LUZ ESPÍRITA
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 6 Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 29, 2024 7:31 pm

- Ou, então, chocou-te o meu irmão!... E isso!.. - prossegue ele, com o firme propósito de arrancar-lhe um indício qual quer de que ela lhe estivera mentindo.
_ Oh, como poderia ter-me chocado o teu irmão, se eu, antes, nem o conhecia?-- - responde ela, percebendo que ele a forçava falar. Era preciso então, dobrar a vigilância. - Sossega, que nada tem a ver com o teu irmão, com o teu pai ou com a tua casa!... É que me encontro há tanto tempo distante dos meus!... Sinto saudades de mamãe!... Até mesmo de papai, sinto saudade, sabendo-os aqui tão pertinho de mim!...
De fato, o que ela dizia tinha muita lógica. Sabia-a, havia meses, longe de casa, e a sua residência, efectivamente, ficava a apenas uma centena de metros dali. De repente, sentiu pena dela.
- Olha, não queres dar uma espiadela na tua mãe?... Posso mandar que algum serviçal vá até ela, levar-lhe uma mensagem tua!... Podereis encontrar-vos, então, tu e ela, no caminho, diante da vossa quinta!... Que achais?...
Os olhos de Teresa Cristina iluminam-se de repente. A perspectiva de lançar-se aos braços da mãe, naquele momento, era tudo o que desejava neste mundo.
- Faria isso por mim, João Miguel?... - pergunta ela, animando-se enormemente.
- Claro!... - responde ele. - Que não faria por ti, meu amor? Neste exacto momento, encerra-se a música, e os pares, altamente afogueados pelo esforço despendido durante o bailado, buscam lugares para se sentar e bebericar vinho e refrescos. João Miguel procura por Amélia e lhe sussurra algumas palavras ao ouvido. Em seguida, retorna para junto da mocinha que o aguardava a distância.
-Pronto, meu bem!... - diz-lhe ele. - tudo se resolve!... Instruí Amélia, minha governanta, a que encaminhasse uma mensagem à tua mãe, marcando um encontro para daqui a meia hora, diante dos portões da vossa quinta. Satisfeita?... E te garanto que teu pai de nada desconfiará!... Amélia saberá agir com perfeita discrição!...
-Oh, és um primor, João Miguel!... - exclama ela, beijando-o à face. - Mas, não será deselegante da nossa parte, sairmos, assim, à sorrelfa?...
-Asseguro-te que não, minha cara!... - diz ele, tranquilizando-a. E prossegue, com uma ponta de despeito: - A estrela da festa é outro... Garanto-te que ninguém notará a nossa ausência!...
- Se assim pensas...
- Mas, apressemo-nos!... Conduzo-te até o portão da tua casa' Quando a tua mãe receber o recado, tenho a certeza de que lá a aguardará!...
Fora, a noite estava clara, de plenilunio, e João Miguel e Teresa Cristina caminhavam, facilmente, pela viela calçada de pedras e permeada pelo bosque cujas árvores exibiam sua outonal roupagem ama-relo-laranja.
-Sinto-me altamente ansiosa por estreitar mamãe aos braços!., diz a mocinha, caminhando abraçada ao rapaz.
-Tua mãe, a esta hora, já deverá ter recebido a tua mensagem e, certamente, já se encaminha para o portão da quinta - observa o rapaz. - E que surpresa não deverá ter tido, ao saber-te por estas bandas!...
A distância entre as quintas não passava de algumas centenas de metros que foram facilmente vencidos pelo andar vigoroso dos dois jovens. Quando já se aproximavam dos portões que davam acesso à vivenda dos Marqueses das Alfarrobeiras, fraca luz de uma lanterna permitia divisar dois vultos parados, à espera: a mãe e uma criada que a acompanhara. Os passos apressam-se, a distância diminui.
-Teresinha!... - ouve-se uma voz enrouquecida pela emoção.
-Mamãe!... És tu?...
-Meu anjinho!... Oh, meu anjinho!... Quanta saudade de ti, meu tesoiro!...
E mãe e filha estreitam-se em forte e grandemente emocionado abraço de reencontro.
-Deus do céu!... E não é que nunca imaginaria eu que estivesses aí tão pertinho de nós, cachopita danada!... - exclama a Marquesa das Alfarrobeiras a chorar de contentamento.
-Sim!... - responde a mocinha, a beijar, efusivamente a mãe à face -Trouxe-me João Miguel!...
-Ah, João Miguel!... - diz Bárbara, dando-se conta, afinal, da presença do rapaz, que as olhava, entre divertido e um tantinho emocionado pela autêntica euforia que demonstravam as duas mulheres. -Como estás, filho?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 29, 2024 7:32 pm

-Muitíssimo bem, senhora dona Marquesa das Alfarrobeiras!... -diz o rapaz, fazendo ligeira reverência.
-Pague-te Deus, por tamanha caridade, meu jovem!... - diz Bárbara, enxugando as lágrimas com a ponta dos dedos. E prossegue, enquanto beijava e alisava os cabelos da filha: - Deste-me alegria ímpar hoje!... Como morria de saudade da minha menina!... Oh, mas te tornaste um airoso cachopo!... - prossegue ela, olhando-o melhor à luz da lanterna.
Não te via desde que eras um meninote de cinco ou seis anos, a puxar pelas saias da pobre Rosália!... Que Deus a tenha!... Mas, afinal, que é que comemoráveis?... Escutávamos o baile, lá de casa...
_ Está de regresso o meu irmãozinho desaparecido, senhora dona Marquesa das Alfarrobeiras - diz o rapaz. - E papai dá um baile para reapresentá-lo à sociedade...
-Ai, Deus do Céu!... - exclama Bárbara, levando as mãos ao peito. -Acharam-no, então?... E onde é que se encontrava o menino?...
-Perdido por aí, mamãe!... - apressa-se em responder Teresa Cristina. - E, de menino, nada mais tem!... Tornou-se um rapagão daqueles!...
-Ai, e é?... - diz Bárbara, de repente, dando-se conta de que já se escoara uma enormidade de anos, desde aquele fatídico desaparecimento. - Justo!... - exclama ela, olhando para o rapaz. - Justíssimo, João Miguel!... Se tu já és um homem feito, que não será daqueloutro que era uns poucos aninhos mais jovem que tu apenas... Ah, e tua mãe!... Pobre Rosália!... Se tivesse suportado um tantinho mais!... Teria tido tempo de estreitar o filho aos braços!...
-Não quis Deus que assim fosse, senhora Dona Bárbara!... - exclama o rapaz. E prossegue, percebendo que a mãe e a filha desejavam trocar algumas palavras a sós: - Com vossa licença, deixo-vos a sós... Percebo que tendes coisas a falar... - e, discretamente, afasta-se uma dezena de passos para um dos lados do caminho.
-Oh, mamãe!... - cochicha Teresa Cristina, lançando-se aos braços de Bárbara. - Encontro-me tão confusa!... Tu nem podes aquilatar o que me aconteceu!... - e passa a narrar, sucintamente, à mãe tudo o que lhe sucedera naquele intervalo de tempo, durante o qual não se haviam falado uma só vez sequer.
E, à medida que a filha contava os acontecimentos, Bárbara mal sofreava uma enxurrada de exclamações de espanto.
- Dizes, então, que te apaixonaste pelo irmão reaparecido?... - diz ela.
- Fala baixo, mãe!... - admoesta-a a filha. - Não sabes o quanto João Miguel é violento!...
-E o outro também é grosseiro como este?... - pergunta Bárbara olhando nos olhos da filha. - Precisas ver qual deles é o melhor, antes de fazeres a troca, minha filha!... Não te quero pendendo para o lado errado!...
-Oh, mamãe!... - exclama a mocinha, às raias do desespero. Nunca sei quando posso, efectivamente, contar contigo!...
-Sempre, queridinha!... - diz Bárbara, dando ligeiros tapinhas ao ombro da filha. - Sempre poderás contar com a tua mãezita!... Acaso te desiludi alguma vez?... Fica tranquila, que resolveremos esse impasse!...
-E papai?... Ainda cisma em casar-me com Vasco!...
-E o que ele mais deseja, minha queridinha!... - responde Bárbara.. - Contudo, garanto-te que tal asnice aquele inconsequente só fará, se me matar primeiro!... Ele que se atreva!... Mas, tratemos de decidir logo!... Dizes, então, que o outro é mais maleável, é?... E, por que a indecisão?... Lança-te depressa aos braços do outro, menina!... Que estás a esperar?...
-Oh, mamãe, não é tão simples assim!... João Miguel é um homem muito violento, já te disse!... Não me será simples livrar-me dele, não!...
- Oh, Teresinha!... - exclama a Marquesa das Alfarrobeiras. - E por que cargas d'água foste te enroscar com gajo assim?... Fugias de Vasco e acabaste por te meteres em situação pior que aquela?... Mas, vai-te, volta para a festa, que o rapaz já se impacienta com a nossa demora!... Olha, fica sossegada, que darei um jeito de ir avistar-me contigo em Lisboa, brevemente!... Vai com Deus, minha filha!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 29, 2024 7:32 pm

De volta à casa do namorado, Teresa Cristina continuava apreensiva e calada.
-Parece-me que o colóquio com a tua mãe fez-te mais mal que bem, minha cara! - exclama o rapaz, notando-lhe a falta de assunto.
-Oh, não, João Miguel!... - responde ela. - O reencontro com mamãe fez-me bem!... Enganas-te, se pensas o contrário!... Apenas que não me é fácil viver longe dos meus pais!...
-Se te é tão difícil assim, porque não regressas ao lar e não enfrentas o teu pai?... - diz ele directo. - Acaso não tens o apoio da tua mãe?... Se desejares, poderei ir até a tua casa e falar com o teu pai!..-Oferecer-lhe-ei um dote tão fabuloso pela tua mão que duvido de que ele o rejeite!...
- Oh, não!... Não!... Não precisas chegar a tanto, não!... - apressa-se dizer a mocinha. Precisava convencê-lo a não cometer tal sandice. Se me deres tempo, tudo se resolverá!... Mamãe prometeu-nos ajuda!... 0xn do mais, Vasco é tão rico quanto tu e poderá cobrir, indefinidamente, qualquer oferta que fizeres!... Já pensaste nisso?... E entenda que papai saberá muito bem tirar proveito disso!...
João Miguel limita-se apenas a olhá-la. Ela tinha razão. Tudo poderia transformar-se num ridículo e interminável leilão. Já acontecera antes. E, por mais que tentassem esconder, aquele tipo de disputa sempre acabava caindo no domínio público. Surgiriam, então, os partidários deste e daquele lado, bem como as apostas, os gracejos e os insuportáveis chistes!... Teresa Cristina sente-se desolar. Mais aquela agora!... Ao invés de um pretendente indesejado, agora, passava a ter dois!... Que lástima!...
Neste comemos, João Manuel, a muito custo, conseguira recuperar-se e, instado pelo pai que o mandara chamar, retomara ao salão do baile, e embora se achasse ainda um tanto enjoado, conseguia manter relativa serenidade. O pai já o apresentara a todos, nos intervalos da dança e, no momento, o rapaz rodopiava nos braços da exuberante Manuela que o convidara, acintosamente, a bailar com ela.
-Quem diria, hein, senhor Anjinho!... - exclama a esposa de Afonso Albuquerque e Meneses, ainda altamente espantada com a nova condição do rapaz. E prossegue, com a voz carregada de ironia: - Filho do Barão da Reboleira!... Uma das maiores fortunas do reino!... Vai ter sorte assim lá nos infernos!...
-Chamas a isso de sorte, Manuela?... - pergunta o rapaz, percebendo-lhe o forte tom de ironia à voz. - Eu, entretanto, considero tal fato como terrível trapaça do destino!... Conheces muito bem o que foi a minha vida até então!...
-E como conheço!... - responde ela, olhando-o atrevidamente. - E posso dizer-te que a parte da tua vida que a mim competiu foi-me deveras supimpa!... Nada tenho a reclamar de ti, meu caro!...
-Tu não sabes o que é a miséria extrema, Manuela!... - diz o rapaz, olhando-a nos olhos.
-E espero nunca saber, ora!... - diz ela. - Eras pobre, porque querias!... Acaso não nasceste rico?... És agora até mais rico que eu!...
-Acho que pouco entendes das coisas da vida, Manuela - diz o rapaz. - Pensas, então, que eu vivia naquela penúria toda porque queria?...
-Acaso não te acomodaste assim?... - observa ela. - Pelo q sempre soube de ti, eras um folgazão do cais do porto e que vivias a explorar a ingenuidade dos tolos que te rodeavam!... Esperteza foi o que nunca te faltou!...
-Acho que nunca entenderás essas coisas, Manuela - diz ele. Nem nunca terás noção de como me foi difícil ter de fazer certas coisas!... Como ter mulheres aos braços - mulheres assim como tu! por quem eu nada sentia, além da necessidade de ganhar alguns tostões para matar a fome!... E creio que tu nem nunca saberás como são tai coisas... Algo como ter de tomar um balde cheio de água, sem tirá-lo d boca e sem estar a sentir um pingo de sede!...
-Mas, as coisas mudam, não é mesmo?... - diz ela, sem se deixar abater pelas palavras dele. - Tu mesmo és o exemplo vívido de tudo isso: ontem, eras o opróbrio, a escória humana e fazias parte da corja abjecta e indesejável que habita a baixada do porto; hoje, és o mais bonito e o mais desejado de todos os homens que se acham nesta magnífica festa que o dinheiro do teu pai pôde presentear-nos!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 29, 2024 7:33 pm

Se, antes, eu te podia comprar com o meu dinheiro, hoje, entretanto, terei de conquistar te com as minhas qualidades!... Hoje tu me custarias muito mais que antes, senhor Anjinho!... Ou, como pretendes que passe a chamar-te doravante?... Senhor Barão da Reboleira ou o quê?... - e se ri escaninha, como era do seu feitio. - Agora, tu vales muitíssimo mais do que pesas, meu caro!...
- Disso podes ter a plena certeza, senhora dona Baronesa da Ajudai. - diz ele, cheio de desdém à voz. - E posso garantir-te que, mesmo a despeito de todo o ouro que possuis ou das farturas de atributos e de qualidades feminis de que tanto te orgulhas em ostentar, jamais me terás nos teus braços outra vez!...
-Realmente?... - diz ela, desafiando-o. - Metade dos cavalheiros que se encontram neste salão dariam em troca uns bons pares de anos das suas vidas para terem comigo o que tu já tiveste uma porção de vezes!... E posso garantir-te que ainda não te dei o que de melhor guardo de mim!... De tais coisas não provaste nunca, eu te garanto!...
João Manuel limita-se a olhá-la cheio de desprezo. Aquela mulher adúltera e infame desafiava-o. Era preciso dar-lhe uma lição!... Era preciso arrasá-la, de vez. No íntimo, ele acalentava forte desejo de Vingar-se de tudo o que ela lhe fizera no passado. Por que, então, não ir à forra com aquela desgraçada, fazê-la pagar por todas as humilhações que lhe infligira antes?... Sente enorme satisfação apenas com a possibilidade de fazê-la sofrer. E principia a enredá-la devagar, sem pressa.
_ Acaso estás a insinuar que ainda me queres, Manuela?... - pergunta ele, lançando a isca.
-Mais do que nunca, Anjinho!... - diz ela, num sussurro, permeado de intensa paixão.
-Então, aguarda-me que, em breve, escalarei a parede da tua janela, mais uma vez!... - observa ele, sussurrando-lhe rente ao ouvido.
-Deveras?... Pela parede?... Pois te aguardarei, meu caro!... - diz ela, sorrindo-lhe, cheia de satisfação. - Aguardar-te-ei, com ansiedade!... Acho que me sentirei mais à vontade, agora te sabendo um aristocrata!...
Nesse entretempo, Teresa Cristina e João Miguel adentravam o salão de baile, de volta da visita que houveram feito à mãe da mocinha. Ao ver que o irmão dançava com Manuela, João Miguel sente-se tomar de intenso ciúme. Não conseguia despregar os olhos do casal que dançava, rodopiando ao sabor da alegre música, enquanto conversavam como velhos conhecidos. Velhos conhecidos?... Conhecer-se-iam, já, de antes, o irmão e aquela rameira de luxo?... Dúvida cruel domina-o, então, e era preciso descobrir tudo. Um lampejo perpassa-lhe o cérebro: encantoaria Manuela, enquanto Teresa Cristina dançasse com o irmão!... Sim!... Incitá-los-ia a que dançassem, com o propósito de conhecerem-se. Estudar-lhes-ia, dessa forma, atentamente, as reacções, enquanto tentaria arrancar da tresloucada Manuela se os três já se conheciam de antes. Melhor seria, se a doida da Manuela já se achasse com a língua solta pela acção das inúmeras taças de vinho que, certamente, já entornara até antão!...
- Por que não danças com meu irmão, Tininha? - diz ele, principiando a executar seu plano. - Gostaria que tu e ele vos tomásseis amigos!... Acaso não seremos todos parentes?...
Os olhos da mocinha iluminam-se intensamente.
-Se assim desejas, por que não fazê-lo? - responde ela. – E tu ficarás aqui a ver-nos dançar?
-Não!... Farei companhia à senhora Baronesa da Ajuda!... - exclama ele. - Ela sempre me recebe tão gentilmente, quando lhe frequento a casa para ver-te!... Acho que é meu dever retribuir-lhe, agora a deferência que sempre lá me dispensou!...
- Oh, Tininha!... - exclama João Manuel, pouco depois, tendo a mocinha já nos braços, a rodopiarem ambos pelo salão, arrebatados por intenso enlevo a olharem-se um nos olhos do outro. - Penso se não é um sonho sentir-te tão junto de mim outra vez!...
-Posso afiançar-te que não sonhas, Anjinho!... - responde ela, sorrindo-lhe, feliz. - E a mais pura realidade!... E posso dizer-te que sinto o mesmo em relação a ti!...
-Mas, não és noiva do meu irmão?... - pergunta ele, de repente, entristecendo-se.
-Oh, meu amor!... - responde ela. - Conheci-o antes de ti!... Na realidade, moro aqui tão pertinho da tua casa!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 29, 2024 7:33 pm

Somos mesmo vizinhos de quinta!... Conheci teu irmão já faz algum tempo; pensei estar apaixonada por ele, mas agora percebo que me enganei!... Verdadeiramente, é a ti que amo!...
-Entretanto, ainda permaneces ao lado dele!... - exclama o rapaz, enciumando-se. - Por que não o deixas, então?... Agora posso oferecer-te todo o conforto que mereces!... Sou tão rico quanto ele!...
-Oh, meu amor!... Não é tão simples assim como pensas!... - diz ela, cheia de cuidados, ao perceber que o outro se enciumava. - Teu irmão deu inúmeras mostras de ser um homem violento!... Tu mesmo já deves ter percebido isso!... Tem cautela, peço-te!... Vamos devagar!... Juro-te que nenhum ato de loucura farei!... Doravante, pertencemo-nos um ao outro e lutaremos juntos!... Não achas que deverá ser assim?...
-Tens razão, Tininha!... - responde ele. - Tu és mais ajuizada que eu!... Meu irmão é, realmente, um homem muito estranho!... As vezes, temo-o pelo mal que poderá vir a fazer-me, se meu pai morrer!... Por ora, estarei a salvo, pois papai dá-me a segurança necessária!... Mas, quando ele se for?...
-Quando teu pai se for, meu amor, tu terás de ir-te, também, daqui!... - diz ela, tremendo. - Não sabes de que coisas João Miguel é capaz!...
-Tens razão!... - observa ele e prossegue, altamente ansioso: Mas como faremos para nos encontrar, doravante?... Agora que te reencontrei, não desejo perder-te de vista, jamais!... Entretanto, tu moras em Lisboa e eu, aqui!...
- Tu poderás ir a Lisboa para ver-me!... - exclama ela. - Encontrar-nos-emos na cidade!
- Sim!..- Em lugar estranho, onde ninguém nos ache!... Enquanto tal diálogo processava-se, a um canto e sentados num divã,
Manuela e João Miguel conversavam.
-Diz-me, Manuela - fala João Miguel, com os olhos pregados no irmão e na namorada, enquanto estes rodopiavam felizes e cheios de enlevo, embalados pela música alegre -, não te parece que meu irmão e tua prima já se conheciam?... Observa como se acham animados, a conversarem como velhos amigos que se reencontrassem!...
-Percebeste, então?... - diz Manuela, abrindo um sorriso cheio de galhofa, dos que lhe eram bem peculiares.
-Vamos, lá, senhora Baronesa da Ajudai... - diz o rapaz, olhando-a nos olhos. - Sei que sabes de muita coisa!... Anda, desembucha!...
-Que sei eu?!... - finge espanto a despudorada. - Ora, nada sei, não, senhor Barão da Reboleira!... - e se abre em marota gargalhada: -Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
-Sabes, sim, e muita coisa, por sinal!... - diz ele, insistindo. - Vamos lá!... Somos ou não somos amigos?...
-Mais que amigos, não?... - cochicha ela, rindo um riso etílico. O vinho subira-lhe às ideias, e a linguaja principiava a soltar-se com mais facilidade.
-Por certo que sim!... - diz ele, olhando-a nos olhos, cheio de lubricidade. - Tu és a minha rainha oculta!...
- E tu, o meu rei preferido!... - diz ela, gargalhando.
-Então, vamos lá, Majestade!... - diz ele, prosseguindo no jogo. - Que sabes sobre o casalzinho?...
-Sobre a rameirazinha e o pilantrazinha do cais do porto?... - diz Manuela, rindo-se. - Seja são velhos conhecidos?... Ora, se não são!...
- O quê?!... - exclama João Miguel, estarrecido. - Eu sabia!...vamos lá, Manuela!... Solta tudo!...
~-A minha distinta priminha, caro João Miguel, apesar de ainda se achar em tão tenra idade, já repassou um bocado de homens!... Anjinho, como era conhecido o teu irmão no cais do porto, foi um deles!... Pilhei-os juntos em minha casa!... Em total descaramento!... Vê só, e ainda finge ser toda inocência e pureza, a santarrona!...
-Conheciam-se, então!... - diz o rapaz, empalidecendo de raiva e de ciúme intenso. - E a desgraçada faz-se passar por donzela intocada!...
-Se não se faz!... - concorda Manuela. - Só que, de donzela, meu caro, nada tem!... Não passa de uma devoradora de homens!... Acautela-te, se pretendes, de facto, desposá-la!...
João Miguel sente-se zonzar. Os seus planos de casamento, de constituir uma família acabavam de ruir-se.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 9:26 am

Maldito!... Uma vez mais o maldito estava a entremeter-se em seus planos!... Ah, mas iria vingar-se, ah, se iria!... Aquilo não passaria em branco, não!...
-Manuela - diz ele, mal sofreando o intenso ódio que lhe ia à alma -, peço-te: nada digas a ninguém sobre o colóquio que aqui mantivemos!... Faze de conta que nada sei!...
-Ainda não entendi o que pretendes fazer, mas podes contar com o meu silêncio!... - concorda ela.
Nesse comemos, a dança encerrava-se, e o casalzinho aproximava-se.
- Teresinha, já é tarde, e presumo que tenhamos de nos ir - diz Manuela.
- Oh, tão já?... - pergunta João Manuel, cortês.
-Sim, aproveitaremos para fazer o percurso de volta em comboio!... - observa Manuela. - Senão, tereis ambos que nos fazer companhia até Lisboa!...
-Fá-lo-íamos com prazer, não é, irmão? - diz João Miguel, sorrindo e se dirigindo, amavelmente, ao outro.
-Oh, por certo que sim!... Por certo que sim!... - responde João Manuel, estranhando o inusitado comportamento do irmão. Será que finalmente começava a aceitá-lo?
Na porta, ao despedirem-se das mulheres, os olhares cruzam-se, acham-se, prendem-se, estudam-se.
- Espero-os em minha casa, rapazes!... - convida Manuela. E olhando, insistentemente, para João Miguel, prossegue: - Muito em breve seremos parentes, não é?
De volta, no coche, Manuela exultava de satisfação. Com desdém, olha para a prima que cochilava, recostada no assento ao seu lado, embalada pelo balançar do carro que corria célere pelo caminho calçado fá pedras. "Dorme, tolinha!...", pensa ela. "Acabas de relegar-me dois belos rapagões para o meu deleite!... Ao me enjoar de um, terei o outro a consolar-me as noites vazias...", e sorri desdenhosa, na semi-obscuridade. Pela janela da carruagem, a luz da lua cheia coava-se leitosa, dando ao rosto de ambas uma tonalidade opalescente, fantasmagórica...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 9:27 am

Capítulo 18 - Maquinações e vinganças
Alguns dias haviam se passado, desde o baile de reapresentação de João Manuel à sociedade lisboeta. Depois disso, o estado de saúde de Manuel António agravara-se sobremaneira; dir-se-ia que ele apenas arrebanhara forças para reabilitar o filho desaparecido havia tanto tempo. Sim, era-lhe extremamente importante que todos soubessem que o filho estava de volta e que ele o reconhecia perante a lei e perante a sociedade. Sabia que legava imensa fortuna aos filhos e que, em tais situações, costumavam surgir contendas e intermináveis litígios quando da divisão da herança. Melhor seria se ambos se ajustassem, e: comum acordo e, estando ele ainda vivo a orientá-los, pudesse, assim talvez, evitar tantos dissabores porvindouros aos seus legítimos herdeiros. E, foi com tal pensamento que, certa tarde, chama a ambos a seu quarto. Encontrava-se altamente enfraquecido e já não lhe era mais possível deixar o leito.
-Chamei-os aqui, meus filhos, para conversa que considero como de alta importância. Sinto estar muito próximo o meu fim e gostaria de, antes de me ir ao encontro da vossa mãe, de fazer a partilha dos nossos bens - diz Manuel António, com extrema dificuldade. E, após encarar os rapazes, um a um, demoradamente, prossegue: - Entretanto, antes de convocar o senhor notário e de lavrar o meu testamento, gostaria, imensamente, de que ambos se entendessem, desde já, para se evitarem contendas e disputas futuras!... E, compreendam-me, tenho muito mais experiência do que vós e sei como tais coisas se processam...
- Oh, papai!... - exclama João Manuel, tomando a mão do pai e beijando amorosamente. - Ainda não são horas de se dizerem tais coisas!.. Tu ainda viverás muito!...
João Miguel apenas se limita a olhar para o pai. Trazia o cenho carregado e mal conseguia disfarçar a enorme contrariedade que sentia em participar de tal colóquio familiar. Aquiescera em ali estar reunido, apenas para não contrariar o velho. Sabia que não era o momento de se indispor com a família, de procurar contendas. Melhor era, a priori, concordar com tudo e, depois, agir de sorrate. Morrendo o pai, acertaria as coisas com o irmão, a seu modo. Dar-lhe-ia, com prazer, a parte que lhe tocasse na herança, ou seja, nada!... Nenhum vintém era o que aquele idiota merecia!... O que é que aquele espantalho houvera feito na vida até então?... Nada!... Vivera pelo mundo, a divertir-se, somente!... E ele, João Miguel, a suportar o peso daquela soturna e lamurienta família, sempre chorosa pelo desaparecimento daquele imbecil!... Acaso os pais não haviam vivido o tempo todo pensando e se preocupando tão-somente em reencontrar o outro filho, enquanto que ele vivera calado e relegado a segundo plano, sempre trabalhando como um mouro, para dar prosseguimento a tudo?... Agora o traste reaparecia, assim, do nada, a colher onde jamais semeara?... Tinha muita graça aquilo!...
-E tu, João Miguel, nada dizes?... - pergunta Manuel António, ao ver que o outro não se manifestava.
-Que direi, papai?... - responde ele. - Apenas que aceitarei tudo o que decidires!... - e emenda, com uma pontazinha de ironia à voz: -Acho que eu e o mano não sairemos a nos esfaquear, mutuamente, a vermos quem herdará tudo sozinho, assim que te fores!... Fica sossegado!...
João Miguel, no fundo, achava ridículo aquele acerto que o pai tentava fazer. Na verdade, considerava o irmão um usurpador, que aparecera no momento aprazado, apenas para surripiar a metade do que já considerava como sendo tudo seu. Achava mesmo que muito azar era o que realmente tivera com o inesperado reaparecimento do irmão.
- E tu, Francisquinho, o que pensas?...
- Como disse meu irmão, o que bem decidires estará para mim acertado!... - diz o rapaz. - Além do mais, que sei eu de negócios e de dinheiro?... Sequer as letras conheço...
João Miguel mal sofreia um sorriso de deboche, ao ouvir a sincera confissão do outro. Um analfabeto!... Que faria um ignorante com tanto dinheiro?... Só o pai mesmo para querer atirar fora uma dinheirama assim, com um imbecil como aquele!... Os espertalhões da vida logo o espoliariam, deixando-o mais miserável do que fora antes!... Não, decididamente, ele, João Miguel, não deixaria aquilo acontecer, jamais' Tomaria sérias providências, antes.
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 6 Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 9:27 am

Entretanto, por ora, convinha-lhe concordar com tudo.
- Sugiro então, João Miguel, que ordenes aos nossos escriturários que façam um fiel rol da nossa azienda e, em estando tudo pronto providenciaremos a divisão justa e equânime de tudo entre vós!... Que achais?...
Tudo aparentemente acertado, os rapazes deixam o pai a sós. Manuel António suspira aliviado. Agora lhe restava apenas esperar pelo fim. Aquela existência conturbada, cheia de dores acerbas estava a termo. Em seu pensamento, desenha-se a imagem de Rosália, a esposa falecida, e duas grossas lágrimas descem-lhe pelas faces emurchecidas pelos duros embates dos anos.
- Em breve, estarei ao teu lado, novamente, querida!... - murmura ele, altamente emocionado. - Sabias que ando a morrer de saudades de ti?... - e, a seguir, pareceu-lhe sentir que diáfanas mãos acariciavam-lhe, ternamente, os cabelos encanecidos. Forte emoção invade-o, então. Abre um sorriso e murmura, olhando em derredor: - És tu, meu amor?... Acaso cá já te achas a buscar-me, é?...
Os dias transcorreram-se sem muitas novidades. A saúde de Manuel António chegava ao limite crítico de suas resistências físicas. A doença carcomera-o a tal ponto que ele se resumia a pequeno fardo de pele e ossos somente. Mal se lhe notavam os fracos gemidos e a respiração opressa, difícil - derradeiros estertores de agoniento e cruel sofrimento. E foi assim que, após longo martírio, o velho Barão da Reboleira deixou este mundo. Velaram-no, demoradamente, no salão de visitas da mansão. Depois, Dom Eusébio Sintra, o velho amigo de longa data, encomendou-lhe o corpo na Igreja de Santa Maria, e o sepultaram no jazigo da família, ao lado da esposa, Rosália. Os filhos acompanharam as exéquias do pai, um ao lado do outro, altamente entristecidos. Grande parte da aristocracia lisbonense achou-se presente ao funeral de Manuel António. Até mesmo a rainha1 fez-se representar por um ministro de estado.
Tudo terminado, a mansão dos Barões da Reboleira passa por extenso período de luto. As janelas mantinham-se sempre cerradas e o cortinado baixado. A soturnidade de outrora voltava a invadir os imensos corredores do velho casarão. A criadagem sumira, como por encanto; o silêncio impregnava tudo; silêncio pesado, insuportável. João Manuel passava os dias fechado em seu quarto. Poucas coisas tinha a fazer; excepção a descer ao salão de refeições, preferencialmente, em horários diferentes dos do irmão, posto que o outro, mal o corpo do pai descera à sepultura, passara a tratá-lo com total frieza e indiferença, chegando mesmo às raias da hostilidade. Uma vez, tentara entabular conversação com João Miguel, mas recebera de volta tamanho pouco caso e, meia dúzia de palavras tremendamente ácidas e cruéis: "Melhor que te mantenhas bem longe de mim, bastardo!...", gritara-lhe, enfurecido, o irmão. "Por que ages assim?... Acaso não somos irmãos?...", perguntara-lhe, estupefacto, diante de tamanha rejeição.
O outro, então, respondera-lhe, arrostando-o de modo feroz: "Sinto asco só em ver-te as fuças!... Não és e nunca serás meu irmão!...", e saíra, intempestivamente, deixando-o estarrecido, diante de tão veemente demonstração de gratuita hostilidade. Desde então, não se tinham mais encontrado. Evitavam-se, furtavam-se, deliberadamente, aos encontros entre si. Terrível situação armava-se entre ambos. João Manuel, a princípio, magoara-se muito. Notara, desde o começo, que o irmão o tratava com frieza e com certo distanciamento. Intimamente, cogitava sobre a causa daquela rejeição toda: ciúme?... Mas, por que a razão de tanto ciúme?... O pai não demonstrara preferência por nenhum deles!... Até tratara os dois sempre com igual deferência!... Poderia, também, ser o desejo de não dividir os bens. Seria o irmão tão ganancioso assim?... Mas, havia tanto dinheiro, eram tão ricos que a estonteante fortuna que herdariam daria para ambos viverem, nababescamente, pelo resto das suas vidas!... Decididamente, João Manuel não conseguia atinar qual seria o real motivo de tanta rejeição que recebia por parte do irmão. Entretanto, o tempo passava, o pai já não se encontrava mais ali, e a vida continuava!... Era preciso, portanto, dar novo rumo às coisas. Ficar preso em seu quarto, evitando encontrar-se com o irmão, num eterno jogo de rato e gato, é que não se sujeitaria!... Ah, não!... Não tinha direito à metade dos bens da família?... O pai não os chamara, dias antes da sua morte, e não dissera, muito claramente, o que pretendia que se fizesse, assim que ele se fosse deste mundo?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 9:27 am

E por que cargas d'água agora, o irmão eximia-se de tal incumbência?... Onde é que estava a sua parte na herança?...
Naquele tristonho entardecer de fim de outono, João Manoel sentia-se mais triste que nunca. Estivera ali, em seu quarto, durante quase o tempo todo. Chuva monótona lavava aquele dia desde a manhã, tomando a vida do rapaz ainda mais enfadonha. Seguindo as vontades do pai, passara a receber lições de alfabetização que velho mestre vinha todos os dias, pelas manhãs, ministrar-lhe, com paciente competência. As coisas principiavam a clarear-se em sua mente. Já conseguia decifrar, com alguma dificuldade ainda, é claro, aqueles estranhos enigmas que sempre lhe foram as palavras escritas. Quantas vezes não ficara um tempão parado diante daqueles rabiscos, tentando adivinhar o que encerravam?... Agora não seriam mais segredo para ele. "Apanha um livro dos muitos que o teu pai sempre manteve na biblioteca", dissera-lhe o velho mestre. "Importante que pratiques a leitura, para adquirires fluência com as palavras." Havia descido, havia pouco, à biblioteca do pai. Admirara-se da enormidade de volumes lá contidos!... O pai, certamente, deveria ter sido um homem muito culto, pois gostava muito dos livros. Ah, os livros!... Deitado de costas em seu imenso leito, João Manuel olha para o volume encadernado em couro vermelho que segurava à mão. O título impresso em tinta dourada: Menina e Moça2. Por algum tempo, permanece a observar o livro fechado. Que conteria aquela imensidão de palavras ali grafadas, fechadas como se estivessem guardadas num baú?... Estranhos eram os livros... Antes, nunca houvera se preocupado com nenhum deles. Jamais houvera legado a mínima importância aos livros, pois não faziam parte do seu mundo. Que importância poderiam ter-lhe os livros àquela época?... Agora, entretanto, seu mundo era outro. Lembra, então, as palavras do velho mestre: "Os livros costumam encerrar vidas inteiras... Por isso é que devemos respeitá-los sempre!..." Vira e revira o volume nas mãos, antes de abri-lo. Depois, decide-se por folheá-lo. Situa-se ao início da narrativa, concentra-se e principia a leitura:
"Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube.
Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha."
João Manuel encerra, momentaneamente, a leitura. "Menina e moça...". Seu pensamento, então, voa para longe dali, para Lisboa. A menina de olhos cor de mel!... Ah, Teresa Cristina!... Que saudade!... Fecha o livro e o depõe ao lado, sobre a cama. Preme forte os olhos. Que andaria a fazer a menina de cabelos acobreados, naquele momento?... Imensa onda de ternura invade-o. Quanto tempo fazia que não se viam?... Desde o baile... Desde que haviam dançado, pela primeira vez, não se viam mais!... Depois, o pai morrera, vieram as brigas com o irmão, as dificuldades em resolver a vida. Sentira-se tão magoado com a atitude do irmão que nem se animara a procurar por seu amor!... Que decepcionante mostrara-se a sua vida desde então!... Mas, precisava reagir!... Decididamente, não poderia mais ficar ali, assistindo, impassível, o tempo correr, sem nada fazer. De um salto, deixa o leito e, abrindo o armário, estuda a profusão de trajes que se abria diante dele. Eram tantos os que agora tinha à disposição, que a dificuldade constituía-se, exactamente, em qual deles escolher!... Decide-se, por fim, e, com apurado esmero, põe-se a vestir-se. Pouco depois, saía, tomando a carruagem que o aguardava, diante da escadaria da entrada principal da casa.
-Toca para Lisboa, Olegário!... - ordena ao cocheiro. Duas horas depois, ei-lo a estacionar diante da exuberante mansão de Afonso Albuquerque e Meneses. Com vigor, bate na porta da entrada do vestíbulo. Alguns instantes e, novamente, o assombro:
-Tu?! - exclama a criada. - Não sabes que dona Manuela não te Quer mais por estas bandas, Anjinho?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 9:28 am

-Posso garantir-te que a tua patroa já mudou as ideias a meu respeito, Inácia!... - diz o rapaz. E insiste: - Vai lá, chama a senhorita Teresinha!... Diz-lhe que aqui estou e que desejo falar-lhe!
-Ai, Jesus Cristo!... - exclama a criada, levando ambas as mãos à cabeça. - Estás é a arranjar-me encrencas, Anjinho!... E das bravas' Acaso queres ver-me a mendigar pelas ruas, é?...
-Se não me levas até ela, acharei eu mesmo o caminho!... - diz resoluto, o rapaz, forçando a passagem.
-Ai, por Deus, não, Anjinho!... - exclama a criada, atravancando-lhe a passagem, interpondo-se por inteira, à porta.
-Sai daí, Inácia, vamos!... - exclama o rapaz, arrostando-a, feroz. - Se tens amor à vida, sai daí!... - e lhe dá fenomenal encontrão com os ombros, lançando-a a catar cavacos.
João Manuel consegue, assim, abrir caminho e adentrar o vestíbulo. A criada, recompondo-se, sai-lhe ao encalço, aos berros. Neste exacto momento, Manuela descia as escadas, para o salão de visitas, e se depara com o tendepá que faziam João Manuel e Inácia.
-Ora, ora!... - exclama a dama, cheia de desdém à voz. - Vejam só quem se acha a adentrar a minha sala!... Senhor Anjinho!... Ou deverei dizer senhor Barão da Reboleira?...
-Oh, mil perdões, senhora Dona Manuela!... - exclama a criada, altamente espavorida pela súbita aparição da patroa. - Desculpai-me, senhora, mas ele forçou a entrada, a lançar-me ao chão, sem dó nem piedade!...
-Continuas, ainda, a forçar passagens, senhor barão?... - observa Manuela, ferinamente, fazendo alusão à antiga condição do rapaz. E, enquanto vencia os derradeiros lances da escada, prossegue, olhando-o, cheia de zombaria: - E a lançar indefesas criadas ao chão, é?... Por onde é que andam os bons modos?... Presumo que ainda não te ensinaram que a conduta aristocrática costuma exigir de nós o cúmulo do requinte e das boas maneiras!...
-Manuela, desculpa-me, por favor!... - diz o rapaz, beijando, cortesmente, a mão que a mulher estendia-lhe. - Mas é que a tua criada cismou em não me deixar entrar!...
- Oh, Inácia prima, fielmente, pela integridade e pela segurança da sua patroa!... Não a culpes por isso, meu caro!... Apenas cumpre com o seu dever!... E, quando chegamos à casa de alguém-e, principalmente, quando aparecemos de supetão, sem sermos convidados!... -, costumamos, primeiro, fazer-nos anunciar!... - e se voltando para a criada: Está tudo bem, Inácia; deixa-nos a sós.
_ Desculpa-me, Manuela!... - diz o rapaz, baixando a cabeça, envergonhado.
-Já que aqui estás!... - exclama ela, sarcástica. - Vem, senta-te aqui ao meu lado!...
-Bem que podias franquear-me as visitas a Teresa Cristina!... -diz o rapaz, acomodando-se ao lado da elegante mulher, em amplo divã do salão de visitas. - Sei que não desconheces que nos amamos!...
-Deveras?!... - responde Manuela, fingindo alta surpresa. - Pelo que me consta, era a mim que deverias visitar, lembras-te?... Ou, agora que enricaste, costumas esquecer-te das promessas que fazes?...
-Oh, não!... - apressa-se ele em responder. - Claro que não me esqueci!... Mas sabes que amo a tua prima, não sabes?
-Desconfiava, apenas!... - responde ela, olhando-o cheia de sarcasmo. - Agora, no entanto, estou certa disso!... Mas, diz-me, Anjinho, algo ainda me intriga, seriamente: a sonsa da minha prima, acaso, não é noiva do teu irmão?... Como explicas isso?... Sabias que ele frequenta, amiúde, esta casa, na qualidade de pretendente da talzinha?
-Sabia!... - responde ele, irado. - Meu irmão mostra-se um insolente, um atrevido!... Acho que pretende dar-me o golpe, roubando-me a parte da fortuna que me cabe e, além disso, a mulher que amo!... Faz já meses que papai morreu, e quem diz de ele chamar-me a acertar as contas?... Nada!... Insulta-me o tempo todo e, ainda, hostiliza-me a mais não poder!...
-Não me digas!... - exclama Manuela, altamente surpresa por tal revelação. - Age assim o teu irmãozinho, é?... - e, abrindo um sorriso de deboche, como lhe era peculiar, prossegue: - Nesse caso, então, avia-te, meu caro, pois é quase certo que tentará roubar-te e te deixará na mais negra miséria!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 9:28 am

E ficarás, então, pior que eras, pois creio ser algo deveras terrível, desumano mesmo, uma vez alguém ter conhecido 0 fausto e o perder depois, assim, de repente!... Antes, não havias ainda experimentado do deleitável néctar, das insuperáveis delícias de ser rico!... Ora, no entanto, já provaste do melado...
João Manuel limita-se a olhar para Manuela. Ela tinha razão. Era exactamente aquilo que lhe estava na iminência de acontecer. Nada sabia do que fazia o irmão, em relação aos negócios. Se o chamava a acertar as contas, recebia, em troca, uma chuva de impropérios e de doestos. Já se cansava de receber tantos insultos.
-Se eu estivesse em teu lugar, tratava de espertar-me!... - diz a esposa de Afonso Albuquerque e Meneses, meneando a cabeça. -Não esperaria as coisas acontecerem, não...
-Que sugeres que eu faça, então, Manuela?... - pergunta o rapaz, tremendamente angustiado.
-Que procures alguém da tua confiança e que te aconselhe como deves agir, ora essa!... - diz ela, olhando-o nos olhos. - Não me leves a mal, Anjinho, mas és um bronco daqueles!... Teu irmão passar-te-á a perna, com facilidade!... Duvidas disso?...
João Manuel baixa os olhos. Ela estava certa. Sentiu-se, então, grandemente agradecido a Manuela. Entretanto, com que intuito ela o estaria ajudando?... Sempre se mostrara tão alheia ao que dissesse respeito aos outros; sempre se mostrara altamente egocêntrica, personalista.
-Obrigado, Manuela!... - diz ele, tomando-lhe as mãos e, num rompante, enche-as de beijos.
-Fi-lo apenas pela promessa que me fizeste, meu caro!... - diz ela, sorrindo, matreira. - Ou achas que tu o merecias por outra razão?...
- Manuela!... - exclama ele, fingindo admoestá-la.
-Agora vai!... - diz a mulher, levantando-se do divã. - Não toma mais o meu tempo com as tuas lengalengas!... À essa hora, Teresinha deve encontrar-se em seu quarto a devorar um daqueles melosos e ridículos romances de que tanto gosta!... Anda!... Toca a fazer-lhe uma surpresa!... Mas, vê lá, hein?... Deves-me algo, e disso não te esqueças!...
-Prometo-te, Manuela!... - diz ele, com um intenso brilho nos olhos. - Qualquer dia desses, ouvir-me-ás bater na tua janela...
Manuela lança-lhe um olhar carregado de lascívia e lhe sorri um sorriso matreiro. Depois, devagar, toma a direcção da porta que dava ao vestíbulo. Ia espiar lá fora a quantas andava o tempo...
Mal a mulher desaparece pela ombreira da porta, João Manuel, por sua vez, quase a correr, ganha, rapidamente, as escadarias de mármore alvinitente e sobe os degraus, galgando-os dois a dois. Tinha muita pressa. Precisava rever, urgentemente, o seu amor... Uma vez diante da casa, Manuela espia o céu carregado de nuvens baixas a despejarem fina e monótona chuva outonal. O ventinho frio que soprava fê-la achegar ao pescoço a gola do elegante vestido de veludo rosa que trajava. Que dia mais enfadonho!... Não pudera sair às compras ou a passear, posto que tudo já se achava bastante encharcado, meio desbotado, à espera do inverno. Ah o inverno!... Manuela detestava o inverno!... Haveria estação do ano mais detestável que o inverno?... Poucas coisas, na realidade, tinha a fazer, durante o inverno, a não ser encher-se de roupas e de agasalhos até as orelhas!... Como era friorenta!... Sentia verdadeiro horror ao frio!... Que pena, aquela chuva toda!... Tinha mesmo era que ficar ali, em casa, cheia de tédio, a assistir, impassível, ao escoar das intermináveis horas daquele enfadonho dia... Entretanto, o relinchar de cavalos chama-lhe a atenção. Conhecida carruagem adentrava os portões que davam ao pátio da sua casa...
- João Miguel!... - murmura baixinho e se ri. - Agora é que as coisas vão incendiar-se de fato!...
Neste comemos, João Manuel encontrava-se diante da porta dos aposentos de Teresa Cristina. Por instantes, pára, antegozando a surpresa que a sua inesperada chegada, certamente, traria à mocinha. Depois, bate com os nós dos dedos. De dentro, vem a inconfundível voz, convidando-o a entrar. Então, as mãos trémulas pelo excesso de ansiedade giram a maçaneta da porta e a surpresa:
- Tu?!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 9:28 am

- Sim, meu amor!... - exclama ele, correndo até ela e a tomando aos braços. - Não suportava mais ficar longe de ti por mais um dia sequer!...
- Oh, Anjinho!... - exclama ela, oferecendo-lhe a boca aflante. Segue-se, então, longo e apaixonado beijo. Ah, como se amavam e
como se entregaram àquele enlevo!...
- Vem!... - convida-o ela, depois de se fartarem um da boca do outro. - Senta-te aqui!...
-Estás tão bonita, Teresinha!... - exclama ele, tomando-lhe as mãos e as cobrindo de beijos. - Olha, não queres sair a passear comigo?... Poderemos jantar no centro da cidade e, depois, irmos ao teatro!... Sempre tive tanta vontade de ir ao teatro!...
- Nunca foste ao teatro, Anjinho?... - espanta-se ela.
- Nunca... - responde ele, baixando os olhos, humilhado. – Sequer sei o que é que fazem lá dentro...
Teresa Cristina olha-o, apiedada. Pobre rapaz!... De repente dava-se conta de como a vida dele houvera sido inexpressiva até então. Nenhum contacto com a cultura, nada de arte... Apenas o incansável afã, a desmedida luta para a sobrevivência.
-Não fica assim, não!... - exclama ela, levantando-se e, enlaçando-lhe, amorosamente, a cabeça, com as mãos, acaricia-lhe, suavemente os cabelos. - Tu não tens nenhuma culpa dessas coisas!... Mas, olha!... Eu te mostrarei tudo o que ainda não conheces!... E, depois que nos casarmos, viajaremos pela Europa toda!... Conheceremos Paris!...
-Levar-me-ás a Paris, Tininha!... - exclama ele e, levantando a cabeça, olha-a nos olhos. E, de repente, tomando-se de alta excitação, prossegue: - Sabias que eu sempre desejei conhecer Paris?... Branquinho disse-me que já esteve em Paris uma vez!... Contou-me que lá é lindo!... E tu já estiveste em Paris?...
-Ainda, não, Anjinho!... - responde ela, enchendo-se de ternura por aquele rapaz que mais parecia um garotinho, que se encontrasse na iminência de vivenciar novo folguedo. - Mas, juro-te que a primeira coisa que faremos depois de nos casar é rumarmos a Paris!... E, por V ficaremos por um bom tempo, a conhecer as maravilhas que sei exis tirem em profusão!... Mamãe já lá esteve com papai e me contou!... Disse-me haver bailes estonteantes!... Imagina que dançam até pelas mas, em Paris, nos dias de festa!...
- Dançam pelas mas?!... - observa, espantado, o rapaz.
-Sim!... - responde ela, efusiva. - Contou-me mamãe, ainda, que há tantas lojas deslumbrantes, tantos lugares para se comer e tantas coisas estrambóticas que inventam os franceses que tu nem pode imaginar!...
-Deve ser por isso que todo o mundo deseja ir a Paris!... - observa o rapaz, intrigando-se.
- Por certo que sim!... - concorda a mocinha. - E há tantos teatro em Paris que, se por lá ficares um ano inteirinho, não terás tempo d conhecer a todos!...
- Deveras?!... - espanta-se ele. - Será Paris tão grandiosa assim?.-
- Se é!... - responde ela. - Contou-me mamãe que Versalhes, grandioso palácio onde vivem os reis franceses, é tão vasto que possui mais de quatrocentos cómodos!...
-Tão grande assim?!... - admira-se o jovem. - Acho que em Lisboa não há nada tão grandioso assim!... Nem Queluz possuirá tanto luxo, não concordas!...
-Nem sombra disso!... - observa a mocinha. - Já estive em Queluz, na festa de aniversário de Sua Majestade, há alguns anos!...
-Já estiveste em Queluz?!... - espanta-se o rapaz. - E conheceste a rainha, pessoalmente, Tininha?!...
-Sim, por duas vezes, já estive em Queluz. Há uns cinco anos, acompanhei papai na cerimónia do beija-mão; da outra, mais recentemente, foi num baile de aniversário de Sua Majestade; agora, entretanto, ela se encontra bastante enferma. Dizem que perdeu a razão!...
- Está louca a rainha?!... - admira-se João Manuel.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 9:28 am

-Tudo indica que sim. Mamãe contou-me tal fato, que anda de boca em boca, por toda a Lisboa. A rainha enfraquece das ideias a cada dia, depois que lhe morreram o marido e o filho.3
-Pobre senhora!... - exclama o rapaz, altamente condoído. - Também pudera!... Perder entes queridos, assim, um atrás do outro!...
-Mais as preocupações que rodeiam a todos nós, não é, Anjinho?... Qual aristocrata, hoje, não se preocupa, depois da Revolução?...4
-Já ouvi muito falarem sobre tal Revolução que fizeram por aí, mas nunca soube direito do que se trata!... - exclama ele, intrigando-se. - Papai sempre me falava para eu ficar de sobreaviso, diante das manifestações do povo, posto que a estrutura social da Europa deverá modificar-se em breve. Mas, que mudanças seriam essas?... Papai foi-se, e não tenho mais pessoas instruídas com quem conversar!... Apenas estou a iniciar-me no campo das letras!... Sinto tantas dificuldades, ainda!...
-Tu vencerás todas essas barreiras, meu amor!... - diz ela, beijando-lhe as mãos. - Sempre foste um leão a lutar pela tua sobrevivência, bravamente!... Tenho a absoluta certeza de que tu transporás todos
esses obstáculos!... E eu estarei sempre ao teu lado para ajudar-te!...
-Oh, és muito generosa, meu amor!... - diz ele, abraçando-a, agradecido. - E tenho outra coisa grave a dizer-te, querida!... Meu irmão, depois da morte de papai, hostiliza-me mais que antes!... Imagina que anda a chamar-me de bastardo e que a minha presença é-lhe insuportável!...
-Oh, está ele a dizer-te tais barbaridades, é?... - observa a mocinha, entristecendo-se.
Em seguida, permanece calada, por instantes, fixando o vazio. Então a coisa tomava-se pior do que ela imaginava. Será que João Manuel conheceria a real extensão daquilo tudo?... Conheceria a fundo o carácter do irmão que, na realidade, mostrava-se bem pior do que as duras palavras que lhe dizia?... Precisavam, urgentemente, ambos chegar a um acordo sobre a situação. Deveriam enfrentar João Miguel juntos, unidos. E, preferencialmente, sem delongas, antes que uma tragédia acontecesse. Ela conhecia de sobra a personalidade de João Miguel. O rapaz era bastante violento e egoísta ao extremo!... Certamente, não hesitaria um segundo sequer, diante da possibilidade de livrar-se do irmão, se isso se lhe apresentasse como necessário ao desenvolvimento dos seus interesses, sempre altamente mesquinhos e egoístas. Precisavam, urgentemente, pôr um termo àquilo.
-Meu amor - inicia ela -, sei que não desconheces que mantive um relacionamento com o teu irmão - e que ainda sou forçada a manter -, e nem imaginas o quanto disso me arrependo!... E, diante das evidências de que ele não te aceita e de que, até mesmo, visceralmente, odeia-te, digo-te que é hora de tomarmos uma iniciativa, às claras, eu e tu!...
- Tens toda a razão, meu amor!... - concorda ele. - Sabias que ele me nega a minha parte na herança que me deixou o meu pai?... E, sempre que o chamo a acertar as contas, desafia-me a buscar os meus direitos e me lança chocantes e desaforados impropérios às fuças!... E, como desconheço essas coisas de justiça, ando de pés e mãos atados, sem saber o rumo a tomar!... Já pensei até em deixar-lhe tudo, em sair daquela casa e voltar à minha antiga vida pelas mas!... Lá eu era mais feliz!.-
- Jamais faças isso, Anjinho!... - exclama ela, enfurecendo-se. -Fica sabendo que é exactamente essa atitude que ele deseja que tomes!.-Que lhe deixes o território livre, para que tenha a oportunidade de bocanhar sozinho todo o ouro que vos deixou o teu pai!... Conheço-o muito bem!... Não passa de um sovina de primeira!... Sofre, amargamente, só em pensar de ter de dividir a fortuna da tua família!... Ah, desgraçado!. - Sabendo de tais coisas que te faz ele. Passo a odiá-lo ainda mais!...
-Que sugeres que façamos, então, meu amor? - pergunta o rapaz.
-Sugiro que nos apresentemos a ele, juntos, e lhe digamos o que pretendemos: o fim do relacionamento entre mim e ele e, também, comunicar-lhe-emos que tu e eu nos casaremos!... E exigiremos, ainda, que ele dê a parte da herança que te cabe por direito!... Para tanto, poderei pedir o apoio dos meus pais, se assim o desejares!... Tenho a absoluta certeza de que nos apoiarão!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 9:29 am

-Sim - concorda o rapaz. - É preciso que façamos isso, bem depressa!... Não aguentarei esta situação por muito tempo!...
Depois, ambos abraçam-se apertado e se acariciam mutuamente. Neles havia medo e apreensão. Entretanto, era preciso tomar uma resolução firme, definitiva. Um silêncio estabelece-se, então, entre ambos, íntimas cogitações invadiam-nos. Pela vidraça da ampla janela do aposento, percebia-se o tempo cinza, esfumado pela fina chuva de outono que, teimosa, continuava a cair, ensopando o mundo inteiro...
______________________________________________________________________________________________
1. Por essa época, final do século XVIII, por volta de 1790, reinava em Portugal, D. Maria (1734 - 1816), cognominada A Piedosa e, mais tarde, como A Louca, em virtude de acometimento de terrível doença mental.
2. Menina e Moça, romance editado no século XVI, de autoria do escritor português renascentista Bernardim Ribeiro (1482 - 1552), cuja principal obra é a novela Saudades, mais conhecida, porém, como Menina e Moça (da primeira frase da novela, que se tornou um tópico da literatura portuguesa).
3 - Referência ao consorte de D. Maria I, D. Pedro III, o Duque de Bragança, morto em 1786, e ao filho, José, o príncipe herdeiro da coroa portuguesa, morto em 1788, aos 26 anos de idade, de varíola.
4 - Referência à Revolução Francesa, ocorrida a 14 de julho de 1789, e que depôs a monarquia na França.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 9:29 am

Capítulo 19 - Ódios e desavenças
Decididos a enfrentar João Miguel, João Manuel e Teresa Cristina deixam os aposentos da mocinha e, de mãos dadas, desciam as escadas quando passam a perceber vozes vindas do salão de visitas.
-Estará Manuela a receber alguém?... - observa a jovem. Pareceu-me ouvir vozes virem do salão de visitas!...
-Tudo está a indicar que sim - responde o rapaz. - Quem será?... se me afiguram um tantinho alteados os ânimos!...
-Tens razão!... Parecem discutir!... Achas que devemos apresentar nos ou ganharemos a rua por outra saída?... - pergunta ela. - Onde deixaste o teu carro?
-Meu coche achava-se estacionado mesmo diante da porta principal da casa. Mas, espera aí!... - diz ele, de repente, parando, e a retendo pela mão. - Essa voz eu conheço!... Ssssh!... Ouçamo-la com mais atenção!...
-Deus do céu!... - exclama, estarrecida, a mocinha e cochicha nu sopro: - É a voz do teu irmão!... Já saberá, por certo, que estás aqui!..
-Sim!... - concorda o rapaz, também em voz baixa. - E meu irmão sem dúvida!... E se encontra altamente enraivecido!...
-Terá Manuela já lhe contado que estás aqui comigo?... E que recebi em meus aposentos?...
-Estou quase certo de que tenha feito isso!... - exclama o rapaz. Ela não perderia a chance de ver o barco incendiar-se!...
-Ah, maldita!... - exclama Teresa Cristina a rilhar os dentes e fazer menção de encaminhar-se à sala de visitas, a fim de tomar sati facões com a prima.
-Não, não!... - diz o rapaz, retendo-a, firmemente, com a mão. - E acaba de prestar-nos grande favor!... Não havíamos decido enfrentar tudo?. Aproveitemos, pois, a oportunidade que surge e o façamos agora!...
_ Tens razão, meu amor!... - concorda ela. - As coisas tomam-se insuportáveis para nós!... Melhor decidirmos nosso destino de uma vez!...Vamos !...
E resolutamente, de mãos dadas, ambos apresentam-se, entrando de chofre no salão de visitas.
_ Ah, aí estás, rameirinha!... - exclama João Miguel, levantando-se e se encaminhando, furioso, ao encontro de Teresa Cristina. - Manuela tentava convencer-me de que não era esse bastardo que te visitava, mas eu bem que desconfiava!... Reconheci-lhe o carro e o cocheiro!...
-Alto lá, meu caro!... - brada João Manuel, interpondo-se entre o irmão e a mocinha, quando este tentava agarrá-la, violentamente, pelo braço. - Respeita-a ou te verás comigo!...
-Sai!... Sai!... Cão hidrófobo!... - grita João Miguel, empurrando, grosseiramente, o outro. - Mete a cauda entre as pernas e te limita a fugir daqui, antes que eu acabe com a tua miserável vida!...
-Cavalheiros!... - brada Manuela, levantando-se e, colocando-se entre os dois rapazes, arrosta-os com severidade. - Lembrai-vos de que vos encontrais em minha casa!... Contende-vos ou ordenarei aos meus criados que vos expulsem daqui a pontapés!... Que ousadia a vossa!... Nem pareceis gentes pertencentes a família tão distinta!... Além do mais, sois irmãos!...
-Afasta-te, Manuela! - grita João Manuel, afrontando, acintosamente, o irmão. - Eu e este miserável precisamos acertar nossas contas de uma vez!...
-Pois que venhas, idiota!... - exclama João Miguel, desafiando-o e, pondo-se em guarda, arma os punhos.
-Ah, é?... - responde o outro, enfurecendo-se com a empáfia do irmão. - Toma, então!... - e lhe desfere violento murro às fuças.
João Miguel não esperava por aquele coice de mula. Decididamente, não era páreo para o irmão que crescera nas ruas e tivera que, desde bem pequeno, brigar muito, para defender a própria vida. Não possuía, assim, nem de longe, o preparo que o irmão angariara, por anos a fio, nas contendas de muque. Desestruturado, então, pela pancada recebida, desmonta-se todo, indo cair de chapa, estatelando-se ao chão, sobre o tapete persa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 7:30 pm

- Ai, Deus do céu!... - grita Manuela. - Que fizeste a ele, Anjinho?... " e se ajoelha ao lado de João Miguel, que jazia todo atordoado, a ouvir um bando de andorinhas que, aos pios, revoava-lhe em círculos, em redor da cabeça!...
- João Miguel!... João Miguel!... - grita a mulher, dando tapinhas ao rosto do rapaz. - Vamos, homem, acorda!...
Parado, no meio do salão, João Manuel arfava pela excitação nervosa. Teresa Cristina aproxima-se e, amorosamente, toma-lhe o braço.
- Tu estás bem?... - pergunta-lhe.
Ele se limita a olhá-la. Tinha os olhos injectados e as abas do nariz dilatadas pelo esforço na respiração. Delicadamente, aconchega-a a si e a beija aos cabelos. Depois, lança um olhar cheio de raiva para o irmão que, socorrido por Manuela, recobrava a razão.
- Inácia, ligeiro, traz água ao senhor Barão da Reboleira!... - ordena a Baronesa da Ajuda à criada que, a um canto, a tudo assistira, altamente estupefacta e de olhos bem arregalados. Suas orelhas de lebre achavam-se estiradas ao seu limite máximo, a recolherem tudo da conversa que rolava no salão de visitas, quando o inesperado acontecera.
Uma vez refeito e cambaleante, João Miguel, amparado por Manuela e por Inácia, senta-se num divã. Descomunal hematoma rodeava-lhe o olho esquerdo.
-Estás um horror!... - exclama Manuela, olhando-o no rosto. -Inácia, toca a providenciares uma infusão de matricária para apormos uma compressa fria ao rosto do senhor barão!...
-Dispenso tais deslustres para com a minha pessoa, senhora baronesa!... - exclama, feroz, João Miguel. E, levantando-se, ainda um pouco atordoado pela pancada recebida, encaminha-se devagar para a porta. Antes, porém, de sair, volta-se e, ameaçadoramente, exclama, fixando o irmão e a namorada com um par de olhos terríveis: - Havereis ambos de me pagar caro, malditos, por esta afronta!... - e se vai cambaleante.
Uma vez a sós, os três entreolham-se.
-Não leveis a sério o que ele disse, não!... - exclama Manuela, abrindo-se num risinho nervoso. - Homens traídos costumam bazofiar um pouquinho!... Creio ser o incómodo que lhes causam os comos a crescerem!... - e explode numa gargalhada: - Ha!... Ha!... Ha!... Ha!..-
-Não desmereças João Miguel dessa forma, não, cara prima! -exclama, preocupada, Teresa Cristina. - Sabes muitíssimo bem que ele é um homem perigoso!...
-Ora!... - diz Manuela, olhando-a com seu cinismo habitual. -Agora estás a borrar-te todinha de medo, é?... Não sabias que cedo ou tarde tal afrontamento iria acontecer?... Bem que te avisei!... Lembras-te?... Dizia-te sempre: "Sossega, menina!... Escolhe um só por vez!... " Mas, parece-me que adoras viver com uma colecção de homens ao teu redor!...
-Manuela!... - exclama Teresa Cristina, altamente indignada. -por quem me tomas?...
-Ora, queridinha!... - diz a esposa de Afonso Albuquerque e Meneses, abrindo um sorriso escarninho. - Anjinho deverá conhecer-te muitíssimo bem!...
-Manuela!... Vês o que fizeste com as tuas observações maldosas?... - admoesta-a o rapaz, altamente condoído, diante das lágrimas de profundo desgosto que passavam a banhar o rosto da mocinha. As palavras ferinas da prima a haviam machucado fundo, até a alma. - Acalma-te, meu bem!... - diz o rapaz, enxugando as faces da amada com uma profusão de beijos.
- Percebe-se muito bem que nada conheces da talzinha... - murmura Manuela com desdém e cheia de inveja da outra até as orelhas.
João Manuel lança-lhe um olhar carregado de censura. Afinal, quem era Manuela a objurgar a conduta da prima?... Acaso não era ela, Manuela, uma adúltera de primeira, a lançar-se, despudoradamente, aos braços da metade dos estivadores do porto todo?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 7:30 pm

- Vê bem o que andas a dizer, Manuela!... - diz ele, arrostando-a, firme. - Doravante, Teresa Cristina é minha noiva!... Respeita-a, pois, como tal!...
- Ai, e é?... - pergunta Manuela, fingindo alta admiração. E prossegue, a exsudar ironia por todos os poros: - Acaso saberá o nosso primo, o pai da distinta noiva, que a filha faz-te tal promessa?... Sabias, senhor Anjinho, que a nossa cara priminha já se encontra prometida - e nem o é ao teu irmão!... -, mas ao Marquesinho do Soveral, o Vasco, a quem ela abomina, mas, em contrapartida, a quem o pai ama de Paixão?... Ama-o, principalmente, pela descomunal fortuna que o gajo arrastará consigo ao lhe morrerem, primeiro, o caquéctico avô - velhote asmático e encarquilhado que, diga-se de passagem, custa a deixar este mundo, pois já anda a passar dos cem anos!... -, e, depois, o pai, homem riquíssimo, porém tão sovina que age como o pior dos bufarinheiros de toda a Lisboa!... Essa é a distinta família do tal!... Cheios do ouro até a tampa, mas os piores canguinhas que já vi em toda a minha vida!... £ vivem entocados naquele horroroso e fantasmagórico castelo que possuem e que de lá nunca saem, com medo de que se lhes roubem a fortuna!... E fortuna exactamente proporcional à feiura que o tal Vasco ostenta!... Careca, gordo, sardento, estrábico e manco de um pé!... Que mais lhe falta?... - e conclui ela, persignando-se: - Esconjuro!... Não creio haver outro mostrengo qual aquele em todo o reino!...
-Manuela!.... - censura-a João Manuel. - Estás a inventar coisas!... Não vês que assim magoas Teresinha?...
-Invento eu coisas?... - responde Manuela, cheia de cinismo. E, cutucando a prima que soluçava baixinho, com o rosto escondido no peito do rapaz, prossegue: - Vamos, dize tu mesma, Teresinha, se estou a mentir!... Tenho é muita pena de ti, queridinha!... Recebi-te em minha casa, somente para não te ver casada com aquele espantalho!... E, queres mesmo saber?... Jerónimo, o teu pai, é um monstro desalmado!...Por que é que não se casa ele próprio com uma caricatura como o Marquesinho do Soveral!... Além do mais, o talzinho é gago e deverá já ter uns bons dez anos a mais que tu!... Ai, Jesus Cristo, que morro de pena de ti!...
- E verdade tudo isso, Tininha!... - pergunta João Manuel.
Ela se resume a sacudir a cabeça, em movimentos rápidos, cheia de desespero. Que pensaria ele dela, agora?... Escondera dele, sim, que o pai já a prometera ao primo Vasco.
- Olha, meu bem!... - diz ele, acariciando-lhe, ternamente, os cabelos cor de mel. - Teu primo é, realmente, tudo isso que disse Manuela!...
Nova sequência de rápidas e nervosas sacudidelas de cabeça segue-se, sem que ela tivesse a coragem de retirar o rosto do peito dele.
- E achas que eu te deixaria cair nas mãos de um mostrengo como aquele?... - diz João Manuel, beijando-lhe os cabelos. - Não, meu amor!... Jamais!... E não sei por que me ocultaste tal fato, mas pressinto que tenha sido por medo!... Medo ou vergonha, mas que importância lá isso tem agora?... Nenhuma!... Importa-me, sim, e, grandemente, que te amo e que tu me amas!...
Teresa Cristina levanta, devagar, o rosto do peito do rapaz e o olha no fundo dos olhos. E ele lhe sorri um sorriso lindo, cúmplice, maroto. Ela, então, abraça-o forte, e ele a beija à boca. Longo beijo - beijo ardente, beijo de amor profundo...
Pouco depois, quando olham em redor, Manuela havia desaparecido. A Baronesa da Ajuda houvera deixado a sala, furibunda, pisando duro e cheia de inveja de tanto amor, e eles nem perceberam que ela saía.
- Manuela deixou-nos... - observa Teresa Cristina.
- E nós também nos iremos... - sussurra ele, rente ao ouvido dela. -Prometeste levar-me ao teatro, lembras-te?...
Pouco depois, um coche deixava os portões da mansão de Afonso Albuquerque e Meneses. Em seu interior, já envoltos pelo escurinho da noite, um casalzinho abraçava-se forte e, trocando juras de infinito amor, beijava-se feliz... De fora, os lampiões a óleo, pendurados nos negros postes de ferro fundido, derramavam lampejos de luz amarelada, iluminando, fracamente, o interior da carruagem, com intervalos curtíssimos, como num acender e apagar ininterrupto, enquanto que, a rolarem, ligeiras, as rodas do carro arrancavam o pitoresco ruído das pedras do calçamento das ruas...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 7:41 pm

* * * * * * *
Depois que deixara a mansão de Manuela, João Miguel retomara a casa, espumando de ódio contra o irmão e a namorada que, tão vilmente, o atraiçoava. Sentado, displicentemente, numa poltrona, na penumbra do seu quarto, o rapaz já entornara uns bons pares de taças de vinho e, ora, segurando um copo à mão, mantinha terrível monólogo mental, enquanto bebericava, amiúde, pequenos goles da bebida: "Malditos!... Malditos!... Mil vezes malditos!...", pensava, remoendo a raiva que o consumia. E, passando a mão pelo rosto, ainda largamente inchado pela pancada recebida do possante punho do irmão, continua: "Desgraçado!... Maldito bastardo!... Queres roubar-me a metade do que tenho e ainda a mulher com quem pretendo casar-me?... Queres levar-me tudo, bandido?...". E, rilhando os dentes, na semi-obscuridade do quarto, prossegue pensando: "Verás, verme imundo, o que farei contigo!...", e crispa, violentamente, as mãos, de tanto ódio, como se quisesse, com elas, esmagar o irmão.
Neste ínterim, grotesca forma aproxima-se dele e o enlaça com seus braços pegajosos, cobertos de podridão e de lama. O espectro apresentava-se de forma horrível: todo desgrenhado, tendo as feições amplamente deformadas num ricto mesclado de ódio e de zombaria-suas roupas eram farrapos e, do peito, brotava-lhe um risco sanguinolento a escorrer-lhe, continuamente, como pequeno valado escuro a ensopar-lhe os trajos já largamente emporcalhados de terra e de laivos de sangue coagulado.
-Tens de vingar-te deles!... - sussurra o espírito ao ouvido de João Miguel. - Traíram-te, covardemente, e tens de vingar-te deles!...
-Sim!... - responde João Miguel, num murmúrio, cheio de ódio e atendendo ao diálogo que lhe propunha o espírito, enredando-o no conluio obsessivo. - Sim, preciso vingar-me de ambos!...
-Tens de ir à forra!... - continua o espírito, enchendo-se de satisfação e, animando-se, enormemente, ao perceber que o rapaz correspondia-lhe, facilmente, às insinuações. - Tu tens que separar o teu irmão de Teresa Cristina, pois ele já se encontra prometido a outra mulher!... Ambos são traidores, e tu precisas separá-los!...
-Sim, preciso separá-los!... - repete João Miguel, tendo a mente plenamente ligada à mente do espírito obsessor. O álcool facilitava-lhes, enormemente, o colóquio mental.
-Manuela é o elo... - continua o espírito de Madalena, a jovem prostituta que ele, tempos atrás, houvera, cruel e friamente assassinado, num escuro beco do cais do porto - ...e tu deverás proceder assim...
Pouco depois, o horrendo espectro, literalmente, desgruda-se do corpo de João Miguel e, exultante, acomoda-se a um canto.
- Pronto, Gerusa!.... - murmura o espírito, abrindo um largo sorriso, pejado de satisfação. - A impostora será afastada da tua vida!... E tu terás o caminho aberto a conquistar o coração do teu amor!... Achavas, acaso, que eu permitiria que o malandro do Anjinho te fizesse tal desagravo?... Ah, minha adorada amiga!... Nunca!... Imagina só: trocar-te por aquela clara de ovos despelada!... Jamais!... Tu é que serás a mulher dele, a verdadeira Baronesa da Reboleira, não ela, a usurpadora!... Tu viverás no luxo e na ostentação!... Isso eu te prometo!... E ainda, vingar-me-ei desse imbecil que aí está!... - e lança um olhar de desdém ao rapaz que, escarrapachado no divã, bebia largos goles de vinho, afogando o ódio que o consumia. - Esse aí irá pagar-me tudo o que me deve!... Ah, se vai!... - e escancara uma gargalhada, cheia d desprezo e de loucura...
João Miguel, no íntimo, maquinava. A ideia que lhe passara à cabeça, pouco antes, era brilhante. Precisaria de um tempo para executá-la, mas, por certo, resultaria numa solução definitiva para aquele impasse: destruiria o irmão, de vez, e teria, ainda, Teresa Cristina de volta aos seus braços. E os seus planos de transferir-se, definitivamente, para Lisboa e ao lado da mocinha, constituir sua família voltavam, finalmente, a ter perspectiva de efectivar-se. Era preciso, portanto, começar a pôr o plano em prática. No dia seguinte, iria dar os primeiros passos, instalaria as armadilhas...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 7:41 pm

* * * * * * *
Neste comemos, no teatro, João Manuel e Teresa Cristina esqueciam-se, temporariamente, do incidente ocorrido pouco antes. O rapaz maravilhava-se, apesar de a ópera estar sendo encenada em barracão de madeira improvisado, motivo de os principais grandes edifícios de Lisboa terem ruído quase todos, havia pouco tempo, no grande terremoto.1 Amiúde, os olhares de ambos cruzavam-se, enternecidos, pela emoção e sensibilizados pela música. Os tocantes acordes da Antígona1 invadiam o ambiente e, também, o coração dos jovens apaixonados. No palco, a soprano executava, magistralmente, o diálogo cantado, arrancando profundas emoções à plateia que, em respeitoso silêncio, acompanhava o desenrolar da tragédia:
Com 'é facile l 'amore
A fingersi contenti!
Odi, e misura il luo coraggio e il mio.
Dovrem fra poco mirarei, o Dio,
scambievolmente in viso,
d'una stentata morte tutto Vorror;
la disperata fame,
la magrezza, il pallor;
frenare invano
elia natura opressa
fra gli spasimi atroei
i gemiti importuni,
i mesti sguardi
che la luce smarrita
van ricercando appena1
João Manuel nada entendia do diálogo que as cantoras entabulavam, acompanhadas pelos magnificentes acordes da orquestra; apenas, embevecia-se com aquilo!... Jamais supusera o quão esplendentes eram tais coisas!... Quantas vezes não ficara, do lado de fora do teatro, a ouvir a estrondosa música e aquelas vozes que lhe soavam tão mágicas tão deslumbrantes aos ouvidos?... Teresa Cristina segurava-lhe as mão e lhe sentia as emoções. Baixinho, sussurrava-lhe, laconicamente, a ouvido, o desenrolar das acções da tragédia. Desejava que ele acompanhasse o tema da ópera. E, altamente emocionada, via-lhe os olhos encherem-se de lágrimas, com o triste desenrolar dos acontecimentos encenados. Findo o espectáculo, deixam o teatro e voltam para casa. Haviam antes, jantado em fino restaurante do centro da cidade. No carro, forte mente abraçados, conversavam baixinho:
- Continuarás na casa da tua prima? - pergunta ele.
- Por mais alguns dias, sim - responde ela. - Não vejo mais motiva para permanecer na casa de Manuela. Não resolvemos que iremos assumir nossa relação diante de todos?... Já enfrentamos o teu irmão!... Agora será a vez dos meus pais!...
- Sim - concorda ele. - E como pensas que me receberão os teus pais?...
-Mamãe já sabe tudo a teu respeito - diz a mocinha. - Contei-lhe sobre ti, quando com ela estive, no dia do baile em tua casa. E já te aceitou de antemão!...
-Verdade?!... - espanta-se o rapaz. - Estiveste então com a tua mãe naquela noite?... E ela me aceitou, assim, sem ao menos conhecer-me?...
-Como sabes que não te conhece?... - brinca ela. - Viu-te, uma vez, quando ainda eras um mamote de alguns dias, no colo da tua mãe!...
-Ora, estás a zombar de mim!... - diz ele, beliscando-lhe, amorosa¬mente, uma bochecha.
-Brincadeiras a parte, meu amor - diz ela, ficando séria -, mamãe já é nossa aliada!... Faz de tudo para impedir o meu casamento com o meu primo Vasco!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 7:41 pm

Nosso empecilho maior será, na verdade, o meu pai!... Esse é um turrão daqueles!... Não nos será fácil demovê-lo de tal abominável ideia, não!...
-Deixa-o a meus serviços, querida!... - exclama o rapaz. - Demovê-lo-ei dessa ideia absurda de casar-te com o teu primo!
-Oh, não sei, não, meu amor!... - diz ela, abraçando-se forte ao rapaz. - Às vezes, tenho horrorosos pressentimentos a nosso respeito!... Ultimamente, tenho tido pesadelos horríveis, em que te vejo sendo tragado por terrível voragem e te perdes de mim!... Tu me estendes as mãos, em desespero; tento socorrer-te, mas me escapas e te perdes de mim, engolido por fundo e negro abismo!...
-Ora, querida!... - diz ele, consolando-a. - Não dês trato a tais coisas, não!... Esquece-te delas!... Tudo sairá bem!... Tem fé em Deus!.. .
-E tu continuarás a morar com o teu irmão naquela casa? - pergunta ela.
-Por que não deveria?... - responde ele. - Aquela casa também é minha, e eu, na realidade, não teria para onde ir!... Ele não me dá a parte que me cabe da herança!... Se fizesse a partilha dos bens, por certo, eu deixaria a casa, no minuto seguinte, a cuidar da minha vida!...
-Olha, por que é que não procuras alguém para ajudar-te?... - sugere ela. - Poderias consultar uma autoridade!...
-Manuela já me aconselhou a fazer tal coisa - responde ele. - g acho que tendes razão, tu e ela. Mas a quem devo procurar?... Nã0 conheço ninguém que tenha capacidade para tal!... - e, abrindo ligeiro sorriso, prossegue: - Meus antigos amigos são todos mais analfabetos que eu, agora, que ando a arranhar um pouquito as letras!...
-Espera aí!... - diz ela. - E o bispo que te achou?... Como é mesmo que se chama ele?...
-Dom Eusébio!... - exclama o rapaz, alegrando-se. - Como pude esquecer-me dele?... Oh, sim!... Dom Eusébio é a criatura mais esclarecida do mundo!...
-Oh, exageras!... - diz ela, beliscando-lhe de leve o braço. -Claro que todos os bispos são esclarecidos!... São altos dignitários da Igreja!... Entendem de tudo!... Certamente, entenderá de heranças também!...
-Oh, bem lembrado, Teresinha]... - exclama ele, beijando-lhe, efusivamente, as mãos. - Amanhã mesmo irei à diocese, a fim de avistar-me com Dom Eusébio. Não queres fazer-me companhia?... Assim terás oportunidade de conhecê-lo pessoalmente!...
-Sim, irei contigo!... - responde ela, contente. - Aproveitarei a oportunidade, também, para aconselhar-me com ele!... Quem sabe não consolará essas minhas aflições?...
Neste ínterim o coche estaciona diante da casa de Manuela.
- Chegamos, meu amor!... - diz ele, espiando pela janela do carro. -Manuela já deverá se ter recolhido a essa hora!...
-Provavelmente, sim!... - responde ela. - E tu voltarás a Sintra ainda esta noite?... Olha, não queres aqui pernoitar?... Poderei consultar minha prima...
-Não, querida!... - responde ele, beijando-a, suavemente, à face. -Agradeço-te a preocupação, mas ainda não é tão tarde, e Sintra não fica tão longe assim!... Em poucas horas, lá estarei!... Fica sossegada!... Mas, amanhã, no meio da tarde, aqui estarei para irmos ter com Dom Eusébio]... Não te esqueças!...
Pouco depois, sozinho no carro, de volta para casa, João Manuel cogitava acerca da sua vida. Como tudo houvera mudado em tão pouco tempo!... De vagabundo das ruas, analfabeto e grosseirão, sem eira nem beira, agora, herdeiro de uma das maiores fortunas do reino!... Custava-lhe acreditar que se encontrava em tal situação. Entretanto intenso pesar invade-lhe o coração. Não era mais feliz, antes, no meio da vadiagem das ruas, sem qualquer compromisso com nada?... Agora, havia a disputa com o irmão pela posse da parte dos bens que, por direito, cabia-lhe... O ódio que João Miguel devotara-lhe, gratuitamente, desde o primeiro encontro... Sentia-se magoar pelo desenrolar de todos aqueles tristes acontecimentos. Não conseguia entender por que o irmão 0 rejeitava tanto. Por certo, o outro não imaginava, nem de longe, o que era a solidão, o abandono, a terrível sensação de desferir o frio de uma existência solitária, sem pais, irmãos, parentes, nada... Sem ter nenhuma referência sobre si próprio!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 7:41 pm

O inferno de mirar-se no espelho e de perguntar-se de quais rostos viriam os traços que compunham aquela fisionomia ali reflectida!... João Miguel, por certo, desconheceria, por completo, o que é nunca sentir o gostoso prazer de pronunciar as palavras mãe ou pai... Ou até mesmo a palavra irmão...
João Manuel emite fundo suspiro. Por outro lado, que culpa tivera se o tinham afastado do convívio familiar, contra a sua vontade e contra a vontade de todos? Não o haviam procurado, insistentemente, por todo o reino, e até mesmo pelo estrangeiro, anos a fio?... E agora que o haviam reencontrado, aquele hipócrita desejava descartá-lo, sem mais nem menos?... Não, não era justo!... Melhor fora se nunca o tivessem descoberto, então, e que passasse o resto da sua vida, sem conhecer a sua verdadeira identidade!... Que absurdo, agora, o irmão querer ignorar que ele existia!... Acaso o pai não terminara seus dias um pouquinho mais feliz, tendo-o de volta ao convívio familiar?... A mãe, coitada, não tivera a mesma sorte, mas soube, pelo pai, que ela esperara por ele até os derradeiros instantes da sua vida, que se lhe transcorrera sempre pejada de dor e de sofrimento!... Não, o irmão não representava, absolutamente, o que pensara a sua família sobre ele!... Tinha a absoluta certeza de que os pais não o haviam deixado de amar, somente porque ele deles se perdera!... Mas, o irmão!... Ah, esse era um desalmado!... Não possuía um pingo de ternura naquele coração ressequido que, até então, só dera mostras de conhecer a cobiça e a maldade!... E, embalado pelo suave balançar do coche, João Manuel sente as pálpebras pesarem-se-lhe, enormemente, e principia a cochilar. Havia, ainda, um bom trecho a percorrer, e a noite avançava. Aquele lhe havia sido mais um dia cheio de amarguras. Amarguras e decepções. Mas, sempre soubera que a vida não era fácil, que era cheia dessas contrariedades.
Acaso não vivera sempre assim, acossado pelas armadilhas da vida como um bicho?... Mas, sabia, também, pela larga experiência que já possuía, que havia sempre a reversibilidade dos reveses, que havia o lado bom das coisas. E que, pela manhã, surgiria nova perspectiva de resolverem-se todos aqueles problemas.
Teresa Cristina, por sua vez, depois de despedir-se de João Manuel diante da casa, entrara, com a intenção de recolher-se, imediatamente aos seus aposentos, em virtude do avançado das horas. Entretanto, surpreendera-se, ao encontrar a prima ainda acordada, a ler um livro, recostada num divã do salão de visitas.
-Chegas tarde, priminha!... - exclamara Manuela, ao notar que a outra surgia no limiar da porta. - Onde é que andavas até estas horas?... A vadear pelas ruas, presumo...
-Aí é que te enganas, caríssima Manuela!... - respondera a mocinha, sem se deixar intimidar pelas farpas impiedosamente arremessadas pela outra. - Fui ao teatro!...
-Deveras?... - respondera Manuela, abrindo um sorriso cheio de zombaria. - Deste para adquirir cultura, agora, é?... E levaste, acaso, o bronco do teu novo namorado a tiracolo?... Ele é que anda bem precisado de tais coisitas de civilidade!... Precisa erguer-se nos dois pés, em vez dos quatro em que costuma caminhar!... Viste como quase arrebentou as fuças do irmão?...
-João Miguel bem que mereceu tal castigo!... - respondera a mocinha. - Acho que o verdadeiro quadrúpede não é bem João Manuel, não...
-Bem, bem!... - dissera Manuela, fechando o livro que segurava entreaberto numa das mãos e marcando a página com um dos dedos. -Deixemos aqueles dois idiotas que se arrebentem um ao outro!... Quanto a mim, já morro de sono!... Até amanhã, queridinha!...
Por instantes, Teresa Cristina permanecera de pé, no salão de visitas, depois que Manuela recolhera-se, a bocejar, ruidosamente, e a esticar, exageradamente, os braços bem alto, acima da cabeça. A mocinha encontrava-se altamente ansiosa. Sabia que lhe seria difícil conciliar o sono naquela noite. Depois, devagar, tomara a direcção das escadarias de mármore branco que davam ao andar superior. Tinha o corpo dolorido pelas altas descargas emocionais, recebidas naquele dia.
Mo momento, achava-se estirada sobre o leito, na semi-obscuridade do seu quarto de dormir. E os pensamentos invadiam-lhe a cabeça. Eram tantos os problemas a resolver!... Precisava voltar para casa, enfrentar o pai, decidir de uma vez a sua vida!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 7:41 pm

Como reagiria o pai?... Deixar-se-ia convencer por ela e pela mãe?... O pai costumava ser tão turrão, tão irascível, diante das mínimas contrariedades!... E a disputa entre João Manuel e o irmão?... Já haviam começado a agredir-se fisicamente!... Aquela desinteligência poderia culminar num fim desagradável, se não se resolvesse logo. Teresa Cristina suspira fundo. Deus do céu!... Quando é que a sua vida iria, finalmente, ajustar-se?... Preme os olhos, fortemente, para tentar afastar aqueles pensamentos da sua cabeça. E o sono que não vinha... O silêncio da noite ecoava em seus ouvidos, irritante, apenas entrecortado, a intervalos, pelo lúgubre uivar de um cão, a perder-se, longe, pela madrugada...
______________________________________________________________________________________________
1. Referência ao grande terremoto ocorrido em Lisboa, a capital do Império Português, em 01/11/1755, por volta de 9:40, e seguido de terrível maremoto e de um incêndio que Perdurou por seis dias, provocado pelo grande número de velas acesas, a queimarem nas igrejas e nas residências, pela comemoração do dia de finados. Tal tragédia vitimou, aproximadamente, 30.000 pessoas.
2. Referência à ópera Antígona, do compositor italiano Tommaso Traêtta (1727 - 1779).
3. Trecho pertencente ao terceiro acto, sétima cena, diálogo entre Antígona e Emone, d peça Antígona, de Tommaso Traètta. Tradução livre do italiano:
Como é fácil ao amor
Fingir-se contente!
Odeia, e mede a tua coragem e a minha.
E, em pouco, miremo-nos, ó Deus,
mutuamente, à face,
todo o horror de uma morte penosa;
o desespero da fome,
a magreza, a palidez;
e frear, em vão,
da natureza oprimida,
entre espasmos atrozes,
os gemidos incómodos,
os olhares tristes
que a luz perdida
apenas vão buscando
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 7:42 pm

Capítulo 20 - Tormentos da obsessão
Na tarde do dia seguinte, o luxuoso coche de João Manuel estacionava diante da mansão episcopal, residência do bispo Eusébio Sintra. Desta vez, o rapaz não se postava com o rosto colado às altas grades negras do portão de ferro, nem a sua companheira trajava extravagantes e escandalosos trajes, mas se tratava de criatura meiga e gentil e que, sabedora que visitaria um dignitário da Igreja, vestira-se com esmerada sobriedade e, ainda, trazia o rosto coberto por grácil véu de tenuíssimos fios de seda branca. Nem o padre-gigante, ao atender a sineta que o cocheiro disparara, fizera-os esperar, para anunciar-lhes a visita. Ao dar com o brasão ostentado à porta da magnífica carruagem, apressou-se logo em franquear-lhes a entrada e a desmanchar-se em longas mesuras, enquanto o casal deixava o carro, diante das escadarias que davam ao grande pórtico de entrada da casa.
- Sede bem-vindos, Excelências!... - exclama o padre grandalhão, curvando-se. E prossegue, cheio de louvaminhas: - Fazei o favor d seguir-me, senhores, que corro a avisar Sua Excelência, o bispo, que vos achais em visita à nossa humilde casa!... Por gentileza, e, perdoai-me, que me adianto de vós, a avisar Sua excelência!... Por favor!... -desmancha-se ele em desculpas.
Em seguida, o padre-mordomo dispara à frente, com suas larga passadas ciclópicas, e o rapaz e a mocinha seguem-lhe os passos, bem mais atrás, caminhando devagar e de braços dados, através de extenso corredor.
- Das outras vezes, quando aqui estive, fez-me esperar lá fora um tempão e mal trocou duas palavras comigo!... - cochicha João Manuel para Teresa Cristina. - E andava lento feito um boi de carga!... Agora, no entanto...
Tenho a certeza absoluta de que não te reconheceu!... - observa a mocinha, mal conseguindo suster o riso. _ Como as pessoas só reparam no que anda por fora, não é mesmo?... replica João Manuel, meneando a cabeça. - Vendo-nos assim chegar, ostentar luxo e riqueza, trata-nos de modo diferente, concede-nos desmedida deferência!... Vês, querida, como são os homens?... Dão muito mais valor ao envoltório, à casca!...
-Agora conheces os dois lados da moeda, não é mesmo?... - diz ela. - Nesses assuntos, és mais experiente que muita gente, posto que viveste nos dois mundos: no da plebe e, ora, no da aristocracia.
-E, nem podes cogitar como as diferenças no tratamento que nos dispensam são gritantes, minha cara!... - exclama o rapaz. - Só que, ainda, não te poderia dizer, com propriedade, onde é que as criaturas são mais infames: se, neste lado, ou naquele!...
-De minha parte, acho que as pessoas, no fundo, são iguais nos dois lados!... - observa a mocinha. - Há os vis, os mentirosos, os inescrupulosos, os ladrões, os assassinos, os cobiçosos, os cínicos, os déspotas, os viciados, os viciosos, enfim, toda a imensa variedade de degradações, de imoralidades e de crimes existirá tanto nos palácios como nos casebres... O problema não estaria no ambiente em si, mas nas criaturas!...
-Acho que tens razão!... - concorda o rapaz. - Meu irmão é a prova disso!... Não teve ele sempre uma educação aristocrata?... Entretanto...
-Mostra-se tão grosseiro e deseducado tal qualquer um dos estivadores do porto e frio e calculista como o mais sórdido e o mais abjecto usurário que possa existir!... - completa ela. - E tu, por outro lado, que até agora nada tiveste de teu, tens te revelado mais cordato, mais maleável ao entendimento e ao acordo que ele que sempre teve tudo!...
-A lógica não deveria mostrar, exactamente, o oposto?... - observa ele. - Entretanto, percebo que a grande mestra das nossas existências, a ensinar-nos os verdadeiros valores morais, não é a vivência aristocrata, nem os colégios de fama e nem os grandes mestres que lá leccionam, mas a dor!... Meu irmão desconhece, por certo, o que é a dor extrema, a crueza do abandono; ainda não sentiu a cortante frieza das pessoas que, ao se depararem com seus semelhantes, vítimas das mais negras necessidades, costumam tratá-los com a mais dura impiedade e indiferença, escorraçando-os ou deles judiando como se fazem aos cães da rua!...
Neste ínterim, perceberam que o padre-mordomo aguardava-os, diante da conhecida porta do gabinete do bispo. Impressionante foi a rapidez com que o homem, costumeiramente lento e fleumático, mostrava-se de repente, tão expedito!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 7:42 pm

-Sua Excelência aguarda-vos!... Fazei o favor de entrar!... - exclama o padre, a curvar-se em longa reverência e lhes franqueando a entrada ao gabinete do bispo.
-Anjinho!... - exclama, contente, Dom Eusébio, ao reconhecer o rapaz. - Não supunha que eras tu!...
-Vossa bênção, senhor!... - diz o rapaz, beijando, respeitosamente o anel da mão que o bispo estendera-lhe.
-E esta "quem é?... - pergunta Dom Eusébio, curiosíssimo, pela elegante e delicada mocinha de quem o rapaz se fazia acompanhar desta vez.
-Oh, esta é Teresa Cristina, senhor!... - apressa-se o rapaz, em apresentar a jovem. - Trata-se da Marquesinha das Alfarrobeiras!... - e prossegue orgulhoso: - É minha noiva!...
-Noiva, nein?... Bela escolha, meu filho!... - diz o bispo, sorrindo. E estende a mão à mocinha que, dobrando o joelho, também lhe beija, respeitosamente, o anel. - Belíssima escolha fizeste!... - e, convidando-os a sentar, senta-se ele, também, e prossegue: - Marqueses das Alfarrobeiras!... - pergunta e, puxando pela memória: - Alfarrobeiras... Alfarrobeiras... Acaso és filha de Jerónimo Dantas e Melo!...
-Sim, Excelência - responde a mocinha. - Sou filha de Bárbara e Jerónimo Dantas e Melo.
-Conheço-os de algumas missas da catedral - responde o bispo. -Mormente das exéquias lá por nós celebradas. Mas, a que vieram?... Não ainda para acertarem a cerimónia de casamento, presumo!... -observa ele, brincalhão, como era do seu feitio.
-Oh, não, Excelência!... - exclama o rapaz, rindo-se. - Bem que gostaria que fosse!... - e, ficando sério, prossegue: - O que realmente nos trouxe até vós é que precisamos da vossa orientação. Acho que desconheceis que, depois que papai se foi, meu irmão passou a hostilizar-me mais do que já me fazia, desde quando lá cheguei, levado por vossas mãos, conforme deveis muito bem vos recordar. Pois, após morte do meu pai, ele não me quer entregar a parte da herança que m é justa, por direito de nascimento, e além do mais, pela vontade expressa de papai, antes de morrer. Agora, entretanto, ignora-me a presença insiste para que eu deixe a casa, sem nada comigo levar!...
_ Não me digas que João Miguel está a fazer tais desmandos?!... – Espanta-se o bispo. - Tu tens as mesmas prerrogativas que ele!... - e, levantando-se, o bispo põe-se a caminhar, em círculos, pelo gabinete, altamente indignado. - Mas, que despautério estás a relatar-me, Anjinho!... Ah, se teu pai disto pudesse saber!... Não, isto não está correto!... Fizeste muito bem em procurar-me!... Amanhã mesmo irei em busca do teu irmão e lhe passarei séria descompostura!... Onde já se viu tamanho vilipêndio?... Ainda mais entre irmãos?... Não, Anjinho\... Teu irmão que me aguarde!...
Pouco depois, no carro, de volta, João Manuel e Teresa Cristina achavam-se um pouco mais animados.
-Crês, mesmo, que o teu irmão acatará os conselhos de Dom Eusébio!... - pergunta a mocinha.
-Se não os ouvir, será sinal de que tenho, de fato, um monstro por irmão!... - responde o rapaz. - Dom Eusébio é a pessoa mais doce e mais cordata que conheço neste mundo!... Se ele não tiver a capacidade de demover João Miguel dessas ideias, ninguém mais o terá, minha querida!...
Teresa Cristina ia responder que não alimentava muita expectativa de que João Miguel fosse atender à mediação que o bispo faria. Entretanto, optou por nada dizer. Não queria tirar as esperanças do seu amado. Mas, no fundo, sabia como era o carácter do outro: João Miguel mostrava-se mau e vil, capaz de praticar acções terríveis, até mesmo de matar, se isso fosse necessário!... Limita-se, então, a apertar forte a mão do seu amor e a lhe sorrir, ternamente. Precisava passar-lhe força e confiança; precisava estar ao seu lado, fosse qual fosse o resultado que de tudo aquilo adviesse!... Bom ou mau!... Um arrepio, então, perpassa-lhe o corpo de alto a baixo. Arrepio de medo, de terror até. Que lhes estaria reservando o destino?...
- Estás tremendo, Tininha!... - observa o rapaz, percebendo-lhe o ligeiro tremor às mãos que ele, apaixonadamente, segurava entre as suas.
- Oh, estou com frio!... - mente ela. - É o inverno a chegar!... Ele, então, aconchega-a a si e a abraça forte. Ela emite longo e fundo suspiro e pensa: "Que Deus nos ajude!... Que Deus, realmente, tenha muita piedade de nós..."
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 30, 2024 7:42 pm

Desde o terrível entrevero, ocorrido na casa de Manuela, JOã0 Manuel e João Miguel pouco se haviam avistado. Nos raríssimos e fortuitos encontros, mantidos no lar, apenas se trocaram ligeiros olhares carregados de ódio e de ressentimento. Era certo que a convivência entre ambos, naquele mesmo espaço, tomara-se impossível. Não havia agora, nenhuma possibilidade de reconciliação, de acerto, de uma mínima amizade surgir entre os irmãos. Nem mesmo a viabilidade de se tolerarem, mutuamente, existia. O único e possível elo de ligação que existiria entre ambos - o pai -, já não mais se encontrava ali e, portanto, não passavam de dois estranhos a habitarem a mesma casa.
O inverno chegara frio e triste. A paisagem apresentava-se monótona e sem graça. O céu, costumeiramente aberto num azul esplendente, ora se encontrava plúmbeo, carregado de pesadas nuvens cinza a passarem céleres, tangidas pelo vento frio e enregelado que soprava do norte. As árvores dos bosquetes e dos jardins, antes muito verdejantes, ora exibiam, pateticamente, seus galhos desfolhados, à semelhança de tétricos braços descamados que, embalados pela força do vento, eram como se, incansavelmente, acenassem desolados adeuses. O inverno é, sem dúvida, uma estação muito triste, sem viveza. A natureza enfeia-se, enormemente, nessa época; é como se tudo morresse, como se, de repente, o mundo inteiro se transformasse num lúgubre cemitério e as pessoas, sem muito ânimo, a envergarem excesso de agasalhos, e a exibirem expressiva palidez às feições pela falta do sol, fossem as almas penadas ali a vagarem tristes e altamente desconsoladas.
João Miguel, neste inverno em particular, achava-se mais acabrunhado que antes. Passava aqueles longos e intermináveis dias hibernais trancado em seus aposentos, a ler e a bebericar taças e mais taças de vinho, aquecendo-se junto ao fogo da lareira. O violento sentimento de ódio contra o irmão avolumava-se, ganhando proporções de não mais lhe caber dentro do peito. Precisava pôr em prática o plano de afastar, de vez, o irmão do seu caminho!... E, sentado junto ao fogo, repassava, nos mínimos detalhes, o plano que arquitectara para enredar seu desafecto em roubada de que não pudesse jamais livrar-se!... Rejubilava-se, imensamente, no íntimo, sempre após repassar, indefinidas vezes, os passos do plano que, insuflado pelo espírito de Madalena, que dali não arredava pé, a inspirar-lhe, contínua e ininterruptamente, os ensejos de vingança contra o irmão. João Miguel desejava, ardentemente, vê-lo preso, acusado de furto e, uma vez julgado e condenado, o desterro!... Desterrado para sempre para uma das colónias de além-mar!... Não era essa a pena que se aplicavam aos delinquentes?... Ao espírito de Madalena, interessava, somente, afastar João Manuel de Teresa Cristina, para que Gerusa pudesse aproximar-se e se insinuar ao rapaz. No fundo, vinha enganando João Miguel. Insuflava-lhe o ensejo de vingar-se de João Manuel, mas, na hora aprazada, o que pretendia, mesmo, era inverter a situação!... Daria um jeito de João Miguel ser o incriminado, de pagar pelo nefando crime que praticara!...
Naquela tarde de inverno, João Miguel, finalmente, achava-se pronto para executar seu plano. O tempo abrira-se um pouquinho; o vento amainara-se, e as nuvens haviam, temporariamente, desaparecido do céu. Um tímido sol lançava amarelada claridade sobre a paisagem húmida e friorenta. O solo fumeava e, nos baixios, espessa névoa formava-se. Satisfeito, o rapaz põe-se a vestir-se. Iria executar o seu plano!... A um canto e largamente excitado, o espírito de Madalena exultava!... Com olhos cheios de plena satisfação, observava o rapaz que se preparava para sair, escolhendo roupa propícia para aquele mister. Adrede, ele houvera preparado os apetrechos de que se utilizaria para executar seu plano e os mantinha numa sacola de lona. Em pouco tempo, estava pronto e, retirando de dentro de um armário a sacola de antemão preparada, lança um último olhar à sua bela imagem reflectida no amplo espelho de cristal e sai. O espectro de Madalena sai-lhe no encalço, colando-se a ele como uma sombra. A noite já caía e, enquanto percorria os corredores da casa, sorria satisfeito. Sabia que o irmão, em pouco, também sairia a ver a noiva!... Mas, ele teria que chegar primeiro, a amoitar-se, até que desse a hora certa!...
Duas horas depois, deixava o coche numa das ruas próximas à casa de Manuela e instruiu o cocheiro a aguardá-lo ali. Cobrindo-se, então, com negra e longa capa e, sobraçando a sacola de lona, João Miguel ruma para o alto muro que dava para a lateral da propriedade de Afonso Albuquerque e Meneses, o lado que limitava com o pequeno bosque.
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