LUZ ESPÍRITA
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 7:17 pm

- Cuidai dela, Dom Eusébio!... - diz o rapaz, soprando as palavras molhadas pelo pranto. - Quando eu aqui não mais me achar, tomai-a sob vossos amorosos cuidados!...
- Por certo que assim farei, meu querido!... - diz o bispo, afagando-lhe, amorosamente, as espáduas, enquanto o abraçava paternal e condoidamente. - Fica sossegado onde quer te coloque a bondade de Deus! ... Mas, por ora, confia e confessa os teus pecados, se assim o desejares!... Olha que as horas avançam e, infelizmente, virão buscar-te a qualquer momento!...
O rapaz enxuga as lágrimas com as mãos e faz um sinal afirmativo com a cabeça. Dom Eusébio, então, toma da valise que trouxera consigo e, apanhando a estola e a tunicela,1 paramenta-se para celebrar o rito católico. O rapaz, humildemente, ajoelha-se diante do bispo.
- In nomine Patris et Fillii et Spiritus Sancti...2 - diz o religioso, enquanto se persigna solenemente. Sua voz soa firme, mas pejada de tristeza. Depois, pondo as mãos sobre a cabeça de João Manuel, prossegue: - Abre o teu coração, filho...
E, quase num murmúrio, entrecortado por intensos suspiros, ouve-se a voz sentida de João Manuel. Fiel, obedecia aos ritos nos quais se criara-
Pouco depois, passos cadenciados ouviam-se vindo do corredor, pequena tropa de milicianos aproximava-se.
- Abri a porta, carcereiro!... - ordena o comandante da pequena escolta. Dom Eusébio abraça-se a João Manuel. O derradeiro abraço. Suas lágrimas misturam-se.
- Vai, meu filho!... - murmura o bispo, osculando-lhe a face. - Que Deus te acompanhe os passos!...
A um comando do capitão, dois soldados manietam o condenado e o fazem pôr-se em marcha com um empurrão. João Manuel tinha as pernas travadas pelo terror. Não conseguia mudar os passos.
- Arrastem-no!... - ordena, ríspido, o comandante. Literalmente arrastado por dois dos milicianos, a figura patética de
João Manuel vencia os extensos e gélidos corredores da cadeia pública de Lisboa. Através da interminável sucessão de grades, rostos apareciam da penumbra das celas e, olhando entre curiosos e aterrados, assistiam ao ligeiro desfilar do condenado à morte. Discretamente, persignavam-se e, ajoelhando-se, murmuravam sentidos augúrios à passagem de João Manuel:
- Que Deus te acompanhe!...
- Jesus te dê a glória!...
- Louvado seja Nosso Senhor!...
- Vai em paz!...
A chegada ao pátio onde se erguia o patíbulo, o terror invade-o por completo. As mandíbulas travam-se-lhe; intenso tremor apodera-se dele; mal consegue manter os olhos abertos, altamente ofendidos pela abrupta claridade recebida, depois de vários meses mantidos, exclusivamente, sob a penumbra. Tautocronamente, todas as cabeças que se assentavam no pátio, diante do patíbulo, voltam-se para a trágica figura que, literalmente, era arrastada para o cadafalso. Alguns dos poucos amigos do réu penalizavam-se; outros, sem terem qualquer vínculo com o condenado ou com a vítima, apenas sentiam mórbido prazer em assistir ao tétrico espectáculo; outros, ainda, mormente os parentes e os amigos da assassinada, sentiam-se encher da auto-satisfação pela pretensa justiça que se fazia.
João Manuel, entretanto, sentia o terror enregelar-lhe o sangue-músculos travaram-se mais e mais, chegando ao ponto de suas vistas principiarem a escurecer-se: uma síncope nervosa estava na iminência de sobrevir-lhe. Os milicianos, literalmente, prosseguiam arrastando-o em direcção do patíbulo. Dom Eusébio, com as feições altamente graves e tristes, acompanhava o doloroso cortejo, empunhando um crucifixo Tinha os olhos baixos e se pressentia que rezava com fervor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 7:17 pm

Uma vez galgada a pequena escada que dava acesso ao patíbulo, o condenado foi colocado diante do fatídico nó que pendia do braço da forca, e um beleguim adiantou-se e leu a condenação:
"Por ordem de Sua Majestade Real, a Sereníssima Senhora Dona Maria I, Augusta Soberana dos Reinos Unidos de Portugal e Algarves, cumpra-se a execução de morte por enforcamento do réu julgado e condenado, o senhor Francisco de Assis Ramalho e Alcântara, Barão da Reboleira, pelo truculento assassinato da excelente senhora dona Manuela Albuquerque e Meneses, mui digna Baronesa da Ajuda. Lisboa, aos 12 dias do mês de dezembro do ano da graça de 1792."
Após a leitura da sentença de condenação, com um sinal de cabeça, o meirinho convida o carrasco que se mantinha a postos ao lado do poste da forca. João Manuel achava-se totalmente tomado pelo terror. Suas vistas turvavam-se; seu coração batia descompassado. Num última tentativa, nos seus derradeiros momentos de vida, tomado de desespero extremo, buscou com os olhos a diminuta plateia que se colocava diante dele. Nada conseguia ver, além de um borrão de rostos disformes, irreconhecíveis; entretanto o desejo de vê-la, pela última vez, causava-lhe tremendo anseio ao peito. O desespero aumentava; precisava vê-la!... Oh, Deus!... Não!... Não podia ir-se deste mundo sem a' menos ver seu amor, mesmo que fosse de longe, pela última vez!..-Entretanto, a forte luminescência machucava-lhe os olhos; tantas lágrimas de dor e de desespero haviam-nos maltratado bastante, ferindo-o sobremaneira!... Nada conseguia ver; apenas manchas disformes. Então a dor extrema, lancinante, a varar-lhe o peito: a derradeira esperança de rever o seu amor esvaia-se!... Oh, desdita cruel!... Viera ela?... Estaria ali, no meio daquelas pessoas?... A dúvida ficara a roer-lhe, fundo, alma. Diante da impossibilidade de certificar-se, fecha, então, os olhos chora. Chora amargamente...
_ Que Deus te dê a paz eterna, meu filho!... - ouve a voz do amigo que se aproximava pela última vez. - Beija os pés do Sublime Mestre!... _ diz Dom Eusébio, apresentando-lhe Jesus Crucificado.
João Manuel olha para o Crucificado com os olhos embotados pelas lágrimas. Pouca coisa pôde ver, além de borradas expressões de dor suprema que exibiam a representação de Jesus pregado ao madeiro. E, fazendo descomunal esforço para dobrar ligeiramente o pescoço, fortemente travado pelos espasmos nervosos, consegue chegar os lábios ressequidos aos pés da imagem de Jesus e os beija. Ia tentar pronunciar ligeira oração, mas o carrasco, obedecendo a uma ordem do meirinho, adianta-se, abre mais o nó da corda que balançava no ar, ajusta-o à garganta de João Manuel e, em seguida, tomando de negro capuz, cobre-lhe, bruscamente, a cabeça. Os tambores de pequena fanfarra principiam a rufar estrondosamente. Os olhos da diminuta assembleia acompanham, então, os movimentos do carrasco. O truculento homem que, excepção dos olhos, durante o tempo todo, mantinha a cabeça completamente coberta por um capuz de couro, depois de aferir, minuciosamente, se a corda se achava devidamente colocada ao pescoço do condenado e se o capuz cobria-lhe totalmente a visão, encaminha-se com passos firmes ao pé do poste da forca onde se achava a alavanca do alçapão e, a um comando de cabeça do beleguim, dispara o mecanismo. Os tambores rufam mais forte. Foi num átimo. João Manuel, por sua vez, tinha o corpo endurecido, transido pela excessiva carga emocional, gerada pelo medo e pela descomunal aflição. O capuz cobria-lhe a visão, elevando-lhe o desespero às exorbitâncias do insustentável. E, num milésimo de segundo, o gelo do terror extremo a percorrer-lhe o corpo todo. Ouve, então, o estrondoso rufar dos tambores e, de repente, o vazio sob os pés!... A princípio, enquanto ajustavam-se, traccionados pelo peso do corpo, os grosseiros nós da corda judiaram-lhe da pele do Pescoço, arranhando-a, profundamente, como se possantes garras de felino contumaz cravassem-se-lhe, impiedosamente, à garganta. Sentiu o pescoço incendiar-se!... Quanto tempo durou aquela agonia?... Balançava-se no ar, em extremo desespero e, quanto mais se agitava, mais os nós se lhe arrochavam, como se lhe entrassem, cruamente, carnes adentro. Deus do céu!... Aquilo não tinha fim?... Lenta é a agonia dos que morrem pendidos duma forca!... Dentro do intenso desespero, desejou levar as mãos à garganta, para livrar-se da dor lancinante, mas se achava manietado!... Quanto tempo debateu-se, qual sinistro Mário a dançar o macabro bailado, ali diante da pequena plateia, que a tudo assistia, em silêncio, aterrorizados uns, indiferentes outros e, ainda plenamente satisfeitos aqueles que o julgavam o assassino de Manuela?..
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 7:17 pm

Minutos terríveis!... Eternos minutos aqueles, que não se escoavam nunca!... Depois, finalmente, o intenso e derradeiro trauma, ao ter pescoço abruptamente quebrado!... Era o fim da horrenda apneia do estertor agónico!... Ligeiro estremecimento segue-se e, então, só o es curo, o silêncio...
João Manuel sentiu intensa sonolência invadi-lo. Quis reagir manter-se desperto, mas não conseguiu. Apenas ao longe, muito longe ouvia o rufar dos tambores e, depois, nada...
Dum canto, duas figuras singulares a tudo acompanhavam. Não faziam parte da selecta plateia, convidada para a execução de João Manuel. Eram duas sombras que, em silêncio e recostadas a um dos muros que ladeavam o pátio, a tudo haviam assistido.
- Vem!... - convida Manuela a Madalena. - Aproximemo-nos e nos apoderemos de Anjinho, antes que outros o façam!...
- Sim!... - concorda a antiga prostituta, olhando, preocupada, em redor. - Os abutres já começam a rodear a carniça!...
Ainda desacordado, o espírito recém-desencarnado pairava pouco acima do corpo que os milicianos já haviam retirado da forca. Tinham colocado o cadáver estendido sobre o cadafalso e o tinham coberto com uma lona encardida, enquanto aguardavam a chegada da carroça que o transportaria ao velório.
- Anjinho!... - chama Manuela, delicadamente, tomando as mãos de João Manuel que a tudo parecia alheio, mergulhado em profunda sonolência. - Anjinho, acorda!... - insiste ela.
- Inútil chamar por ele, senhora!... - observa Madalena. - Ele ainda não vos pode ouvir!...
- Vem, vamo-nos daqui!... - diz Manuela. - Levemo-lo para a segurança da nossa casa!...
E, não sem muita dificuldade, as duas mulheres tomam João Manuel aos braços e o carregam para longe dali.
Neste mesmo tempo, Dom Eusébio houvera descoberto o rosto do cadáver do rapaz e, ajoelhando-se-lhe ao lado, olhava-o, cheio de tristeza. O defunto trazia a face completamente arroxeada pelo terrível trauma do enforcamento. E, cheio de intenso pesar, o bispo toma-lhe as mãos ainda quentes e as beija, ternamente.
- Resquiescat in pace!... - murmura ele, fazendo-lhe minúsculos sinais da cruz à testa, aos lábios e ao dorso das mãos.
Bárbara e Jerónimo Dantas e Melo aproximam-se.
- Que faremos com o corpo, senhor Dom Eusébio?... - pergunta Bárbara.
- Já reclamei, de antemão, o corpo do pobrezito ao senhor comissário-geral da milícia, senhora marquesa - responde o bispo. - Agora é questão de trasladá-lo até a mansão episcopal, onde pretendo velá-lo, pois presumo que o irmão não o quererá receber em sua casa!...
- Por certo que não, Excelência!... - adianta-se o Marquês das Alfarrobeiras. - E, se desejardes usar a nossa residência para tal finalidade, ponho-a à vossa inteira disposição!...
- Agradeço-vos a gentileza, senhor marquês - responde Dom Eusébio.
- Mas, como já obtive, também, autorização dos meus superiores para realizar lá o velório de João Manuel, fico-vos imensamente grato!... Só não me permitiu o cardeal que rezasse missa de corpo presente na catedral ou em qualquer das igrejas, para não se afrontarem as autoridades civis!... Não se admitem os sacramentos póstumos aos criminosos executados!... Entretanto, pretendo rezar-lhe um réquiem logo mais, sem muito alarde, apenas com os amigos mais próximos!...
Pouco depois, um carroção solicitado pelo bispo aproxima-se e diligentes serviçais recolhem o cadáver do moço para transportá-lo até o bispado. O sol ia alto no céu; era, já, quase o meio do dia.
- Vamo-nos, senhores - convida Dom Eusébio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 7:18 pm

O pátio, a essa altura, encontrava-se totalmente vazio. Apenas um velho mantinha-se a distância, com a cabeça descoberta. Muito triste, acompanhava com os olhos o carroção que, lento, saía por um dos Portões do pátio, levando o corpo de João Manuel.
~ Vai-te com Deus, Anjinho - murmura Mestre Branquinho, enxugando, com a ponta dos dedos, as lágrimas que lhe mareavam os olhos.
- Vai-te com Deus, meu amigo...
______________________________________________________________________________________________
1. Espécie de dalmática ou pequena túnica usada pelos bispos entre a alva e a casula, n celebração solene.
2. "- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...", em latim.
3. Referência a espíritos vampirizadores que se aproveitam dessas ocasiões para tirarem proveito de recém-desencarnados, com o propósito de sugar-lhes resquícios de fluídos densos que, eventualmente, ainda lhes permaneçam agregados ao perispírito.
4. “– Descansa em paz!...”, em latim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 7:18 pm

Capítulo 27 - Revisitando o antigo lar
João Miguel, altamente ansioso, desceu, saltando aos pares os degraus da imponente escada de mármore branco que dava ao andar superior da mansão. No escritório, aguardava-o visita por ele esperada fazia horas.
-E então, senhor doutor António da Cruz!... - pergunta ao advogado, enquanto lhe estendia a mão para cumprimentá-lo. - Que factos trazei-me?
-Os melhores, senhor Barão da Reboleira!... - responde o advogado, sentando-se numa poltrona que o outro lhe indicava. - Os melhores!...
-Tudo consumado, então?... - pergunta João Miguel, sem procurar disfarçar, por um só instante sequer, a intensa ansiedade que o consumia.
-Consumatum est.'... - brinca o advogado, rindo-se. - Tudo acabado, senhor barão!... O assassino da Baronesa da Ajuda, a esta hora, já queima nas profundas do inferno!... Estive presente ao enforcamento, conforme me solicitastes!...
-Esplêndido!... - exclama João Miguel, satisfeitíssimo, enquanto enchia, diligentemente, duas taças de vinho sobre pequeno aparador que havia no escritório. E, estendendo um dos copos ao advogado, eleva o outro, a seguir, em brinde, e exclama, vazando felicidade: - Ao certeiro sucesso da nossa empreitada!...
Neste mesmo instante, bem perto dali, no antigo aposento que João Manuel ocupava na casa, duas sombras confabulavam. Haviam acomodado o espírito do rapaz, ainda tomado de profundo sono, sobre o leito que antes lhe pertencera, por pouquíssimo tempo, naquela casa.
-Anjinho demora a acordar-se!... - exclama Manuela, mantendo a cabeça do rapaz apoiada ao colo, enquanto lhe acariciava, ternamente, o rosto esquálido.
-Isso é assim mesmo, senhora!... - observa a jovem prostituta. -Da forma como ele morreu, tendo o prévio conhecimento de tudo, teve as forças todas minadas pelo desespero e pelo terror!... Quanto a nós duas, fomos pegas de surpresa pelo covarde punhal de João Miguel; nada esperávamos, fomos surpreendidas pelo imprevisto e por isso é que recobramos, quase de imediato, a consciência do lado de cá!... Entretanto, como bem podeis observar, nem todos passamos pelo mesmo processo!... Há os que dormem!... Pelo tempo que aqui já me encontro, pude constatar que alguns dormem por algumas horas, apenas; outros, entretanto, dormem por dias e, ainda, há os que nunca vi acordados!... Presumo que durmam, mesmo, até durante anos!...
-Deveras?... - pergunta, altamente impressionada, a antiga Baronesa da Ajuda. - E se Anjinho não despertar mais?...
-Não sei, senhora... - responde, reticente, a outra. E, fixando, ternamente, o rosto do amigo que, aparentemente, dormia, prossegue: -Que judiação!... Vede como lhe deixaram o pescoço!... Pobrezinho!...
-Não lhe achas as feições altamente desfiguradas?... - observa, preocupada, Manuela. - Os lábios intumescidos, os olhos inchados... E a garganta, então?...
-Lastimável, senhora!... - diz Madalena, altamente condoída do deplorável estado em que se encontrava o rapaz. E prossegue, grandemente penalizada: - E nem não sei se algum dia voltará a falar!...
-Que atitude, então, devemos tomar em relação ao pobrezito?... -pergunta Manuela.
-Não sei, senhora... - responde a mocinha. - Mas, penso que a única solução será esperar.
-Concordo - observa a outra. - Como nada sabemos sobre o que, de facto, sucede-nos, depois que morremos, por ora, o melhor que temos a fazer será aguardar o passar do tempo.
Os dois espíritos calam-se. Dir-se-ia que íntimas cogitações invadiam-lhes o pensamento. João Manuel permanecia adormecido, com a cabeça apoiada ao colo de Manuela.
- O demónio pensa, finalmente, ter conseguido o seu intento!... -observa Madalena, quebrando o ligeiro silêncio que surgira entre ambas. - Vi, da janela, quando, há pouco, o advogado, que lá se encontrava a assistir à execução, veio a correr, para trazer-lhe a notícia!.. Neste momento, o desgraçado do assassino deverá andar a dar pulos de tanta felicidade!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 7:22 pm

-Entretanto, como se engana ele, minha cara!... - diz Manuela, abrindo terrível sorriso, pejado de ironia. E prossegue, com altíssima dose de sarcasmo à voz: - Demos-lhe, apenas, pequena trégua!... Agora, somam-se três os cadáveres a pesar-lhe sobre os ombros!... Assim que Anjinho despertar, no entanto...
-Assim que Anjinho despeitar, assombrar-se-á, por certo, da nova realidade em que se encontra, senhora!... - exclama a mocinha, rindo-se.
- Todos nós nos assombramos, ao nos acordarmos do lado de cá!...
- Sim, e o que pensamos ser o fim, na realidade, é um recomeço!...
- ajunta Manuela.
-E, no momento em que ele descobrir que não existe morte coisa nenhuma, e que permanecemos mais vivos que nunca, somar-se-á a nós e então...
-A forra!... - exclama Manuela, gargalhando. - Enlouqueceremos aquele bandido, sem nenhuma piedade!...
- E, para arrematar, insuflar-lhe-emos a constante ideia de suicídio!... - emenda a mocinha, exultando-se sobremaneira.
- Sim!... Sim!... - concorda Manuela. - Tenho ânsias incontroláveis de atormentá-lo, incessantemente, sem lhe dar tréguas, por um só instante sequer!... Ah, João Miguel, tu não perdes por esperar!...
Neste comenos, João Manuel agita-se em seu sono.
- Vede, senhora!... - exclama a mocinha. - Ele se mexeu!...
- Sim!... - responde Manuela, animando-se. - Anjinho!... Anjinho!-Acorda!... - insiste ela, sacudindo-o de leve.
O rapaz emite fracos gemidos. As mulheres entreolham-se, cheias de expectativa.
- Ele está a acordar-se, senhora!... - brada, contente, a antiga prostituta.
- Sim!... Sim!... - concorda Manuela. - Acho que recobra a razão!... -e prossegue, incitando-o: - Anjinho!... Vamos, homem, acorda!.-Anjinho!... - e lhe sacode, levemente, os ombros.
O rapaz emite uma sucessão de fracos gemidos, revira-se, contorce-se, ligeiramente, mas volta a cair em sono profundo.
-Dorme outra vez, senhora!... - observa Madalena, desapontando-se.
-Sim - concorda a outra. E prossegue, resignando-se: - Deixemo-lo dormir por um pouco mais!... O pobre estava um trapo!... Viste como os esbirros tiveram de arrastá-lo até o patíbulo?...
-Sim, e acho que lhe entendo o desespero extremo!... Passar por provação tão monstruosa, como essa a que se afligem os homens, deverá ser algo deveras estarrecedor!... - observa a mocinha. E, depois de cismar, profundamente, por um tempo, com os olhos parados no vazio, prossegue: - As autoridades deveriam colocar-se, ao menos uma vez, na pele dos que condenam à morte!... Será que se acha, realmente, aí, a solução para resolverem-se os crimes tenebrosos?... Se assim fosse, ninguém mais tiraria a vida a ninguém; ninguém afligiria sofrimento cruel a ninguém; contudo, não é assim que ocorre: a violência recrudesce a cada dia, e os homens embrutecem-se, mais e mais, ao passar do tempo... E os que se condenam, inocentemente, como acabam de fazer a Anjinho?... Poder-se-á, acaso, reparar o erro?... Vede, senhora, este exemplo: o verdadeiro culpado de tudo se acha impune!... - e prossegue, rilhando os dentes de ódio: - Ah, João Miguel!... Tu nem podes sequer cogitar o que te aguarda!... Se te furtaste à justiça dos homens, à nossa, entretanto, não escaparás!... Semeaste tantas dores, tantas aflições, que se avizinha a hora de empunhares a foice e de encetares a tua fatídica colheita!...
Neste mesmo instante, ainda trancado em seu escritório, João Miguel divagava. Despedira o advogado fazia pouco e, bebericando de sua taça de vinho, sorria, enquanto olhava as pequeninas gotas de chuva que batiam sobre o vidro da janela fechada. Os pingos de água gelada chocavam-se contra a vidraça e escorriam como lágrimas sobre uma face.
- Tudo acabado!... - murmura ele, sorvendo grosso gole de vinho. E sorrindo, deixa o pensamento fluir: "Agora, vender este mausoléu, o mais rápido possível, e me ir de vez para Lisboa!... Ah, como odeio este lugar!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 7:22 pm

Finalmente, ver-me-ei livre daqui!...". Depois, seu pensamento toma outro rumo: Teresa Cristina. "Agora urge que me ocupe de ti, meu tesouro!...", e abre novo sorriso de satisfação: "Sei que te achas um pouco amarrotada pelo baque que sofreste, mas és jovenzinha e logo te erguerás, como sói às flores, após a tempestade!... Ao surgir do sol, soerguem-se, a exibirem, novamente, a beleza e o esplendor!... Dou-te um pouco de tempo para te refazeres deste vendaval!... Depois, então, farás parte da minha vida, para sempre!..."
Os pingos da chuva passam a tamborilar um pouco mais forte na vidraça. João Miguel levanta a gola do grosso casaco de pele de furão que envergava. Sentia-se enregelar ali, no escritório, sem calefacção.
- Maldito inverno!... - pragueja ele, levantando-se. Ia em busca do aconchegante calor do fogo da lareira de seu quarto.

* * * * * * *
Na manhã seguinte ao dia do enforcamento de João Manuel e, após lhe terem velado o corpo, noite afora, e de Dom Eusébio lhe ter encomendado o corpo, em singelo ritual, na capela da mansão episcopal, sepultaram-no em jazigo comprado às expensas dos Marqueses das Alfarrobeiras.
-Fizeste-me gastar pequena fortuna com o funeral daquele enjeitado!... - reclama Jerónimo Dantas e Melo à esposa Bárbara, no carro, enquanto retornavam a casa, depois da inumação do corpo do rapaz.
-Ora, cala-te, homem!... - repreende-o a mulher. E fechando, severamente, o cenho, prossegue: - Dá-te por satisfeito de o teu crime ter passado encoberto por esses anos todos!... Ou crês que eu não sabia de tudo?... Que, acaso, desconhecia eu seres tu o articulador do sequestro do bebê de Manuel António e de Rosália!...
-Cala-te, mulher, que não tens provas nenhumas contra mim!... -responde, ríspido, o Marquês das Alfarrobeiras.
-Ora, Jerónimo!... Para que as provas, se tu não consegues mentir-me?... - retruca ela, irónica. E prossegue, encarando-o, firme, nos olhos: - Conheço-te muitíssimo bem, para ler tudo o que se acha escrito, escancaradamente, aí nas tuas fuças!... E, além do mais, ouvi tudo!...
-Que ouviste, Bárbara!... - pergunta o homem, empalidecendo. -Estás é a lançar-me uma isca, isso sim!
-Que isca qual nada!... - diz-lhe ela, arrostando-o, firme. - A mim não podes enganar!... Queres a verdade ao focinho?... Pois aí a tens: ouvi-te, sim, de atrás da porta do teu escritório, poucos dias antes, quando confabulavas com um dos criados do Manuel António!... Prometias-lhe pequena fortuna para que lhe furtasses o bebê!...
- Cala-te, mulher, por Deus!... - suplica Jerónimo Dantas e Melo, tornando-se branco qual um fantasma. - E se nos ouve o cocheiro?
- Como se não se achasse também ele metido nesta sujeira!... -responde a mulher, com a voz carregada de ironia. E prossegue, sem se deixar intimidar: - Fiquei de sobreaviso, senhor meu marido!... Fiquei de olho em ti e no que fazias!... Pensas que não vi tudo, naquela noite em que o maldito do criado te entregou o embrulho no bosque e, depois, quando, ligeiro e cheio de cuidados, tomaste o carro e só retornaste muito tarde, já bem quando o dia clareava?... Acaso não estava o nosso cocheiro de conluio com o teu nefasto crime?... Quanto pagaste também a ele, para silenciar?... Pensaste, ao certo, que eu dormia, naquela noite, não é?... Mas, vigiava-te!... Ou pensas que não ouvi o vagido do bebê?... Fraco, mas ouvi!... Essas coisas não passam despercebidas a uma mulher, não, Jerónimo... Ainda mais sendo mãe, como eu!... Tu não me enganas!... Tu te vingaste do teu desafecto da forma mais covarde e abjecta que conheço!... Só não te denunciei à milícia por amor à minha filha!... Que seria dela?... A desonra, o opróbrio, vendo-te preso e encarcerado, quiçá condenado ao desterro perpétuo por tamanha monstruosidade!... Que vergonha!... Impingiste tamanha desgraça à família do Manuel António por uns míseros palmos de terra!... Tenho é muita pena de ti!... Doaste a tua alma inteirinha a satanás em troca de uma mesquinharia!... Mas, por ora, sossega-te!... - emenda Bárbara, abrindo um sorriso de desdém. - Enquanto viveres, nenhum perigo mais te rondará a porca existência, posto que todos os interessados neste caso já se foram!... Entretanto, se existe um real culpado por toda esta tragédia, és o próprio, meu caro!... E, acho que devias mais que um simples jazigo àquele pobre rapaz a quem desgraçaste, radicalmente, a vida!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 7:22 pm

Jerónimo Dantas e Melo abaixa a cabeça, derrotado pela veemência das palavras da esposa. Ela tinha razão: ele era o principal culpado de toda aquela tragédia!...
- E tem mais, senhor Marquês das Alfarrobeiras... - prossegue Bárbara, depois de alguns minutos de silêncio. - Se pensas, acaso, que a sucessão de tragédias findou-se, enganas-te, redondamente!... Ainda, de antemão, feriste, também, de morte, nossa adorada filha!... Ela idolatrava o filho de Manuel António e de Rosália*.... Ou crês que ela sobreviverá ao amor da vida dela que, de forma tão estúpida e horrível, acaba de perder?... - e, enxugando, com a ponta dos dedos, uma lágrima que se lhe desprendera dos olhos, prossegue, agora com a voz embargada pela dor: - Nossa filha está à morte, Jerónimo, se é que ainda não percebeste!...
Jerónimo Dantas e Melo esconde o rosto com as mãos. Envergonhava-se. Não imaginava que a mulher lhe conhecesse tal segredo na íntegra. Sim, fora ele que, a remoer ódios contra o seu detractor, ideara roubar-lhe o filho, ainda bebê, e o entregara à roda dos enjeitados das freiras carmelitas!... Arrependera-se, depois, é claro!... Arrependera-se, assim que lhe esfriara o intenso ódio contra Manuel António, mas era tarde!... Não poderia voltar atrás!... Pensara em escrever uma carta anónima, avisando aos pais onde é que se achava o bebê; entretanto, antes de o fazer, visitara o orfanato das freiras, para se certificar do paradeiro do menino, mas não conseguira identificar a criança, no meio de tantas que lá havia!... Para ele, eram todos iguais!... Bebés de poucos dias de vida não têm quase nenhuma identificação!... Sondara as freiras, de forma enigmática, sobre a possibilidade de se resgatar uma criança colocada na roda; elas lhe responderam que o menino ou estaria ali ou se acharia adoptado em algum lar, talvez, até longe de Lisboa. Difícil era saber com certeza. Teria de ser identificado por alguma característica ou algum sinal de nascença, fatos sem os quais seria impossível chegar-se ao bebê desejado. Jerónimo quis consertar aquele crime nefando, mas percebeu que tudo se transformara num labirinto... E correria riscos... Se escrevesse, anonimamente, a Manuel António, correria o risco de lhe descobrirem a autoria da carta... Seria, então, denunciado, preso e, certamente, condenado por crime tão abjecto!... Ninguém o perdoaria!... Contra um bebê, jamais!... Estaria irremediavelmente perdido!... Com toda a certeza, aguardá-lo-ia a execração pública, a cassação do título nobiliárquico, o confisco das propriedades, o pagamento de pesada indenização às vítimas, a miséria plena e, para coroar tudo, o desterro perpétuo para uma das distantes colónias de além-mar e a morrer executando trabalhos forçados nas minas de ouro ou nas plantações de cana-de-açúcar!... Então, optara pelo covarde silêncio!... Assistira, ano após ano, o vizinho de quinta e a esposa irem perdendo o brilho, murchando, secando, morrendo de tristeza... E Bárbara de tudo sabia!... E, então, cheio de vergonha, olha de soslaio para a esposa. Ela se mantinha séria, de cenho carregado, a ver a paisagem correr, através da janela do carro. Criando um mínimo de coragem, Jerónimo Dantas e Melo toma as mãos da esposa e as segura entre as suas.
- És capaz de perdoar-me, ao menos tu?... - sussurra ele, com os olhos mareados de lágrimas.
-Acho que não... - responde ela, sem tirar os olhos da janela. - Não te posso perdoar, porque, embutida nesta sórdida vingança tua, vai-se também a vida da minha filha!... Sei que ela não sobreviverá a isso!... Sinto-o!...
-Não!... - exclama Jerónimo Dantas e Melo, tomando-se de desespero extremo. - Deus não fará tamanha monstruosidade connosco!... Sua misericórdia não permitirá que isso aconteça!...
-Por que não?... - pergunta Bárbara, agora, olhando-o, firmemente, nos olhos. - E queres saber mais, meu caro?... Hoje, penso, claramente, que Deus deverá ter muito pouco a ver com os crimes que nós andamos a fazer cá embaixo!... Que terá Ele a ver com as tuas desgraças?... Acaso consultaste-O, quando mandaste surripiar o bebê de Rosália e de Manuel António e quando, juntamente com o teu cocheiro, fostes depositá-lo na roda dos enjeitados das freiras carmelitas?... Ora, tu mesmo tudo engendraste, da tua própria cabeça, tirando essa imundície toda do enorme cabedal de maldade que manténs estocados, aí, bem dentro do teu coração!... Agora queres que Deus resolva as tuas desgraças?... Que tem Ele a ver contigo?... Inda se fosse o demónio, talvez... Este, sim, é que se apraz, imensamente, em ver gente como tu a armar tais bulharaças!...
-Assim, judias ainda mais de mim!... - geme o homem, cheio de desespero. - Pede tu, então, a Deus, pela nossa filha!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 7:22 pm

-E o que pensas que ando eu a fazer insistentemente?... - responde Bárbara, agora, enchendo-se de melancolia. - Mas, não alimento falsas esperanças!... Sempre fui muito prática, tu bem o sabes!... Meu coração dói muito mais do que possas imaginar, aí, do fundo das tuas frívolas mesquinhezas, mas não me engano: Tininha está a morrer!... Sei que de amor também se morre!... Se em demasia e assim tão forte, o amor é também capaz de matar...
- Oh, meu Deus!... - exclama Jerónimo Dantas e Melo, abrindo-se em lágrimas. - Por favor, peço-te!... Não te mantenhas, assim, passiva, diante da fatalidade, Bárbara.... - suplica ele. - Se em Lisboa não se dá jeito à menina, temos bastante dinheiro, levemo-la a Paris ou a Londres!...
- Para quê?... - responde a Marquesa das Alfarrobeiras com os olhos cheios de lágrimas. - Só se para a vermos morrer pelos caminhos
De volta a casa, Bárbara apressa-se em estar com Teresa Cristina que deixara aos cuidados da governanta.
- Como passaste, meu anjinho?... - pergunta a Marquesa das Alfarrobeiras, beijando, ternamente, a filha à testa.
A mocinha achava-se tão pálida que suas feições pareciam fundir-se ao alvor da cambraia da fronha do travesseiro. Olha para a mãe, com os olhinhos marrons, já meio obnubilados, mortiços, quase sem luz, e abre um sorriso triste.
- Viste-o, mãe?... - pergunta Teresa Cristina, com a voz fraca, quase um sopro, apenas.
Como a buscar socorro, Bárbara volve os olhos e os fixa no rosto da governanta que se mantinha de pé, ao lado de ambas. Mas, depois, volta a fixá-los na filha. Acaso não era ela uma mulher forte?... Sempre fora capaz de enfrentar todos os problemas da sua existência!... Enfrentaria mais aquele!...
-Sim, querida, vi-o - responde ela, firme.
-E, como estava ele?... - pergunta Teresa Cristina, com a voz entrecortada pela apneia.
-Oh, quase nem se percebia que estava... - diz ela, cortando a frase, para armar-se de mais coragem. Era preciso mentir e, então, prossegue: - ...morto, queridinha!... Tinha as feições tranquilas e sorria!...
-Pentearam-lhe os cabelos?... E as suíças?... Apararam-lhe as suíças, o bigode?...
-Oh, claro!... -prossegue Bárbara, mentindo. Como poderia dizer-lhe o quão desfigurado se achava o cadáver do rapaz?... E que lhe haviam pelado, completamente, a cabeça e que é assim mesmo que fazem com os condenados à morte?... - Estava tudo primorosamente aparado e penteado, filhinha!...
-Vestiram-lhe a casaca?... - prossegue a mocinha no interrogatório. - E as luvas?... E o laço da gravata?...
-Tudo estava perfeito, meu bem!... - diz Bárbara, às raias do desespero profundo. E, não suportando mais, abraça-se à filha e desata em choro convulsivo e prossegue, sacudida pelos soluços: - Ele estava lindo, querida!... Eu mesma fiz questão de tudo conferir!... Fica tranquila! Teu amor foi-se lindo para o céu!...
-Obrigada, mãe... - diz a mocinha, emitindo fundo suspiro.
-Oh, minha querida!... - exclama Bárbara, acariciando os cabelos despenteados da filha a espalharem-se sobre o travesseiro. - Reage, meu bem!... Deus quis que teu amado se fosse assim tão cedo, mas, olha, a vida prossegue!... Não é natural que te deixes abater de forma tão profunda!... Sabes que poderá também acontecer-te algo grave?...
-É o que espero, mamãe!... - diz Teresa Cristina, com os olhos mareados de lágrimas. - Que graça terá a vida, doravante, sem o meu amor?...
-Oh, Tininha!... - diz Bárbara, segurando-lhe, afectuosamente, as mãos. - Não te entregues assim à morte, não!... Deixa o teu destino correr livremente!... Tu suportarás este golpe!... Eu e teu pai estaremos ao teu lado, a dar-te força!... Não desanimes, meu bem!...
Teresa Cristina limita-se a olhar para a mãe. Seu rosto sofrido traduzia a intensa dor que lhe roía a alma.

* * * * * * *
Apesar das tragédias, apesar dos grandes embates que acometem a vida dos homens, a propiciar-lhes terríveis e transitórios desencantos, a única coisa realmente inexorável no mundo é o tempo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 7:23 pm

Qual máquina insensível, o velho Chronos, a carregar a ampulheta aos ombros, continua a sua ininterrupta e incansável marcha. Nada o pode deter, nada!... Nem mesmo a mais monstruosa das tragédias tem o poder de detê-lo!...
-Anjinho agita-se, senhora!... - grita Madalena que, postando-se bem próximo, velava o sono do amigo recém-desencarnado.
-Deveras?... - responde Manuela, avizinhando-se, curiosa, do leito em que o rapaz jazia deitado. - Crês que ele acordará hoje?...
-Não sei... - diz a outra, afastando- se um pouquinho mais. - Faz, j á, mais de um mês que ele se acha assim...
-Oh, gostaria tanto que Anjinho acordasse!... - exclama Manuela. - Será tão bom tê-lo como aliado!... Não vejo a hora de recomeçar a atormentar aquele demónio, com insistência!...
-Também eu anseio por vê-lo louco, senhora!... - diz Madalena. -Se deixamos passar muito tempo, as coisas poderão esfriar-se, tomar novos rumos!...
-Tens razão!... - concorda Manuela. - Notaste bem os planos do calhorda?... Pensa desfazer-se desta quinta, casar-se com a minha adorada priminha e se sumir, de vez, para Lisboa!... Desgraçado!... Mal sabe ele que a coitadinha anda com os pés às beiras da cova!...
- Pobrezinha!... - observa Madalena. - Não pôde suportar a dor de perder Anjinho!... Vede como são as coisas: a princípio, eu não aceitava o romance deles!... Eu era partidária de outra mulher, antiga amiga, que ajudou Anjinho a reencontrar os pais. Mas, depois, vendo-lhes a intensidade da paixão, mudei de ideia!... Além do mais, perdi minha antiga companheira de vista!... Já estive na ma do cais do porto, a procurá-la em sua residência, mas de lá ela se havia mudado!... Mudou-se de repente, senhora!... Procurei-a pelas cercanias do porto, por algumas mas da cidade, mas nada!... Gerusa, simplesmente, esvaiu-se no ar!... - e se cala, com expressão de infinita melancolia a estampar-se ao rosto. Depois, reacende-se, ao lembrar-se de algo que lhe fora demasiado importante. E prossegue, reavivando-se: - Sabeis, senhora, que aconteceu algo incomum entre mim e Gerusa, depois que passei para o lado de cá?... Pois, ouvi bem: éramos muito amigas e dividíamos o mesmo quarto, numa imunda mansarda da rua do cais. João Miguel me houvera assassinado, pelo final do outono, acho, numa tarde chuvosa e fria; então, eu me achava perdida, tomada pelo desespero intenso e vagava ao léu, sem saber, na realidade, onde é que me encontrava, nem aonde ir. Andava por perto do local onde o maldito surpreendera-me com a punhalada fatal, quando ouvi que me chamavam, insistentemente. Logo reconheci a voz da minha querida companheira de infortúnio!... Era a voz de Gerusa!... Como poderia deixar de reconhecê-la?... Algo desconhecido, até então, para mim, aconteceu!... Foi só pensar em minha companheira e logo me vi arrebatada por força poderosa e, quando me dei conta, achava-me em lugar que, aos poucos, fui reconhecendo: o cubículo miserável que partilhávamos ela e eu!... Sozinha, Gerusa chorava, no escuro, lamentando-se e me chamando!... Tive, então, tamanha vontade de abraçar-me a ela que facto estranho aconteceu-me: Gerusa pôde ver-me, senhora!... Consegui mostrar-me a ela!...
-Verdade?!... - espanta-se Manuela. - Vistes-vos, então, uma à outra, mesmo a estares tu morta e ela, viva?
-Pois assim foi, senhora!... - responde a mocinha. - Vimo-nos e conversamos!... Foi aí que lhe contei tudo!...
-Mas que coisa!... - espanta-se Manuela. - Dizes, então, que e perfeitamente possível, uma vez mortos, voltarmos a falar aos vivos?...
-Assim é, senhora!... - responde Madalena. - Agora, o que não sei é se isso é possível suceder a todos os que se acham mortos!...
-Acho que não!... - responde Manuela, a pensar. - Acho que não!... Imagino que sói suceder a apenas alguns deles e sob condições especiais !... A lógica a isso conduz!... - e, ainda profundamente cismarenta, prossegue: - Então as lendas que se contam sobre aparições de mortos não são meras fantasias!...
-Penso que não são, senhora!... - diz a jovem prostituta. - Se comigo aconteceu...
-Madalena, acaso conseguirias repetir tal façanha de novo?... -pergunta Manuela, após cogitar por instantes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 10:40 am

-Não sei, senhora - responde a mocinha. - Poderemos tentar, mas não sei mais onde se acha Gerusa!... Como faremos para encontrá-la?...
-Não a tua amiga, tolinha!... - observa Manuela, rindo-se. - Uma outra pessoa...
- Quem?... - pergunta Manuela, enchendo-se de curiosidade.
-Ah, pelo caminho te contarei!... - diz Manuela, arrastando a companheira pela mão.
-Mas, e Anjinho!... - titubeia a mocinha. - Agita-se mais e mais em seu sono... E se ele se acordar e aqui não nos encontrar?...
-Penso que Anjinho ainda dormirá por mais algumas horas!... -observa Manuela, estudando, minuciosamente, o resfolegar compassado do rapaz. - Vê como ainda respira profundo!... Tão cedo não despertará!... Teremos ainda algumas horas... Vem!...
Um bom tempo depois, os dois espectros encontravam-se diante dos portões da antiga moradia de Manuela.
-Ufa!... Finalmente chegamos!... - exclama a antiga Baronesa da Ajuda, altamente esbofada pelo esforço da longa caminhada. - Pensei que havias dito que podíamos viajar rápido!... Não voltaste a ter com a tua amiga, num átimo?...
-Apenas quando nos chamam, senhora!... - explica a mocinha. -Quando os vivos nos chamam com muita vontade, atraem-nos!... Quando não, temos que caminhar, como dantes fazíamos!...
-Oh, como estou cansada!... - reclama Manuela, sentando-se à relva do seu antigo jardim. - Não estava habituada a caminhar tanto!... Ainda bem que tiveste a ideia de saltarmos para a rabeira daquela carroça que transportava feno!... Ou, então, ainda estaríamos a caminhar estrada afora!...
-Que bela vivenda tivestes, senhora!... - observa, maravilhada, a mocinha, olhando em derredor.
-E como aqui fui feliz!... - diz Manuela, com fundo suspiro de desalento. - Até que o punhal daquele maldito despachou-me para cá!...
-E o que aqui desejais fazer, senhora?...-pergunta, curiosa, a mocinha.
- Já o saberás!... - responde Manuela, abrindo um sorriso matreiro.
- Agora, vem!... Entremos na casa!...
Pouco depois e de mãos dadas, Manuela e Madalena caminhavam pelos salões da residência. Orgulhosa, a antiga proprietária mostrava à nova amiga cada recanto da luxuosa mansão; os móveis de altíssimo lavor, a tapeçaria, as obras de arte... Tudo era requinte e luxo desmedido!... A mocinha admirava-se de tanta preciosidade; jamais se achara em ambiente tão fino.
-Vem, subamos ao andar superior!... - convida Manuela. - Mostrar-te-ei o meu antigo quarto!...
-Que primor, senhora!... - deslumbra-se Madalena, pouco depois, olhando, embevecida, a riqueza do ambiente. - Que vida de rainha aqui não devestes ter vivido!...
-Se vivi!... - diz Manuela, enchendo-se de tristeza intensa. E, lamentando, profundamente, o que perdera, prossegue: - Aqui recebi todos os homens que pude ter!... Ah, como fui feliz!...
-Deveras, senhora?... - espanta-se a mocinha. - Não éreis, acaso, casada?... E o vosso esposo?...
-Oh, o meu esposo!... - responde a outra, entre desdenhosa e triste.
- Afonso vivia no mundo a rastelar mais e mais ouro!... É só no que pensava!... E, deixava-me só, meses a fio; até anos, se queres, mesmo, saber!... - e, animando-se, como era do seu feitio, continua: - E, achas, então, que eu ficaria às moscas?... Vão desperdício seria!... Logo eu?-Não, minha cara!... Tratei de arranjar amantes!... E, arranjei-os a mancheias. Quantos tive?... Vinte?... Cinquenta?... Nunca contei... Saboreava-os, apenas, entendes?... Degustava-os, um a um, imensamente, ate me fartar!... Até me enjoar!... Depois?... Depois. trocava-os Dor outros-
-Assim tivestes também a Anjinho?... - pergunta, curiosa, Madalena.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 10:40 am

-Ah, Anjinho*.... - diz Manuela, revirando os olhos. - Anjinho foi um dos meus favoritos!... Encontrei-o no cais do porto!... Sabias que era lá que eu pescava meus homens?... São os melhores!... - depois, ficando séria, de repente, observa mais atentamente o ambiente do antigo quarto. - Isto aqui está mudado!... - e se levantando, passa a estudar, minuciosamente, a mobília. - Não, não está como o deixei!... Há um outro perfume no ar!... Vê!... Este roupão que aqui está não era meu!... Tenho certeza absoluta!... Nunca possuí peça desse teor!... Detesto grená!... - e, aproximando o rosto da peça de roupa, cheira-a, insistentemente, e exclama enfurecida: - O perfume!... Esse perfume não é meu!... E de violetas, e eu detesto violetas!... Uma outra espertalhona j á anda a ocupar-me o lugar!...
-Tendes certeza, senhora?... - pergunta a mocinha. E prossegue, percebendo que a outra se enfurecia ao extremo: - Mantende a calma, senhora!... Poderá ser de alguma parenta vossa!...
-Qual parenta qual nada!... - brada, furiosa, Manuela. - E eu tenho lá parentas a visitar-me depois de morta?... Desgraçado!... Sim, o desgraçado do Afonso já está é a substituir-me por outra!... - e voltando a se sentar, pesadamente, sobre a poltrona, exclama, cheia de desalento: - Vês como é, menina?... Mal me jogou o meu marido naquele tenebroso sepulcro e já se acha a enrolar-se com uma outra!... Quando comigo se encontrava casado, vivia a viajar; com esta outra, decerto, já se aposentou!... Oh, maldito!... Tu e ela me pagareis!...
Manuela cala-se e se põe a remoer sua desdita, com o rosto apoiado às mãos. Madalena afasta-se um pouquinho mais e espia lá fora pela janela. Lá embaixo, um casal retomava, certamente, de passeio matinal feito ao bosque fronteiriço ao jardim da mansão.
- Senhora!... - exclama a mocinha. - Vinde ver!...
-Ah, é ele!... E ele, o desgraçado!... - grita Manuela, aproximando-se da janela e espiando lá embaixo. - E não é que o miserável enleva-se com uma sirigaita?... - e se voltando para Madalena: - Viste como tinha eu razão?... Ah, minha querida, tu me ajudarás a pregar uma peça neste desgraçado!...
Pouco depois, na sala de estar, sentados juntinhos e, confortavelmente, ao lado da lareira, Afonso Albuquerque e Meneses e delicadíssima mulher trocavam-se carinhos e juras de amor.
-Casa-te comigo, Alzira!... - dizia o homem, olhando, profundamente, nos olhos da jovem mulher. - Ando a perder o juízo por ti!...
-Oh, como és apressadinho!... - responde ela, abrindo um sorriso. -Ainda outro dia enterraste a tua mulher!... Esqueceste dela bem ribeirinho, ao que parece!...
-Ah, esquece-te de Manuela!.... - diz ele, contrariando-se. - Aquela já se foi desta para a melhor!... Além do mais, era prepotente e bestalhona como ela só!... No fundo, descobri que não a amava!...
-Deveras?..: - espanta-se a mulher. - Por isso então é que te mantinhas pelo mundo afora, deixando-a a divertir-se com os amantes?...
-Ora, bem... - engasga-se ele na resposta - ...não era, de facto, assim como imaginas!... Que ela tinha amantes, eu já sabia!... O que não faltam em Lisboa são línguas compridas!... Mas é que eu não a amava de facto!... Dela eu só desejava, mesmo, era rapar a imensa fortuna que trouxe consigo, ao casar-se comigo!... De resto, Manuela dava-me nos nervos, sempre arrogante, a tentar sobrepujar-me em tudo!... Achava-se até mais inteligente que eu, a parvalhona!... Mas tomou!... Um dos seus amantes matou-a, por certo!... Recebeu o que merecia!...
-Desgraçado!... - rosna Manuela, pondo-se de frente para o antigo esposo. - Era assim que de mim pensavas, é, maldito?...
E, saltando sobre ele, tenta esbofeteá-lo. Não conseguindo seu intento, volta ao ataque, tentando unhar-lhe, ferozmente, as faces. Mas, desiste logo, ao perceber o malogro do seu ato: como espírito, era-lhe impossível ferir o corpo do antigo marido, usando a força física.
- Inútil, senhora!... - observa, fleumática, Madalena, pondo-se a um canto da sala. - Eles não nos podem sequer pressentir a presença!... Mas, podereis provocar um susto, se achardes alguém susceptível e passível de registar-vos a presença aqui!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 10:40 am

Neste comemos, Inácia, a antiga e fiel servidora de Manuela, adentrava a sala a carregar, cuidadosamente, uma bandeja contendo uma garrafa de vinho e duas ricas taças de cristal.
- Inácia!.... - grita Manuela ao rever a velha criada. - Ela me reconhecerá!... - e, pondo-se diante da serviçal, grita-lhe a plenos pulmões, abrindo os braços: - Inácia!.... Sou eu!... Tua patroa Manuela!.... - e lança sobre a pobre mulher com reais força e vontade.
A criada, num átimo, pareceu ouvir os gritos da antiga patroa e até mesmo de tê-la visto, em fracções de segundos, a abraçá-la!... Entretanto, como estava monstruosa a patroa!... Deus do céu!... Estava um pavor!... Toda desgrenhada, vestida de andrajos, enlameada e como fedia!...
-Ai, Jesus Cristo!... - grita Inácia, a largar das mãos a rica bandeja de prata que cai ao chão, com grande estrondo e a espatifar o conteúdo todo em mil estilhaços a voarem por todas as bandas, manchando tudo de rubro!... - É ela!... Eu a vi, ainda aqui, agorinha mesmo!... Ai, que medo, Deus do céu!... - prosseguia a criada aos gritos, tomando-se de profunda histeria.
-Ela quem, mulher?... - brada Afonso Albuquerque e Meneses, segurando Inácia fortemente pelo braço. - Deixa-te de fitas e diz logo, ó imbecil!... Quem é que viste?...
-Ela... a senhora... dona Manuela!.... - balbucia a criada, transida de terror e a ocultar o rosto com as mãos.
-Viste quem, sua doida?... - grita Afonso, agastando-se, enormemente, às raias da fúria. - Viste foi nada!... Estás é a imaginar coisas!... - e, a empurrá-la, grosseiramente, da sala, prossegue: - Anda, some-te daqui, velha caduca!...
-Afonso, acho que foste por demais cruel com a tua criada!... -observa Alzira.
-Oh, essa criadagem!... - resmunga o homem, olhando a sujeirada toda que se espalhava pelo chão da sala. - Viste a incompetência da velhota?... E, ainda por cima, deixou-nos sem o vinho!...
-Ora, pede que nos sirvam outra garrafa!... - diz a mulher, rindo-se e lhe beliscando, amorosamente, uma bochecha. - Mas, agora, acalma-te!... - e, depois de cogitar por instantes, prossegue: - Para ter provocado tal banzé, a velhota ficou deveras impressionada!... Que achas disso?...
-Nada acho, querida!... - responde Afonso Albuquerque e Meneses, ainda irritado com o incidente. - A não ser alucinações da cabeça daquela doida!... Como é que poderia?... Manuela, aqui?... E, lá, acredito eu em tais sandices?... Minha esposa finou-se, minha cara, e quem se vai, não volta, entendes?...
- Não sei, não... - murmura Alzira, pensativa. - Não sei, não...
Depois, com o rabo dos olhos, observa, atentamente, aquele homem que se sentava ali do seu lado. De repente, principiava, inexplicavelmente, a perder o interesse por Afonso. Ele se revelava um homem cruel, muito diferente daquele que ela imaginava que ele fosse. Decepcionara-a sobremodo. Desencantava-se com ele. Se tinha o hábito de tratar os criados daquele modo, boa coisa não deveria ser... E então estranha vontade de ir-se dali, de deixá-lo, invade-a.
- Vai-te, daqui!... Some-te, sirigaita!... - sussurrava, ostensivamente, Manuela ao ouvido de Alzira. - Este homem não presta!... Vai-te embora!... Deixa-o, enquanto é tempo!...
- Afonso... - diz Alzira, levantando-se. - Desejo ir-me agora!...
-Mas, tão já?!... - espanta-se o homem. - Acaso aqui não vieste para passar comigo o dia todo?... Até trouxeste a tua bagagem!...
-Ah, não!... - diz ela, demonstrando enfado. - Can sei-me!... Mudei os planos!...
Manuela e Madalena trocam-se significativo olhar e se sorriem, cúmplices. Pouco depois, abraçadas e a se rirem desbragadamente, observavam o coche que saía célere, levando Alzira de volta para casa. Talvez, ali nunca mais pusesse os pés...
-Vamo-nos, queridinha!...-convida Manuela. - Voltemos a casa!... Quem sabe Anjinho não está a acordar-se!...
-Perfeitamente, senhora!... - concorda a outra. - E temos longa jornada a caminhar...
A tarde morria, lavada pela chuva fina e fria que caía, insensível, e a tudo enregelando, impiedosamente. Manuela e Madalena, como duas sombras, dois borrões a mancharem o pouco de claridade que ainda restava, põem-se a caminhar, amparando-se uma à outra, e desaparecem, fundindo-se na bruma esbranquiçada...
______________________________________________________________________________________________
1. “– Está consumado!...”, em latim.
2. O acto de volitar ou viajar a altíssimas velocidades é característica atinente apenas a espíritos totalmente desembaraçados dos liames da materialidade, coisa que não acontece às nossas personagens, uma vez que se encontram na condição de espíritos obsessores, portanto ainda fortemente vinculados às formas e às sensações físicas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 10:41 am

Capítulo 28 - O despertar no além
De regresso a casa, depois de longa caminhada, Manuela e Madalena adentram o quarto onde João Manuel ainda se encontrava adormecido.
-Ufa!... Que alívio!... - diz Madalena, ao constatar que o rapaz ainda ressonava. - Pensei que o fôssemos reencontrar já desperto!...
-Entretanto, acho que não demorará a acordar-se!... - observa Manuela. - Vê como se agita mais intensamente!...
-Sim!... - concorda a mocinha. - E está a murmurar coisas!... -emenda ela, aproximando o ouvido dos lábios do rapaz.
- Consegues compreender o que diz?... - pergunta, curiosa, Manuela.
-Não, senhora!... - responde Madalena, erguendo-se. - Anjinho está a emitir apenas grunhidos incompreensíveis!...
-Aguardemos um pouco mais!... - observa a antiga Baronesa da Ajuda. E, afastando-se, convida a outra: - Vem, deixemo-lo que repouse em paz!... - e, sentando-se numa poltrona, prossegue: - Viste como a tal sirigaita foi-se?... Essa acho que não mais retornará!... E não é que já andavam os dois em alta intimidade?... Viste as roupas dela em meu antigo quarto?...
-Pois se não vi!... - concorda a outra. - Mas penso que a espantastes, definitivamente, da vossa antiga casa, senhora!...
-E afugentarei quantas lá se abancarem!... - diz Manuela, cheíssima de si. - Afonso que me aguarde!... O que um dia me pertenceu, jamais será de outra!... E, viste o que é que de mim pensava o maldito?... Ainda hem que lhe meti cornos à vontade!... - e explode numa gargalhada: - Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
- Sois, deveras, uma pândega, senhora!... - exclama Madalena, rindo-se.
- Mas, ai, menina!... - diz Manuela, com um gemido, de repente ficando séria. E a exibir as mãos macilentas e enlameadas - mãos que outrora foram finas e bem tratadas -, murmura, cheia de mágoa: - Olha só como é que nos encontramos nós duas!... Somos dois monstros!...
- Sim, senhora!... - concorda a outra, muito triste, baixando os olhos. -Ai, Deus do céu!... - grita Manuela, enchendo-se de desespero. -
Eu não queria morrer!... Eu não queria!... Eu era tão bela, tão feliz!... Por que é que o maldito teve de interromper-me, assim, de forma tão inesperada, a existência?... - e, erguendo-se e se desgrenhando toda, põe-se a lamentar-se em altos brados: - Oh, que será de mim?... Que farei da minha vida?... Como sou infeliz!...
- Acalmai-vos, senhora!... - diz Madalena, tentando consolar a outra.
- Também eu era feliz!... Apesar de a minha vida ter se resumido a misérias e a desencantos, mesmo assim, eu a amava!... Era tão jovem!... Também era bonita!... Desejava viver!...
- Sim, criança!... - diz Manuela, abraçando-se à mocinha. -Também a ti ele desgraçou a vida!... Eras mais jovem que eu!... Bem mais jovem!... Entretanto...
Neste comemos, alto gemido ouve-se no ambiente.
- Anjinho desperta!... - grita Manuela.
-Sim - concorda a outra e se aproxima do leito. - Vede, senhora, agita-se mais e principia a abrir os olhos!
-Anjinho!... - grita Manuela a dar-lhe leves tapinhas às faces. -Anjinho!... Vamos, homem, acorda!...
O rapaz agita-se mais e mais, contorcendo-se, insistentemente, no leito, como se sofrendo de intensa dor. Depois, abre os olhos. Volta a fechá-los. Abre-os de novo, como se os acomodasse à claridade. Preme-os forte, reabre-os e, então, o espanto!
- V... Vó... Vós?!... - balbucia ele, com a voz rouca e com intensa dificuldade, e a arregalar, desmedidamente, os olhos, tomados de intenso assombro.
- Sim!... - grita Madalena, cheia de alegria. - Somos nós!... -Oh, querido!... - diz Manuela, acariciando-lhe, ternamente, as mãos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 10:41 am

- Que bom que voltaste!...
João Manuel quis falar, mas seu rosto desfigura-se em intenso esgar de sofrimento e fortíssimo ataque de tosse acomete-o. Geme, então, profundamente. A dor que sentia à garganta era imensa.
-Pobrezinho!... - murmura Madalena, acariciando-lhe os lábios com a ponta dos dedos. - Está ainda tão inchado!... Tem a boca e a garganta totalmente ressequidas pela sede!...1
-Não podemos dar-lhe água?... - pergunta Manuela.
-Por certo que sim, senhora - responde a mocinha. - Mas tenho uma ideia melhor!... Levemo-lo lá fora!... O contacto com a natureza, dar-lhe-á forças!... Lembrai-vos?... Assim aconteceu convosco!...
-Sim!... - concorda Manuela. - Tu me levaste a tomar chuva, no jardim, e eu melhorei!...
-A chuva, as árvores, o vento - continua a mocinha, isso tudo nos devolve as forças!... Aprendi, logo que aqui cheguei!... Gostava de ficar sob a chuva!... Sentia-me reanimar, mais e mais!... Agora, vamo-nos, sem delongas!... Carreguemo-lo para fora!...
Com intensa dificuldade, os espectros das duas mulheres conseguem soerguer João Manuel do leito e, literalmente, arrastam-no escada abaixo, até o jardim. A noite estava escura e gélida, lavada por insistente chuva hibernal. Aos primeiros contactos com os pingos da chuva, o corpo espiritual de João Manuel estremece.
-Vede, senhora, como reage ao toque da água!... - exclama Madalena, animando-se. - Aconteceu assim comigo e também a vós, quando eu aqui vos trouxe!...
-Sim!... Sim!... - concorda Manuela. - Os eflúvios que emanam da Natureza dão-nos força!... Anjinho sentir-se-á fortalecido muito em breve.
Acomodando o combalido rapaz em banco de alvinitente mármore, no jardim da mansão, Manuela e Madalena sentaram-se-lhe, uma de cada lado, amparando-o, amorosamente, com os braços. João Manuel nada ainda conseguia dizer, a não ser olhar, espantadíssimo, para as duas mulheres.
- Estás a estranhar tudo, Anjinho!... - pergunta Madalena, olhando para o assombrado rosto do amigo. - Como bem podes constatar, ninguém morre!...
O rapaz resume-se a abrir a boca. Ainda não conseguia nada dizer.
- Sim - observa Manuela. - Também eu me espantei, sobremodo, ao acordar do lado de cá!... Jamais, em toda a minha existência, supusera, por um momento sequer, que a vida continuasse por essas bandas!...
- Entretanto, assim é!... - atalha Madalena. - Não supões, Anjinho, o terror que enfrentei ao achar-me aqui sozinha!... Quero dizer, sozinha não foi bem o caso... Sempre há os que nos vêm receber!... Judiaram de mim, assustando-me!... No princípio, tudo foi muito confuso e não sabia, exactamente, o que se passava comigo. É bem verdade que, logo após receber o golpe do assassino, continuei, por algum tempo, em grande confusão!... Sentia-me viva e, ao mesmo tempo, via-me caída ao chão; o corpo ferido, a esvair-se em sangue, e a inútil tentativa de retomá-lo, por diversas vezes; depois, vi Gerusa, minha amiga, aproximar-se, tomar-se de desespero extremo, ao abraçar-me, aos gritos e a chamar-me pelo nome!... A seguir, notei as pessoas a aglomerarem-se, em derredor, altamente curiosas. Acompanhei, quando a milícia recolheu meu corpo e o conduziu numa carroça... Depois, dormi!... Intensa sonolência acometeu-me e, ao despertar, de pouca coisa, efectivamente, lembrava-me!... Encontrava-me num cemitério e me julgava ali perdida!... Outros que, no mesmo local estavam, perseguiam-me e me assustavam o tempo todo, com suas vestes rotas e enlameadas e com as feições altamente deformadas!... Tive de fugir, de esconder-me!... E, por um bom tempo, vaguei por entre as pobríssimas tumbas do cemitério onde se inumam os miseráveis e os enjeitados de toda a sorte; depois, consegui sair de lá, andei pelas mas da cidade, sem rumo, e acabei por voltar ao local onde fora assassinada!... E ali fiquei, pois algo parecia prender-me àquele fatídico beco!... Foi assim: só aos poucos é que me dei conta de que não mais pertencia ao mundo dos vivos!... A princípio, estranhava o fato de as pessoas não mais me notarem a presença, de não responderem aos meus apelos e de, simplesmente, ignorarem quando eu lhes falava!... Devagar, então, começou a passar por minha cabeça a possibilidade de que algo realmente grave houvera acontecido comigo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 10:41 am

E, ainda, quando se deparavam comigo, outros espíritos escarneciam de meu estado e gritavam que eu houvera morrido, ao perceberem que eu me achava confusa!... Nem queiras saber qual foi o impacto de tal constatação!... Adveio-me desespero ainda maior do que aquele que eu já vinha sentindo!... Chorei, desesperei-me, enormemente, até me cansar. Mas, por fim, as coisas começaram a clarear em minha cabeça e, então, lembrei-me do beco, do assassino, do meu corpo a ser recolhido e levado pela carroça...
- Comigo não foi diferente!... - observa Manuela. - Assim que o punhal do maldito assassino surpreendeu-me, em meu próprio quarto, senti o peito abrir-se em brasa; consegui ver o infame que me apunhalara e tentei gritar, mas grossos gorgolões de sangue abafaram-me a voz; fraqueza intensa adveio-me, então; as pernas bambearam-se-me, de repente, e num átimo, achei-me expulsa do meu corpo e, postada ali ao lado, altamente estarrecida e, de pronto, sem ainda nada entender do que, de fato, acontecia, pois me via, inexplicavelmente, também lá, ainda a agitar-me, enormemente, e a esvair-me em sangue, caída sobre o chão!... Impassível, o maldito assassino apenas observava-me, sem mover um único músculo, a segurar à mão o punhal ensanguentado. Num ímpeto de fúria, saltei sobre ele, mas, estupefacta, percebi que não o podia ofender; ele, simplesmente, não me notava!... Desesperada, quis, então, voltar para o meu corpo, soerguê-lo e sair em busca de auxílio, mas foi em vão: meu corpo não passava de um amontoado inerte a gelar-se, rapidamente, e tão pesado se tornara que eu não mais conseguia dele me apossar; era como se, de repente, uma barreira intransponível formara-se-lhe em redor, impedindo-me de, novamente, aninhar-me dentro dele!... Era o mesmo que tentar penetrar em uma rocha!... A seguir, zonzei; intensa sonolência de mim se apoderou, e tudo ficou escuro. Quando me acordei, achava-me presa e imobilizada em plena escuridão e em total silêncio!... Sequer cogitava onde é que me encontrava!... Pus-me, então, a gritar. Gritei até enrouquecer e ninguém apareceu!... Chorei, maldisse a minha desdita e, depois de me cansar, desejei, imensamente, sair daquela situação. Aos poucos, então, da espessa escuridão em que me encontrava, percebi que clareava!... Suave penumbra formava-se, e eu não mais me achava imobilizada e apertada dentro de algo fechado!... Dei-me conta, a seguir, de que estava no interior de singela capela, iluminada por grossos círios que bruxuleavam!... Acomodei minha vista à penumbra e, estarrecida, percebi que me achava dentro do jazigo da família!... Conhecia bem o lugar!... Era-me familiar!... Sim!... Ali estavam as lápides dos parentes já falecidos!... Podia, claramente, vê-las e lhes ler os nomes inscritos em baixo-relevo!... Que estava eu a fazer presa, ali?... Voltei, então, a gritar, desesperada!... Sentia intensa dor ao peito e constatei, aterrada, que sangrava por fundo rasgo ali aberto. Nem podes supor o desespero que de mim se apossou!... E o mau cheiro, então?... Sentia-me sufocar pelo intenso cheiro de carniça!... Sequer poderia imaginar que era o meu pobre corpo a apodrecer!... Quanto tempo fiquei ali presa?... Não sei!.. - e se voltando para Madalena, prossegue, com intensa ternura à voz.
- Até que este anjo bom lá apareceu e para aqui me trouxe...
- Ora, senhora!... De anjo nada tenho!... - exclama Madalena. - Apenas acompanhei tudo o que vos fez o demónio, posto que lá me encontrava, quando o infame, tão covardemente, tirou-vos a vida!... Senti pena de vós e vos ajudei na adaptação ao lado de cá, coisa que não é nada fácil de se enfrentar a sós!...
- M... mor... to... eu?!... - balbucia o rapaz, com extrema dificuldade.
-Pois assim é!... - reponde Manuela, adiantando-se. - Enforcaram-te já faz um tempinho!... Esqueceste?...
-Sim, Anjinho!.... - emenda Madalena. - Assistimos, dona Manuela e eu, ao teu enforcamento na cadeia pública!... De nada ainda consegues lembrar-te?... Olha, é assim mesmo que ocorre!... Depois que morremos, dormimos por um tempo e, quando nos acordamos, costumamos esquecer-nos de algumas coisas!...
-É!... - acrescenta Manuela. - Mas, aquieta-te que, em breve, de tudo recordarás!... E te auxiliaremos nas lembranças!...
O rapaz parecia confuso. Estranhava a aparência altamente esquálida, quase terrífica, das antigas companheiras. E, curioso, estende as mãos e as espia com interesse. Depois de minucioso exame, suspira aliviado: aparentemente, encontrava-se em condição melhor que a das amigas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 10:41 am

A chuva principia a cair mais intensa. João Manuel que, a princípio, sentia a garganta e a cabeça queimarem como fogo, ora já encontrava um pouco mais de alívio, ao contacto refrescante com os pingos da chuva que, inexplicavelmente, tocavam-lhe a pele, mas não a molhavam. Literalmente, atravessavam-lhe o corpo, causando-lhe ligeiro frémito e daí advindo delicioso frescor que lhe aliviava, enormemente, a intensa dor à garganta, e lhe minorando, sobremodo, o sufocamento terrível.
-Anjinho recuperar-se-á mais rápido que nós, senhora - observa a mocinha.
-Sim - concorda a outra. - Sequer traz, com a mesma intensidade, as deformidades que nós duas apresentamos!...
-É!... - observa a outra, aproximando as narinas do rosto do rapaz. - E nem está a cheirar mal!...
-Oh, e nós duas?... - geme Manuela. - E nós duas?... Quando é que perderemos de vez esse fedor insuportável?...
-Não sei!... - responde a mocinha, desalentada. - Gela-me o corpo todo só em pensar na possibilidade de ficarmos assim para sempre!...
-Oh, bate na boca!... - brada Manuela, enchendo-se de terror. -Nem quero pensar nisso!...
-Vede, senhora!... - exclama a antiga prostituta, depois de curto silêncio. - Anjinho melhora a olhos vistos!...
-Oh, meu Deus!... - consegue gritar o rapaz de uma vez!... - Que fizeram comigo?...
-Calma, querido!... - diz Manuela, tomando-o aos braços. -Mantém-te calmo, que, aos poucos, tu recobrarás a tua consciência!... Tudo se te aclarará à cabeça!... Não te desesperes!...
-Acho que é hora de o levarmos de volta, senhora!... - observa a mocinha. - Será bom que repouse um pouco mais!...
-Tens razão!... - concorda Manuela. - Conduzamo-lo de volta ao quarto!...
Quando o dia amanhece, os três espíritos achavam-se ainda em sério colóquio.
-Dizeis, então, que o maldito do meu irmão é o único e real responsável pelas nossas mortes prematuras, é?... - pergunta o rapaz, erguendo-se com dificuldade da poltrona em que estivera sentado o tempo todo a ouvir o detalhado relato que lhe fizeram, noite afora, as duas mulheres. E, pondo-se a caminhar em círculos, ainda com extrema dificuldade, prossegue, tomando-se de alto desespero: - Oh, Deus do céu!... E Teresa Cristina!... Como se achará ela neste momento?...
-Minha priminha está a morrer, Anjinho!... - observa Manuela. -Acaba-se em tristezas pela tua morte!...
-Então não serão mais três as mortes a pesarem sobre as costas do maldito!... - brada o rapaz, enfurecendo-se. - Em breve serão quatro!...
-Assim presumo que será, Anjinho!... - diz Manuela. - Pelo que sabemos, Tininha não tem mais escapatória!... Está a consumir-se de inanição!...
-Oh, preciso vê-la!... - grita João Manuel em desespero. - Preciso falar-lhe!...
-Falar-lhe como?... - observa Madalena que até então se mantivera calada. - Esqueceste, acaso, que já morreste e que os vivos, dificilmente, conseguirão ver-te?...
-Oh, desdita!... - geme o rapaz, voltando a sentar-se, pesadamente, na poltrona. E, prossegue, encarando as duas, com olhos súplices:
- Que se há de fazer, então?...
-Se, de facto, isso acontecer, teremos de salvá-la!... - responde Madalena. E continua, preocupada: - Ela não sabe que, efectivamente, não morremos e, quando acontecer, poderemos até perdê-la de vista!...
-Oh, não!... - grita o rapaz. - Isso não!... Perdê-la, não!...
-Madalena está certa - observa, grave, Manuela. - Nunca se sabe o que poderá acontecer...
-Então, teremos de permanecer ao lado dela!... - prossegue Madalena. - Não sabemos qual será o preciso momento da sua morte, e tanta coisa poderá acontecer...
-Mas, antes, temos de recomeçar a nossa luta!... - atalha Manuela.
- A vingança, primeiro!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 10:42 am

-Sim!... - aquiesce Madalena. - Antes de mais nada, à forra com o vil assassino!...
-Não estou a entender... - observa o rapaz. - De qual assassino falais?...
-Do monstro do teu irmão!... - exclama Manuela. - Não vais dizer, porventura, que o perdoaste!...
-Sim!... - diz Madalena. - Acaso esqueceste que foi ele que te mandou à forca, é?... E nada vais fazer para dele te vingares?
-É certo que não me esqueci!... - responde o rapaz. E, depois de cogitar por instantes, pergunta: - E como faremos para forçá-lo a pagar por seus crimes?... Agora tenho a absoluta certeza de que João Miguel mandou-me à forca!...
- Já começamos a atormentá-lo!... - ufanosa, esclarece Manuela.
-Sim - concorda a mocinha -, e temos a contar, a nosso favor, uma série de vantagens: ele não nos vê, não crê que estejamos vivos!...
-E nós o atacamos quando dorme!... - diz Manuela. - Nosso intento é, primeiro, enlouquecê-lo; depois, induzi-lo a cometer suicídio!..-
-E pensais ser fácil fazermos tudo isso?... - redargui o rapaz. -Considero João Miguel bastante esperto!... Vede bem o que é que nos fez, sem titubear!...
-Aí é que te enganas, meu caro!... - responde Manuela, cheia de si. - Precisavas ver-lhe a cara quando nos vê!...
-É!... - concorda Madalena, rindo-se. - E já lhe demos umas boas surras, quando está a dormir!... Depois, ao acordar-se, tem tudo à conta de pesadelos!...
-Não entendo... - observa o rapaz.
-Esclareço-te, meu caro! - diz Manuela. - Quando dormimos, todos nós vimos para o mundo dos mortos!... Todos nós, sem excepção!... Depois, ao nos acordarmos, esquecemo-nos, parcialmente, tomando tudo à conta de sonhos ou de pesadelos!...
João Manuel nada responde. Por instantes, cala-se, a cogitar profundamente. Como era a vida!... Na verdade, pouco se sabia sobre o real sentido das coisas!...
- Concordo com tudo o que dizeis - prossegue o rapaz -, mas, antes, desejava rever Teresa Cristina!... Acaso ser-me-á possível realizar tal desejo?
As duas mulheres entreolham-se. Sim, e como era possível e relativamente fácil aos ditos mortos reverem seus entes queridos que ainda viviam mergulhados na carne!...
- Tens sorte, Anjinho!... - observa Madalena. - Tua amada encontra-se a poucos metros daqui, na quinta ao lado desta.
Os olhos do rapaz incendeiam-se de repente.
- Por Deus!... - grita ele, tomando-se de intensa ansiedade. - Conduz-me até lá!... Por favor!...
Meia hora depois, por terem caminhado com certa dificuldade, respeitando, ainda, os movimentos bastante limitados do rapaz, finalmente achavam-se diante das escadarias da mansão dos Marqueses das Alfarrobeiras.
- Importante que te mantenhas tranquilo! - recomenda Madalena, tomando as mãos do rapaz. - Não te deixes impressionar pelo estado de Teresa Cristina]... Se te desesperares, poderás recair e em nada poderás auxiliá-la, durante este difícil transe por que passa!... Advirto-te uma vez mais: ela, possivelmente, não te notará a presença nem te registará as palavras!...
Em pouco, o reencontro:
- Oh, meu Deus!... Tininha!... - ouve-se o grito rouco a escapar-se da garganta de João Manuel.
E, como um doido, lança-se sobre a amada que, deitada sobre o leito, parecia fundir-se à brancura das cobertas, tamanha era a sua palidez!...
-Oh, meu amor!... Meu amor!... - repetia o rapaz, em pranto, tentando abraçar-se à amada que, mal tinha forças para manter os olhos abertos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 10:42 am

-Oh, minha queridinha!... - dizia Bárbara que, sentada ao lado do leito segurava-lhe, amorosamente, as álgidas mãos. - Reage, filhinha!... Olha, queres que Isadora traga-te um prato de caldo verde?... Tu gostavas tanto!...
-Não, mamãe!... - responde a mocinha com a voz muito fraca, quase um sopro.
-Vai, meu amor!... - grita-lhe João Manuel!... - toma a sopa quente!... Quem sabe não te trará de volta as forças?... Olha, estou aqui, vivo!... Não morremos!... Tu não podes morrer antes da hora!... Cumpre o teu tempo aí, ou tu sofrerás bastante!...
-Mamãe - diz a mocinha, abrindo um sorriso -, de repente, veio-me à mente forte lembrança do meu amor!...
-Deveras, meu bem?... - responde Bárbara, feliz, ao notar que a filha reagia. - E sabes o que penso?... Penso que as almas vêm ver-nos, depois de mortas. E, se teu amor vier ver-te e te achar neste estado, bem triste deverá sentir-se!...
-Será mesmo que as almas poderão retomar e nos ver, mamãe?... -pergunta a mocinha.
-Acho, sim!... O mundo está cheio de histórias sobre aparições de mortos!... Todas as culturas trazem tais fatos, há séculos!... Estariam todos os povos, acaso, a inventar histórias do mesmo feitio?... Não, não creio, minha filha!... Algum fundo de verdade deverá haver nisso tudo!...
-Ouve a tua mãe, Tininha!... - diz o rapaz, ao ouvido da mocinha. - Ouve o que ela te diz!... E tudo verdade!... Tu não deves morrer agora!...
-Engraçado!... - observa a mocinha, animando-se ainda mais. -Parece-me estar a ouvir a voz de João Manuel!... Sinto-o tão perto!... Tão presente!...
-Não te disse?... - diz Bárbara, olhando em derredor. - Quem nos garante que teu amor aí não está, mesmo invisível, a visitar-te?... Que dizes, agora, de tomar um prato de caldo verde, hein?... Olha que te acompanho!... Arre, que estou a consumir-me de fome!...
-Oh, não tens mesmo jeito, mamãe!... - diz a mocinha. - Está bem, esforço-me a engolir algumas colheradas de caldo verde contigo!...
-Bravo, meu amor!... - grita, feliz, João Manuel. - E preciso vencer a dor!... E preciso vencer a tristeza, e eu te ajudarei!... Juro que não sairei mais de perto de ti!...
Mais tarde, quando o dia já avançara bastante, os três espíritos resolvem retornar à mansão de João Miguel. Acomodados no antigo quarto de João Manuel, confabulavam.
-Teresa Cristina anima-se!... - observa, feliz, o rapaz.
-Sim!... - concorda Manuela. - Até conseguiu engolir um pouco de caldo!...
-Irá recuperar-se, por certo, se a ajudarmos - diz Madalena. -Nós, os espíritos, poderemos influenciar, enormemente, os vivos, se assim o desejarmos!...
-Para o bem ou para o mal!... - atalha Manuela. - Dependerá da escolha que fizermos!... E, a falar nisso, precisamos combinar para logo mais à noite...
João Miguel recolhia-se cedo, durante o inverno. Prezava muito manter-se ao lado da lareira, aquecendo-se, enquanto bebericava vinho e lia, coisa que se tornara seu passatempo preferido, nos últimos tempos, uma vez que, com o pensamento mergulhado na leitura, era menos susceptível de ter a mente invadida por laivos de remorso ou por arremetidas de medo infundado ou cismas de que olhos invisíveis vigiá-lo-iam constantemente. As vezes, pensava que era portador de alguma séria doença neurológica; já consultara alguns médicos renomados; tomara os remédios por eles prescritos; sentia ligeiras melhoras, mas, invariavelmente, os mesmos sintomas voltavam. Naquela noite mesmo, por exemplo, não conseguia concentrar-se na leitura. Já abandonara o livro e se resumira a bebericar do vinho, recostado em sua poltrona favorita ao lado do fogo. À memória, alternavam-se-lhe as lembranças do irmão, de Manuela, de Madalena...
- Esses malditos já não mais existem!... - murmura entre dentes. -Que coisa!... Por que é que ando eu a pensar neles?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 10:42 am

De um canto, três sombras espionavam-no, cheias de interesse.
- Será necessário que beba bastante!... - sussurra Manuela aos dois amigos. - Depois de embebedar-se, cairá no sono e, aí então, nós agiremos!... Deixa-me providenciar, para que tenha bastante sede!... ¬e, aproximando-se mais de João Miguel, toca-lhe a fronte com a mão direita e lhe dá o comando: - Bebe, desgraçado!... Tu estás a morrer de sede!... Bebe mais!... - e, aplicando mais a força de vontade, o espírito prossegue, ordenando: - Bebe, João Miguel!... Tu estás com muita sede!...
O rapaz, então, a sentir que a garganta afogueava-se-lhe intensamente, verte, de uma só vez, todo o conteúdo da taça.
- Vamos, demónio!... - prossegue o espírito, agora se colando ao corpo do rapaz. - Tu está com mais sede!... Vai, maldito!... Bebe mais!...
João Miguel apanha a garrafa que mantinha sobre pequena mesa e repleta a taça de bebida. De um só gole verte todo o conteúdo do copo.
- Bravo!... - grita o espírito de Manuela. - Bravíssimo!... - e, coleando como uma serpente, enrosca-se mais e mais ao corpo do rapaz que, inexplicavelmente, sentia-se sufocar por estranho mal-estar. -Vamos, maldito!... Tu só te sentirás melhor com mais vinho!... Vamos, bebe mais vinho!... Mais vinho!... Mais vinho!...
O rapaz, então, tomado de um estranho frenesi, verte uma sucessão de taças de vinho e se sente zonear.
-Oh, já te achas plenamente bêbado!... - diz Manuela, desenroscando-se do corpo do moço que mal conseguia sustentar a cabeça sobre o pescoço, tamanha era a zonzeira a provocar-lhe o álcool. E, depois, postando-se diante do rapaz, grita, plenamente satisfeita: - Agora, vais dormir feito um porco, monstro desgraçado!...
-Sim, aproximemo-nos!... - observa Madalena, postando-se ao lado de Manuela. E prossegue, cheia de expectativa: - Em breve, o infame estará aqui entre nós e então!...
-E, quanto a ti, permanece, aí, oculto pela escuridão! - grita Manuela para João Manuel, que se mantivera mais afastado, e a tudo assistindo, altamente estupefacto. - Assim que chegar o momento aprazado, tu aparecerás!... Faremos, desse modo, uma bela surpresa ao te irmão!...
Sentado na poltrona, ao lado da lareira, João Miguel, tomado pelos altos vapores etílicos, lutava contra a impertinente sonolência que o invadia. Sua cabeça pendia pesada, e ele, utilizando-se de força descomunal, tentava mantê-la erguida, firme. Mas, essa luta, ele a perdeu logo; o sono contumaz venceu-o e, em segundos, viu-se projectado para fora do corpo. Os dois espíritos, por sua vez, aguardavam, ansiosos, que a nuvem brilhante a pairar sobre o corpo adormecido se reorganizasse -facto que aconteceu logo em seguida, muito rapidamente - e, meio trôpego e tomado pelo alcoolismo, João Miguel abre os olhos. Então, a estupefacção:
-Vós?!... - grita ele, enchendo-se de terror. - Afastai de mim, demónios!... - e faz menção de retomar o corpo que jazia adormecido na poltrona.
-Demónio és tu!... - vocifera Manuela e, rápida, agarra-o, firmemente, pelo braço. - Tu não vais escapar, não, covarde!...
-Segurai-o bem, senhora!... - grita Madalena. - Ou ele nos escapará!...
-Que quereis de mim?... - grita o rapaz, agora firmemente contido por Manuela e por Madalena. - Deixai-me em paz!...
-Que te delicies com mais esta surpresa!... - brada, satisfeitíssima, Manuela. E chama: - Anjinho!... Aparece!... Vamos, mostra-te!...
-Tu?!... - grita, estarrecido, João Miguel, ao ver o espectro do irmão que surgia de um canto escuro. - Impossível!... Tu morreste!... Tu foste enforcado!...
Enchendo-se de infinita tristeza, João Manuel coloca-se diante do irmão e o olha firme nos olhos. De imediato, não sentiu pelo outro a intensa raiva que o vinha dominando até então. Teve, sim, muita pena daquele molambo que ali se achava, tremendo-se todo de medo.
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 9 Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 7:00 pm

Em que triste situação o irmão se encontrava!... Agora, tão acovardado, bem diferente do rapaz orgulhoso e altivo que o olhara sempre com arrogância e com desmedido desprezo. O que João Manuel deveras sentiu foi profunda piedade daquele trapo que mal se sustentava diante dele, a tremer como vara verde.
- Como vês, caríssimo João Miguel, não morremos!... - diz o espírito do enforcado, olhando para o outro, firmemente, nos olhos. - Tu pensaste matar-nos, para desenovelar os teus ignóbeis projectos!... Como nós três éramos tropeços para ti e barrávamos as tuas pretensões, tu, simplesmente, resolveste aniquilar-nos, um a um, não é?... - e, abrindo um sorriso cheio de desprezo, prossegue: - Ainda há pouco, eu sentia muita raiva de ti!... Pensava, até mesmo, aplicar-te tremenda surra, para de ti desforrar-me!... Entretanto, agora, percebo o quanto és covarde e abjecto!... Se querias todo o ouro de papai para ti, porque não me disseste logo e às claras?... Eu to daria, de bom grado, e te livraria de cometeres mais um nefasto crime!... - e, enchendo os olhos de lágrimas, prossegue: - Mas não a minha vida, João Miguel!.... Minha vida era-me por demais valiosa!... Quero que saibas que não daria, jamais, a minha vida por todo o ouro do mundo e nem por ti, dá-la-ia, posto que nada vales!... És mais baixo que o mais reles dos vermes a medrar nos monturos!... Antes, pensava, sim, vingar-me, acintosamente, de ti!... Fazeres pagar tudo o que me fizeste!... Mas, não!... Não eu!... A minha natureza não dá para tanto!... Interrompeste-me, covardemente, o curso da minha vida, é verdade!... Contudo, creio, firmemente, existir justiça maior que a que fazem os homens!... A justiça de Deus!... Então, dessa tu não escaparás!... Sabias, caro irmão, que todas as vidas perseguem um sonho?... Sabias que também eu tinha sonhos, apesar de me considerares um bastardo, um usurpador, sem, na realidade, nunca o ter sido?... Que eu era tão legítimo quanto tu?... Não, acho que não sabes!... És por demais egoísta e voltado para o teu próprio umbigo que nada percebes no mundo além de ti mesmo!... Que infantilidade, a minha, pensar que, acaso, entenderias o sonho alheio!... Para ti deixo apenas o meu desprezo!... Infelizmente, ainda não posso dizer que te perdoo, como eu gostaria!... Mas, não posso mentir!... Não posso!... - e, ainda com os olhos cheios de lágrimas, volta-se e se funde à escuridão.
-Anjinho!.... - chama-o Manuela. - Não vais ajudar-nos a dar cabo deste monstro?...
-Mudaste de ideia, é?... - observa, desapontada, Madalena. - Já esqueceste, acaso, o que te fez ele?...
-Não, de nada me esqueci!... - responde o rapaz. E prossegue, com a voz amargurada e sem se mostrar do escuro onde se recolhera: - A minha dor é ainda muito forte!... Forte demais para que eu pense com clareza!...
-Deixemo-lo, senhora!... - cochicha Madalena. - Anjinho mostra-se por demais sentimental!...
-Sim!... - concorda a outra. - Mas não nós!... Se ele não nos quer ajudar, paciência!... Continuemos nós duas!...
-Sim!... - diz Madalena. - Façamos este desgraçado pagar por tudo o que nos fez!... - e, lançando-se sobre o apavorado João Miguel, aplica-lhe uma série de safanões e lhe arranha a face com as unhas.
Manuela, por sua vez, grudava-se ao corpo do rapaz, envolvendo-o como se fosse espesso manto cheio de imundície e de fedor. Depois de minar-lhe totalmente a resistência, prossegue, a tocar-lhe a fronte com a destra:
- És um verme!... - repete, sistematicamente, a antiga Baronesa da Ajuda. - És um verme imundo!... És o opróbrio da natureza, um vil e nojento verme!... Não mereces viver sobre a terra!... Deves morrer!... Deves morrer!... Tua vida nada vale!... Nada vale!... Deves buscar a morte!... A morte!...
O rapaz, ao contado da mão de Manuela, sente-se mal. As ideias principiam a confundir-se-lhe à cabeça; desejava gritar, livrar-se do terrível assédio das duas mulheres, mas fraquejava, achava-se impotente, pois as forças como se lhe sumiam, e o terror e o desespero invadiam-no. Seu corpo, recostado na poltrona, ressonava, mas se agitava enormemente; uma sucessão de ininteligíveis grunhidos escapava-lhe dos lábios entreabertos. João Miguel sofria intensamente. E, enquanto as horas avançavam noite adentro, os dois espíritos, incansavelmente, judiavam do rapaz. E, somente quando as primeiras luzes da aurora principiaram a romper as frestas dos janelões do quarto, é que Manuela e Madalena interromperam a sua sessão de tortura. E, mesmo altamente lanhado e arrebentado pelos dois espíritos, João Miguel, achando-se livre, num átimo, saltou sobre o seu corpo que ressonava na poltrona. Um instante mais, e se acordava. Bastante zonzo, abre os olhos e os preme forte, por diversas vezes, para acomodá-los à penumbra.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 7:00 pm

O fogo da lareira apagara-se por completo, e frio intenso invadia o ambiente. Congelado e grandemente estremunhado, levanta-se, com as pernas a tremerem-se-lhe pelo incómodo da noite mal dormida na poltrona, e busca, ligeiro, por mais agasalho e, aproximando-se do toucador, olha-se no grande espelho de cristal: tinha a aparência horrível. Verte água na bacia de louça e lava o rosto e os olhos. O contacto da água gelada pareceu minorar-lhe um pouco a zonzeira. Sentindo-se um tantinho melhor, enche uma taça de vinho e dela sorve um gole grande. A acção do álcool, num instante, aquece-o e o enganoso bem-estar dele advindo principia a clarear-lhe a mente. Volta a sentar-se. Não tinha ainda ânimo para reacender o fogo da lareira. Bebe mais um bom gole de vinho. As ideias principiam a normalizar-se. Lembra-se. aos POUCOS. dos sonhos.
- Que absurdo!...- murmura, altamente contrariado. - De novo aqueles pesadelos!... Haviam cessado e ora retomam!... - depois, como vaguíssima lembrança, surge-lhe a imagem do irmão a dizer-lhe coisas. Não se lembrava do que lhe falara o outro, mas súbito mal-estar acomete-o. - Até o bastardo, agora, deu de vir atormentar-me aos sonhos!... Mais essa!... - resmunga ele, altamente irritado e, bastante descontente pela noite mal dormida, apanha a sineta de prata e, sistematicamente, acciona-a a chamar por seu mordomo. Estava com frio e não tinha o mínimo de ânimo para reacender o fogo da lareira. João Miguel sentia-se mal, deveras muito mal...
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1. A grande maioria dos espíritos, quando recém-libertos do corpo, ainda sofre, intensamente, a impressão da materialidade, como dor, sede, fome ou sono.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 7:01 pm

Capítulo 29 - Nas malhas da obsessão
As noites cheias de horripilantes pesadelos sucediam-se, sem tréguas, a João Miguel. Fazia, já, algumas semanas que o rapaz não sabia mais o que era dormir sossegado, sem os estranhos pesadelos a atormentarem-lhe, incessantemente, o sono. Voltara a consultar-se com o célebre médico de Lisboa; retomara o uso dos medicamentos por ele receitados, entretanto o tratamento de nada mais lhe valia; consultara-se com outros médicos, mas tudo resultara em fracassos!... Nenhuma cura, nenhuma melhora sequer!... Pelo contrário, o nervosismo exacerbava-se-lhe sobremaneira, seguido de intensas crises de enxaqueca a martirizarem-no, com excruciantes e contumazes dores que, invariavelmente, arrastavam-no ao leito por horas a fio. Extremamente combalido, emagrecia a olhos vistos e, com os nervos sempre à flor da pele, exasperava-se com a sua situação. Que lhe valia ser tão rico, se não tinha paz?... Vivia a maior parte do tempo trancado em seu quarto, a cuidar dos achaques!... Às vezes, intentava viajar a Paris ou a Londres, com o propósito de buscar medicina mais avançada, mas, daí a pouco, desanimava-se: Paris e Londres ficavam tão distantes de Lisboa que, só o fato de pensar na longa viagem e na hipótese de ter de aguentar dias e dias, sem dormir direito, além das insuportáveis dores de cabeça, faziam-no desistir da ideia. Deveria haver outra maneira de livrar-se de tais males!... Por outro lado, mesmo sendo altamente egoísta, principiava a sentir-se só. Na época em que era saudável, considerava-se auto-suficiente e muito pouco necessitava dos outros; entretanto, agora que a incapacidade principiava a rondá-lo, passava a sentir-se frágil, a olhar em derredor, em busca de outros... Entretanto, nenhum dos parentes sobrevivera-lhe, e os criados, por sua vez, resumiam-se, apenas, a servi-lo, agindo como sombras, sempre temerosos de serem escorraçados quais cães pestilentos pelo constantemente irascível patrão!... Apenas Amélia, a velha governanta, atrevia-se a aproximar-se mais amiúde e o aconselhava, quando em vez, mas era, frequentemente, repreendida, quando não, veementemente e aos berros, levada a calar-se pela furibunda grosseria do rapaz.
Certa tarde, quando os primeiros sinais da primavera já se faziam notar na tumescência dos refilhos dos ramos das árvores do parque, e os estorninhos já principiavam a deixar os seus seguros abrigos de inverno e desferiam rasantes voos por entre o arvoredo do bosque, João Miguel atreveu-se a descer até o jardim. Tímido sol abria-se, por entre as derradeiras nuvens da chuva hibernal, e o rapaz sentou-se sob o caramanchão ainda totalmente desfolhado pela severidade do inverno. De repente, lembrou-se de que aquele era o lugar favorito da mãe, que ali se sentava para os chás, nas cálidas tardes de verão. A mãe... Pouco lhe sentira a morte, pois sempre a tivera distante, chorosa, a lamentar o desaparecimento daquele... "Ah, desgraçado!..., pensa João Miguel, a rilhar os dentes, de ódio. "Foste sempre o culpado de todas as desgraceiras acontecidas nesta casa!... E, mesmo depois de morto, ainda andas a atazanar-me as ideias!..."
Da janela do seu quarto, Amélia espia o rapaz sentado sob o caramanchão. Vê-o abatido e magro, a barba por fazer, desleixado no vestir-se e se sente tocar. Ela o houvera criado!... Mesmo sendo ele de temperamento tão iracundo e apesar de correr o risco de ser enxotada, Amélia decide-se por aproximar-se de João Miguel. Tinha de ajudá-lo a vencer o que ela julgava ser o difícil transe da perda dos pais, seguido da morte do irmão, ocorrida em situação tão deplorável!
- Posso sentar-me junto de ti?... - pergunta a governanta, aproximando-se.
João Miguel limita-se a dar de ombros, indiferente.
- Não desejas abrir o teu coração?... - pergunta Amélia, tomando a mão do rapaz. - Sei que estás a sofrer; quem sabe não te poderei ajudar?...
João Miguel olha-a de soslaio. Achava-se tão desanimado da vida!... De que valia poder-lhe-ia ser aquela velhota besta?... Sequer se dá ao trabalho de responder. Abaixa a cabeça, desolado.
- Olha, sei que algo está a machucar-te enormemente!... Sei que estás a sofrer bastante!... - diz Amélia. - E sei, também, que te achas a tomar remédios, pois vi os frascos em teu toucador!... Não queres revelar-me que mal está a acometer-te?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 04, 2024 7:01 pm

João Miguel volta a encarar a governanta. Sim, de todas as pessoas da sua vida, ela lhe fora sempre a mais próxima; a ela sempre recorrera, nas dificuldades da infância, nas dúvidas da adolescência... E, deixando o orgulho de lado, aponta para a própria cabeça e nela bate com a ponta do dedo, por várias vezes.
-Achas-te mal da cabeça?... - pergunta Amélia, preocupando-se. -Que tem a tua cabeça?...
-Dói-me... - murmura João Miguel. - Dói-me muito e me acho confuso: não durmo direito, tenho pesadelos horríveis, pressinto vultos a espionarem-me, mesmo durante o dia... - e, aumentando a voz, já às raias da exasperação, prossegue em desabafo: - Os mortos perseguem-me, Amélia\... Estou a endoidecer!...
-Oh, é claro que tais coisas não existem, meu menino!... Os mortos a ninguém perseguem!... É tudo fruto da tua imaginação!... - exclama Amélia, atraindo-o ao colo e lhe afagando, amorosamente, os revoltos cabelos. - Todos se foram, e tu ficaste só!... E acho que te encontras, sim, doente!... Mas doente da alma!... Que tens feito pela tua alma?... Pelo que sei, nada!... Perdeste o vínculo com a Igreja!... Quanto tempo faz que não assistes a uma missa?... Quando confessaste os teus pecados a um padre?... E quando foi a última vez que comungaste?...
-Nem me lembro... - murmura o rapaz, com o rosto aninhado ao colo da governanta.
-Pois, digo-te que precisas de um padre!... - aconselha-o a mulher. - Olha, porque não procuras por Dom Eusébio?... Sempre foi grande amigo dos teus pais!... Ninguém melhor que ele, a aconselhar-te!... Se desejares, irei contigo!...
João Miguel cogita por instantes. Dom Eusébio já o aconselhara e o advertira antes. Acaso aquele intrometido já não estivera ali, antes, a encher-lhe as paciências, na tentativa de mediar a demanda que mantinha com o irmão?... Aquele bispo sempre fora amigo do bastardo usurpador!... Não, qualquer um outro, mas não Dom Eusébio!....
-Não poderíamos visitar um outro? - sugere o rapaz. - Dom Eusébio nunca me foi muito simpático!... Sentir-me-ia mais à vontade com um outro...
-Pois te afirmo que não há, em toda a Lisboa, alguém mais preparado que ele!... - observa, firme, a governanta. - Como pressinto que o teu caso seja deveras grave, insisto em que o procures!... Ora essa!...
Vamos, deixa de lado tais ideias preconcebidas acerca daquele santo homem!... Ele não é nada do que imaginas!... Estás é com reservas, isso sim!... Que te pode dizer ele, a não ser sábios conselhos?...
- Está bem - aquiesce o rapaz. No momento não se achava em reais condições de contradizer Amélia. Ela se animava em ajudá-lo, e isso se lhe afigurava muito bom, no meio da penúria moral em que se encontrava.
Na manhã do dia subsequente, a luxuosa carruagem do Barão da Reboleira estacionava diante dos portões da mansão episcopal. Pachorrento como sempre, o padre-mordomo aparece.
-A quem devo anunciar, Excelências?... - pergunta ele em sua costumeira fleuma.
-O Barão da Reboleira - diz Amélia, adiantando-se. - Reverendíssimo padre, fazei o favor de anunciar a Sua Excelência, o bispo, que o senhor João Miguel Ramalho e Alcântara solicita uma audiência!
Em pouco, Dom Eusébio estudava, minudentemente, as feições altamente descompostas do rapaz ali sentado à sua frente. Achavam-se ambos a sós, no gabinete do bispo. A governanta aguardava o desenrolar da entrevista em sala de espera contígua.
- Em que te posso ajudar, meu filho?... - pergunta o bispo, com a sua costumeira amabilidade e depois de alguns instantes a analisar-lhe, atentamente, o esquálido semblante.
O rapaz permanece cabisbaixo, sem a mínima coragem de encarar o bispo. Por momentos, permanece calado, como se ordenasse as ideias.
-Preciso dos vossos conselhos, Excelência!... - diz, por fim, João Miguel, sem, entretanto, olhar para o rosto do prelado.
-Gostaria que olhasses para mim... - diz Dom Eusébio, amável. -Por que te martirizares agora?... O remorso apenas serve para a busca da reflexão, e esta, somente para o reparo dos erros cometidos!... Para nada mais vale a mortificação!...
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-Como sabeis que me acho roído pelo remorso?... - espantado, pergunta o rapaz, pela primeira vez, olhando nos olhos do bispo. - Que sabeis sobre mim, na verdade?
-Penso saber sobre ti muito mais do que supões, meu filho!... - diz o bispo, tomando as mãos do jovem barão. E, sem nenhum laivo de censura ou de recriminação à voz, prossegue: - Acho que te recordas da última vez de quando contigo estive... Disse-te que devias aceitar o teu irmão, repartir com ele o que herdaste do teu pai... Mas, temo que, pelo estado em que te encontras, não somente deixaste de fazer o que te pedi, como ainda deves ter tudo a ver com a infamante morte de João Manuel!...
João Miguel baixa os olhos. Não conseguia olhar para o rosto do bispo. E, tomando-se de choro convulsivo:
- Tendes razão, senhor!... - brada ele, com as palavras molhadas pelas lágrimas. - Por que foi que não vos escutei?...
Dom Eusébio levanta-se de sua cadeira, rodeia a secretária e toma o jovem aos braços.
-É bom que chores!... - diz o bispo, afagando, ternamente, os ombros de João Miguel. - Desabafa!... Põe para fora todo o mal que te afoga!...
-Sim, Dom Eusébio... Eu o matei!... - explode o rapaz, cobrindo o rosto com as mãos. - Matei o meu irmão por ciúme, por despeito, por orgulho, por cobiça!...
-Eu sei!... - diz o bispo, afagando-lhe, amorosamente, os cabelos. -Eu sei!... Todo esse entulho de péssimos sentimentos que acabaste de relacionar cegou-te!... E tu te tornaste um assassino por isso!... Não tiveste a capacidade de amar ao teu irmão e, então, o ódio dominou-te o coração por completo!...
-Oh, meu Deus!... - diz o rapaz, tomando-se de desespero extremo. - Eu não tenho paz!... Eu não tenho paz!... Os mortos vivem a perseguir-me nos sonhos!...
-Disseste "mortos"?... - pergunta Dom Eusébio, estranhando o plural. - Acaso há mais gente envolvida?...
-Sim!... - explode o rapaz, em desespero. - Matei mais duas pessoas!... Há mais dois cadáveres a pesarem na minha consciência, senhor!... Manuela e uma prostituta do cais do porto!...
-Deus do céu!... - murmura Dom Eusébio, tomando-se de alto estarrecimento. - Mas por que as mataste?...
E, laconicamente, o rapaz relata os motivos que o levaram, também, a assassinar as duas mulheres. Dom Eusébio cala-se por instantes. E, altamente compadecido daquela alma que se envolvera em tão pesados crimes, diz:
- Recordas que te disse que o remorso e a mortificação para nada valem a não ser conduzirem à reflexão e, depois, ao arrependimento, e que a isenção do crime só se efectivará quando voltares atrás, a consertar os erros cometidos?... Pois bem, meu filho, só a reparação das tuas falhas é que te devolverá a paz!... Nada, além disso!...
-Mas, como poderei reparar os meus crimes, se as pessoas estão mortas?... - indaga o rapaz, sem entender as palavras do bispo. - Acaso sabeis como de volver-lhes a vida?...
-Não na acepção que pensas... - reponde o bispo. E, abrindo ligeiro sorriso, prossegue: - Ressuscitar mortos ainda não sei como fazer, mas deverás recompensar as tuas faltas em igual intensidade!... Doa, agora, a tua vida em favor do teu próximo!... Acaso não és detentor de fortuna incalculável?... Pois bem, aplica-te, doravante, a reparar o mal que fizeste!... Não há que ser, necessariamente, aos que, directamente, tu atingiste, com os teus actos egoístas!... Direcciona, pois, o teu amor a outras criaturas e terás o ressarcimento dos teus débitos tenebrosos, diante dos olhos de Deus!... Isso eu te garanto!... A misericórdia do Pai possui mecanismos a suprirem todas as nossas fraquezas e deficiências!...
-Mas, como?... - pergunta o rapaz, ainda sem entender as palavras do bispo.
-A miséria, João Miguel!... - diz Dom Eusébio, abrindo os braços em largo gesto. - A miséria e a dor imperam por todos os lados!... Basta que saias de dentro do teu egoísmo e olhes em derredor!... Mas que olhes bem, com os olhos do coração!... E que enxergues a orfandade, a velhice abandonada, a mendicância, a fome e a miséria extremas a campearem por todo o canto!... Se, de fato, verdadeiramente arrependido dos teus nefastos crimes, tu te bandeares para o lado de Jesus, e Lhe seguires os passos, afirmo-te que ninguém mais te perseguirá!... Juro-te, por Deus, que assim será!... Limpa a tua alma, meu filho, enquanto ainda tens tempo!...
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