente lerdeza, o padre-gigante condu-los até o gabinete do bispo.
Dom Eusébio recebe-os de braços abertos:
- Meus amiguinhos!... Que satisfação tê-los de volta!...
- Vossa bênção, Dom Eusébio!... - exclamam João Manuel e Gerusa, ajoelhando-se diante do bispo.
- E a que devo a honra de vossas visitas?... - pergunta o prelado, convidando-os a sentarem-se. - Quando aqui viestes da outra vez, tínheis assunto inusitado a resolver. E, então, obtivestes algum resultado?
_ Sim, Dom Eusébio - responde o rapaz. - E nem supondes a que ponto chegamos!...
_ Realmente?... - diz o bispo, altamente interessado. - Por certo, então, avistastes-vos, de novo, com o espectro da vossa amiga?
_ sim - responde Gerusa, um pouco tímida, diante do religioso -, Madá relatou-nos coisas interessantíssimas, senhor.
- E, que tipo de coisas contou-vos o fantasma?... - pergunta o bispo, a demonstrar profundo interesse. E, depois, retraindo-se um pouco, prossegue, desculpando-se: - Oh, perdoem-me, crianças, pela minha insistência!... Contem-me, se assim o desejarem, é claro!... E que me torno deveras curioso, diante de tais coisas que, realmente, interessam-me sobremodo!... E, então, acabo por atropelar as boas maneiras!... Por favor, ponde-vos à vontade!...
- Não há do que vos desculpardes, senhor!... - diz João Manuel. E prossegue, incisivamente: - Se foi exactamente por este motivo que vos procuramos!... O espectro de Madalena revelou-nos tudo sobre a minha origem, Dom Eusébio!... Ora sei quem são meus pais verdadeiros!...
- Que dizes, Anjinho?!... - exclama o bispo, levantando-se, de repente. E, rodeando a secretária onde estivera acomodado até então, posta-se ao lado do rapaz e lhe põe a mão, paternalmente, ao ombro. -Descobriste tudo, então?...
- Sim, senhor - responde o rapaz, olhando firme nos olhos do velho religioso. - Sou filho de aristocratas!...
-Bem que eu imaginava!... - diz o bispo, voltando a sentar-se junto à secretária. E prossegue, demonstrando profundo interesse: - Mas, conta-me, conta-me tudo, meu rapaz!...
- Não sei se tivestes ocasião de, alguma vez, terdes observado a marca que ostento à espádua... Não?... Pois, digo-vos, senhor, que se trata do brasão da minha família!... Os Barões da Reboleira!...
- O quê?!... - exclama o bispo, com os olhos estatelados. E, desta Vez, levantando-se de um salto, novamente rodeia a secretária, num átimo, e se põe junto do rapaz. - Tira a tua camisa!... - ordena a João Manuel.
O rapaz, obedientemente, desnuda-se e lhe exibe o dorso. O prelado estuda-lhe, atentamente, a marca tatuada acima, na espádua direita.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 27, 2024 12:07 pm

- Pelos céus!... - exclama o bispo, levantando os olhos para o Alto após minucioso exame da tatuagem que o rapaz exibia às costas ' Realmente é o brasão da família do Manuel António]... Tu és Francisquinho, o filho que lhe roubaram quando ainda era um mamão!..
- Francisquinho!... - ri-se João Manuel. - Então esse é o meu nome verdadeiro?...
- Deus do céu!... - exclama Dom Eusébio, altamente agitado, agora andando em círculos pelo gabinete. - Resolve-se, por fim, o enigma dessa terrível tragédia!... Tive-te todo o tempo, sob meus olhos, e não liguei os pontos!... Pobre Rosália!... Durante toda a tua vida buscaste por teu filho, que a maldade de um monstro roubou-te dos braços, ainda bebê, e morreste, sem que pudeste deitar os teus sofridos olhos uma outra única vez sobre ele!...
- Já morreu, então, a minha mãe verdadeira? - pergunta João Manuel, com os olhos a encherem-se, repentinamente, de lágrimas.
- Sim, querido!... - exclama Dom Eusébio, abraçando-se ao rapaz que se levantara e se atirara aos braços da única pessoa que lhe dedicara um pouco de afeição, em sua desditosa infância no orfanato. Sim, morreu dona Rosália, faz pouquíssimo tempo!... Finou-se sobre grande sofrimento, tremendamente infeliz, por te ter perdido, quando ainda eras um pequerrucho de poucos meses!... E, quanto procuraram por ti os teus pais!... Quanto sofrimento!... Quanta desgraça abateu-se sobre aquela casa, após o teu misterioso desaparecimento!... Teu pai ainda chora o teu sumiço e se fina, também, aos poucos. Se não te apressares, é bem possível que nem ele terás o prazer de conhecer!... Padece de mal incurável e lhe restará, por certo, pouquíssimo tempo de vida!... Oh, Francisquinho!... - exclama o bispo, acariciando-o e, beijando-o, ternamente, às faces molhadas pelo pranto, pareceu mortificar-se por não ter sido capaz de ter reparado, a tempo, aquela monstruosidade que mãos desumanas houveram feito com o menino. E prossegue, lamentando-se enormemente: - Oh, Deus do céu, por que não prestei mais atenção em ti?... Entretanto, tu já estavas crescidinho, quando te deixaram à nossa porta - devias ter já uns cinco ou seis anos -, e eu te havia visto apenas por pouquíssimo tempo, antes, na pia baptismal, nos braços da tua madrinha, a velha viscondessa Regina D'Arrobai e Abranches... E, como sabes, os bebés são-nos trazidos todos engalanados nessas extravagantes roupas que se lhes metem para os baptizados que nós sacerdotes, mal se lhes divisamos as cabecinhas onde derramamos água benta!.....- E depois, eram tantos os enjeitados no orfanato!... Quando eu lá ia, mormente pelo Natal, tinha de dividir-me entre aquela enormidade de rostinhos famintos de atenção e de carinho que muito pouco me
detive de fato, a reparar nas tuas feições!... Imperdoável esse meu descuido!... E a dizer que fui eu a baptizar-te!... Francisco de Assis Ramalho e Alcântara, o filho mais novo dos Barões da Reboleira!... E olhando-te bem, agora, trazes, realmente, as feições de Rosália, a tua mãe!.. - O porte, tu o tens do teu pai, o barão Manuel António. E, ainda, mas feições lembram um pouquito as do teu irmão, João Miguel...
Ao ouvirem o nome do irmão, João Manuel e Gerusa trocam-se rápido, mas significativo olhar. Entenderam que, naquele momento, nada deveriam dizer ao bispo sobre a terrível suspeita que caía sobre a cabeça de João Miguel. Primeiro era preciso restabelecerem-se as coisas, ordenarem-se os factos e, só mais tarde, investigar-se o caso seriamente.
- Devemos, urgentemente, ir em busca do teu pai!... - observa Dom Eusébio, tocando a sineta para chamar o padre-mordomo. - Precisamos apresentar-te a ele, antes que seja tarde demais!... As últimas notícias que dele tive não foram nada animadoras: teu pai fina-se a cada dia!...
Depois de alguns minutos, o padre-gigante apresenta-se.
- Irmão Agostinho, manda que preparem o carro!... - ordena-lhe o bispo. - Sairei, imediatamente, para Sintra!...
O padre-mordomo emite seu ininteligível grunhido e dá meia-volta, saindo em seguida, sempre fleumático.
Pouco depois, os três - Dom Eusébio, João Manuel e Gerusa -sacolejavam na grandiosa carruagem episcopal que corria célere, em direcção da vizinha e bem próxima cidade de Sintra, onde residia o Barão Manuel António Ramalho e Alcântara.
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- Como pensais que me receberá o meu pai, Dom Eusébio! - pergunta João Manuel, altamente apreensivo com aquele reencontro.
- Talvez esse seja um dos maiores dias da vida do teu pai, meu rapaz! - responde, grave, o bispo. E prossegue, olhando-o nos olhos: - Tu nem podes aquilatar o quanto aquele pobre homem procurou por ti, durante esse tempo todo!... Como vasculhou o país, cidade por cidade, aldeia por aldeia!... Até pela Espanha e pela França andou a procurar por aí!... E pagou investigadores para percorrerem a Inglaterra, a Holanda e até à Suíça, à Alemanha e à Áustria mandou que te buscassem!... Tudo em vão!... E a pensar que tu andavas bem pertinho de todos nós, bem debaixo das nossas fuças e não te enxergávamos!... Oh, como tudo isso foi por demais cruel, Anjinho!... E, como sofreu a tua mãe. a definhar a cada dia que passava, e ao constatar, cada vez mais triste, que n obtinha nenhuma notícia concreta sobre o teu paradeiro!... Quanto rezou e quanto chorou aquela mulher!... Quantas promessas fez aos santos para que te trouxessem de volta!... Oh, meu rapaz, ministrei-lhe a extrema unção e percebi que seus olhos jamais deixaram de perscrutar, por um só instante, a porta, mesmo in extremis!... Até seus derradeiros minutos de vida, ela os devotou a ti!... Apagaram-se as luzes dos olhos da tua mãe, mas, até o fim, eles se mantiveram voltados, ansiosamente, para a porta!... Esperavam a tua volta!...
Lágrimas pungentes inundavam o rosto de João Manuel. Também ele, ultimamente, andara a pensar nos pais verdadeiros. Tentava imaginar-lhes o porte, adivinhar-lhes as fisionomias, as vozes, os gestos... A lembrança da mãe, em especial, tocava-o muito. Entretanto, desanimava-se. Nenhuma referência possuía deles; nenhuma mesmo, apenas um branco, um vazio enorme, triste...
- E meu irmão, Dom Eusébio?... - arrisca-se a perguntar o rapaz. -Como pensais que me receberá?...
- Teu irmão, Anjinho, também ajudou a procurar-te, incansavelmente, pelos últimos tempos!... - responde o bispo. - Tu não podes imaginar o quanto João Miguel ama-te, pois nos deu mostras do amor que sempre devotou a ti, mesmo sem saber se um dia iria encontrar-te!... Também para ele será inestimável a surpresa e motivo de grande felicidade o teu ressurgimento!... Isso posso garantir-te, com toda a certeza!
João Manuel e Gerusa trocam-se um olhar profundo, cheio de entendimentos. O bispo nada conhecia sobre o real carácter de João Miguel. Perceberam, então, que o tal irmão deveria ser um homem deveras muito perigoso, pois era capaz de dissimular seu carácter cruel até mesmo para uma pessoa como Dom Eusébio, cuja inteligência e perspicácia eram, sabidamente, insuperáveis.
Algum tempo de viagem, e a carruagem imponente estacionava diante da escadaria de mármore branco da mansão dos Barões da Reboleira. Estupefactos, João Manuel e Gerusa entreolham-se. Custavam a crer. Então, era naquele luxo todo que moravam os pais dele?... Se fosse mesmo verdade, tratava-se de gente realmente graúda.
Avisada por um criado sobre a chegada das visitas, Amélia, a diligente governanta da casa, aguardava-os no alto das escadarias. Com olhos altamente perscrutadores, analisa o pequeno grupo que galgava as escadarias. Conhecia a carruagem episcopal e, também, Dom Eusébio. Mas o casal de jovens, não. O rapaz, entretanto, parecia-lhe tão familiar... Um arrepio, então, percorre-lhe a espinha de alto abaixo. Deus do céu!... Seria possível?... O coração principia a bater-lhe descompassado. Jesus Cristo!.. -- Não, não poderia haver qualquer dúvida!... Aquele jovem era bem parecido com João Miguel!...
- Vossa bênção, Dom Eusébio!... - exclama a mulher com a voz trémula, genuflectindo-se, ligeiramente, diante do religioso e beijando, respeitosamente, o anel da mão que ele lhe estendia.
- E o senhor barão, como se encontra? - pergunta o bispo.
- Sua Excelência acha-se mal, senhor!... - responde a governanta, olhando, insistentemente, para o rapaz, com o canto dos olhos. - Oh, mas fazei o favor de entrar, Excelências!... - exclama ela, franqueando-lhes a entrada ao salão de visitas.
- Terá o senhor barão condição de receber-nos, senhora dona Amélia? - pergunta Dom Eusébio.
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