LUZ ESPÍRITA
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 7 Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 10:46 am

Pouco depois e à semelhança de um reles ladrão, atira a corda com um gancho à ponta e, sem muita dificuldade, escala o alto muro de pedras. A. escuridão da noite de inverno facilitou-lhe a rápida escalada e, em Pouquíssimo tempo, galgava o muro, descendo, já, do outro lado. Uma vez no meio do bosquete, caminha sem muita dificuldade, posto que conhecia muitíssimo bem o lugar e, camuflado pela escuridão reinante, chega até o limiar do bosque que divisava, do outro lado, com o jardim que margeava toda a residência. Espia a casa, que se iluminava parcialmente, apenas na parte fronteiriça; as demais dependências encontravam-se totalmente às escuras. O rapaz dá-se por satisfeito e se oculta atrás do tronco de uma árvore. Agora era só esperar... Esperar e pôr em prática o plano. Sabia onde Manuela guardava as jóias!... Jóias espectaculares; preciosíssimas e raras jóias que ele iria roubar e depois... E se ri satisfeitíssimo, antegozando, enormemente, o resultado do escândalo!... Depois, escondê-las-ia todas no quarto do irmão!... E, o passo seguinte seria só fazer a denúncia!... O tal não era um ladrãozinho à toa que viera das ruas?... Não teria ele, acaso, o hábito de roubar?... Ninguém o sabia... "Oh, como poderia imaginar que meu irmãozinho, vindo das ruas, tinha o terrível hábito de roubar, senhor inspector Venâncio da Silveira?...", pensa ele e se ri. "Mas, não o defenderei, caríssimo inspector!... Faça cumprir-se a lei!... Se roubou, terá de pagar pelo seu crime!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...".
O espírito de Madalena, que se postava bem colado a ele, também se ri. "Tu verás, desgraçado, quem é que se rirá com mais gosto!...", pensa o espectro, com expressão feroz ao rosto, e a olhar para o rapaz, tinindo de ódio. "Pensas que sairás vencedor também desta vez!— Mas, aqui estarei para garantir que faças tudo errado!..."
Bom tempo depois, um coche estaciona no pátio calçado de pedras, diante da mansão. A fraca iluminação dos lampiões a óleo dos postes que ladeavam o jardim fronteiriço permite a João Miguel divisar o irmã que saltava do carro e, resolutamente, punha-se a galgar os degraus d mármore branco da escadaria da entrada principal.
- O maldito acaba de chegar!... - murmura João Miguel entredentes. - Aguardemos!... E preciso ter paciência, muita paciência deixar as horas correrem!... Não tenho pressa!... Que conversem bastante, que bebam bastante vinho... Depois, que jantem... E, quando se acharem despreocupados, sonolentos, já bem mais tarde, agirei co total segurança...
O tempo correu devagar. A noite avançou. A mansão foi silenciando; a maioria das luzes foi apagando-se; a criadagem, exausta e sonolenta pela extensa faina do dia, recolhia-se a seus cubículos para o merecido
descanso. Ao ouvir que o ruído característico vindo do salão de jantar foi diminuindo, João Miguel deixou, sorrateiramente, seu esconderijo e se dirigiu, como uma sombra, para a ala dos dormitórios e, com precisão total, arremessou a corda com o gancho à ponta, que se prendeu, com bastante facilidade e já na primeira tentativa, à grade de ferro do balcão de uma das janelas do amplo aposento de Manuela. Em seguida, lépido como um gato, escalou a alta parede e, em pouquíssimos minutos, estava ele lá em cima, a forçar a janela que não lhe ofereceu muita resistência e, abri-la, não lhe custou mais que alguns minutos de minuciosa sondagem com a afiada ponta de seu punhal. Em pouco tempo, encontrava-se no amplo dormitório de Manuela. Leve penumbra invadia o quarto, semi-iluminado pelas velas de um castiçal, a arderem bruxuleantes, sobre um dos aparadores. O rapaz sonda, minuciosamente, o ambiente. Em seguida, encaminha-se até a porta que se achava cerrada e examina a maçaneta. A fechadura encontrava-se destrancada. Aquilo poderia ser um transtorno para ele; entretanto, se trancasse a porta a chave, por dentro, e alguém chegasse, estranharia o fato. Teria de correr o risco de ser surpreendido ali; entretanto, conhecia os hábitos de Manuela. Dificilmente ela se dirigiria aos seus aposentos naquele momento; costumava deitar-se muito tarde e se encontraria, possivelmente, em companhia de João Manuel e da prima, agora, na sala de estar, a bebericar taças e mais taças de vinho licoroso. Não se importou muito com aquele detalhe e optou por deixar a porta destrancada. Volta a concentrar-se em seu objectivo maior: as jóias. Sabia onde Manuela guardava-as, pois, das inúmeras vezes em que ali estivera, a usufruir-lhe da intimidade, notara onde ela guardava seus petrechos valiosos. E, sem titubear, põe-se a forçar, com a ponta do seu punhal, a fechadura da porta de grande armário de carvalho negro, executado em pesado lavor. A fechadura, embora pequena, era de robusta constituição e se lhe opunha certa resistência à abertura, e ele, pertinazmente, insistia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 10:46 am

Percebeu, depois de instantes de tentativa, que não lhe iria ser muito fácil devassar aquela tranca, mas, como costumava ser deveras obstinado em seus propósitos, não iria desistir, por certo. E, ao seu lado, a insuflar-lhe ensejos de persistência no esbulho do móvel, o espírito de Madalena encoraja-o a continuar, sussurrando-lhe, insistentemente, aos ouvidos: "Vamos, tolinho, tu abrirás essa tranca!... Tu sabes que a abrirás... Não vais desistir, agora que estás tão perto de realizares o teu intento!...",
e se abre num sorriso cheio de cinismo. "E, aguarda-me, aí, compenetrado em teu mister, que já me vou a arranjar-te a encrenca”- e emite estrondosa gargalhada, pejada de satisfação: - Ha!... Ha' Ha!... Ha!...
Em seguida, satisfeitíssimo, o espectro de Madalena deixa o quarto e se dirige ao salão de visitas onde se achavam os três - Manuela João Manuel e Teresa Cristina - a bebericar vinho e a conversar.
- Dizes, então, que Dom Eusébio esteve com o teu irmão? - perguntava a esposa de Afonso Albuquerque e Meneses, no exacto momento em que Madalena adentrava o salão.
- Sim, Dom Eusébio lá esteve, dias atrás, a confabular com João Miguel por toda uma tarde - responde, desolado, o rapaz. - Entretanto, nosso querido amigo, apesar de ter empregado todos os seus argumentos de bom conselheiro que, indubitavelmente, sempre demonstrou ser, nenhum milímetro sequer conseguiu demover das ideias preconcebidas que meu irmão, infelizmente, faz ao meu respeito!... Considera-me um intruso, um usurpador!...
O espectro de Madalena, então, posta-se bem no meio dos três, que se achavam confortável e despreocupadamente sentados nos divãs e fita, demoradamente, o rosto de Manuela. Por instantes, fica a admirar-lhe a estonteante beleza, a riqueza do lindíssimo vestido de veludo branco, o esplendor das jóias que ostentava e a desenvoltura dos gestos.
- Tu me servirás aos propósitos, madama!... - exclama o espírito, em seguida, colocando-se bem próximo de Manuela.
E, com firme e preciso gesto, pondo nele toda a sua vontade, dá violento tapa à mão de Manuela que segurava delicada taça de cristal cheia de vinho. A Baronesa da Ajuda, então, como que lhe percebendo, intrinsecamente, o brusco gesto, pareceu assustar-se e, estouvadamente, deixa a taça tombar-se-lhe sobre o colo! O líquido rubro ensopa-lhe o vestido, abrindo larga nódoa rubente.
- Oh, que maçada!... - exclama Manuela, altamente amolada pelo gesto estabanado que fizera, ao entornar a taça de vinho sobre si mesma.
- Molhei-me toda!...
-Ah, que lamentável desastre, prima!... - exclama Teresa Cristina.
- Tais coisas soem acontecer, Manuela!... - diz o rapaz, consolando-a.
- Paciência!... Deve ser o sono a vir ligeiro!... Já é bem tarde!...
- Oh, que remédio!... - exclama ela, levantando-se. - Mas, deve ser mesmo o sono a chegar. Ou o vinho!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... -gargalha e prossegue, a emitir extenso bocejo: - Ui, que me pesam tanto os olhos!.. Devo recolher-me, sem delongas, ou acabarei por aqui cair, mortinha de sono, diante de todos!... Mas, não te vás, ainda, por isso, Anjinho... Melhor pernoitares connosco!... Não te quero a viajar pelos caminhos, a altas horas da madrugada!... Tu, possivelmente, serás meu parente, e não desejo que passes apuros por aí!... - e, voltando-se para a criada que, inutilmente, tentava limpar a mancha de vinho do vestido da patroa com a ponta do avental: - E, quanto a ti, Inácia, vai dormir, que te achas mais tonta de sono do que eu!... Se me vens ao encalço, só me atrapalharás, com a tua lerdeza!... Deixa que me viro sozinha!... Antes só que mal acompanhada!... Anda, pára de amolar-me com esse horroroso avental!... Passa fora daqui, sua tonta!...
A criada faz ligeira mesura e sai a cambalear de tanto sono. E, não menos trôpega que sua serviçal, Manuela sai em seguida, tomando o rumo dos seus aposentos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 10:46 am

João Manuel e Teresa Cristina permanecem a sós a conversar no salão de visitas. Neste exacto momento, João Miguel já houvera arrebentado a fechadura da porta do armário e, facilmente, encontrara o porta-jóias de Manuela e, antes de surripiar algumas daquelas preciosidades, abrira o baúzinho de prata, onde estava o valioso tesouro, e se achava prestes a guardar algumas das peças mais vistosas em sua sacola, quando ouve o ruído da maçaneta da porta girando. Surpreendido pelo inesperado, o rapaz mal tem tempo de apanhar o punhal que trazia preso à cintura, e Manuela já adentrava o quarto.
- Tu?!... - exclama ela, estarrecida. - Que fazes aqui, a agires, assim, à sorrelfa?...
O rapaz nada diz. Movido pelo nervosismo ou mesmo atiçado pela intensa contrariedade a lhe desviar os planos, já em plena execução, enraivecesse-se, grandemente; puxa, então, a mulher, bruscamente, pelo braço, e, violentamente, tapa-lhe a boca com uma das mãos. E, numa rapidez estupenda, sem que ela, na verdade, pudesse sequer perceber o que de fato ocorria ali, finca-lhe, friamente, o punhal ao peito, em golpe firme, certeiro, fundo...
A Baronesa da Ajuda emite um longo gemido, pungente, de intensa dor e leva ambas as mãos ao peito. Uma imensa mancha brota-lhe, instantaneamente, vermelho-escura, fundindo-se à outra, já ali existente.
- Maldito!... Monstro!... - balbucia ela, encarando-o com os olhos desmesuradamente abertos. E, emitindo longo e fundo gemido de dor tomba, pesadamente, sobre o piso de granito cinza.
O espectro de Madalena, postado ao lado, a tudo assistia, estarrecido Deus do céu!... Não previra aquilo!... O demónio matara a mulher! Cometia outro nefando crime, sem titubear!...
- Maldito!... Demónio!... - grita Madalena, tentando, inutilmente agarrar o rapaz com as mãos e ali segurar o infeliz que, colocando apressadamente, as jóias de Manuela à sacola, ansiava por deixar, rapidamente, o local.
Recolhidos, rapidamente, os objectos que desejava, João Miguel encaminha-se à porta e a tranca à chave. E, antes de deixar o quarto, olha para o cadáver de Manuela que jazia de bruços no meio de uma poça de sangue.
- Que pena que acabaste assim, caríssima Manuela!... - murmura ele. E, meneando a cabeça, prossegue: - Pena, mesmo, pois tu sabias levar um homem às estrelas como ninguém!...
Depois, ligeiro, João Miguel ganha a janela e, com bastante habilidade, fecha-a atrás de si. Precisava, bem depressa, deixar aquele local. A porta do quarto, agora, achava-se trancada por dentro. Todos imaginariam Manuela a dormir e, possivelmente, o corpo só seria encontrado quando o dia clareasse e bem tarde!... Agora, era mister safar-se dali mais rápido possível, pois, em hipótese alguma, poderia achar-se ligado àquele crime!... Ser-lhe-ia fatal!... Ao deixar o balcão, a descer, rapidamente, pela corda, até o chão, percebia que nada se movia dentro da casa ou em derredor dela, sinal de que sua entrada ali não fora notada. E, uma vez lá embaixo, rapidamente, desvencilha a corda do balcão e a recolhe. Não poderia deixar nenhuma prova patente de que alguém mais ali estivera!... A culpa de tudo aquilo deveria recair, plenamente, sobre o irmão!... Pelo que sabia dos hábitos do outro, o talzinho pernoitaria n mansão, fato que lhe agravaria ainda mais as suspeitas que, fatalmente recairiam sobre ele, como autor do assassinato de Manuela. Agora, j caminhando ligeiro, por entre as árvores do bosque, e protegido pelas trevas da noite, João Miguel, aos poucos, sentia-se aliviar da enorme tensão. O golpe saíra-lhe melhor que a encomenda!... Rápido, chega a muro da divisa com a ma e ligeiro, arremessa a corda com o gancho. Vencido o derradeiro obstáculo, ganha a ma e, quase a correr, rapidamente, alcança o coche que o aguardava em lugar próximo. Cutuca o cocheiro que dormitava e, em pouco, sentia-se serenar, totalmente, reclinado ao assento da sua carruagem, rumando de volta a casa. No escuro do carro, ri-se satisfeitíssimo com a própria actuação.
_ Saiu-me melhor que a encomenda!... - murmura, abrindo pleno sorriso de satisfação. - Agora, caríssimo irmão bastardo, não mais o desterro para além-mar, mas a forca!... Para o latrocínio não há perdão ou misericórdia!... Os juízes são implacáveis: forca!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!..- E, mais um pequeno detalhe para que tudo se resolva a contento: que descubram o cadáver da bela Manuela e o consequente sumiço das suas jóias, as quais pretendo, ainda esta noite, ocultar em teu quarto!... Depois a denúncia!...
A seu lado, extremamente encolerizado, o espectro de Madalena olhava-o com olhos carregados de ódio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 10:46 am

- Ah, desgraçado!... - murmura o espírito, tentando, inutilmente, aplicar-lhe violento bofetão à face. - Mais uma vez tu te saíste bem!... Menosprezei-te a esperteza!... Oh, como fui imbecil, crendo que poderia vencer-te, que poderia enredar-te nas teias que tu mesmo urdiste!...
Algum tempo depois, João Miguel chegava a casa. Tudo estava em absoluto silêncio e, disso se aproveitando, sem fazer o mínimo ruído, encaminha-se aos aposentos do irmão e experimenta a maçaneta da porta. Estava aberta!... O imbecil não cultivava o hábito de trancar a porta ao sair!... Entra, então, e procurando lugar específico, oculta, rapidamente, as jóias roubadas de Manuela entre os pertences do irmão. Depois, emitindo largo sorriso de prazer, encaminha-se a seus próprios aposentos. Estava exausto. Em breve, o dia amanheceria, e ele precisava dormir. Seria preciso, então, aparentar descanso e fingir naturalidade e assombro para logo mais, quando as notícias da tragédia chegassem...
Antes, porém, de ganhar o leito, João Miguel serve-se de grande taça de vinho. Estava sedento e faminto pelo grande esforço despendido. Despe-se das roupas sujas e se veste para dormir; em seguida, senta-se numa poltrona e passa a degustar, demoradamente, o vinho, em goles curtos, enquanto rememora, passo a passo, as acções daquela noite. Intensa satisfação enche-lhe o peito. Na semi-obscuridade do quarto, abre um sorriso pleno de contentamento.
- Agora verás, bastardo, se meterás as tuas imundas patas na metade de tudo o que me pertence!... - murmura baixinho. - Pensaste, acaso, que me roubarias, idiota?... Ah, jamais deixaria que fizesses isso!... Jamais imbecil!... E, ainda, de vantagem, pretendias, também, levar a mulher que escolhi por minha companheira?... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... Ah como menoscabaste a minha inteligência!...
A um canto, o espectro de Madalena olhava-o, cheio de ódio.
- Mais um pouquinho, demónio!... - exclama o espírito, a rilhar os dentes de raiva e de indignação. - Mais um pouquinho e tu verás!...
Em pouco tempo, o cansaço e os vapores do vinho trazem sonolência insustentável a João Miguel. Zonzo pelo sono, depõe a taça sobre um móvel e se lança sobre a cama. Em segundos, dá-se a metamorfose de que os homens não costumam lembrar-se com muita clareza, quando em vigília. Mal o rapaz arrojara-se inerte sobre o leito, espessa nebulosidade brilhante passou a flutuar-lhe um palmo acima do corpo exangue. E, agitando-se em rapidíssimo torvelinho, a nuvem cintilante tomou a forma do corpo que dormia sobre a cama.1 Cópia fiel do outro, só que, mais subtil, mais iridescente, mais brilhante, como se fosse de névoa. Então, ligeira como uma raposa, Madalena aproxima-se e o agarra, ferozmente, pelo pescoço.
- Maldito!... Demónio!... - grita o espectro da assassinada, altamente enfurecido, tentando esganar o outro.
- Tu?!... - exclama a forma espiritual de João Miguel, tomando-se de terror. - Não pode ser!... Matei-te tempos atrás!...
- Pensas que me mataste, demónio dos infernos!... - grita o espírito, lanhando as faces do rapaz com as unhas. - Mas, aqui estou, muito viva para vingar-me de ti!...
- Não!... - brada o rapaz, tentando desvencilhar-se do ataque de Madalena. - Isto é um pesadelo!... Não é possível!... Eu te matei!... Tu estás morta!...
- Enganas-te, meu caro!... - grita o espírito, lançando novo e feroz ataque com as unhas. - Não existe morte!... Tu verás como te equivocas!... Achas, também, que, há pouco, mataste Manuela, não é?.. Mas tu a verás viva!... Ah, se a verás!...
João Miguel, tomado de alto desespero, tentava desvencilhar-se dos briosos ataques de Madalena. Em vão, lutava para retornar ao corpo, mas este se encontrava altamente extenuado e necessitava de refazer as forças, situação em que o espírito não consegue retomar a vigília. Madalena exultava.
- Percebes, desgraçado?... - grita ela, humilhando-o e o tratando como igual: - Hoje te encontras tão cansado pelo esforço que despendeste, ao executares teu nefando crime, que o teu corpo não te obedece!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 10:47 am

- Deixa-me, maldita!... - exclama o rapaz, desesperando-se. E ameaça: - Ou te matarei de novo!...
- Ah, é?... - diz Madalena, arrostando-o. E bazofia, enchendo-se de finíssima ironia: - Pois, fazei-o, senhor Barão da Reboleira!... Fazei-o, se tendes tal poder!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... Mortos não podem mais morrer, Excelência!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
João Miguel sente-se desesperar. Aquilo era um pesadelo!... Sim, não passava de um terrível pesadelo e, logo, iria acordar-se e se livrar daquela louca!...
- Pensais que estais a sonhar, não é, senhor barão?... - prossegue Madalena, sarcástica, com o intuito de atormentar o rapaz. - Mas, garanto-vos que não vos achais a sonhar, não, Excelência!... Não existe morte!... Ledo engano pensar-se que se mata alguém!... Ninguém morre!... - e, apontando para o corpo do jovem que ressonava sobre o leito, prossegue cheia de desdém: - Morre, sim, o corpo, como podeis facilmente observar o vosso que aí se encontra!...
João Miguel olha para o seu corpo que jazia, displicentemente, sobre o colchão. Aproxima-se e o observa atentamente. Teria razão aquela mulher enlouquecida, toda ensanguentada, suja de lama até os olhos e a exalar um terrível odor pútrido, a causar-lhe intenso enjoo ao estômago, e que ele, pretensamente, matara, tempos atrás?... De repente, tremeu. E se ela tivesse razão?... E se, de fato, não morremos?...
-Asseguro-vos, senhor barão, que ninguém morre!... - continuava ela, furiosa, rodeando-o feito uma galinha choca afrontada em seu ninho. -Muito em breve deduzireis que tenho razão!... Atormentar-vos-ei, noite e dia, sem tréguas, até que enlouqueçais!... E espero aliar-me à Manuela, coitadinha, que, nesta fatídica noite, também pereceu, covardemente abatida, pela acção do vosso traiçoeiro punhal!...
Um frémito de pavor percorre o corpo espiritual de João Miguel. Se, realmente, não morremos, Manuela, estaria por ali, à espreita!...
- Em breve, senhor barão - prosseguia o espírito de Madalena, penso trazer a vossa segunda vítima para cá, com o propósito de auxiliar me a enlouquecer-vos!... Não vos desejo morto, já, não, barão!... Primeiro, quero ver-vos sofrer!... Sofrer muito!... Sofrer as penas infernais, antes de matar-vos, como, covardemente, fizestes a mim e à Manuela!... Mas, não vos esqueçais de que já tendes a terceira vítima engatilhada: vosso irmão!... Esquecestes?... Também ele morrerá, por certo, posto que tudo fizesse com o intuito de incriminá-lo, não é assim?... E, o pobre Anjinho dificilmente escapará à forca!... A menos que vós confesseis o vosso delito!... Mas, isso não fareis, não é?... Sois um grandíssimo covarde!... Como é que enfrentaríeis o julgamento, a condenação e o carrasco?...
João Miguel pensava. Sim, ela tinha razão. Seu irmão já se encontrava condenado de antemão. Dificilmente escaparia às provas que ele lhe semeara, tão evidentemente, às pegadas!...
Neste ínterim, a luz do sol coalhou-se pelos interstícios da grande janela do aposento. O dia surgia. De um salto, João Miguel ganhou o corpo. Madalena tentou retê-lo, mas ele lhe foi mais ligeiro. Em segundos, o rapaz despertava em seu corpo. Abriu os olhos e se mexeu, devagar, esticando a musculatura entorpecida. Primeiro, ainda tomado de intensa sonolência, estirou longamente os membros. Depois, devagar, sentou-se à beira do leito. Passou o dorso das mãos sobre os olhos inchados pelas horas de sono. Vêm-lhe, então, à cabeça, retalhos de cenas confusas. Uma mulher desgrenhada e suja atacava-o e lhe gritava coisas incompreensíveis. Levanta-se, ainda com dificuldade e se encaminha ao toucador. Apanha a jarra de louça branca, despeja a água fria na bacia e lava o rosto repetidas vezes. Depois, enquanto se enxugava, murmura baixinho:
- Que pesadelo estranho!... Que coisas doidas!...
Depois, põe-se a vestir-se caprichada e minuciosamente. Precisava aparentar tranquilidade. Em pouco, sabia, a notícia da tragédia espalhar-se-ia pela cidade como folhas secas ao vendaval...
- A notícia logo se espalha... - murmura ele. E, enquanto se olhava no grande espelho de cristal, a pentear, primorosamente, os cabelos, abre um sorriso e prossegue cheio de contentamento: - E será o teu fim, querido irmãozinho!... O teu fim!... Ouviste bem?... - e gargalha, extravasando a grande euforia que o dominava plenamente: - Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
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1. O perispírito, na terminologia espírita. Trata-se de invólucro fluídico, vaporoso, quintessenciado, semi-material do Espírito, com flexibilidade e expansibilidade e que participa um só tempo, no dizer de Allan Kardec, da "electricidade, do fluido magnético, e, a determinado ponto, da matéria inerte." Vide esse assunto com maior propriedade em Génese, edição da Federação Espírita Brasileira ou em estudos realizados, posteriormente, por Gabriel Dellane, e que se mostram, também, altamente embasados cientificamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 10:48 am

Capítulo 21 - Traição
A manhã do dia subsequente ao terrível assassinato de Manuela nada ainda apresentava de anormal. Ninguém houvera dado por nenhuma alteração na rotina da casa; a criadagem, sempre madrugadora, desenvolvia suas tarefas habituais, procurando manter relativo silêncio, pois a patroa costumava levantar-se sempre tarde e não gostava de se ver perturbada enquanto dormia. Destarte, o nefando crime, por horas, ainda se mantinha oculto. Só bem mais tarde, por volta de doze horas, é que Teresa Cristina e João Manuel - que houvera dormido na mansão -, já se haviam levantado e tomavam juntos o desjejum no salão de refeições.
-Estranho!... Manuela ainda não se levantou!... - observa, intrigada, a mocinha. - A esta hora, ela sempre se encontra desperta, a tomar o desjejum!...
-Será que está a passar mal?... - pergunta João Manuel. E prossegue jocoso: - Ontem à noite, no entanto, o único mal que a acometia não passava de uma incontrolável sonolência!...Nada mais que isso!...
-Inácia - diz Teresa Cristina, interpelando a criada que os servia -, acaso já mantiveste hoje algum contacto com a tua patroa?
-Não, senhorita dona Teresinha - responde a serviçal. - A senhora baronesa detesta que a importunemos!... Lá acorremos, somente quando ela nos solicita a presença!
-Entretanto, estou cá a estranhar esse procedimento incomum de Manuela!... - observa a mocinha. - Ela, dificilmente, sai da sua rotina!... Será que adoeceu?...
-E por que não mandas averiguar? - sugere o rapaz. - Olha que já passa do meio-dia!...
-Tens razão! - responde Teresa Cristina. E, ordenando à criada: -Inácia, dirige-te aos aposentos de dona Manuela e bate à porta!...
-Mas, senhora dona Teresinha!... - reluta a serviçal. - A patroa proíbe-nos que lhe batamos à porta, enquanto repousa!... Vede bem que ela me castigará por tal desobediência!...
-Não te castigará, Inácia]... - retruca a jovem. - Se te maltratar dir-lhe-ei que fui eu a ordenar que lá fosses importuná-la!... Anda! Estou a ordenar-te, vamos!...
-Se assim desejais, senhorita... — diz a criada, fazendo ligeira reverência e, ainda bastante relutante, deixa a sala.
Em pouco, a criada retomava altamente intrigada.
-Senhora dona Teresinha - diz ela, nervosa -, bati, insistentemente à porta, e chamei pela senhora baronesa por diversas vezes, e nenhuma resposta obtive de volta, nem um raído sequer!... Encostei o ouvido à porta, voltei a bater e a chamar, mas nada!... Experimentei a maçaneta, porém a porta encontra-se trancada!... Estranho, porque dona Manuela tem o sono levíssimo!... Costuma acordar-se ao menor dos raídos!...
-Então está a passar mal!... - exclama Teresa Cristina, levantando-se. E prossegue, demonstrando alta preocupação: - Que achas, Anjinho!
-E possível que esteja, efectivamente, a passar mal!... - responde o rapaz. - E, se assim for, teremos de chamar um médico!...
-Inácia, depressa - ordena à criada -, apanha uma cópia da chave do quarto de Manuela]... Presumo que deva haver uma, pois não?
-Sim, senhorita dona Teresinha!... Sei onde está!... - responde a criada, aprestando-se. - Corro a buscá-la!...
Pouco depois, a criada trazia a chave, e os três ganhavam, rapidamente, o andar de cima, ramo aos aposentos de Manuela.
- Abre a porta!... - ordena Teresa Cristina à criada. A mulher ainda hesita, por instantes, em cumprir a ordem recebida.
Teresa Cristina exorta-a a obedecer, com um olhar carregado de impaciência. A chave é introduzida, então, na fechadura, um estalido seco ouve-se, e a porta abre-se.
- Deus do céu!... - grita criada, levando ambas as mãos à cabeça, em grande desespero. - Dona Manuela!... Ai, Jesus Cristo, quanto sangue!.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 10:48 am

Diante do terrível quadro, Teresa Cristina e João Manuel olham-se estarrecidos. Sim, era verdade. Apesar da ligeira penumbra que invadi o aposento fechado, era possível perceber-se tudo: Manuela jazia braços ao chão, no meio de uma poça de sangue.
Teresa Cristina sente-se tontear. Suas vistas turvam-se, de repente, ela se acha na iminência de desfalecer. O rapaz, percebendo-lhe a intensa palidez à face, apara-a ligeiro.
_ Tininha!... Tininha!... - grita ele, apertando-a junto ao peito. - Sê forte!..- Não te deixes levar, não!...
- Manuela!... - balbucia ela. - Que fizeram a Manuela?... - e as lágrimas inundam-lhe os olhos.
_ Vem!... - diz o rapaz, puxando-a para fora do quarto. - Melhor não veres tal coisa!...
Delicadamente, ele conduz a jovem a seus aposentos, que ficavam na mesma ala, apenas a alguns passos dali. Neste comemos, ouvem-se os gritos estentóreos de Inácia a ecoarem pelos corredores:
- Dona Manuela está morta!... Ai, Deus do céu!... A patroa está morta!...
Desespero ímpar, então, tomou conta da mansão de Afonso Albuquerque e Meneses! A criadagem toda acorria, alertada pelos gritos de Inácia, que percorria a casa toda a gritar feito uma doida e, em pouco, o cadáver de Manuela estava rodeado pela dezena de seus antigos servidores a olharem-na, caída e toda descomposta, no meio da poça de sangue.
-A senhora dona Manuela morreu!...
-Ai, Deus, e não é que é mesmo?...
-De morte morrida ou de morte matada?...
-Acho que mataram a pobre!... Vi tanto sangue em derredor!...
-Que judiação!... Pessoa tão fina!...
-Que Deus a tenha!...
-Ai, Nossa Senhora!... Virgem Mãe Santíssima!... Então mataram a senhora baronesa, é?...
-Sim!...
-E quem foi?...
-A facadas!...
-Cruz-credo!... Esconjuro!...
-Quem será que foi, hein, gente?...
A confusão geral instalou-se. Criados corriam, de um lado para outro, desencontrados; os homens olhavam-se mudos, cheios de respeito e de medo; as mulheres choravam, descabelando-se e emitindo terríveis gritos pungentes, verdadeiros urros de desespero, como era hábito época, externar tais emoções, de forma tão ostensiva, diante do obscuro enigma da morte, tido como algo insondável, inexpugnável - o grande-mistério que sempre rondara o orgulho e a prepotência do homem! A morte!... A invencível morte, a evidenciar a fragilidade da vida, a transitoriedade de tudo!...
-Toca a chamar as autoridades!... - diz João Manuel para Teresa Cristina que já principiava a recuperar-se do intenso choque.
-Sim - concorda ela. - E também os parentes!... - Manuela tinha uma porção de irmãos...
-Fica quieta aqui, tranquiliza-te, que me ponho a tomar as providências - diz ele.
Em seguida, enquanto caminhava pelo extenso corredor, João Manuel perguntava-se quem teria feito aquilo. Era-lhe difícil aceita que Manuela houvera tido uma morte tão violenta como aquela. Na noite anterior, haviam permanecido na sala de estar, ele e Teresa Cristina, até bem mais tarde, e nada tinham ouvido, nenhum ruído, nada d incomum haviam percebido. Entretanto, o assassino entrara na casa executara Manuela, possivelmente, no momento em que ela subira ao quarto para dormir. O maldito já deveria estar por lá, escondido, a aguardar que ela chegasse. Mas, quem seria?... Por outro lado, Manuela era dada a receber homens em seus aposentos... Metade dos estivadores do porto já estivera com ela... Certamente, houvera sido um deles... Preterido, desprezado, como ela, frequentemente, costumava fazer, ao enjoar-se dos seus amantes... Não fizera isso com ele tantas vezes, antes?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 10:48 am

Quantas vezes ele não tivera ganas de lançar-se sobre el e de sufocá-la com as mãos até que ela morresse, quando ela o humilhava e zombava dele?... Ela gostava de lançar-lhe às fuças que lhe com prava os "serviços", que pagava por eles!... E que aqueles homens todo não passavam de simples "prestadores de serviço" a ela!... Pobre Manuela!... Pagava caro pela promiscuidade em que sempre vivera!...
Pouco depois, a casa enchia-se de gente. A notícia do assassinato de Manuela Albuquerque e Meneses, a Baronesa da Ajuda, espalhava-se como fogo em rastilho de pólvora! Figura conhecidíssima em todos o salões da aristocracia lisbonense, sua morte repercutia em todos o cantos da cidade.
Após meticulosa inspecção das autoridades, o corpo de Manuela foi recolhido, preparado e colocado em câmara ardente, no grande salão de visitas da casa. O esposo, Afonso, no entanto, não pôde estar presente: ainda se encontrava, talvez em Holanda, a fechar a transacção de importantes partidas de peixe salgado. Não lhe foi possível, portanto, receber as condolências pela morte da esposa. Faziam as vezes de anfitriões, os três irmãos mais velhos de Manuela que, pesarosos e chorosos, não se conformavam em perder a querida irmã, tão precocemente, e em circunstâncias tão violentas. Depois de longo velório, sepultaram o esquife da infeliz Baronesa da Ajuda no jazigo da família. Teresa Cristina aproveita a vinda dos pais ao sepultamento de Manuela e retorna para casa em companhia deles; doravante, não haveria mais razão e nem como se manter longe do lar, em companhia da irreverenciosa prima, que não mais existia...
Três dias depois, João Manuel recebe uma visita inesperada. Tratava-se do comandante-geral da milícia de Lisboa, o inspector Venâncio da Silveira. A governanta Amélia houvera recebido o homem e o fizera acomodar-se no salão de visitas. Em seguida, fora em busca do jovem que, como vinha fazendo recentemente, treinava a leitura, insistentemente, em seu quarto.
-Em que vos posso ser útil, senhor? - pergunta, cortês, o rapaz ao homem, ao chegar ao salão de visitas.
-Senhor Barão da Reboleira! - exclama o inspector da milícia, levantando-se e fazendo ligeira reverência diante de João Manuel.
-Fazei a gentileza de acomodar-vos, senhor - convida o rapaz, sempre gentil e, sentando-se diante do homem, prossegue: - Em que vos posso ajudar?... Penso que já vos declarei tudo o que sabia sobre aquele fatídico acontecimento...
-Perfeitamente, senhor barão - responde o homem secamente. E prossegue, entrando directo no assunto: - Efectivamente, já vos interrogamos, rapidamente, em casa da senhora Baronesa da Ajuda, no dia em que ela foi encontrada assassinada em seus aposentos, e já havíamos descartado Vossa Excelência como suspeito no caso - e, retirando do bolso da casaca um papel, desdobra-o e o estende ao rapaz. - Entretanto, ontem, recebemos esta missiva, que traz grave denúncia contra vossa pessoa!... Fazei a gentileza, Excelência, de conferir tudo por vós mesmo!...
João Manuel apanha o papel com mãos trémulas. E, a seguir, passa os olhos pela curta série de palavras, escritas em caligrafia dele desconhecida, não com a esperada rapidez, em virtude da sua inabilidade na leitura. Mas, à medida que tomava ciência do conteúdo da carta, acentuava-se a sua palescência. Depois de relativo tempo, devolve o pape ao inspector da milícia.
-É um absurdo o que aí se encontra grafado, senhor inspector Venâncio da Silveira!... –exclama ele, altamente indignado.
-Entretanto, existe esta denúncia contra vós, senhor barão - responde o homem, com a voz firme. _ e é meu dever investigá-la!...
-Absurdo dos absurdos, senhor inspector!... - brada o rapaz, levantando-se, altamente afrontado. - Por que precisaria eu de roubar?.. Como podeis, perfeitamente, constatar, sou um homem muito rico!... Além do mais, eu era amicíssimo da senhora Baronesa da Ajuda!... Não teria nenhum motivo para assassiná-la!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 10:49 am

-Sabemos disso, senhor barão - rebate o inspector da milícia. - Entretanto, confirmamos ter havido esbulho em móvel dos aposentos da senhora Baronesa da Ajuda, fato que caracteriza ter, efectivamente, acontecido um assassinato seguido de roubo!... Um latrocínio, senhor!... E, além do mais, para reforçarem-se ainda mais as suspeitas sobre vós, sabemos, também, que pernoitastes em casa da vítima naquela ocasião!... Contudo, penso que, se sois, na verdade, inocente, e nada deveis quanto a isso, por que é que estais, então, a impedir a acção da milícia?... Por que é que não franqueais, de vez, a nossa entrada em vossos aposentos, a fazermos lá uma varredura?, Se nada encontrarmos, estareis, consequentemente, fora que qualquer suspeita!... Isso eu vos garanto!...
O rapaz pondera por instantes o homem tinha razão. Aquilo não deveria passar de calúnia, de difamação!... Tinha a absoluta certeza de que não houvera roubado nada de ninguém!... E que sequer houvera estado nos aposentos de Manuela naquela ocasião!... Como é que poderia estar em posse de algo que não roubara?...
- Tendes razão, senhor inspector Venâncio da Silveira - diz ele, decidindo-se. - Podeis convocar vossos auxiliares a fazerdes minuciosa inspecção em meus aposentos; Fazei o favor de seguir-nos!... resoluto, encaminha-se ao andar superior.
O inspector, com ligeiro sinal de cabeça, convoca os dois auxiliares que o acompanhavam e que se mantinham postados ao lado da porta de entrada do salão de visitas. Em pouco, os três homens da milícia vasculhavam, minuciosamente, cada milímetro do quarto de João Manuel. O rapaz, junto de Amélia, a tudo acompanhava em silêncio. Sentia-se seguro: tinha a absoluta certeza de que coisa alguma encontrariam oculta entre seus pertences. Entretanto, não contava ele com a pérfida traição do irmão!... João Miguel tudo arquitectara com meticulosa perfeição: escondera algumas das melhores e mais caras jóias de Manuela em local bastante discreto, tudo disfarçando muito bem, à guisa de ocultação de produto de roubo!... E, não foi com muita facilidade que os policiais encontraram o resultado do pretenso roubo, não!... A aferrada busca custou-lhes umas boas duas horas e meia, mas encontraram!... Encontraram a prova do roubo!...
- Que dizeis sobre isto, senhor barão?... - pergunta o inspector Venâncio da Silveira, abrindo um sorriso misto de escárnio e de surpresa.
- Como nos explicais tal fato?
- Nada tenho eu a ver com isso, senhor inspector!... - exclama o rapaz, estupefacto. - Nem mesmo sei como estas cousas aí foram parar!...
Amélia olha-o estarrecida. Deus do céu!... Tinham um ladrão e um assassino dentro de casa!
- Francisquinho!... - exclama, aterrada, a governanta. - Como pudeste fazer tal coisa?!... Ai, Deus do céu!... Jesus Cristo, valei-me!... - e se põe a chorar, cheia de desespero. - Ai, que vou avisar o teu irmão!... João Miguel precisa tomar ciência deste tremendo despautério que cometeste!...
-Amélia!... - exclama o rapaz, tentando deter a governanta, segurando-a pelo braço. - Como podes dizer tal coisa de mim?!...
-Arre, deixa-me, Francisquinho\... - grita ela, desenvencilhando-se dele. - Sabemos lá o que é que aprendeste pelas ruas, menino?!... - e sai, quase a correr.
- Percebestes, senhor Barão da Reboleira?... - diz o inspector da milícia, olhando-o, cheio de escárnio. - Até a vossa governanta acusa-vos!... Que mais tendes em vosso favor?... Acho que nada!... As evidências, infelizmente, apontam todas sobre vós!...
-Não!... - exclama o rapaz, defendendo-se. - Tudo isso é um equívoco!... Nada roubei de Manuela!..., Para que precisaria eu disso?.
-Vós é que deveis responder a essa pergunta, senhor!... - exclama cínico o inspector Venâncio da Silveira.
Neste comenos, Amélia retoma, acompanhada de João Miguel.
-Senhor inspector Venâncio da Silveira... - diz João Miguel Que se passa em minha casa?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 10:49 am

-Senhor Barão da Reboleira!... - exclama o homem, fazendo ligeira reverência. - Encontramos a evidência de que vosso irmão é o principal suspeito do assassinato da senhora Baronesa da Ajuda, ocorrido dias atrás...
-Sei... - diz o rapaz, olhando para o irmão de soslaio. No íntimo, andava a estourar de satisfação. E prossegue: - Fazei o favor de acompanhar-me até a biblioteca, senhor inspector!... Desejo falar-vos em particular!...
- Por que vais falar com ele em particular?... - brada João Manuel.
- Que tens a esconder?... Por que não falas o que tens a falar, às claras, diante de todos?...
João Miguel pareceu ignorar completamente as palavras do irmão. E, sem sequer olhá-lo, prosseguiu:
-Senhor inspector Venâncio da Silveira, fazei a gentileza...
-Mantende-o sob severa vigilância!... - ordena o inspector aos dois auxiliares. - Ele já se encontra sob a nossa protecção!... Se o deixarem escapulir, respondereis por isso!...
Pouco depois, João Miguel e o inspector conversavam a sós, trancados na biblioteca.
- Convém relatar-vos fatos que, certamente, ignorais, senhor inspector - diz o rapaz.
- Perfeitamente, senhor Barão da Reboleira!.... - concorda o policial.
- Mas, de antemão, devo advertir-vos de que todas as evidências, infelizmente, recaem sobre o vosso irmão!...
-Sei disso!... - diz o rapaz, abrindo um sorriso cínico. - Sei disso!..-Não vos apoquenteis e posso garantir-vos de que não me faço advogado do meu irmãozinho, não!... As revelações que ora passo a fazer-vos mais o incriminarão ainda!...
- Ah, e é?... - anima-se o inspector.
_ Pois é o que vos digo - prossegue o rapaz. - Acho que não desconheceis que meu irmão andou desaparecido até há bem pouco, não?...
_ Oh, sim!... - observa o policial. - Nós mesmos andamos a procurá-lo todo o tempo!... Recordo-me perfeitamente de tudo!...
_ Pois então, como muito bem pudestes constatar, ele foi encontrado!... Voltou para casa, meu pai reabilitou-o, mas, confesso, ele foi criado pelas ruas, a roubar e a cometer todo o tipo de desatinos!... Viveu o tempo todo pelos lados do cais do porto, entre aquela gentinha desqualificada, que anda a cometer despautérios e mais despautérios que vós muito bem conheceis...
-Se conheço!... - concorda o inspector de polícia. - Roubos, assassinatos, jogatinas, prostituição e coisas congéneres!... Dão-nos uma trabalheira daquelas!...
-Justamente!... - concorda o rapaz. E prossegue: - Papai faleceu faz pouco tempo, e meu irmão tem direito à metade dos bens da nossa família!... Só que, senhor inspector, a partilha, a documentação para registar tudo, o recolhimento dos impostos devidos, para que ele efectivamente receba a parte que lhe toca, costuma demorar bastante!... Costuma demorar meses e até mesmo anos, se não chegarmos a um acordo que satisfaça às partes interessadas, no caso, eu e ele!... Pois bem, meu irmão, como nunca nada teve de seu até então, e, também, porque pretende casar-se com uma rapariguita que arranjou e que anda a forçá-lo a casar-se com ela bem depressa e que ainda lhe faz ameaças de deixá-lo por um outro, se não se juntarem logo e, como meu irmão, ainda, efectivamente, não tem onde se deitar morto, possivelmente, teve de roubar as jóias da senhora Baronesa da Ajuda para poder realizar seus intentos mais prementes!... - e, acrescentando mais dramaticidade às palavras, prossegue: - Digo-vos, senhor inspector Venâncio da Silveira, nada sabemos sobre meu irmão, na realidade!... Criou-se pelas ruas, a vadiar e a aprender toda a sorte de vícios e de malandragens!... Tenho, pois, a absoluta certeza de que foi ele que matou a pobre!... Roubou-lhe as jóias para poder viver com a outra, pelo menos até quando não lhe chega a fortuna que papai deixou-lhe por herança!...
-E não é que tendes razão, senhor Barão da Reboleira?... - concorda o inspector da milícia. - A fama de vosso irmão, como bandoleiro, era altíssima pelo cais do porto!... Eu mesmo já o havia prendido, diversas vezes, antes, por brigas, furto, vadiagem e outras coisas!... Coisas pequenas, é claro!... Mas...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 8:19 pm

-Quem faz o pequeno também sabe fazer o grande, não é senhor inspector?... - observa maldoso, João Miguel.
-Com toda a certeza, senhor barão... Com toda a certeza...
-E o que pretendeis fazer agora que já tendes o culpado?... _ pergunta, ansioso, João Miguel.
-Penso que tudo se esclarece senhor. Destarte, compete-nos recolhê-lo à cadeia pública e aguardar a instauração do processo... - esclarece o policial. - Depois, haverá o julgamento e a competente condenação.
-A morte presume...
-Oh, sim... Por enforcamento...
-Foi uma grande satisfação poder ter-vos ajudado a esclarecer tão hediondo crime, senhor inspector... - diz João Miguel, levantando-se. Mal conseguia disfarçar a alegria intensa que o dominava.
-Agradecemos-vos a cooperação, senhor!... - exclama o inspector, também se levantando e fazendo longa reverência diante do rapaz.
João Miguel sai e deixa o policial na biblioteca. Logo em seguida, o homem predispõe-se a sair, pensativo. Estaria tudo aquilo correto?... Conhecia João Manuel das, mas, de antes... Sabia-o um vagabundo sem eira nem beira, um jogador das espeluncas do cais do porto, mas nada via nele de monstruoso, de alguém capaz de cometer um crime como aquele!... Sua longa estada na milícia, tendo de resolver intrincados casos de assassinatos, além do constante contacto com bandidos e delinquentes perigosos, tudo, enfim, propiciara-lhe experiência ímpar em tratar com aquele tipo de gente. Mas, Anjinho, não!... Anjinho, apesar de tudo, não levava nenhum jeito para aquele tipo de coisa, não!... Conhecera-o desde garotinho, a viver pelas mas... Sabia muitíssimo bem farejar um verdadeiro delinquente a léguas de distância!... Mas, a dúvida!... Que poderia fazer?... As evidências todas depunham contra o rapaz!... Fortes evidências de que fora mesmo Anjinho o autor daquele monstruoso crime!... E, além do mais, se o próprio irmão o denunciava, e as investigações que ele mesmo conduzira já haviam juntado provas mais que suficientes para incriminarem o rapaz, por que não acreditar na evidência dos fatos?... A razão, antes de tudo!... Afinal, o dinheiro mexia muito com as pessoas... Mexia muito mesmo...
- O senhor está preso, senhor Barão da Reboleira!... - exclama ele, com a voz firme, ao adentrar o quarto, de volta, onde seus homens mantinham João Manuel sob vigilância. - Prendo-vos, em nome d
Majestade, a rainha, pelo vil assassinato da excelente senhora Manuela Albuquerque e Meneses, Baronesa da Ajudai...
_ Não!..- - grita João Manuel, estarrecido. - Senhor inspector, vós estais equivocado!... - e, tentando desenvencilhar-se das mãos dos policias que o mantinham contido: - Meu irmão mentiu!... Não sei o que vos disse ele, mas sei que mentiu!... Ele me odeia!... Odeia-me, porque tem de dividir a herança de papai comigo!... Ele, certamente, deverá ter matado Manuela!... Sim, matou-a e está a lançar-me toda a culpa!... Foi ele!... Que vos disse o infame?...
-Nada me disse o vosso irmão, senhor barão!... - exclama o inspector. E mente, para não exacerbar ainda mais os ânimos do rapaz: -Apenas tentou defender-vos, nada mais!...
-Mentira!... - grita o rapaz, enquanto os milicianos manietavam-no fortemente. - Estais vós e ele em conluio!... Malditos!... Quanto vos prometeu ele?... Andai lá, dizei-mo!...
-Oh, calai-vos, senhor barão!... - admoesta-o o inspector da milícia. Dessa forma, estais a ofender, grandemente, a moral da milícia de Sua Majestade!... Olhai bem, que isso poderá piorar-vos as coisas!...
-Malditos!... Infames!... - gritava João Manuel, cheio de desespero. - Acaso estais cego, senhor inspector?... Não percebeis que meu irmão armou-me esta terrível armadilha?...
-Guardai a vossa defesa para os juízes, senhor barão!... - exclama, impassível, o inspector Venâncio da Silveira. Estava habituado àquelas cenas. E, voltando-se para os auxiliares: - Se insistir em manter resistência à prisão, calai-o!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 8:19 pm

Os milicianos, após terem manietado fortemente João Manuel, tentavam conduzi-lo para fora do aposento, mas encontravam certa dificuldade, em virtude da constituição física um tanto avantajada do rapaz, a lhes opor séria resistência, negando-se a sair. Entretanto, recebendo a ordem de fazerem calar o rapaz, aplicam-lhe formidável porretada à nuca, fazendo-o perder os sentidos, instantaneamente. Em seguida, os dois homens passam a carregá-lo para fora do quarto. Amélia e os demais criados, alertados pela intensa gritaria, acorreram todos e, estarrecidos, assistiam à prisão do patrãozinho sem nada entenderem, no entanto. João Miguel, entretanto, não estava presente. Apenas, da janela de seus aposentos, viu quando o carro da milícia partiu célere, levando o indesejado irmão para a cadeia pública.
-Adeus, irmãozinho!... - murmura ele, com um sorriso cínico nos lábios. - Ver-nos-emos no dia do teu enforcamento!... Ha!... Ha' Ha!... Ha!...
Entretanto, João Miguel não podia perceber, mas a um canto, agora não uma, mas duas sombras terríveis olhavam-no, cheias de ódio.
-Maldito!... - murmura uma das sombras, com profundo rancor à voz
-Sim, senhora baronesa!... - exclama o outro espectro, com um sorriso de triunfo aos lábios. - Não vos disse ser ele o culpado de tudo?..
-Tens toda a razão, menina!... - concorda a Baronesa da Ajuda. -Tudo o que me relataste apresenta-se verdadeiro!... O demónio pensa já estar a colher os louros, bem antes da vitória final!...
-Isso veremos, dona Manuela]... - exclama o espectro da antiga prostituta, cheio de sarcasmo. - Isso é o que veremos!...
-Diz-me, menina - prossegue a antiga Baronesa da Ajuda -, o maldito matou-te apenas para encobrir dos pais que eleja houvera encontrado o irmão desaparecido?... E o que tinhas tu a ver com isso?...
-Nada, senhora - responde o espectro de Madalena -, apenas o havia auxiliado na busca pelo irmão!... Nada mais que isso!... Entretanto, enganou-me!... Depois que o encontramos, nada quis revelar ao irmão, nem aos pais!... E, porque eu havia ameaçado tudo contar a Anjinho, o miserável atraiu-me a uma armadilha e, friamente, tirou-me a vida!...
-Que monstro!... - exclama Manuela. - Tudo para não dividir os bens com o irmão!... E a dizer que o acolhi, inúmeras vezes, em minha casa!... Era até noivo da minha prima!...
-Foi o que dele ganhastes, senhora!... - observa Madalena, cheia de ironia à voz. - Acabou por assassinar-vos, vil e covardemente!...
-Sim - concorda a Baronesa da Ajuda -, mal supunha eu que seria tão traiçoeiramente atingida por ele, apenas porque o surpreendi a mexer em meus pertences!... Seria isso motivo suficiente para tirar-se a vida de alguém?...
-Para tal monstro, sim - observa a mocinha -, porque vós apresentastes um empecilho ao bom desenvolvimento das suas diabólicas maquinações!... Interpusestes-vos, inadvertidamente, entre ele e os seus nefandos desígnios de incriminar o irmão!... E, por isso, pagastes com a vossa vida!...
_ Por tão pouco?... - não se conformava a Baronesa da Ajuda. -Valia eu assim tão pouco?... Ah, mas verás, miserável, o que na realidade valho eu agora!... Ah, se verás!... - e se atira, furiosa, aos tapas e bofetões, sobre o rapaz que, sentado pachorrentamente numa poltrona, deliciava-se, a saborear grande taça de capitoso vinho.
João Miguel, no entanto, nada percebia do feroz ataque do espírito, no íntimo, sentia-se exultar, felicíssimo, pelo bom êxito do seu plano.
- Toca a comemorar!... - murmura ele, abrindo um sorriso de satisfação. - Comemoremos a grande vitória!...
Ouvindo aquilo, Manuela enfurece-se ainda mais e se lança sobre o rapaz. Urrando de tanto ódio, passa a lanhar a face do rapaz com as unhas; porém, estarrecida, constata que ele nada sentia; sequer ele lhe notava a presença!... A mulher enche-se ainda mais de fúria e tenta sufocá-lo, apertando-lhe, fortemente, o pescoço com as mãos. Mas, vê-se frustrar, pois suas mãos, simplesmente, atravessavam-lhe as carnes sem nada lhe causarem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 8:20 pm

- Inútil o que tentais fazer, senhora baronesa!... - observa o espectro de Madalena que ali do lado a tudo assistia. - Ele por ora não vos pode perceber... Entretanto, aguardemos um pouco!... É preciso ter paciência!... Em breve, o vinho fá-lo-á adormecer e então...
Manuela, a seguir, toma-se de grande desespero. Esgotada pelo intenso esforço despendido, deixa-se cair de joelhos sobre o finíssimo piso de granito polido. E chora. Chora abundantemente. Os soluços convulsionam-na grandemente. Intenso desespero, misto de raiva e de ódio, toma-a, e ela cobre o rosto com as mãos. O peito, ferido pelo traiçoeiro punhal de João Miguel, sangrava e doía. Doía-lhe imensamente!...1
- Vinde, senhora - diz Madalena, apiedando-se da terrível condição da outra e, ajoelhando-se-lhe ao lado, toma-a, ternamente, aos braços e lhe sussurra meigamente: - Por ora, nada mais há a fazer!... Vinde!... -Depois, suavemente tomando-a pela mão, fá-la erguer-se do chão. -Vinde, vamos até o jardim!... Lá arrebanhareis forças para superardes esse terrível desgosto!...
E, com intensa dificuldade, Madalena auxilia a antiga e esplendorosa Baronesa da Ajuda a caminhar até o jardim da mansão dos Barões da Reboleira. A tarde esmaecia cinzenta e frígida, envolvida pelos ventos que sopravam inclementes, do Norte.
-Vinde, senhora, sentemo-nos aqui!... - convida a mocinha, ajudando a outra a acomodar-se em banco de mármore do jardim. - O vento e as árvores auxiliar-vos-ão!... Tende fé!... Em breve, - estareis um pouco melhorada!... Não sei como isso acontece, mas quando me acho enfraquecida, venho até o jardim e me sinto fortalecer!... Acho que as plantas auxiliam-nos!... Dão-nos força!...
-Obrigada, meu bem!... - diz Manuela, abrindo ligeiro sorriso. -Não fosses tu lá aparecer, e eu ainda me encontraria, ao lado do meu corpo a apodrecer, no jazigo dos Barões da Ajudai... Que horror!... Sequer supunha que já houvera morrido!... Não estava a entender nadinha de nada!...
-Aconteceu o mesmo comigo, senhora!... - diz a mocinha. - A maioria de nós desconhece o que nos aguarda depois da morte!...
-E verdade o que dizes!... - concorda Manuela. - Na realidade, sequer pensamos na morte!... E, quando ela chega, quase sempre a pegar-nos de surpresa, lá vem o inesperado!...
-Sim - diz a mocinha -, não podeis supor o que sofri, ao ver-me pega de surpresa pelo frio assassino!... De imediato, não entendia o que se passava!... Via-me ao lado do meu corpo estendido ao chão, ensopado pela chuva fria; via-lhe a ferida aberta ao peito; tentava aproximar-me, mas sentia-o rijo como pedra, não me obedecia. Lutei, desesperadamente, para levantá-lo da lama, para voltar para casa, mas foi tudo em vão!... Depois, veio o desespero, e eu chorei e gritei; clamei por ajuda, por socorro, mas ninguém aparecia. Cansei de gritar e me acocorei ao lado do meu corpo. Forte sonolência, então, passou a dominar-me. Lutei, desesperadamente, para vencê-la. E fiquei, assim, a lutar contra aquele torpor, quando percebi que Gerusa, minha companheira de quarto, aproximava-se. Tentei ir-lhe ao encontro, abraçá-la, mas não tinha forças. Ao reconhecer o meu cadáver ali estendido ao chão, Gerusa pôs-se a gritar; apareceram as pessoas, foram juntando-se os curiosos, veio a milícia. Depois o carro que recolhe o lixo... Segui a carroça que recolheu o meu cadáver; acompanhei o seu sepultamento, uma cova rasa, comum, no cemitério dos pobres!... Precisáveis ver a diferença dos coveiros!... Parecia estarem a enterrar uma cadela morta!... - Depois se foram, e ali fiquei sentada sobre aquele monturo de terra negra e lamacenta. Logo escureceu, e eu nada entendia, de fato, do que estava a acontecer comigo. Encontrava-me meio sonolenta, meio alheia ao que se passava em redor!... Ao mesmo tempo em que sabia que tudo aquilo se passava comigo, tinha, também, a sensação de que sonhava, de que tudo era um terrível pesadelo e que logo iria despertar!... Mas, o tempo foi passando, as coisas foram clareando-se, e percebi que a minha vida achava-se diferente, que algo mudara definitivamente!... Por fim, a negra constatação: eu houvera morrido!... O demónio assassinara-me, fria e barbaramente, naquele escuro beco do cais do porto!...
- Pobre menina!... - exclama, condoída, Manuela. - Tão jovenzinha, ainda!... Quantos anos tinhas?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 8:20 pm

- Dezasseis, senhora!...
-Maldito!... - observa a mulher, altamente revoltada com aquilo. -Tirou-te a vida na plenitude dos anos!...
-Sim - diz Madalena -, e eu tinha tantos desejos ainda por realizar!...
-Os quais o demónio encarregou-se de exterminar bem depressinha!... - redargui a outra. - E os meus então?... Acaso não era eu rica e bela?... Não tinha eu tudo o que desejava no mundo?... Quando é que iria supor que o maldito fosse despachar-me tão depressa assim?... Ai, Deus, que desespero!...
-Mas, nós nos vingaremos, senhora! - diz a mocinha, abrindo um sorriso de satisfação. - Juntas, levá-lo-emos à ruína!...
-Sim!... - exclama Manuela, animando-se. - Mas, como faremos se ele nada sente?... Sequer nota-nos a presença!...
-Aí é que vos enganais, senhora!... - observa Madalena. - Quando dorme, pode ver-nos, pode confabular connosco e podemos atacá-lo!...
-Verdade?... - anima-se ainda mais a outra. - E o que faremos, então?
-Primeiro a ruína, senhora baronesa!... - explica a mocinha. -Depois, enlouquecê-lo-emos!... Devagar, sem pressa!...
Manuela toma as mãos da jovem prostituta e as aperta ternamente.
- Poderás contar comigo, menina!... - diz a antiga esposa de Afonso Albuquerque e Meneses, olhando firme nos olhos de Madalena Aquele miserável pagar-nos-á tudo o que nos deve!... Tudo mesmo!, e abre um sorriso cheio de cinismo, como lhe era do feitio.
A noite chegava gelada. O vento bramia furioso, fazendo agitarem-; violentamente, os galhos descamados das árvores do bosque.
- Entremos, senhora dona baronesa - diz Madalena, tomando, delicadamente, a mão de Manuela. - Aqui está a fazer bastante frio, e é bom que busquemos o quentinho da lareira!... Além do mais, em breve o demónio dormirá...
______________________________________________________________________________________________
1. Espíritos que, comummente, desencarnam de forma violenta, como suicídio, homicídio ou acidente, costumam carregar para o além as derradeiras impressões que sentiram no corpo e que os fazem sofrer, enormemente, se ainda ignorantes das verdades relativas à vida fora da matéria.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 8:20 pm

Capítulo 22 - No cárcere
João Manuel abre os olhos e os preme forte, para acomodá-los à penumbra reinante no ambiente. De imediato, não conseguiu atinar com precisão onde é que se encontrava. O lugar não lhe era de todo desconhecido, não. Achava-se deitado sobre um duro e pobre catre, e a cabeça martelava-lhe, enormemente, à nuca. Ainda bastante zonzo, senta-se no grabato e, esfregando os olhos com o dorso das mãos, vai acomodando-os, gradualmente, à leve escuridão do lugar. Devagar, as ideias voltam-lhe ao normal: o inspector da milícia, a acusação, a resistência à prisão, a porretada à cabeça...
- Ó de lá!... Sede bem-vindo!...
João Manuel então percebe que não se achava só naquele lugar. A voz do outro soara límpida, bem jovial, em tom de gracejo, partindo do outro lado, do meio do escuro.
-Quem sois?... - pergunta João Manuel, firmando os olhos para tentar ver a fisionomia do homem que, com ele, partilhava aquele espaço. - Que lugar é este?...
-Oh, uma resposta de cada vez!... - exclama o desconhecido, aproximando-se. E, fazendo longa reverência diante de João Manuel, prossegue: -Permiti, primeiro, que me apresente: Vítor Nascimento Torres, Barão de Leiria!... Um vosso criado!... E sinto informar-vos, senhor, que, infelizmente, achamo-nos prisioneiros de Sua Majestade, a rainha!... E isto aqui não passa de uma das celas da cadeia pública de Lisboa!...
-Oh, bem que me pareceu familiar o lugar!... - exclama João Manuel, levantando-se do catre. A cabeça doía-lhe, enormemente, e o estômago enjoava-se-lhe. - Já estive neste lugar, antes, por diversas vezes!...
-Ah, então sois freguês assíduo do inspector Venâncio da Silveira, é?-.. - exclama o outro, com ar divertido. - E, pode-se saber o motivo de tanto vos achardes aqui encarcerado?
-Ah, senhor Barão de Leiria!... - responde João Manuel tentando a sentar-se no catre. - Minha vida, embora ainda bastante e encontra-se recheada de incidentes!...
-Presumo não vos ter conhecido de antes... - diz Vítor Nascimento Torres, esforçando-se para divisar a fisionomia do outro, no meio da penumbra da cela.
-Oh, que falta de educação a minha!... - desculpa-se João Manuel E, levantando-se outra vez do catre, faz longa mesura diante do rapaz desconhecido e diz solene: - Francisco de Assis Ramalho e Alcântara Barão da Reboleira, a vosso dispor, senhor!...
-Oh, não me digais que sois parente do velho Barão da Reboleira]... - exclama o outro, altamente impressionado. - Uma das maiores fortunas do reino!... E o que fazeis aqui nas masmorras da rainha?...
-Uma longa história, meu caro!... - exclama João Manuel. - Uma longa e estranha história!...
-Deveras?... - diz o outro, aproximando-se mais, a demonstrar profundo interesse pelo caso.
João Manuel sente-se tomar de inusitada simpatia por aquele rapaz que se mostrava assaz cordial. Nunca se haviam encontrado antes, entretanto, parecia-lhe se conhecerem desde sempre, tanto que passa a tratá-lo, espontaneamente, como igual.
-Se estiveres disposto a ouvir... - observa João Manuel.
-Oh, claro que estou!... - responde o outro, sentando-se no catre, ao lado de João Manuel. - Acho que sabes que, doravante, tu e eu teremos todo o tempo do mundo, não é?
Nem mesmo o tendo assim tão próximo, João Manuel pôde perceber-lhe algo da fisionomia. A cela encontrava-se totalmente às escuras; entretanto, pela tonalidade da voz, foi possível depreender que o Barão de Leiria era ainda bastante jovem. Talvez pouca coisa mais velho que ele. E, sem omitir nem mesmo os pequenos detalhes, João Manuel passa a narrar ao outro sua triste história. O rapaz ouvia-o cheio de atenção e, mesmo sem poder estudar-lhe as feições, pelas exclamações que amiúde emitia, era possível perceber que se deixava tomar por forte emoção.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 8:21 pm

- Então estás aqui inocente!... - exclama o jovem Barão de Leiria* altamente indignado, quando o outro encerra a narrativa. - Foste vilmente enredado numa sórdida trama pelo teu irmão!...
- É a minha palavra contra a dele, meu caro!... - responde João Manuel tristemente. - Infelizmente, os fatos depõem todos contra mim!
_ Mas serás condenado à morte!... - exclama o outro, levantando-se do catre e se pondo a caminhar em círculos, altamente indignado. - Teu irmão é um monstro desalmado!... - Sabias que não há misericórdia para tais crimes?... Os juízes são implacáveis!...
_ Sei, sim, meu amigo!... - responde João Manuel, altamente desconsolado. - E o que queres que eu faça?... Acho-me enredado nesta terrível teia e não sei como dela me safar!...
-E não há ninguém a teu favor lá fora?... - pergunta o outro. - Tu tens que procurar defender-te, antes que seja tarde!...
-Não sei se minha noiva de tudo já tem conhecimento - responde João Manuel. - Ela seria minha única testemunha, pois estive o tempo todo a seu lado!... Entretanto, disso só saberei amanhã!... E, se ela, efectivamente, aqui vier ter comigo!...
-Por certo que virá!... - observa o outro. - Se esteve contigo o tempo todo, saberá que és inocente e, ainda, se realmente te ama, fará todo o empenho deste mundo para livrar-te da forca!...
-Sei que ela o fará!... - diz João Manuel. - Sei que ela virá!... E tenho a certeza absoluta de que me ama!...
Pequeno silêncio estabelece-se entre os dois rapazes. Dir-se-ia que íntimas cogitações fervilhavam em suas mentes.
-E tu, por que aqui te encontras?... - pergunta João Manuel, rompendo o silêncio que se estabelecera entre eles.
-Nada tão grave perto do motivo que aqui te trouxe!... - responde o outro. - Apenas briguei com um rival e lhe desferi uma facada ao ventre!... Mas, o infeliz não morreu!... Sorte a minha!... Em alguns dias, estarei livre!... Meu irmão já trata de acertar a indenização que deverei Pagar ao desgraçado e, como a miséria anda a rondar-lhe a casa, certamente retirará a queixa contra mim, diante de um punhado de ouro que lhe atiraremos às fuças!...
~ Tiveste sorte de o miserável não ter morrido!... - diz João Manuel. ~"Caso contrário, estarias em maus lençóis, como eu!...
~ Sim, à essa hora, eu já teria balouçado na ponta da corda, meu caro!... - observa o outro. - Para esses casos, os juízes têm uma pressa danada!... Nunca dormem no ponto!... Mas, diferentemente de ti eu seria culpado!... Morreria por ter, realmente, praticado um homicídio Tu, entretanto...
-Sim, estou a pagar por um crime que não cometi!... - diz o rapaz - Se me condenarem à forca, morrerei inocente deste crime!...
-Olha - fala Vítor Nascimento Torres, apondo, delicadamente, a mão ao ombro do outro -, se me achar fora daqui, antes que te condenem prometo-te: lutarei até às últimas consequências para auxiliar-te a provares a tua inocência!... Juro-te!...
-Obrigado, meu amigo!... - exclama João Manuel, com a voz embargada pela emoção.
Em seguida, o Barão de Leiria encaminha-se para o outro lado da cela e se deita em seu catre. Também ele se achava altamente impressionado pelo gritante caso de injustiça de que acabava de tomar conhecimento.
- Tem uma boa noite, meu amigo... - diz Vítor com a voz embargada pela emoção. - Procura dormir um pouco!... Confia em Deus!... Quem sabe amanhã as coisas não se resolvem?...
Nada obteve como reposta do outro, a não ser abafados sons de choro... Choro de desespero, de dor profunda...

* * * * * * *
Depois de beber umas boas taças de vinho, João Miguel, ainda sentado, confortavelmente, na poltrona, ao lado da lareira acesa, sente teimosa sonolência ir dominando-o, paulatinamente, à medida que a noite caía. Lá fora, o vento ululava violento, sacudindo, vertiginosamente, as descarnadas árvores do bosque.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 8:21 pm

A um canto, os dois espíritos - Madalena e Manuela - aguardavam ansiosos que o rapaz adormecesse. Tal fato não custou a acontecer. Dominado pela insistente modorra, João Miguel não mais opôs qualquer resistência e caiu no sono.
- Aí vem o infeliz!... - brada Madalena, postando-se ansiosa, bem diante do rapaz.
Ao mergulhar no sono, o espírito deixa, imediatamente, o cárcere do corpo e ganha a liberdade. Em questão de pouquíssimos segundos, a nuvem vaporosa e brilhante formava-se um palmo acima de onde dormitava o corpo de João Miguel.
- Vinde, senhora!... - convida Madalena à outra que, demonstrando profunda curiosidade, observava, um pouco mais afastada, o desenrolar do peculiar fenómeno. – Ele já aí vem!... Façamos-lhe a surpresa!...
_ Que fato extraordinário!... - exclama, estupefacta, Manuela, aproximando-se. - Como nada sabemos acerca de tais coisas no mundo!...
-Ah, se tivéssemos conhecimento desses fatos, quando por lá ainda andávamos, não é, senhora?... - observa a mocinha. - Quantos crimes não deixaríamos de cometer!...
Neste comenos, o espírito do rapaz, liberto do corpo, já se condensara e, estarrecido, constatava a presença das duas entidades a arrostarem-no ferozes.
-Tu?!... - espanta-se ao perceber a presença de Manuela. - Impossível!... Apunhalei-te dias atrás!... Tu morreste!... Segui o teu enterro!... Tu estás morta!...
-Achas, mesmo, desgraçado, que estou morta, é?... - grita Manuela, desferindo fenomenal bofetão ao rosto do rapaz. - Toma, infeliz, para entenderes de vez, o quão morta me encontro!...
-Não, afasta-te de mim, demónio!... - grita o rapaz, tentando desenvencilhar-se do terrível abraço que lhe aplicara, traiçoeiramente, o espírito de Madalena, enquanto Manuela aproveitava-se para infligir fenomenal tunda ao infeliz!
-Deixai-me, demónios!... - gritava e esperneava o rapaz, tentando escapulir dos espíritos obsessores.
-Pensas que vais correr para o teu corpo, é, demónio?... - grita Madalena, contendo-o, por trás, em fortíssimo abraço. - Hoje principia o teu martírio!...
-Sim - completa Manuela, lanhando-lhe, furiosamente, o rosto com as unhas. - Não te daremos paz, miserável!... Vamos enlouquecer-te!... Não te daremos trégua, por um instante sequer, até que te mates com as tuas próprias mãos!... O suicídio será a tua derradeira porta!... Nela pensarás encontrar alívio para o teu tormento, mas será a tua queda Para o inferno!... Para o inferno, desgraçado!...
-Saiam para lá!... Esconjuro-vos!... - gritava possesso o rapaz, tentando livrar-se. - Saiam, fedorentas!... Que nojo!... Saiam, nojentas!...
-Ah, tens nojo do nosso cheiro, é?... - grita Madalena, colando-se mais ao corpo espiritual do rapaz. - Sente o meu cheiro, desgraçado!... E o cheiro do meu cadáver que apodrece numa vala comum do cemitério dos enjeitados!... Sim, e, doravante, este meu cheiro irá perseguir-te aonde quer que vás!... Eu me colarei a você, insistentemente noite e dia, até que te desesperes ao extremo!...
Na poltrona, o corpo do rapaz, tomado pelo sono, agitava-se enormemente. Do canto da sua boca entreaberta, espessa saliva coava empapando-lhe o queixo e parte do pescoço que tombava de lado pendendo para o ombro. Lúgubres gemidos ouviam-se, amiúde. Suas feições demonstravam sofrimento intenso. A curtos intervalos, debatia-se, agitava-se e rangia os dentes em intenso bruxismo. Sons guturais e ininteligíveis saíam-lhe da garganta. Assim permaneceu por longas horas- a invés de descanso, cansava-se mais e mais naquela tremenda agitação Madrugada alta, desperta, por fim. Abre os olhos, arregalando-os enormemente. O fogo da lareira extinguira-se por completo, e ele enregelara, dormindo sentado na poltrona. Passa as mãos pelo rosto, pelos cabelos. O corpo doía-lhe enormemente. Sede implacável dominava-o. Levanta-se, sentindo os músculos todos enrijecidos e dolorosos. Tropegamente, dirige-se a um aparador, apanha a jarra com água e enche uma taça; bebe-a até o fim, sem tirá-la dos lábios. Depois, encaminha-se até a lareira, apanha o atiçador e remexe as cinzas; algumas brasas tremeluzem e ele, então, apanha algumas achas de lenha adrede empilhadas ali ao lado e as ajeita sobre as brasas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 8:21 pm

Apanha o abanador e faz vento. Algumas fagulhas saltam para o chão polido. A seguir, tímidas chamas brotam e, paulatinamente, vão lambendo a lenha e ganhando força. Em pouco, reconfortante calor voltava a invadir o ambiente. João Miguel acocora-se à boca do fogo e estende as mãos enregeladas. Aperta-as uma contra a outra e volta a espalmá-las diante das chamas que saltitavam vivazes a comerem, vorazmente, o combustível que ele lhes dera. Aquecidas as mãos, volta a sentar-se na poltrona. De pequena mesa posta ali ao lado, apanha a garrafa e enche de vinho a taça em que estivera bebendo antes de dormir. Leva o líquido reconfortante aos lábios e o sorve devagar. Rememora, então, passo a passo, o terrível pesadelo que se repetia: Manuela e Madalena!.... As duas que ele assassinara voltavam a atormentá-lo nos sonhos!... Que seria aquilo?... Estaria doente outra vez?... Agora que as coisas começavam a ajeitar-se vinha a doença?... Doença, mesmo, ou as almas das duas mulheres estavam a atormentá-lo?... Que besteira!... Nem acreditava naquilo!-Conversas de padres!... Quem morria se acabava!... Ninguém jamais voltara a contar o que haveria por lá!... Tolices!... Não, só poderia ser doença aquilo!... Coisas dos nervos!... Se persistissem aqueles sonhos, consultar-se com o médico!... Para que é que existiam os médicos, Remédios?... Por ora, era preciso manter a calma e aguardar os acontecimentos. Tudo não se saía maravilhosamente bem, de conformidade com o que planejara?... Muito melhor até!... Sonhara com a prisão e o desterro definitivo do irmão para alguma das distantes colónias de além-mar e o que, de fato, resultava àquele intruso não era a pena capital?... Que mais poderia desejar?... Agora, não era ele o único e absoluto herdeiro da fabulosa fortuna dos Barões da Reboleira?... Diante disso, o que seria um pequeno desarranjo dos nervos?... Natural que isso acontecesse. Não tivera, acaso, que se desfazer de dois obstáculos que se interpunham entre ele e a realização dos seus intentos?
- Dois estropícios!... - murmura baixinho, justificando o seu nefando comportamento. - Não passavam de dois míseros estropícios: Madalena, a miserável prostituta do cais do porto e Manuela, a outra, a grã-rameira de luxo!... No fim, qual a diferença entre as duas?... Nenhuma!...
De repente, frio arrepio percorre-lhe a espinha de alto a baixo. Em seguida, sensação de inexplicável mal-estar acomete-o. Era como se sentisse algo se lhe grudar ao corpo, como se lhe adicionassem um peso extraordinário a carregar. Remexeu-se na poltrona, tentando posição melhor, mas foi em vão. Aquela sensação de intenso peso sobre o dorso aumentava-lhe como se alguém muito pesado, ostensivamente, ali se sentasse e, maldosamente, tentasse cavalgá-lo à sua revelia!... João Miguel remexe-se outra vez na poltrona. O incómodo persistia. Sensação de angústia e de desprazer invadiam-lhe, concomitantemente, o peito, causando-lhe desconfortável arritmia cardíaca. Suspirou fundo e sorveu, de uma só vez, todo o conteúdo da taça de vinho. Repletou-a, novamente, até a borda. Sorveu novo e longo gole do líquido. Tinha dificuldades para respirar, pois o coração batia-lhe apressado, embora não se achasse a fazer esforço algum.
- Que se passa comigo?... - murmura, preocupado.
Depõe a taça de bebida sobre a mesinha e se levanta. Estranha e intensa sensação de frio e de calor alternava-se. Aproxima-se mais da lareira, acocora-se diante do fogo e estende as mãos: tinha as extremidades dos dedos congeladas. Por instantes, segura as mãos espalmadas a receberem o calor do fogo que, voraz, lambia as achas de lenha. Súbito a sensação de que o observavam, por trás, fá-lo voltar-se ligeiro. Nada viu, entretanto, na leve penumbra que invadia o quarto.
- Deus do céu!... - murmura. - Estarei a enlouquecer?... Não!.. Por certo, hão de ser os nervos abalados!... - e volta a sentar-se na poltrona.
João Miguel cerra os olhos e tenta imaginar o que seria a sua vida doravante. Afastado, definitivamente, o irmão, voltaria a cortejar Teresa Cristina. Sabia que ela voltara a residir em companhia dos pais, portanto, ali bem pertinho dele!... Certamente, não lhe resistiria à corte!... Seria preciso, somente, deixar passar um tempo!... Um tempinho só!... Ele não tinha pressa!... Sabia esperar!... Deveria aguardar que ela chorasse a morte do irmão - que chorasse bastante!... -; depois, certamente, esquecê-lo-ia!... O coração das mulheres não costumava ser bastante volúvel?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 8:22 pm

E o das mulheres jovens, decerto, sê-lo-ia ainda mais!...
Imerso na semi-obscuridade do seu quarto, o rapaz abre ligeiro sorriso. Imagina-se, então, longe daquele casarão onde sempre vivera. No fundo, odiava aquela casa!... Tinha horror a tudo dali: odiava os móveis, os criados, tudo!... Daquele local, não retinha nenhuma grata lembrança na memória. Só tristezas, choradeiras e lamentações pelo desaparecimento daquele imbecil que, mesmo estando ausente o tempo todo, sempre fora o centro de tudo!... Os pais, na realidade, haviam vivido, constantemente, em função do miserável que sumira!... Como o odiava!... Odiara-o, durante aqueles anos todos, mesmo sem dele se lembrar, e mesmo sem ter convivido com o desgraçado, um minuto sequer, por aquele tempo todo!... E, agora, reaparecia ele, todo pimpão, assim, do nada, e queria levar a metade de tudo?... Até a noiva o desgraçado já lhe surripiara!... Teresa Cristina... A cândida jovenzinha, de olhos cor de mel e de pele branca como o leite...
- Morarei em Lisboa!... - diz ele, baixinho. - E tu morarás comigo, mocinha!... - e abre um sorriso, enquanto levanta a taça à guisa de brinde. - A tua saúde, deliciosa Marquesinha das Alfarrobeiras!...
O sono volta a atacá-lo, sorrateiro. Ele cochila, mas luta, desesperadamente, para não mais adormecer naquela noite. E, entre a sucessão de teimosos cochilos, divisa dois vultos que se postavam diante dele. Assustado, sobressalta-se. Novamente aqueles horríveis espectros!-Seriam reais?... Ou sonharia?... Resoluto, levanta-se e, derramando água gelada na bacia de louça, lava, sistematicamente, o rosto, repetidas vezes, desejava afastar a sonolência. De repente, sentia medo de dormir...
Afastada, temporariamente, a insistente sonolência, pela acção da água gelada, João Miguel volta a sentar-se na poltrona. O silêncio do quarto abate-se sobre ele. Pela primeira vez em sua vida, o silêncio perturbava-o. Olha em redor e perscruta o ambiente, apurando os ouvidos. Silêncio e solidão apenas. Lá fora, o vento amainara-se. Apanha, da mesinha do lado, o livro que estivera lendo, na tarde anterior. Aproxima um pouco mais o castiçal para melhorar a claridade a incidir sobre as páginas do livro e tentar fixar-se na leitura. Entretanto, sub-repticiamente, parecia-lhe ver, de soslaio, vultos que se lhe postavam, um de cada lado da poltrona, a bisbilhotá-lo, curiosos. Fecha, então, o livro e olha em redor. Nada. Nada viu de concreto. Volta a concentrar-se na leitura. E, novamente, a sensação de que o observavam a furto. Extremamente irritado, fecha o livro e cruza os braços. Pareceu-lhe, então, ouvir, no recôndito da mente, uma sucessão de debochados gargalhares...
- Que diabo!... - pragueja ele, levantando-se da poltrona. - Amanhã mesmo irei ter com o doutor Ambrósio Ferreira, em Lisboa. Melhor tratar-me logo, antes que enlouqueça, de vez!...
Neste comenos, ouve os galos que principiavam a cantar, insistentemente. No íntimo, alegrou-se: era a manhã que, finalmente, surgia. Nunca desejara tanto que amanhecesse tão depressa. E, antes mesmo que o dia clareasse de vez, pôs-se a vestir-se com apuro. Iria ao médico naquele dia mesmo.

* * * * * * *
A notícia do encarceramento de João Manuel chegou até Teresa Cristina, trazida pela mãe, Bárbara.
-Que dizes, mãe?!... - exclama, estarrecida, a mocinha, diante do terrível fato.
-E o que te digo, filhinha!... - responde Bárbara, preocupada. -Relatou-me Amélia, a governanta da casa, inda há pouco, a fazer-me rápida visita!...
-E por que prenderam Anjinho?... - pergunta a mocinha, tomando-se de altas apreensões.
-Pelo que pude depreender do que me contou a governanta, é ele acusado de ter matado a nossa saudosa Manuela!...
-O quê?!... - espanta-se a mocinha. - Como puderam fazer 1 sandice?... Anjinho esteve comigo todo o tempo naquela noite! prossegue, resoluta: - Sou-lhe testemunha!...
-Ai, Deus do céu!... - desesperada, exclama a mulher. - Fala baixo menina!... Se teu pai descobre que andavas a grudar-te com os teus namorados pelas noites afora é capaz de doar-te ao convento das Carmelitas Descalças não como freira, mas como irmã-faxineira!... E, para o resto dos teus pobres dias!... Cala-te, por Deus!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua maio 01, 2024 8:22 pm

-Não me calarei, não, mamãe!... - rebate a mocinha. - Não permitirei que condenem meu amor, assim, inocentemente, não!... Manuela ' que era uma perdida daquelas!...
-Ai, cala-te, por Cristo!... - exclama Bárbara. - Como é que podes dizer tais coisas da tua prima que já morreu, a pobre?... Estás a pecar; por falta de caridade!... Respeita os mortos, menina!...
-Não santificarei Manuela, somente porque já se foi desta para a outra vida, não, mamãe!... Que era uma marafona daquelas, lá, isso era mesmo!... Eu mesma vi e constatei com meus próprios olhos!... Convivo com ela, debaixo do mesmo tecto, durante meses!... Esqueceste?...
-Ai, meu Santo Onofre!... - exclama a mulher, desesperando-se. Como é que ia imaginar que a tua prima era umazinha dessas?... Parecia-me tão fina, tão distinta!... Também, sem marido!... Dou-lhe é até muita razão, coitada!... O homem vive pelo mundo, a rastelar mais e mais ouro!... Mas, ai, se nos ouve o teu pai, que tiveste tal escola, capaz de casar-te, ainda hoje, com o teu primo Vasco!... E sequer algum dote do pobre exigirá pela tua mão!...
-Preferirei o convento àquele mostrengo imbecil!... - diz a mocinha. - Mas, não temo papai!... Não é o dono do meu destino!... E, digo-te, com toda a certeza deste mundo: João Manuel não assassinou Manuela!... Certamente, um dos seus amantes fê-lo, por vingança!...
- Mas, teu pai não pode saber que vivias em tal ambiente, minha filha!... - observa, preocupadíssima, a mulher. - Se, ao menos, disso tudo vier ele desconfiar, matar-nos-á, sem titubear!... Deus do céu!..-Onde é que andava eu com a minha cabeça, a confiar-te aos cuidados de uma devoradora de machos como aquela!... Ai, como disso me arrependo!... Olha, que o tiro sai a explodir-nos pela culatra!... Pensava eu te livrar das duas forcas, com uma só porretada: do convento e do casamento com o traste do teu primo; entretanto, vê lá no que tudo se desemboca!... Tu te enroscas num crime de morte!... - e, olhando para 0 alto, exclama, pondo as mãos em concha sobre os lábios: - Culpa tua, descarada!... Viúva negra!... Bem-feito!... Levaste uma daquelas!... Tiveste o que merecias!... Deste com os teus comos no muro, ordinária!... Foste tarde!... Que queimes aí nos infernos, marafona das boas!...
- Mamãe!... - admoesta a mocinha à mãe. - Papai poderá ouvir-te!...
-Tens razão, meu anjo!... - diz a mulher, contendo-se. - Se, ao menos, suspeita disso tudo, trancar-te-á naquela horrível clausura, pelo resto dos teus anos!...
-Pois que tente e verá!... - exclama, resoluta, a mocinha. - Anda, vê se descobres para onde é que levaram João Manuel!... Preciso vê-lo, urgentemente!... Melhor: preciso tirá-lo de tal lugar!... E depressa, posto que é inocente!...
-Para onde o levaram?... - observa Bárbara. - Ora, para a cadeia pública!... Para onde mais seria?...
-Pois é para lá que me vou!... - diz a mocinha, resolvendo-se.
-E o que digo a teu pai?... - pergunta a mãe, apreensiva.
-Que eu e tu iremos à abadia, para rezar!... - responde Teresa Cristina.
-Também eu terei de ir-me contigo?!... - espanta-se a mulher. -Jamais estive em lugar tão infamante!...
-Pois sempre existe a primeira vez, mamãe!... - diz a mocinha. - E se, realmente, desejas que não me vá até lá, sozinha, toca a aviar-te depressa!...
Bom tempo depois, quando a tarde já caía, o coche estacionava diante do tétrico edifício da cadeia pública de Lisboa. Resoluta, Teresa Cristina deixa o carro e galga, apressadamente, os grosseiros degraus de pedra da escadaria que dava à entrada principal. Bárbara segue-a, um pouco atrás, altamente esbaforida.
- Deixa-me falar, antes, ao inspector Venâncio da Silveira.... - grita para a filha. - Conheço-o de longa data!...
-Se quiseres falar com ele, mamãe, será problema teu!... - responde a mocinha, sem se deter. - Eu sei com quem, realmente, preciso falar!... - e adentra o edifício, sem demonstrar qualquer receio.
-Espera-me, minha filha!... - brada Bárbara, atendo-se, temporariamente, no meio da escadaria, para abanar-se com o leque e tomar fôlego.
- Desejo entrevistar-me com um prisioneiro! - diz a mocinha resolutamente, diante do birô, onde se achava sentado o comandam da guarda.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 9:53 am

O homem levanta os olhos dos papéis que examinava e observa curioso a jovenzinha ali postada diante dele.
-De quem se trata, senhorita? - pergunta o oficial.
-Do senhor Barão da Reboleira, aqui preso, injustamente, pel0 assassinato da Baronesa da Ajuda!... - responde ela, sem titubear.
O homem olha-a espantado. A intrepidez que a mocinha demonstrava era fato incomum às donzelas da época. Neste comenos, Bárbara chegava, altamente esbaforida pelo esforço despendido a que se submetera no afã de seguir a filha.
- Oh, senhor comandante!... - exclama a mulher, aproximando-se. - Perdoai a minha filha!... Ela ainda não aprendeu, definitivamente, a portar-se em sociedade!...
O homem olha para as duas mulheres, ainda sem entender muita coisa. Não era fato comum receber mulheres daquela categoria, ali, na cadeia!... Além do mais, desacompanhadas dos maridos.
-Por favor, senhor comandante!... - implora a mocinha. - Permiti que nos avistemos com o senhor Barão da Reboleira!...
-Com que finalidade, senhoras, deverei propiciar-vos uma entrevista com o referido prisioneiro? - pergunta o oficial, sem deixar a sua fleuma por um só instante.
-Oh, deixai que me apresente, senhor comandante!... - diz, nervosa, a mulher, tomando a frente da filha. - Bárbara Dantas e Melo, Marquesa das Alfarrobeiras, a vosso dispor!... Precisamos falar ao senhor inspector Venâncio da Silveira!
-Não senhor! - corrige Teresa Cristina. - Desejamos ver o senhor Barão da Reboleira!
O homem limita-se a olhar para ambas com um par de olhos inexpressivos. Ainda não entendera o que, realmente, desejavam as duas.
-Senhor - insiste Bárbara -, minha filha é noiva do senhor Barão da Reboleira!... Precisa avistar-se com ele, urgentemente!...
-Não é de praxe permitirem-se visitas aos prisioneiros que se achem sob a suspeita de crimes de tal monta, madama - diz o oficial. E prossegue, sempre dentro da sua inalterabilidade comportamental; dir-se-ia que o homem agia como se fosse uma máquina, tamanha a sua formalidade:
para que visiteis o prisioneiro, será necessária uma ordem obtida de instâncias superiores. Não tenho competência para assumir tal responsabilidade.
Bárbara pensa por instantes, e uma ideia surge-lhe:
- Tal ordem acaso poderia advir de alguém da importância do inspector-geral da milícia?... Do senhor Venâncio da Silveira, por exemplo?...
-Por certo que sim, senhora... - responde, neumático, o homem. _ E onde poderei achá-lo neste momento?... - pergunta Bárbara.
-Em seu gabinete, senhora.
-Vamos, filha!... - diz a Marquesa das Alfarrobeiras, puxando, resolutamente, a mocinha pela mão. - Também eu, agora, tenho muito interesse em conversar com o senhor Barão da Reboleira!... Sei lá o que tu e ele andastes aprontando naquele antro de perdição!...
-Mamãe!... - resmunga a mocinha, seguindo-a, que caminhava, firme e determinadamente, pelos corredores do vetusto edifício da cadeia pública de Lisboa, em busca do gabinete do inspector-geral da milícia.
-Oh, sim!... - exclama Bárbara, pisando firme, enquanto caminhava apressada. - Oh, sim, tiveste excelente professora, pelo visto!... E, sabe-se lá que tipo de lições aprendeste com ela!...
Neste comemos, ali mesmo, nos sombrios subterrâneos do edifício, numa das celas, dois jovens prisioneiros conversavam.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 9:53 am

-Há que se ter esperança, Francisco!... - diz um deles. - Sei que és inocente!... Confiemos em Deus e rezemos para que a verdade apareça!...
-Não sei, não, caríssimo Vítor!... - rebate o outro. - Tenho a certeza de que foi meu irmão que arquitectou todo este plano e me enredou nesta trama infamante!... Ele tem todo o interesse em ver-me morto!... Herdará sozinho tudo o que papai nos legou por herança!...
-Mas sois tão ricos!... - exclama o outro rapaz. - Vossa fortuna sempre foi tida como imensa!... Acaso não é assim?... Tudo o que tendes daria, sem sombra de dúvida, para viverdes, nababescamente, pelo resto de vossas vidas, sem qualquer tipo de preocupação!...
-Sim, meu amigo, assim é!... - responde o outro, tomando-se de forte desolação. - Somos, de facto, muito ricos!... Mas, a ambição do teu irmão é maior que essa maldita fortuna!...
-Vê como são as coisas, meu caro!... - diz o outro, percebendo que seu novo amigo entristecia-se. - Nós, os aristocratas, somos uma minoria a deter quase toda a riqueza do reino!... Somos tão poucos e temos quase tudo!... Sempre tivemos privilégios!... As melhores habitações são as nossas; temos as melhores roupas; sempre viajamos para onde desejamos!.. Temos privilégios e mais privilégios!... Sabias que esta cela é diferente das demais?... Os pobres acham-se encarcerados mais abaixo, no mais escuro, quase sem ar e sem luminosidade!... Até aqui dão-nos privilégios por pertencermos à nobreza!... Mas, os ventos das mudanças começam a soprar!... Viste os franceses?... Deram o primeiro e grande tiro inicial!... E sabem quem acertaram?... A aristocracia!... O rei!...1
-E o que dizem... - responde João Manuel. E, como possuía pouca cultura política, limitava-se mais a ouvir que a opinar.
-Pois é o que te digo - prossegue o outro -, fortunas imensas como a que possuís, certamente deixarão de existir!... Não passam de uma afronta à miséria que nos rodeia!... Nós, os aristocratas, estamos com os dias contados neste mundo, meu caro!... A França deu o exemplo; o resto da Europa seguir-lhe-á os passos!... Contou-me o capitão Severo da Fonseca, dias atrás, quando aqui esteve a visitar-me, que os reis franceses foram aprisionados, recentemente, pelo povo!...2 E o medo trouxe a terrível reacção: a aristocracia inglesa, para coibir a acção dos mais ousados, lidera o bloqueio à França, juntamente, com a Áustria e outros países europeus, com o intuito de isolar os malefícios deflagrados pela revolução!... Entretanto, para permanecerem no poder, os reis escorcham ainda mais o povo com pesados impostos, a financiarem seus exércitos e, com isso, só fazem aumentar ainda mais a miséria e a desigualdade entre seus súbditos!... Mas, apesar da violenta reacção das cabeças coroadas, sei que as coisas mudam...
Neste comenos, um grito ouve-se diante das grades da cela:
- Anjinho!...
João Manuel toma-se de intensa emoção. Era ela!... Seu amor viera vê-lo!...
_ Tininha!... - escapa-lhe o rouco grito da garganta, e ele se lança de encontro às barras de ferro. - Tu vieste, meu amor!...
- Sim!... Sim!... - diz ela, segurando-lhe as mãos nervosas, cheias de vontades de se tocarem, de se sentirem.
E, apesar da barreira das grades, o inevitável e desejado beijo de extrema paixão advém forte, longo, carregado de intensas saudades!...
- Olha os modos, Teresinha!... - brada Bárbara que chegava um pouco mais atrasada, em companhia do inspector-geral Venâncio da Silveira. - Contenha-te de tais arroubos, menina!...
Teresa Cristina e João Manuel nada ouviam. Ainda de lábios colados em extensíssimo beijo, davam evasão aos seus anseios de estarem juntos. Por fim, a realidade:
-Oh, estás tão abatido, meu amor!... - diz ela, acariciando-lhe o rosto que se tomava, de novo, desleixado pela falta da toalete diária. -Maltratam-te aqui, não é?...
-Maltrata-me mais a tua ausência, meu amor!... - exclama ele, beijando, apaixonadamente, a mão que lhe acariciava o rosto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 9:54 am

-Mas, aqui vim, com mamãe, para soltar-te!... - exclama ela, animando-se. - Vê!... Trouxemos até o inspector Venâncio da Silveira!...
-Oh, não te animes tanto assim, senhorita!... - apressa-se em corrigi-la o inspector da milícia. - Não se acha mais em minhas mãos o poder de libertar o senhor Barão da Reboleira!... Ainda pesam sobre ele as sérias denúncias de ser o principal suspeito do assassinato da senhora Baronesa da Ajuda!...
-Não!... - apressa-se em responder a mocinha. - Isso é uma calúnia que inventaram sobre ele!... Eu estive com Anjinho por toda aquela noite!... Tenho a absoluta certeza de que não foi ele!...
-Teresinha!... - grita Bárbara. - Olha a tua reputação, criatura!... Acaso desejas arruinar-te, é?... - e se voltando para o inspector da milícia: ~ Oh, não lhe deis ouvidos, caríssimo senhor Venâncio da Silveira]... Minha filha está apaixonada pelo tal, e vós sabeis, senhor, uma paixão assim é capaz de fazer misérias!...
- Por certo que sei, senhora Marquesa das Alfarrobeiras!... - exclama, respeitoso, o inspector-geral da milícia. - Sei muitíssimo bem o que são as explosões de uma paixão assim!... - e, dando-lhe disfarçada piscadela de olhos, prossegue: - Não os estou, por certo, a levar a sério1 Ficai descansada!... O que aqui se ouviu, ficará somente entre nós'
- Oh, agradecida, senhor Venâncio da Silveira..., - exclama Bárbara, emitindo fundo suspiro de alívio. - Sois, de fato, excelente cavalheiro!... - e se voltando para a filha: - Teresinha, vamo-nos daqui! Isto não é lugar para nós!... Anda, vamos!...
- Juro-te, meu amor - sussurra ela para João Manuel -, lutarei para livrar-te daqui!... Se mamãe já não mais me apoia, lutarei sozinha!...
- Agradeço-te, imensamente, meu tesouro!... - diz-lhe ele, beijando-lhe, efusivamente, as mãos. - Mas, sozinha, pouco poderás fazer!. Procura Dom Eusébio*.... Ele te auxiliará, com certeza!...
- Sim!... - exclama ela, animando-se com a sugestão que ele lhe fazia. - Procurá-lo-ei, ainda hoje!... Tenho a absoluta certeza de que nos ajudará!...
Pouco depois, no carro, mãe e filha discutiam.
- Peço-te, Teresinha.... - diz Bárbara. - Esquece esse rapaz!... 0 inspector Venâncio da Silveira assegurou-me que, dificilmente, o gajo escapará à forca!... As provas contra ele são irrefutáveis!... E, além d mais, sabias que ele era um dos tais que frequentava a casa da douda da Manuela?... Que era mais um no imenso rol de seus deslavado amantes?... Até isso a milícia já descobriu sobre ele!... Delatou-o u das criadas de Manuela*....
- Inácia.... - exclama Teresa Cristina. - Era ela que marcava o encontros furtivos da patroa!...
- Então tu sabias de mais essa?!... - exclama, estarrecida, a Marquesa das Alfarrobeiras. - Que Manuela tinha as criadas por alcoviteiras a lhe pescarem os homens pelas ruas, é?... E por que é que permaneceste, menina?... E que namorado arranjaste, hein?... Um bel rufião!...
- Mamãe!... - diz a mocinha, agastando-se com as ideias preconcebidas que a mãe fazia do rapaz. - João Manuel não é nada do que pensas!... É um homem bom!... É amável, gentil!...
- Sei!... - exclama Bárbara, a vazar ironias. - O irmão o deserda, e ele fica de olho em ti!... Ora, conta-me outra, menina!... Acaso, não vivia, antes, pelas ruas, como um bandido?... E queres, acaso, provar-me que se transmudou em santo, assim, de ontem para hoje?... Olha, menina, és de facto uma ingénua, isso sim!... E, proíbo-te, terminantemente, d retornares à cadeia, entendeste bem?... E se me desobedeceres, conto toda esta maranha a teu pai!... E ele que faça bom proveito de ti, doando-te seja ao nojento do Vasco ou às estrambóticas Carmelitas Descalças!... A ele que lhe apraza fazer contigo o que bem desejar!... Quanto a mim, acabo de lavar as minhas mãos!...
Teresa Cristina cala-se. A mãe achava-se altamente irada e não era bom naquele momento, voltar a cutucá-la com vara curta, não. Mas, conheci-a. Ela tinha um coração do tamanho do mundo!... Por outro lado, sabia que tinha urgência em falar com Dom Eusébio, e a mãe seria peça importante para levá-la até ele. Entretanto, tinha, primeiro, que convencê-la a ajudar João Manuel.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 9:54 am

Então, arrisca-se a olhá-la de soslaio. Bárbara estava muda, de cenho carregado, a fingir que olhava a paisagem que passava célere pela janela do carro. Teresa Cristina, então, toma-lhe a mão e a aperta forte. Em seguida, leva-a aos lábios e a beija ternamente. E Bárbara, ainda fingindo alta sisudez à fisionomia, olha para a filha. A mocinha abre-lhe um sorriso lindo, um sorriso de pedido de desculpas e, ao mesmo tempo, pedinchão, cheio de súplica.
- Vai lá, marota!... - exclama Bárbara, esforçando-se, ao máximo, para, vencida, não sorrir também e para não tomar aquela criaturinha linda aos braços e para não cobri-la, efusivamente, de beijos. - Que é que vais querer, agora, que esta tola aqui te faça, hein?
- Que me leves ao bispado!... - diz Teresa Cristina, lançando-se aos braços da mãe. - Preciso falar, urgentemente, com Dom Eusébio... - e a beija, repetidas vezes, às faces.
- Ai, eu sabia!... - exclama Bárbara, rindo-se. - Quem é que pode contigo, diabinha?... Vais atolar-me num banco de areia movediça, eu sei!... E nem dez parelhas de fortíssimos bois haverão de tirar-me de lá!... Mas, o que não faço por ti, meu tesoiro?... - e, apontando o rosto janela afora, grita ao cocheiro: - Toma os rumos da diocese, Praxedes!... E não poupes os cavalos!... Dá-lhes de relho ao lombo, que temos muita pressa!...
Ligeiro, o carro vencia as distâncias. Teresa Cristina olha para a mãe, e lhe sorri agradecida. Bárbara devolve-lhe o sorriso, enquanto pensa: "Haverá, acaso, em todo o mundo, alguém cujos miolos sejam mais moles que os meus?..."
______________________________________________________________________________________________
1. Referência à Revolução Francesa, conjunto de acontecimentos que, entre 5 de maio de 1789 e 9 de Novembro de 1799, alteraram o quadro político e social da França. Em causa estavam o Antigo Regime (Ancien Regime) e a autoridade do clero e da nobreza. Foi influenciada pelos ideais do Iluminismo e da Independência Americana, ocorrida em 4 de julho de 1776.
2. Os reis franceses foram presos pelos revolucionários e, posteriormente, executados. Luís XVI, em 21 de janeiro de 1793, e Maria Antonieta, sua esposa, em 16 de outubro, no mesmo ano, ambos guilhotinados em praça pública.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 9:54 am

Capítulo 23 - A luta pela liberdade
O carro em que Teresa Cristina e Bárbara viajavam estaciona diante da mansão episcopal.
-Nunca aqui estive antes!... - observa Bárbara, olhando, admirada, da janela do carro, a vetusta fachada da construção medieval.
-Pois eu já!... - diz a mocinha, aviando-se, ligeira, a deixar a carruagem. E, puxando a mãe pela mão, prossegue: - Anda, senhora dona Bárbara*.... Põe as banhas a mexerem-se depressinha!...
-Ui... Entalo-me aqui qual tafulho ao gargalo duma botija!... - exclama a outra, tentando, em vão, aligeirar-se para deixar o carro. -Valha-me Deus, que me acho qual uma marra cevada, de tão gorda!...
Neste comenos, alertado pelo cocheiro que disparara o sininho da entrada, o padre-mordomo aparecia, montado em sua fleuma habitual. Entretanto, ao divisar o brasão colorido a ostentar-se na porta do carro, tratou de aprestar-se ao máximo, aproximando-se em atitude largamente servil.
-Sê-de bem-vindas, senhoras!... - exclama ele, fazendo ligeira reverência. - A quem devo anunciar?
-Marquesa das Alfarrobeiras e a filha, reverendíssimo padre!... -diz Bárbara.
-E dizei a Dom Eusébio que temos urgência em vê-lo, reverendo!... - emenda a mocinha. - Estamos afobadíssimas!... Não temos, portanto, nenhum tempo a perder!...
-Menina!... - admoesta-a Bárbara. - Isso lá são modos?... - e se rindo, desajeitada, para o padre-mordomo, prossegue: - Oh, não lhe deis ouvidos, não, reverendíssimo!... Sabeis, por certo, como é a juventude!... Andam a saracotear cá e lá como símios doudos sobre os galhos das árvores!... Que gente, Deus meu!...
O padre-gigante olha-a com um par de olhos bambos de sono e, fazendo ligeira mesura, diz:
- Fazei a gentileza de seguir-me, Excelências!...
-Eu disse aquilo, porque esse aí é um toleirão!... Um paio daqueles, mamãe!... Olha só como anda!... - cochicha Teresa Cristina à mãe, enquanto acompanhavam o padre, através de extenso corredor.
-Ssssh!... - devolve-lhe a mãe, à guisa de reprimenda. - Cala-te, menina!... E se ele nos ouve?...
-Quanto a isso, tranquiliza-te; não percebeste que é meio apatetado?... - diz a mocinha, mal sofreando o riso.
Neste ínterim, aproximavam-se da porta do gabinete do bispo.
-Sua Excelência aguarda-vos, senhoras!... - diz o padre, fazendo ligeira reverência e lhes franqueando a entrada.
-Oh, acho que já te conheço!... - diz Dom Eusébio, abrindo largo sorriso e apontando um dedo para a mocinha que se adiantava à mãe. Bárbara mantinha-se à retaguarda, um tanto receosa.
-Por certo que sim, Excelência!... - diz Teresa Cristina, dobrando os joelhos e beijando a pedra do anel que ele lhe estendia. - Sou a noiva do Anjinho.
-Ah, justamente!... - diz o bispo, abraçando-se afectuoso à mocinha.
-Era disso que estava a lembrar-me!... A graciosa noiva do Anjinho....
-e, esticando o pescoço, espiona Bárbara que ainda se postava atrás, um tanto acanhada: - Vossa mãe, presumo!... Sois muito parecidas!...
-Oh, sim, é minha mãe!... - diz a jovenzinha. E, fazendo um gesto com a mão: - Aproxima-te, mãe!...
-Vossa bênção, Excelência!... - diz Bárbara, ajoelhando-se diante do bispo.
- Acho que vos conheço, senhora Marquesa das Alfarrobeiras....
- diz Dom Eusébio, depois de se acomodarem todos nas poltronas.
- Oh, sim!... - exclama ela. - Das missas na catedral!...
-Muitíssimo bem!... - continua o bispo. - Entretanto, a que devo tão agradável visita?...
-Acaso sabeis, Excelência, que prenderam Anjinho?... - diz-lhe Teresa Cristina, sem quaisquer rodeios.
-Oh, não!... - exclama o bispo, espantando-se com a notícia. - Eu ainda não sabia!... E por que se deu tal fato?...
-Acusam-no de ter matado a nossa prima, a Baronesa da Ajuda que conforme deveis saber, foi assassinada pouco tempo atrás!... - diz a mocinha. - Mas, adianto-vos, senhor, que Anjinho é inocente deste crime que a ele tentam imputar, pois, na noite em que mataram a pobre Manuela, estivemos juntos, ele e eu, todo o tempo!... Sou-lhe testemunha!...
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