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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:46 pm

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola
Valter Turini

Espírito Monsenhor Eusébio Sintra

Onde está, ó morte, a tua vitória? (I Co, 15:55)


Palavras do Autor Espiritual
A Inquisição Espanhola, sob o comando do dominicano Tomás de Torquemada, deixou traços de crueldade inimagináveis, durante o negro período em que vigorou, mormente nos reinos de Leão, Castela e Aragão, sob o ceptro dos reis Católicos, Fernando e Isabel, ao final do século XV.
Em todo o período que vigeu e, especificamente, na cidade de Toledo, à época, capital do Reino de Castela, a Inquisição teve carácter político-religioso e almejou, bem acima de qualquer outra finalidade a que se propunha, senão o extermínio ou a completa expulsão dos que não fossem de sangue genuinamente espanhol, notadamente, os de origem judaica e muçulmana; aqueles, estabelecidos na Península Hispânica, desde épocas imemoráveis – ao final do século V −, ali se estabelecendo como consequência da diáspora, ocorrida ainda ao primeiro século da era cristã; os segundos, paulatinamente, chegaram ao solo espanhol, como causa da invasão muçulmana primeira, numa série de deslocamentos militares e populacionais ocorridos a partir de 711, quando tropas islâmicas, oriundas do Norte da África, sob o comando do general Tariq Ibn Ziyad, cruzaram o Estreito de Gibraltar, entraram ao Sul da Península Ibérica e, na terrífica batalha de Guadalete, derrotaram a Rodrigo, o último rei visigodo, pondo fim ao Reino Visigótico de Toledo.
A partir daí, os muçulmanos foram estendendo as suas conquistas península adentro, apoderaram-se do território andaluz e o dominaram por quase oitocentos anos, até serem definitivamente expulsos do solo espanhol, em 1492, quando da reconquista de Granada, realizada pelos reis espanhóis, Fernando e Isabel.
Como a intenção daqueles monarcas era a constituição de um só reino, reunindo todos os povos ibéricos, a priori, pensaram na criação de uma raça pura, e intentaram excluir todos os estratos que não se originassem daquela região e, sub-repticiamente embutido na questão da defesa da fé católica, encontrava-se (principalmente) o propósito de alijar daquelas terras os que não fossem cristãos – mormente judeus e muçulmanos – movimento que se denominou limpieza de sangre.
Como os reinos de Leão e Castela ainda não possuíam o Tribunal Inquisitorial, depois de uma série de conversações com o pontífice de então, Sixto IV, que, sendo homem pusilânime nas suas decisões e completamente dependente da ajuda pecuniária e militar que lhe prestavam os reis espanhóis, e fortemente pressionado pelas circunstâncias adversas em que se achava mergulhado o seu pontificado – rusgas, intrigas e açodamentos constantemente a ele dirigidos pelo rei da França, que desejava, ardentemente, ver ocupar o trono de São Pedro um papa francês − acabou por permitir a instauração da Inquisição em solo castelhano, fato que se deu em 1º de novembro de 1478, através da bula Exigit sincerae devotionis affectus.
Tendo em mãos a autorização para a instauração do Tribunal em solo castelhano, os reis espanhóis trataram de acomodá-lo às suas necessidades e, como o documento que permitia a criação da Inquisição tinha sido redigido de forma a agradar, sumariamente, o gosto dos monarcas hispânicos, teve o Tribunal, desde o seu início, uma roupagem meio religiosa, meio secular, dando aos reis de Espanha plenos poderes para nomearem o inquisidor-geral, bem como de constituírem a maioria das leis que o regeriam!
Dessarte, com tais prerrogativas a eles passadas pelo sumo pontífice, Fernando e Isabel nomearam inquisidor-geral de Espanha ao frei dominicano Tomás de Torquemada, antigo confessor da rainha de Leão e Castela e homem douto e profundo conhecedor dos santos cânones. Ninguém melhor que ele a ocupar o posto de inquisidor-geral de Espanha! E o Tribunal, uma vez instalado em solo hispânico, como uma máquina mortífera, pôs-se a trabalhar, a partir de 1478, em Sevilha, e depois, a partir de 1483, em Toledo, com a nomeação do inquisidor-geral, Tomás de Torquemada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:47 pm

E o inquisidor-geral desempenhou muito bem o seu papel, pois, durante todo o tempo em que o Tribunal funcionou sob o seu comando, tendo como principal objectivo a “limpeza de sangue”, só em Toledo, ocorreram vinte e cinco autos-de-fé, e em todo o território espanhol, de 1478 até 1492, mais de duas mil pessoas foram executadas em praça pública pelo braço secular da Igreja! O fim almejado aconteceu, finalmente, em 31 de março de 1492, com a assinatura do Decreto de Alhambra pelos reis de Espanha, Fernando e Isabel, expulsando ou promovendo a conversão forçada de judeus e mouriscos em todo o território espanhol.
Através dos registos históricos bem como das terrificantes peças de tortura ainda hoje exibidas nos museus, é possível fazer-se a medida de quanto os supliciados sofriam, para que confessassem sua culpa! Não resta a menor dúvida de que isso, hoje, se revela extremamente desumano e altamente condenável; talvez, os homens daquela época não se mostrassem assim horrorizados diante dessas nefandas práticas de tortura quanto o homem actual, pois viam nesse proceder a expressão máxima de uma mentalidade fortemente metafísica, tendente a considerar os valores transcendentais bem acima dos sentimentos humanos e psicológicos. Por isso que, para defender a causa cristã, tudo era permitido, até mesmo o sacrifício de vidas humanas, para se preservarem, a qualquer custo, as crenças, os valores e os costumes de então.
Isso posto, é com grande pesar que se constata que, ao longo de sua história, em consequência de grandes desvios de rota, como o foi o da Inquisição, na contagem dos grandes equívocos que a Humanidade cometeu − e ainda os defendeu, com unhas e dentes!
−, nos rumos de seu destino, sem a correta noção do grande prejuízo que isso causou à sua própria Evolução Espiritual!
E, para que tais nefastas derivações de rota não mais aconteçam, a prejudicar, enormemente, o jornadear pelo nosso caminho ascensional, imprescindível faz-se buscar o norteamento seguro e certo, que a nós concedeu a Bondade Divina, através das sublimes lições do insigne Jesus de Nazaré tão magistralmente registadas em Seu imarcescível Evangelho de Sabedoria e Amor!
Tupi Paulista, primavera de 2013
Eusébio Sintra
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:47 pm

Capítulo I – D. Aníbal Velásquez
D. Aníbal Velásquez aproxima-se da alta janela e, a cofiar, displicentemente, a barba espessa e negra, espiona lá embaixo.
Seus olhos perscrutam, sem muito interesse, os poucos transeuntes que cruzavam apressados a praça1 molhada pela insistente chuva fina e gelada que caía desde a madrugada.
Por alguns instantes mais, olha a praça; depois, fixa o céu que se abria acima, largo, pesado, cinza de chumbo. Emite, então, fundo suspiro e se volta para dentro. Na espaçosa sala, outro homem sentava-se numa poltrona, a aquecer-se junto ao fogo que ardia em longas e largas línguas vermelhas, na ampla lareira de mármore branco.
– Bem o deves saber, D. Fernán, que os nossos soberanos2 apressam-se em conseguir que o papa3 volte atrás em sua decisão sobre a suspensão do Tribunal, em Espanha4 – diz D. Aníbal Velásquez, sentando-se noutra poltrona, também ao lado do fogo. – E, da mesma forma, sei que Sua Santidade reconsiderará o pedido de nossos soberanos, por bem ou por mal...
– Estás certíssimo, D. Aníbal – concorda o outro. – Suas Majestades têm como obrigar o Santo Padre a fazê-lo – e abre ligeiro sorriso de satisfação.
− Então, nada mais nos será empecilho – diz D. Aníbal. – Nada, mesmo, entendeste?
– ¡Por supuesto, Señor!5 – responde o advogado, a rir-se. – Sem os soldados de Espanha, que fará o papa?
– Quase nada!... – diz D. Aníbal, olhando para as palmas das próprias mãos, voltadas para si. E, depois de instantes: – O facto de o nosso soberano já andar a reinar sobre os castelhanos mostra-se grande vitória para nós!
– Sim, e, devagar, a federação6 irá fortalecer-se, cada vez mais, D. Fernán.
– A Espanha unida está fadada a dominar o mundo, podes ter a certeza disso!
– Em parte, concordo com as tuas palavras, mas as Cortes aragonesas impedem a total anexação de Aragão a Castela e Leão.
– Ou de Leão e Castela a Aragão, não é, Señor? – observa D. Aníbal, com um risinho de chacota.
– Puro orgulho racial, Señor!
– Concordo plenamente com o que disseste – retruca o outro. – Pessoas como nós não desejam outra coisa, senão a unificação de todos os reinos ibéricos sob um só ceptro; entretanto, há os entraves, não te esqueças disso, e o principal deles é, conforme bem o disseste, o orgulho de raça!
– Asnice pura! – exclama D. Fernán. – Acaso já não se dá o nome de Espanha ao grupamento de todos os povos ibéricos?...
Ninguém seria ultrajado ou mesmo rebaixado, pois todo este território ganharia uma só denominação, como já o tem: Espanha!
– Mas, voltando ao assunto: a Santa Inquisição será restaurada em Leão e Castela, não te preocupes! – prossegue D. Aníbal, levantando-se de sua poltrona e, acocorando-se diante do fogo, põe as palmas das mãos a aquecerem-se. – Nosso soberano é esperto!
– e, depois de voltar a sentar-se em sua poltrona, continua: – Embora Aragão já possua o Tribunal, ele se faz necessário em todos os reinos da federação – se não nos principais: Aragão e Castela –, ou então a limpeza7 não acontecerá!
– Em Aragão, a Inquisição nunca teve feições seculares: a Igreja mantém-lhe as rédeas. Pouca influência detém o rei sobre ela.
– Mas, agora, entretanto, o que se pretende é o contrário!... Se os reis não tiverem o pleno poder sobre o Tribunal, de nada nos adiantará.
– É certo que Suas Majestades sabem muito bem disso e não poderão agir, enquanto o papa não se decidir, tanto que andam a forçá-lo a restabelecer a Inquisição em Leão e Castela, malgrado as insistentes negativas do Sumo Pontífice em fazê-lo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:47 pm

– Aí é que entra a boa política, meu caro! – observa D. Aníbal. – Uma típica troca de gentilezas: o papa morderá a própria cauda, voltará atrás, conceder-nos-á a permissão de termos o Tribunal de volta em Castela, e a Federação dar-lhe-á o suporte bélico de que necessite!...
– Tens razão... – retruca D. Fernán. – Sempre se acaba dando um jeito... – e, depois de instantes: – Entretanto, Señor, achas que Sixto permitirá que o Tribunal ganhe feições seculares?
Sinceramente yo no lo creo...8
– Queres apostar dez cabeças do bom gado que tens em tuas terras, mi amígo, como o Tribunal, cá, em Castela, ficará sob as mãos de Suas Majestades? – diz D. Aníbal, altamente convicto.
– Mas o Santo Padre é radicalmente contra a secularização do Tribunal!... – redargui o outro. – Como pensas, então, que isso se dará?
– D. Bórgia9 já se encontra a postos, no Vaticano, a pressionar o papa. E, se Sixto não nos conceder a permissão para restaurarmos o Tribunal, a Federação não lhe dará o suporte bélico; também não lhe vai bem com as fuças o rei da França e, destarte, Sua Santidade ver-se-á quase a sós, no meio das tantas confusões em que vive se metendo. Como é um homem pusilânime e frouxo em suas atitudes, morre de medo de achar-se desamparado por seus aliados. Por isso é que tenho a plena certeza de que aquiescerá, D. Fernán, ao desejo dos nossos soberanos: ter a Inquisição definitivamente instaurada em Leão e Castela e, além disso, o total controlo sobre ela!... Tu bem verás realizar-se, mui depressa, o que ora te digo!
– Posto dessa maneira, acho que tens toda a razão, D. Aníbal – diz o advogado, convencendo-se.
– E o principal objectivo embutido em tudo isso é dar cabo aos marranos10...
– Se é que se o conseguiremos, D. Aníbal... – diz D. Fernán, um tanto incrédulo. – Judeus e mouros conversos perambulam, por aí, aos milhares...– Entretanto, se quisermos uma Espanha pura, imaculada, é preciso que se faça a limpieza, a qualquer custo!
– Matando a todos? – pergunta, céptico, o outro. – Viste muito bem o que aconteceu em Valência!11... E credes que o mundo inteiro não nos tomará a conta de frios assassinos, a cometermos genocídio de tamanha monta?... Não me consta ter havido mais morticínio de tal expressão, desde os tempos bíblicos do Rei Davi! E Sua Santidade – como já o fez – não ficará de olhos fechados!
– Oh, certamente que não faremos isso, D. Fernán! – diz o outro, com um risinho sardónico. – Nossos soberanos não seriam tão imbecis, a ponto de cometerem tamanho despautério!... E, se nos puséssemos por aí, a matar os marranos todos, a torto e a direito, o próprio papa cassar-nos-ia o Tribunal, de novo!... – e, depois de fixar o outro à face, por instantes, prossegue: – Há critérios para que isso ocorra, meu caro!... E sem que se levantem suspeitas contra nós!
– Não entendo como...
– Faço-me mais claro: apresentam-se as denúncias; a Inquisição – que não é e nunca será leiga! – acata-as, julga os culpados e os entrega à justiça secular que tem a prerrogativa de executar as sentenças!... Como vês, tudo muito simples!... Simplíssimo!
– Mas, agindo desse modo, como se achará tamanho cabedal de acusações, a lançarem-se aos milhares e milhares de mouros e de marranos que por aí enxameiam?...
– E quem te disse que a nossa intenção é arrasar todos os mouros e marranos?... Tão somente aqueles que nos são de grande interesse!
– Quem, por exemplo? – pergunta D. Fernán.
– Os judeus usurários e os mouros ricos. Os demais não nos importam!... Simplesmente, através de um decreto real, proscrevê-los-emos todos!... Que se danem por este mundo a fora! – e se ri contente. E depois de alguns instantes, prossegue: – A El-rei, D. Ferrand12, por exemplo, interessa-lhe muitíssimo acabar com os agiotas judeus que lhe financiaram as bodas com D. Isabel de Castelha13. Sabeis muito bem de quanto foi o dote14 pedido!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:48 pm

– Uma fábula! – responde D. Fernán.– E, depois de instaurado o Tribunal, fácil será aos nossos soberanos proscreverem o resto dessa malta de marranos, por meio de um edito!
– As coisas parecem começar a seguir o seu lado justo, D. Aníbal! – exclama D. Fernán, animando-se. E, depois de alguns instantes: – A Espanha toda se acha manchada por essa canalha de conversos!... São pérfidos, hipócritas!... Deixaram-se batizar15, mas continuam a praticar o Judaísmo, à sorrelfa!... E levam uma vida dupla, falsa: vão às igrejas e, também, à sinagoga!
– Sim, e é aí, a meu ver, que se esconde a mais abjecta das traições contra a fé católica, meu caro! – diz D. Aníbal, levantando-se. E, dirigindo-se a alto armário negro de grandes portas, dele retira uma garrafa de vinho e duas taças de fino cristal. Depois de repletar os copos com o esplendente líquido rubi, leva uma das taças às narinas e lhe aspira, longamente, o buquê; em seguida, estende o outro copo ao companheiro, enquanto diz: – Prova-o; das melhores vindimas de Jerez16... – e, depois de sorver largo gole do vinho, volta a sentar-se em sua poltrona: – Fingem ter aceitado a Fé Cristã, tão-somente!... No fundo, não passam de pérfidos traidores e jamais abjuraram da sua fé pagã! – e, a fremir de ódio intenso e a crispar os dedos da mão, a demonstrar sua profunda raiva, prossegue: – É preciso esmagá-los todos, como, usualmente, fazem-se às víboras!
– Crês, realmente, que todos eles fingem aceitar a nossa fé? – pergunta o outro. – Não haveria forte radicalismo embutido aí? – observa D. Fernán.
– Não, não, meu caro! – rebate o outro. − Não só creio como tenho toda a certeza deste mundo: a grande maioria deles age assim!... É só lhes esquadrinhar, seriamente, o comportamento! E, para isso, basta-nos, somente, sermos um pouco perspicazes: se observares que estão vestindo roupas limpas e coloridas, no sábado; se limpam suas casas, na sexta-feira, e acendem velas, bem mais cedo do que o normal, naquela noite; se eles comem pães ázimos e iniciam sua refeição com aipo e alface, durante a Semana Santa e se eles recitam suas preces, inclinando-se para frente e para trás, não há como negar: andam a praticar o Judaísmo!
– Digo-te, D. Aníbal, que vejo muitos dos meus vizinhos assim procederem. Então, seguindo esses preceitos, tais comportamentos comprometem-nos como pérfidos hereges, passíveis de punição?
– Prova do que te disse: são todos falsos e apóstatas!... Como podemos conviver com tamanha heresia, bem diante das nossas fuças?... É preciso, com toda a urgência, dar cabo de tamanha desfaçatez!
– Dessarte, D. Aníbal, tens toda a razão. E, Suas Majestades, certamente, andam bem atentos a tais práticas, presumo...
– Principalmente o rei, que odeia essa gente, de morte, e conhece cada passo que dão! – responde o outro. E, depois, a piscar um olho maroto: – Mais pela exorbitante quantia em dobrões de ouro que El-rei deve a alguns deles...
– Trouxa do rei, se pagar tamanha fortuna àqueles hereges!... Se lhes der o calote, certamente, Deus dobrar-lhe-á os anos de ventura neste mundo!...
– Amém!... – diz o outro, persignando-se. E, com brilhos de cupidez aos olhos, continua: – E o que pensais da imensa fortuna que detêm esses marranos todos?... E os mouros?...
– Com o derradeiro bastião17 já a se lhes escapulir das mãos, esse malditos mouros serão escorraçados de volta e, definitivamente, para a África. Restar-nos-á, tão-somente, recolher deles o que deixarem para trás.
– Muito ouro têm juntos, em mãos, esses marranos e mouros! – concorda D Aníbal. – E, especificamente aos mouros, penso que parte dessa fabulosa riqueza que esses malditos detêm deveria caber à Igreja, como reparo por perdas e danos!... Quanto trabalho e quanto prejuízo causaram à fé católica esses sete séculos de dominação moura!... E como são renitentes alguns deles, a abandonarem a sua fé!... Preferem, antes, a morte!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:48 pm

– Também assim agem alguns dos judeus!... Obstinados como ninguém mais neste mundo de Deus!... Não abjuram sua fé, nem mesmo sob a ameaça da infamante morte na fogueira!– Tudo o que disseste é verdadeiro, D. Fernán!... – e, depois de instantes: – Confesso-te que a mim me admira muito o tamanho empenho deles em manterem-se fiéis à sua fé!... – e a emitir fundo suspiro: – Quisera que também assim fosse com os cristãos que, nos tempos atuais, andam a abjurar, a troco dum toco de vela queimado...
– Assim é, D. Aníbal... – concorda o outro. – Infelizmente, assim é... Aliud alic vitio est!18
– E a heresia anda a espalhar-se como nunca, pelo mundo cristão, por culpa de quem? – pergunta D. Aníbal. E, diante do silêncio do outro, prossegue: – Da própria Igreja é a culpa!... Aliás, donde surgem os hereges?... De fato, não nos ameaçam a nossa fé os mouros, os judeus ou qualquer outra fé herética, mas do próprio seio da Santa Madre Igreja anda a brotar a abjecta serpente que procura semear a dissidência e a discórdia entre nós!...19 Digo-vos, D. Fernán, que a Igreja, muito em breve, perderá a hegemonia sobre o mundo cristão! Por isso é que prego e defendo a destruição dos hereges!... Se não buscarmos esmagar a infamante serpente da heresia, sob o tacão das nossas botas, a traição, a ruptura e a abominação que já campeiam pelos desvãos e pelas frestas das igrejas, dos mosteiros e dos conventos, acabarão por minar os alicerces da nossa fé!... Que não nos cuidemos, pois...
– Concordo, em parte, com o que dizes, D. Aníbal – contesta o outro. – E conclamo-te a que raciocines comigo: as ideias do herege Wycliffe, acaso foram totalmente apagadas, mesmo depois que o rei Ricardo20 proibiu-lhe os ensinamentos em solo inglês?21
– A proscrição e a morte do maldito herege inglês não lhe apagaram as ideias, infelizmente; andam elas mais vivas e a efervescerem como nunca, entre muitos, em todas as nações da Europa. Daí a necessidade da instauração do Tribunal em todos os reinos. Não tão especificamente para o propósito a que se o deseja, como em Leão e Castela; mas mais para coibirem-se as heresias que se fazem, hoje, mais ousadas que nunca! O sequestro do sumo pontífice em Avinhão22, por exemplo, e a questão das indulgências, tão debatida pelo herege inglês.– Mas Sixto não dorme de olhos fechados, meu caro! Anda a reformular e a controlar os excessos cometidos pelos quaestores23, ou a outra maldita nódoa, trazida a lume pelo desgraçado tcheco24, voltará a produzir mais e mais estragos, como o fez no passado.
– O que mais pesa nessas questões são os abusos! – exclama D. Aníbal. – O que mais conta nessas embrulhadas todas é o predomínio da ignorância. Monges e padres ignorantes!... Não te esqueças: ¡Quién pone la mano en el estiércol es los sacerdotes!25
– Tens razão, D. Aníbal – responde o outro. – Tens toda a razão.Com a decadência da Escolástica26, nos tempos atuais, a ignorância grassa entre os nossos prelados. Sinal dos tempos, D. Aníbal!...
Sinal dos tempos!...
– Estás certíssimo, D. Fernán – concorda o outro. E, com patente mostra de fundo abatimento às feições, continua: – Essa decadência é que me cansa e me preocupa, ao mesmo tempo – e depois de cogitar por alguns instantes: – E posso afiançar-te, D. Fernán, de que há cheiro de revoluções no ar, eu o sinto – e, levantando-se e colocando as mãos entrelaçadas às costas, põe-se a andar em círculos pela sala. – Não sei se é um sexto sentido a revelar-me, ou premonição, ou o quê, mas pressinto grande reviravolta!... – e parando e encarando o outro à face, prossegue: – Tenho tido sonhos, D. Fernán, sonhos perturbadores: sempre me foi assim, quando as coisas tenderam a mudar de sentido, drasticamente!...
– Mas a que mudanças tu te referes, propriamente? – pergunta D. Fernán, altamente intrigado.
– A tudo – responde D. Aníbal, lacónico, e se cala, com os olhos fitos no vazio. Depois de instantes de funda cogitação, continua: – Sempre tive essas sensações, D. Fernán. Desde pequeno, ficava a cismar sobre o que significavam os sonhos que, às vezes, tinha, e o que queriam dizer-me os estranhos sinais que via, digamos, assim, desenhados no ar...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:48 pm

– Não consigo entender o que dizes, Señor... – observa D. Fernán, altamente curioso. – Não vais dizer-me que tens visões...
– Não, explicitamente, visões... – redargui o outro. E, como se quisesse afastar de si pensamentos altamente desagradáveis, sacode, ostensivamente, a cabeça e, voltando a sentar-se na poltrona, ao lado do fogo, prossegue: – Não as visões, propriamente, como as têm os santos, não!... Longe de mim isso!... – e a gesticular, meio nervoso, com as mãos: – São sonhos que sempre me dizem algo... Fatos que acabam por concretizar-se, mais tarde, entendes?
– Não...
– Explico-me mais claramente: sonho algo, uma história, por exemplo, da qual me faço um personagem e que contém uma mensagem, normalmente implícita e que, depois, acaba por confirmar-se!
– Cita um exemplo, D. Aníbal!
– Sobre a morte da minha mãe... Dias antes de ela partir, vi, reiteradamente, o mesmo símbolo que se formava à minha frente: tratava-se de um círculo roxo, ou uma coroa, desenhado no ar...
Sete dias depois, ela se foi...27 E assim se deu – e se dá! – com todos os que morreram e que me estavam próximos!... E também sonho: antes que se desse o incêndio na minha casa de campo, sonhei que o meu caseiro batia à minha porta, esfalfado por muito correr e me dizia, altamente esbaforido: “Excelência, o assado que se vos preparavam para a ceia queimou-se!...” Uma semana depois, terrível incêndio destruiu-me, completamente, a casa, o pomar e as vinhas todas!...
– Tens, então, premonições, D. Aníbal! – exclama o outro, grandemente espantado. – Ora vejam só!...
– E não imaginas que agonia tais visões causam-me, D. Fernán!
– explica o outro. – Quando me aparecem, fico eu a perquirir-me, incansavelmente, quem se irá desta para a melhor ou, no caso dos sonhos, que desgraça andará por vir à frente!
– Entendo-te a aflição, D. Aníbal – responde o outro. – Mas que andas a ver e a sonhar, presentemente, a causar-te tanta aflição?
– Desta vez, sonho... E tenho sonhado, constantemente, com grande incêndio a devastar todas as igrejas de Barcelona, simultaneamente!... E, por mais que o povo se junte, a tentar debelar o fogo que, inclemente, devora desde a catedral até as mais singelas capelas da cidade, é impossível conter-lhe o avanço destruidor!... Oh, não imaginas o quanto tudo isso se me mostra desesperador!... E, depois de algum tempo, apenas cinzas restam dos templos todos... É, deveras, desolador!...
– E tens esses sonhos como reveladores de algo que deverá de vir? – pergunta D. Fernán, assombrado pelo que ouvira do outro.
– Infelizmente, presumo que sim, D. Fernán – responde o prelado, altamente deprimido.
– E o que pensas que seja tal revelação?
– Não posso precisar, ao certo, mas o que poderia ser?... Um grande cisma, surpresas desagradáveis em futuras eleições pontifícias, com um papa reformador, por exemplo, a abalar, radicalmente, as estruturas da Igreja... Coisa boa não haverá de ser!28
– Tremo só em pensar! – diz D. Fernán, em voz baixa, com um calafrio a percorrer-lhe o corpo todo. – Do jeito que as coisas andam, actualmente!
– É o que temo, D. Fernán!... É o que temo!... Cá entre nós e, sem hipocrisias, sabemos muito bem que a Igreja chafurda na lama mais fedorenta que se possa encontrar neste mundo de Deus!... A devassidão toma conta dos mosteiros, dos conventos, das igrejas...
– Do papado... – completa o outro.
– ¡Pero que sí!... Hasta allá!29 – concorda D. Aníbal, a menear, tristemente, a cabeça.
– E principalmente lá, penso eu!
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:49 pm

– E nós somos coniventes com essa sujeira toda!... – e, baixando, propositadamente, a voz: – Tu e eu sabemos que quase tudo o que disse o miserável Wycliffe é verdadeiro, não é?... E que o desgraçado tcheco30 enfrentou, galhardamente, a infamante morte na fogueira, a defender os seus e os escritos do maldito inglês e que – e, ai, que me dói fundo à alma, ter de reconhecê-lo! – que ambos os excomungados tinham razão!... E que a Igreja, através dos tempos, vem, verdadeiramente, atraiçoando e matando Cristo, aos poucos e cruamente, desde o Concílio de Niceia31, e tu bem sabes porque!
– Se sei!... – concorda o advogado. – Tanto quanto tu sabes!...– Que o bispo Arius32 pode ter tido razão... Aliás, os tempos em que vivemos fazem crer que ele tinha razão!
– Sim – concorda o outro –, o mundo avança em conhecimento e sabedoria e penso que a Igreja deveria acompanhar-lhe os passos!
– Ou acaba – como vem acontecendo – ficando atrás... – diz D. Aníbal e prossegue: – E, em relação aos estudos do Bispo d’Oresme33? Sei que os conhece tão bem quanto eu os conheço, D. Fernán...
– E cujos conceitos acerca da física aristotélica andaram a chocar a Igreja...
– ¡Por supuesto que sí, D. Fernán!... E, conforme bem o sabes, pespegaram-lhe voto de silêncio e de retractação sobre as heresias que andou a publicar...
– Será mesmo que eram heresias aquelas?... Por mim, seus estudos trazem uma lógica tão acertada e bem mais condizente com a razão actual, acerca do movimento da Terra. E, cá entre nós, os conceitos defendidos por Aristóteles e também por Santo Tomás de Aquino, hoje, nos tempos modernos, têm mais de fantasias do que explicar, a contento, a gravitação dos corpos celestes, não achas?
– Confesso-te que também assim os vejo... Aliás, bem sabes o que muita gente, actualmente, pensa acerca do movimento da Terra.
Os estudos do Bispo de Lisieux são claríssimos para quem tem o hábito de pensar...
– De acordo, D. Aníbal. Vencem eles pela pureza e pela simplicidade de suas demonstrações, o que anda a fazer muita gente séria e bem intencionada pensar acerca dos velhos conceitos, já tidos como axiomas pela Igreja.
– Aí é que se esconde o perigo maior, D. Fernán! – redarguí D. Aníbal. A Igreja mostra-se por demais irredutível na defesa dos seus dogmas, e a ciência, ao contrário, pode negar a inverosimilhança de tais conceitos, através da experimentação.
– O que fez o Bispo de Lisieux! – replica D. Fernán. – Conheces muito bem o célebre conceito: “Pluralitas non est ponenda sine neccesitate...”34
– Ou “Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem...”35
– Exactamente, D. Aníbal. Pela simplicidade das teorias do Bispo Nicole d’Oresme é que se lhe penhoro meu crédito a tudo o que ele escreveu.
– E, baseado nisso, já se cogita sobre a possibilidade de se circunavegar a Terra...
– E a Igreja, obviamente, é contra...
– Mas e se, de facto, for possível isso?... Como ficaremos nós?
Com caras de quê?
D. Fernán limita-se a fazer um gesto inane com as mãos. E, depois de curto silêncio que se estabeleceu entre ambos, D. Aníbal retoma a conversação:
– Dizem por aí que há evidências da existência de terras a oeste...
– Que há muitas lendas nórdicas a respeito de tal fato todo mundo sabe. Entretanto, evidências concretas...
– Tenho para mim que – e, baseando-me nas observações do Bispo de Lisieux – deverá haver um fundo de verdade nisso tudo.
Eu o sinto!... Mui em breve, presumo que essas teorias poderão ser provadas e, então, o mundo será outro!... É o que penso, D. Fernán, e sei que comungas com essas minhas conjecturas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:49 pm

– Totalmente, D. Aníbal, totalmente... Cedo ou tarde, teremos a confirmação disso tudo, bem o verás.
– Por supuesto... – diz D. Aníbal. E, levantando-se: – Ficarás a almoçar comigo, D. Fernán?... ¡Mi cocinero me prometió un asado de cabron al vino, ajo y hierbas frescas!…36
– ¡Frente cosa así sabrosa, yo no puedo negármelo, Señor!...37
D. Aníbal Velásquez abre gostosa gargalhada e, tomando o amigo pelo braço, condu-lo à sala de jantar da sumptuosa mansão arquiepiscopal. Lá fora, o tempo continuava chuvoso e frio, tornando o mundo descolorido, sem graça...
______________________________________________________________________________________________
1. Plaza del Ayuntamiento, para a qual dá a fachada principal do Palácio Arquiepiscopal de Toledo, Espanha.
2. Referência a D. Fernando II, de Aragão (1452 – 1516), que foi rei de Aragão, Castela, Sicília, Nápoles e Navarra e Conde de Barcelona, de 1481 a 1516 e de sua esposa, D. Isabel, rainha de Castela e de Leão. Esse casal real receberia do papa Alexandre VI o direito de serem chamados Os Reis Católicos por sua declarada defesa da fé católica, em solo espanhol.
3. Referência ao papa Sixto IV, nascido Francesco Della Rovere, (1414 − 1484) que pontificou de 9 de Agosto de 1471 até a sua morte.
4. Em 1478, os monarcas Fernando II de Aragão e Isabel de Castela, com o propósito de concluírem a reconquista da Península Ibérica, pediram ao papa Sixto IV a restauração da Inquisição, em Espanha, no que foram atendidos através da bula Exigit Sincerae Devotionis Affectus. Dessa forma, ressurgia o Tribunal em solo espanhol e teria carácter misto e autónomo, uma vez que o poder temporal poderia nomear os inquisidores, sem prévia anuência da Santa Sé, e os primeiros inquisidores designados pelos monarcas espanhóis foram os dominicanos Miguel Murillo e Juan de San Martin que se estabeleceram em Sevilha, onde era muito expressiva a aglomeração de judeus. Entretanto, devido aos desmandos e trágicas consequências de grande repercussão daí advindos, o papa Sixto IV suspendeu-o em 1482.
5. “– Certamente, Senhor!”, em castelhano.
6. No século XV, por volta de 1483, época em que se passaram estes factos, a Espanha ainda não era um estado unificado, mas, sim, uma confederação de monarquias, cada qual com seu administrador, como os Reinos de Aragão, Castela e Leão, que eram governados, o primeiro por Fernando, e os dois últimos por Isabel.
7. Na Espanha, a Inquisição foi um importante instrumento na política chamada limpeza de sangue contra os descendentes de judeus e de muçulmanos convertidos. Parte da Península Ibérica estava sob o governo dos mouros, e as regiões do sul, particularmente Granada, encontravam-se muito povoadas de muçulmanos. Até 1492, Granada ainda estaria sob o controle mouro. As cidades mais importantes, como Sevilha, Valladolid e Barcelona (capital do Reino de Aragão), tinham grandes populações de judeus, confinadas em guetos.
8. “– Sinceramente, eu não creio...”, em castelhano.
9. Referência ao arcebispo de Valência, Rodrigo Bórgia, futuro papa Alexandre
VI, nascido em Xàtiva, Valência, a 1 de Janeiro de 1431 e morto em Roma, a 18 de Agosto de 1503.
10. Os detractores espanhóis chamavam os judeus convertidos de marranos, uma expressão pejorativa, que significa porcos.
11. Instalada em Sevilha, a princípio, em 1478, a Inquisição trouxe, logo de início, grande pânico entre os mouros e os marranos que se refugiaram nos castelos dos grandes senhores feudais, e, através de uma proclamação de 2 de Janeiro de 1481, os dois inquisidores, Miguel Murillo e Juan de San Martin ordenaram aos grandes senhores que entregassem os perseguidos sob pena de excomunhão. Em consequência disso, as prisões encheram-se de mouros e de judeus convertidos, fato que proporcionou a sublevação dos marranos, com o intuito de assassinarem os inquisidores; porém, essa conjuração não foi a termo porque foi denunciada, a tempo, aos inquisidores. Em consequência disso, os sublevados foram presos, julgados e condenados a perderem os seus bens, bem como sentenciados à morte, queimados vivos, num auto-de-fé, ocorrido a 6 de Fevereiro de 1481.12. Ferrand: grafia original de Fernando, em aragonês.
13. Grafia original, em aragonês.
14. Para ser aceito como consorte da rainha Isabel de Castela, o rei Fernando II de Aragão precisou conceder fabuloso dote, em dinheiro, à sua futura esposa, facto que o obrigou a contrair pesados empréstimos junto aos judeus usurários, principalmente os de Valência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:50 pm

15. Esses deram origem aos judeus Sefarditas, originários de Portugal e Espanha e expulsos desses países, respectivamente, em 1496 e 1492.
16. Jerez de la Frontera é um município da província de Cádis, região da Andaluzia, Espanha.
17. Referência à cidade de Granada, última cidade a ser libertada do jugo mourisco, facto que se deu em 1492.
18. “Cada um tem o seu vício!”, em latim.
19. Nos finais da Idade Média, na Europa, o colapso das instituições monásticas e da Escolástica, acentuado pelo Cativeiro Babilónico da Igreja, no papado de Avignon, o Grande Cisma e o fracasso da conciliação, iniciava a agitação e as inquirições sobre os rumos que a Igreja Romana tomava, então. Na Inglaterra, no século XIV, John Wycliffe, considerado como precursor da Reforma Protestante, levantou diversos questionamentos sobre assuntos controversos que envolviam o Cristianismo, mais precisamente a Igreja Católica Romana. Entre outras considerações, Wycliffe pregava o retorno da Igreja à primitiva pobreza dos tempos dos evangelistas, algo que, na sua visão, era incompatível com o poder político do papa e dos cardeais, e que o poder da Igreja deveria ser limitado às questões espirituais, sendo o poder político exercido pelo Estado, representado pelo rei. Contrário à rígida hierarquia eclesiástica, Wycliffe defendia a pobreza dos padres e os organizou em grupos. Esses padres ficaram conhecidos como lollardos.
20. Referência a Ricardo II Plantageneta (1367 - 1400) que foi rei da Inglaterra de 1377 a 1399.
21. Em meados de 1381, uma insurreição social amedrontou os grandes proprietários ingleses, e o rei Ricardo II foi levado a crer que os padres lollardos haviam contribuído com ela. Ele ordenou à Universidade de Oxford (que havia sido reduto de líderes insurrectos) que expulsasse Wycliffe e seus seguidores, apesar de estes não haverem apoiado qualquer movimento rebelde. O rei proibiu a citação dos ensinos de Wycliffe em sermões e mesmo em discussões académicas, sob pena de prisão para os infractores.
22. O sequestro do sumo pontífice em Avinhão diz respeito a um período da história do papado e da Igreja Católica, compreendido entre 1309 e 1377, quando, por questões políticas, a residência do papa foi alterada de Roma para Avinhão, na França.
23. Apesar das restrições, o final da Idade Média viu o crescimento considerável de abusos, tais como a livre venda de indulgências por profissionais “perdoadores” (quaestores em latim). A pregação destes, em alguns casos, era falsa, atribuindo às indulgências características muito além do que pregava a doutrina oficial da Igreja que via, nas indulgências, não o que comumente se propaga, mas um reparo pecuniário, como consequência da remissão dos pecados: não bastava a penitência imposta ao pecador, mas também a reparação do erro cometido, e isso se dava, entre outros procedimentos, com o ressarcimento da falta, através de uma compensação pecuniária devida a Deus e à Igreja, pela falta cometida.
24. Referência ao pensador e reformador religioso, Jan Huss, nascido em Husinec, Checoslováquia, em 1369. A partir de 1402, Huss iniciou um movimento religioso, baseado nas ideias do inglês John Wycliffe, e seus seguidores ficaram conhecidos como Hussitas. A Igreja Católica não perdoou tais rebeliões e Jan Huss foi excomungado, em 1410, e, condenado pelo Concílio de Constança, foi queimado vivo, em 6 de Julho de 1415.
25. “– Quem põe a mão no esterco são os padres!”, em castelhano.
26. A Escolástica ou Escolasticismo é uma linha dentro da filosofia medieval, de acentos notadamente cristãos, surgida da necessidade de responder às exigências da fé, ensinada pela Igreja, considerada então como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a Cristandade. Por assim dizer, responsável pela unidade de toda a Europa, que comungava da mesma fé. Essa linha vai do começo do século IX até ao fim do século XVI, ou seja, até ao fim da Idade Média. Esse pensamento cristão deve o seu nome às artes ensinadas pelos escolásticos, nas escolas medievais. Essas artes podiam ser divididas em Trivium (gramática, retórica e dialéctica) e Quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música).
27. Tal ocorrência, tida como fenómeno anímico, acontece com relativa frequência e é conhecida como premonição de morte.
28. Efectivamente, a corroborar essa premonição, alguns anos depois, em 1517, Martinho Lutero publica as sua 95 Teses, dando início à Reforma Protestante.
29. “– Acho que sim!... Até mesmo lá!...”, em castelhano.
30. Referência a Jan Huss, reformador tcheco.

31. Referência ao Primeiro Concílio de Niceia, ocorrido em 325, na cidade de Niceia, durante o reinado do imperador romano Constantino I, o primeiro a tornar-se cristão.
32. Ariús, bispo de Alexandria, nos primeiros tempos da Igreja primitiva, foi o criador do Arianismo, uma visão Cristológica que negava a existência da consubstancialidade entre Jesus e Deus, que os igualasse, fazendo do Cristo pré-existente uma criatura, embora a primeira e mais excelsa de todas, que encarnara em Jesus de Nazaré. Jesus, então, seria subordinado a Deus, e não o próprio Deus. Ariús participou do Primeiro Concílio de Niceia e teve as suas ideias rejeitadas e proscritas pelo sínodo ali reunido.
33. Referência ao bispo de Lisieux, Nicole d’Oresme (1323 − 1382), célebre teólogo, economista, matemático, físico, astrónomo, filósofo, psicólogo e musicólogo francês; foi também tradutor e conselheiro do rei Carlos V da França e um dos principais fundadores e divulgadores das ciências modernas.
34. “Pluralidades não devem ser postas sem necessidade...”, em latim. Frase que resume os princípios lógicos a regerem os fenómenos científicos, atribuída ao lógico e frade franciscano inglês William de Ockham (século XIV). O princípio afirma que a explicação para qualquer fenómeno deve assumir apenas as premissas estritamente necessárias à explicação do fenómeno e eliminar todas as que não causariam qualquer diferença aparente nas predições da hipótese ou teoria. O conceito de Ockham defendia que o homem, nas suas teorias, deveria sempre eliminar conceitos supérfluos. Esse princípio ficou conhecido como “Navalha de Ockham”.
35. “As entidades não devem ser multiplicadas além do necessário”, em latim.
36. “Meu cozinheiro prometeu-me um assado de cabrito ao vinho, alho e ervas finas!...”, em castelhano.
37. “– Diante de coisa assim saborosa, não me posso negar, Senhor!”, em castelhano.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:51 pm

Capítulo II – Milagros e Andrés
O jovem casal de namorados passeava de mãos dadas sob delicioso dossel de árvores floridas.
– Sabes, Andrés, não vejo a hora de estar contigo todo o tempo... Custa-me tanto apartar-me de ti! – diz a formosa donzela, a fitar firme os apaixonados olhos do rapaz. – É-me inominada tortura, quando te apartas de mim!...
– Também eu anseio por esse dia, mi amor!... – exclama ele, a apertar-lhe a delicada mãozinha que mantinha entre as suas.
– E o que impede que efectivemos, de vez, o nosso amor? – pergunta ela, com revelada paixão. – Diz-me, Andrés, o que impede que, amanhã mesmo, eu me mude para junto de ti?
– Oh, também eu tenho muita pressa, Milagros... – responde ele.
– Mas é preciso fazer as coisas de conformidade com os costumes... Bem o sabes... Os tempos tornam-se difíceis para nós, os judeus, e qualquer passo em falso, sabes muito bem como é...
– Sei: acaba arrebentando pelo lado mais fraco... – e, apondo o rosto ao largo peito dele, diz, quase num murmúrio: – Às vezes, penso em renegar, de vez, a nossa fé!... Manter os antigos costumes, em segredo, anda a cansar-me!... Por que é que não podemos ser judeus às claras?... Qual a razão dessa estúpida perseguição que nos obriga a viver falsamente?
– Ssssh!... – diz ele, afagando-lhe os longos cabelos negros, a escorrerem-lhe pelas costas, como uma brilhante cascata de ébano.
– Não te impacientes, meu bem!... Tem um pouco de calma!... Eu sei que as coisas, um dia, haverão de mudar!
– Oh, quando? – desabafa ela, num lamento. – Faz tantos séculos que se iniciou a diáspora38 e, desde então, o nosso povo não tem tido paz!
– Eu sei, meu bem!... – exclama ele, tentando consolá-la. – A diáspora e os pogroms39, comumente, têm causado grande aflição ao nosso povo. Mas sei que as coisas, um dia, por aqui, haverão de mudar! Somos cristãos-novos40 e sabes muito bem que, até então, temos tido relativa paz, aqui no Reino de Castela. E não somos os únicos párias a viverem nesta terra: existem, também, os muçulmanos, os ciganos, e a maioria dos cristãos têm se mostrado até bem tolerante para connosco.
– Mostram-se tolerantes porque precisam de nós!41 – rebate ela.
E, com forte tom de ironia à voz, desvencilha-se do amorável abraço em que se envolviam e diz: – Disseste que as coisas deverão mudar, e creio que mudarão, sim!... Mas, para pior!... Os mouros estão sendo ostensivamente escorraçados do solo espanhol, e temo que, quando a guerra da reconquista findar-se, seremos todos proscritos daqui, também!
– Oh, exageras, meu bem! – rebate ele, com um sorriso confiante. – Como nos expulsarão a todos?... De que modo?...
Existem, por aqui, milhares e milhares de judeus e de mouros!... E, além do mais, todos nós temos as nossas propriedades, as nossas casas nestas terras!... Nós nascemos aqui!
– Se isso fosse garantia de alguma coisa!... Meu medo é que, com a união dos reinos hispânicos, a coisa volte-se, de vez, contra nós: judeus e mouros!
– Pensando bem, acho que tens razão – concorda ele. – No fundo, quero crer que continuarão a respeitar-nos e que, conversos, seremos, um dia, efectivamente tidos como cidadãos deste reino, mas a realidade dos fatos aponta-nos o contrário: fizeram com que a maioria de nós se convertesse ao Cristianismo, mas, mesmo assim, não nos aceitam, desconfiam de nós e vivem a bisbilhotar o que andamos a fazer.42 A recomendação dos nossos patriarcas é que, veladamente, aceitemos-lhes a fé que nos é imposta, mas que, no fundo e reservadamente, em nossos lares, continuemos a celebrar e a manter as nossas tradições. Mas, até quando conseguiremos enganá-los, se é que, algum dia, iremos, de fato, realizar tal façanha!... Não há como conciliar as duas coisas, meu bem! – desabafa ele. – São posturas bem diferentes e, no fundo, também compartilho essa tua insatisfação com as coisas!...
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É-nos, realmente, muito difícil manter essa vida dupla!– E, pressuposto nisso, teremos de nos casar na fé católica ou, como já sabes, daremos muito na vista e seremos recriminados por tal atitude contrária à Igreja! Os dois rituais mostram-se totalmente avessos um ao outro!... Os cristãos, ao casarem-se, não se atam os punhos com um lenço branco e nem quebram, com os pés, as taças em que beberam o vinho da união...
– Assim é, minha cara, mas já estamos todos concordes, para que dessa maneira se faça!... – e, com alta desolação à voz: – às vezes, custa-me tanto isso à alma...
– Tens razão... Também a mim, pois viver tão falsamente se me tem mostrado assaz difícil!... – e, depois de curto silêncio: – Mesmo que, em segredo, os rabinos impor-nos-ão a obrigatoriedade de nosso casamento, segundo as nossas leis...
– E, necessariamente, em ambiente fechado, sem nenhum convidado cristão e correndo o risco de sermos desmascarados...
– Sim – concorda ela, lacónica.
Voltam a abraçar-se forte e um silêncio, então, abate-se entre ambos, durante o qual se percebia que cogitavam profundamente sobre as suas vidas.
– E aquele traste, voltou ele a incomodar-te? – pergunta o jovem, de repente, quebrando o silêncio.
– Ontem mesmo... – responde ela, com um suspiro de desolação. e, a desprender-se dos braços do rapaz, prossegue: – No jantar oferecido pelo bispo. Não tirou os olhos de mim... Parecia querer devorar-me viva em detrimento do esplêndido leitão assado que serviam...
– Pulha ordinário!... – exclama o jovem, rilhando os dentes de ódio. – E a dizer-se que é um prelado da Igreja!... Que despudor!... – e a olhá-la com os olhos a vazarem raiva extrema: – O que me indigna é que o desgraçado fez voto de castidade!... Como um religioso de tamanha categoria pode mostrar-se assim depravado?...
Perjuro maldito!... Que os demónios o arrastem aos infernos!
– Entendo a tua indignação, meu anjo! – diz ela, imensamente triste. – Mas não quero que jamais penses que lhe dei confiança alguma vez!... Juro-to!... Ele é que vive a perseguir-me, desde o momento em que pôs os malditos olhos sobre mim!– Eu o sei, minha querida!... – diz ele, beijando-a à face. – Longe de mim duvidar da tua lealdade!... Mas é que me roo todo de ciúme de ti!... – e a contorcer, acentuadamente, o rosto todo, em expressivo esgar, como consequência da intensa dor que lhe ia à alma, prossegue: – É-me a morte imaginar-te tocada por outro homem, mormente aquele desgraçado!
– As garras daquele demónio nunca me alcançarão, asseguro-te!
– diz ela, tomando entre as suas as trémulas mãos de Andrés. – Pelo menos, não conscientemente! Só se me matar!
– Sabes o que temo, minha querida? – observa o rapaz, a tremer-se todo de alta indignação. – Temo que, qualquer dia desses, ele venha a raptar-te e a prender-te em lugar ignoto onde jamais poderei buscar-te!... É isso que temo, meu anjo!... Oh, se tal desgraça acontecer, nem sei o que será de mim!
– Será mesmo que terá ele coragem de cometer tamanho despautério para connosco? – pergunta ela, a meter-se em aflição.
– Daquele demónio espero tudo!... – responde ele. – Considere que ele é homem poderoso e contra quem não teremos quaisquer chances!
– E se, após nos casarmos, fugirmos para bem longe daqui, onde as mãos daquele infame jamais nos alcançarão?
– Já pensei nisso, meu amor, por diversas vezes, e pretendia propor-te que assim agíssemos; apenas temia que não aceitasses, uma vez que, fazendo isso, terias de deixar os teus pais, os teus irmãos...
– Para o nosso bem, querido, viveria em qualquer lugar deste mundo, mesmo numa ilha distante e deserta...
– Deixarias tudo, mesmo, por mim, meu anjo? – pergunta ele, com extrema doçura à voz, enquanto lhe acarinhava a face com a ponta dos dedos. – És, de facto, um anjo...
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A jovem limita-se a sorrir, deixando entrever uma fileira de dentes alvos como a neve. Em seguida, toma, com as mãos, o rosto de Andrés e, aproximando-se mais, beija-o, longa e apaixonadamente aos lábios. Depois, ainda aflante pela descarga da intensa paixão que a envolvia, diz-lhe, rente ao ouvido:– Nada ou ninguém será capaz de apartar-me de ti, meu amor!...
Nada mesmo!... Nem mesmo a morte, juro-to!...
– Oh, que bom ouvir isso dos teus lábios! – exclama ele, enchendo-se de vaidade. – De ti só poderia esperar tais palavras e quero que creias: da minha parte, também, nem mesmo a morte apartar-te-á de mim, pois aonde quer que fores, irei no teu encalço!
– Desafiarás até mesmo o Reino das Sombras, a buscar-me? – inquire ela, estufando-se de orgulho e a abrir um sorriso pleno de satisfação.
– Por certo que sim! – responde o rapaz. – Mas, antes que isso aconteça, para lá comigo arrastarei qualquer miserável que tentar afastar-te de mim!
Maria de los Milagros nada responde. Cala-se, de repente, e então, acentuada palidez cobre-lhe, momentaneamente, as faces amorenadas.
– Por que te calas? – pergunta ele. E, notando o intenso palor que lhe tomava as feições, aflito, toma-a pelos ombros, com ambas as mãos, sacode-a, insistentemente, e lhe diz, altamente preocupado: – Que se passa contigo, Milagros?... Que tens?...
– Oh, Andrés! – responde ela, com grossas gotas de gélido suor a lhe brotarem abundantes à fronte: – De repente, lembrei-me de terrível pesadelo que tive a noite passada!... Mostrou-se-me como algo tão revelador, premonitório, entendes? Foi como se se me desvelassem terríveis desgraças que se reservam à nossa vida futura!... – e, a tremer-se toda, envolvida por grande temor, abraça-se, fortemente, a ele, em busca de protecção. E com a voz embargada pela funda emoção, prossegue: – Oh, meu querido, foi horrível!
– Acalma-te, meu amor!... – diz ele, buscando consolá-la. – Acalma-te e me conta o que sonhaste!
– Oh, não sei se conseguirei!... Foi tão horrível!... – e, depois de respirar fundo, por diversas vezes, e buscar conter-se, emocionalmente, encontra-se em condição de prosseguir: – Vi-me presa em tenebroso cativeiro, totalmente impossibilitada de me mover, enquanto tu, também atado a poderosas cadeias, eras devorado vivo por ratazanas enormes e horrendas que, com terríveis chiados de gozo, arrancavam lascas da carne viva dos teus pés e das tuas pernas, que já se mostravam altamente feridos e descarnados!... Oh, céus, que horror!... Tu gritavas e me suplicavas socorro, mas eu, também completamente presa, nada podia fazer por ti!... E, a rirem-se e a se divertirem de nossa aflitiva desgraça, encontravam-se três monstruosos torturadores, encobertos por capuzes e longos mantos negros!
– Oh, possivelmente sonhaste tais coisas, porque tu te mostras assaz nervosa e preocupada com os fatos que andam a permear a nossa vida!... Não te preocupes com essas coisas, meu bem!...
Também eu ando a encher-me de maus pressentimentos, mas os tomo todos como consequência dos nossos receios!... Nada mais que isso, crê em mim!... Certamente são infundados e se alicerçam no teu medo!... Nada, além disso!...
– Oh, como desejava compartilhar dessa tua certeza, meu bem! – geme ela, encostando o rosto no peito do rapaz.
Ele, entretanto, nada diz; apenas se resume a acarinhar-lhe os longos cabelos a se lhe descerem abundantes sobre as espáduas.
A manhã seguia radiante, debaixo de um céu de anil. Leve brisa brincava com as folhas e com os ramos das árvores. O casal de jovens permaneceu abraçado, sem nada se dizerem, apenas se sentiam, envolvidos pelo suave toque do intenso amor que lhes permeava a alma. Andrés e Maria de los Milagros amavam-se, intensamente, e, diante de amor assim, a dor, gerada pela comum inconstância e pelas incertezas da vida, costuma marcar presença, mesmo que seja apenas para firmar, ainda mais, a grandeza desse nobre sentimento que brota entre as criaturas...
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:51 pm

– Mi amor... – diz ela, depois do longo período que permaneceram, assim, abraçados, a sentirem-se, mutuamente –, é hora de me ir. Consuelo já deverá achar-se profundamente amofinada, por esperar-me tanto tempo assim...
– ¿Dónde tuya hermana espera por ti?…43 – pergunta ele, com ligeiro sorriso. – Pensava que tinhas vindo só...
– Consuelo aguarda-me na igreja – responde ela. – Dissemos à mamãe que íamos rezar... Sabes que devemos fingir...– Fizestes bem! – concorda ele, a rir-se. – Quanto mais pensarem que somos bons e fiéis cristãos, melhor para nós...
E ambos explodem em cristalinas risadas, a espalharem-se pelo bosque. No alto, as árvores abriam-se em profusão de flores dos mais variados matizes e a despejarem no ar fresco da manhã seu suave e inebriante perfume.
Andrés e Milagros protelam ao máximo a sua despedida. No fundo, não queriam, jamais, apartar-se. Seus dedos, entrelaçados uns aos outros, ressentiam deixar-se; desejavam fundir-se, como se a extremidade da mão de um, sem solução de continuidade, desse início à mão do outro...
Aos poucos, porém, foram desapartando-se, escorregando, perdendo-se, milimetricamente, enquanto os olhos permaneciam pregados, firmemente, uns aos outros.
– ¡Adios, mi amor!... – diz ele, com a voz toldada pela intensa paixão.
– ¡Adios, mi alma!... – diz ela, com a voz rouca.
Depois, como se fosse uma meninazinha cheia de peraltice, abre brejeiro sorriso, volta-se e corre ligeira...
– ¿Dónde estabais vosotras hasta esta hora?44 – pergunta, altamente preocupada, Sara Shlomo às duas filhas que chegavam esbaforidas e acaloradas pelo muito que haviam caminhado apressadas.
– Oh, fomos à igreja, madrecita!... – apressa-se Milagros em responder. – Já te dissemos, antes, lembras-te?
– Por todo esse tempo? – estranha a mãe, pela demora das filhas. – Não me consta que sois ambas tão afeitas a rezas, dessa forma! – e a encará-las firme: – ¡La verdad, niñas!...Vamos!...45
– Milagros foi encontrar-se com Andrés... – confessa Consuelo à mãe.
– Oh, se o vosso pai souber de tais escapadelas!... – diz Sara. – Nem quero pensar no castigo que pespegará às duas!... Nem quero andar por perto!
– Tu nada lhe dirás, não é, madrecita? – diz Milagros, lançandose ao pescoço da mãe e, abraçando-a forte, enche-lhe as faces de beijos. – Nada lhe dirás, não é mesmo?...– Oh, és mesmo uma verdadeira pícara, mocinha! – exclama a mãe, deixando-se vencer pelos mimos que recebia da filha. – Uma vez mais, derrotaste-me!... Oh, e eu ainda haverei de arrepender-me de ser tão frouxa com vocês duas!... – e a rir-se: – Andam a engabelar-me o quanto querem, não é? – e a piscar um olho maroto para a filha mais velha: – Diz-me, como está Andrés?...
– ¡Oh, madrecita!... – responde a jovem, com intenso brilho aos olhos: – Guapo como sempre!... – e a ensaiar passos de dança, contentíssima: – E os abraços e os beijos?... Ai, que desfaleço só em deles me lembrar!
– Milagros... Milagros... – admoesta-a a mãe, mostrando-se preocupada. – Acho que te dás muito a Andrés, antes da hora certa!... Não convém que aguardes pelo casamento?... Sabes como são os homens!... Nada lhes custa arrependerem-se, depois de se terem fartado, largamente, dos favos do mel!... Devem as noivas guardar-se totalmente puras, até o casamento!... – e a menear a cabeça: – Já presenciei tantos arrependimentos, bem à hora das bodas...
– Andas a preocupar-te à toa, mãe! – rebate a moça, ainda com intenso brilho de felicidade aos olhos! – Nem cogitas o quanto Andrés é um cavalheiro!... E me ama tanto!...
– Não duvido do amor que tendes um pelo outro, mas cautela nunca é demais, garanto-te! – e a pôr-se ainda mais séria: – Sou bem mais experiente que tu e asseguro-te: quanto menos facilitares a ele, mais se interessará por ti!
– Oh, mamãe!... – exclama a moça, abraçando-se à mãe. – Não carece que te preocupes tanto assim comigo!... Acaso não me conheces como a palma da tua mão?
– Os pais pensam que conhecem os filhos, Milagros – rebate Sara Shlomo –, mas, na verdade, depois que crescem, ganham carácter e personalidade próprios!... Sei disso, porque também sou filha, minha cara, não te esqueças!... E também sei que, pela educação, podemos moldar o carácter de uma criança, mas até que ponto?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 30, 2024 7:52 pm

A prática tem mostrado que os caracteres costumam tornar-se distintos e, às vezes, revelarem-se bem rebeldes e arredios, mesmo entre gente do mesmo sangue...– É... Tens razão, mãe – concorda a moça, depois de cogitar por instantes. – Mas, no meu caso, podes dormir tranquila!... Jamais irei desapontá-la!
– Muito bem! – diz Sara, batendo palmas. – Agora, vamos, ajudem-me com o almoço!... O papai em breve chegará, e desejo que esteja tudo pronto!
*******
D. Aníbal Velásquez achava-se sentado diante de opípara e extensa mesa bem posta de uma profusão de delícias. Seus olhos percorrem, sem qualquer empolgação, a abundância de pratos bem decorados e perfumados que se estendiam diante de si. Entretanto, o prelado não tinha nenhum apetite. Apenas molha, maquinal e ligeiramente, os lábios com a taça de vinho que o seu mordomo acabara de servir-lhe.
“Para que tudo isso?”, pergunta-se altamente desolado, em pensamento. “Se não a posso ter ao meu lado, de que me vale a vida?”, e emite fundo suspiro de desolação. Em seguida, sem sequer tocar num dos únicos pratos que tinha à frente, levanta-se e se encaminha para a janela. Com olhos tristíssimos, percorre a paisagem que se abria diante de si. “Ah, Toledo!...46 Toledo!..., murmura D. Aníbal, a contemplar o casario da cidade que brilhava ao intenso sol matinal, “Tu te tornas tão insípida para mim...”, e a tentar engolir o nó que lhe entupia, insistentemente, a garganta:
“Melhor que me fosse daqui... Que retornasse a Barcelona!”
Depois de perscrutar, demoradamente, a cidade até onde a sua vista alcançava e de fixar, demoradamente, a cruz da torre da catedral, D. Aníbal volta-se. Seu mordomo fitava-o com olhos cheios de piedade:
– ¿No vais comer, Señor? – pergunta o serviçal. – ¡Mira, toda la comida se pone fria!...47
– ¡Yo no tengo hambre, Gumersindo!... Quita todo eso de aquí!48
– Oh, Señor, que tens? – pergunta o mordomo, altamente condoído pela situação em que se encontrava o amo. E, aproximando-se mais de D. Aníbal: – Não quereis abrir o vosso coração?– Tens razão, Gumersindo – retruca o prelado. E, tomando a direcção da sala de estar, ordena: – Apanha a garrafa de vinho, duas taças e vem ter comigo. Sempre foste, mesmo, o meu mais fiel conselheiro...
– ¡Por supuesto, Señor!... – diz o mordomo, aprestando-se em cumprir-lhe as ordens.
Após sorver longo gole do vinho e de cogitar por instantes, diz D. Aníbal, sem fitar o rosto do amigo:
– Gumersindo, tu tens estado ao meu lado, mesmo ainda quando estávamos em Barcelona, não é?
– Sí, Señor – responde o velho mordomo. – Os vossos pais ainda viviam – e, depois de sorver pequeno gole do vinho, prossegue: – Entretanto, nunca vos percebi, antes, assim tão desgostado! ¿Que pasa, Señor?... ¿No desearíais vosotros abrir vuestro corazón?49
– Acho que tens razão, Gumersindo – diz D. Aníbal, depois de emitir fundo suspiro de desolação. – Se não boto fora o que me rói o peito, acabo explodindo – e depois de cogitar por algum tempo, pergunta: – Tu me conheces desde que eu era bem jovem, não é?...
Tudo sabes sobre a minha vida, e nada te escapa, não é assim?
O velho e fiel servidor limita-se a aquiescer com a cabeça.
– Então também sabes que professei não por vocação... – prossegue D. Aníbal. – Forçaram-me a envergar esta desgraçada sotaina!... Meu pai obrigou-me a professar – tu te lembras muito bem! – e, para isso, sabes que precisei afastar-me de Teresa! – e, levantando-se e se pondo a andar em círculos, prossegue, com a voz toldada por profunda comoção: – Tu nem imaginas o quanto sofri, ao ter de apartar-me, para sempre, da minha adorada Teresa!... Oh, Gumersindo, nem podes aquilatar o quanto nos amávamos, ela e eu!
– ¡Yo supongo que sí, Señor!50 – responde o mordomo. – Sofrestes, barbaramente, quando tivestes de afastar-vos da Marquesinha de Fuenteguinaldo!... Tanto sofrestes que quase morrestes de inanição!... Ninguém conseguia fazer-vos comer!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 31, 2024 10:38 am

Minguaste tanto que mal conseguíeis manter-vos sobre as vossas pernas!...– Mas, nem mesmo isso conseguiu demover o meu pai de fazer-me padre, contra a minha vontade!
– O senhor barão, vosso pai, era um homem por demais enérgico; ninguém se o podia contrariar!
– Enérgico ou cruel? – rebate D. Aníbal, cheio de ironia. – Viste muito bem o que ele fez à minha mãe!
– A senhora Francisca, vossa saudosa mãe, morreu de tristeza...
– Oh, aquele cavalo matou-a de desgosto! – diz D. Aníbal, cheio de dor. – E eu amava tanto a minha mãe!...
– A baronesa não suportou tantos maus tratos... – observa o mordomo. – E, como era assaz meiga e gentil, não aguentou...
– Não suportou viver ao lado dum monstro como aquele! – exclama D. Aníbal. E a fechar os punhos, cheio de ódio, prossegue:– Minha mãe era uma flor, Gumersindo, uma rosa que brotou no meio de escolhos!
– E foi sufocada e morta pela calcinante aridez que lhe propiciou o vosso pai, pela vida a fora! – observa, triste, o serviçal.
– Tu lhe acompanhaste o calvário, não é? – pergunta D. Aníbal, fitando o outro aos olhos.
– Desde quando ela veio para a casa do vosso pai – responde Gumersindo. – Eu era ainda bem jovenzinho e principiava a servir ao senhor barão. Presenciei-lhes o noivado, o casamento, o início da vida conjugal...
– E o meu pai sempre se mostrou daquela forma, tão grosseira e estúpida, para com a minha mãe, desde o início?
– Oh, não! – responde o mordomo. – No começo, vosso pai até que era bem cortês e gentil para com a senhora Dona Francisca.
Mas, depois de algum tempo, tudo mudou entre eles...
– E sabes o motivo de tal mudança? – pergunta D. Aníbal. – De minha parte, nunca de nada fiquei sabendo.
– Cá, comigo, creio que tudo não passou de calúnias, a envolverem a vossa mãe, Senhor. Dona Francisca era, quando jovem, muito bonita, e muitos a cortejavam, antes que resolvesse casar-se com o vosso pai. Tenho comigo que D. Carlos Oviedo Martins foi quem inventou deslavada calúnia e a deitou aos ouvidos do vosso pai.– D. Oviedo Martins, o Marquês de Villalba? Mas com qual propósito? – quis saber D. Aníbal.
– Possivelmente, com a intenção de causar uma desavença entre os vossos pais. Tempos depois, fiquei sabendo que o Marquês de Villalba era apaixonadíssimo por vossa mãe e não se conformava em tê-la perdido para o vosso pai.
– Entendo... Mas o que conseguiu o miserável com isso? – pergunta D. Aníbal.
– Nada, além de transformar a vida da vossa mãe num inferno e o vosso pai num homem amargo e duro...
– Mas o que de tão grave despejou aquele desgraçado aos ouvidos do meu pai?... Acaso tu sabes?...
– Sim: que a vossa mãe e ele, antes do casamento dela, haviam mantido um romance secreto...
– Que absurdo! – exclama D. Aníbal, estupefacto. – Minha mãe sempre foi um poço de virtudes!... Não saía da igreja, a rezar e a penitenciar-se, diuturnamente!
– Pela pureza e pela dignidade da vossa mãe, jogo-me dentro de uma caldeira ebuliente! – diz o mordomo, sem titubear. – Ela sempre foi um anjo de virtudes!
– Mas que provas apresentou ele ao meu pai, que acabou acreditando nas mentiras daquele ordinário?
– Um lenço de seda que pertenceu à vossa mãe, Senhor! – diz o serviçal. – Nada, além disso.
– Um reles lenço?!... – estupefaz-se D. Aníbal. – Existem tantos lenços de seda por todos os lados! Como creu meu pai ser logo aquele um pertencente à minha mãe?
– Pelo monograma nele bordado, Senhor... Trazia as iniciais do nome da vossa mãe...
– E a minha mãe reconheceu o lenço? – pergunta D. Aníbal.
– Vosso pai armou-lhe um ardil: apresentou-lhe o lenço, de chofre, a perguntar se aquilo lhe pertencia. Vossa mãe, sem qualquer laivo de malícia, logo tomou o lenço e, revirando-o entre as mãos, disse tê-lo perdido, tempos antes.
E, facto peculiar, o lenço trazia as marcas de lábios, feitas a batom rubro. Vossa mãe, entretanto, negou ter deixado aquelas marcas no lenço. Vosso pai, contudo, atirou-lhe à face que aquele beijo marcado sobre o alvo tecido de seda fora por ela impresso e dado como prova de amor ao amante, D. Carlos Oviedo Martins!
– Que infâmia! – exclama D. Aníbal. – Isso não passou de sórdida patranha, urdida por aquele desgraçado!
– Com toda a certeza, D. Aníbal! – diz o mordomo. – Certamente, o lenço fora roubado por algum serviçal da casa da vossa mãe, a soldo do Marquês de Villalba, com o fito de macular-lhe o carácter.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 31, 2024 10:38 am

– E, então, a partir de tamanha calúnia é que o relacionamento dos meus pais se tornou daquela forma tão absurda e estúpida, com que convivi todos os anos da minha infância e juventude, até que ambos se finassem, depois de uma vida inteira cheia de agressões e de maus tratos que o meu pai dirigia, insistentemente, à minha mãe? – pergunta D. Aníbal, com a voz embotada por amargura extrema.
– Esse era o motivo, D. Aníbal – responde o mordomo, lacónico.
– E o meu pai nunca procurou esclarecer essa sórdida aldrabice, Gumersindo? – pergunta D. Aníbal.
– Infelizmente, não, Señor – responde o outro. – Vosso pai jamais intentou tornar claro, se a calúnia que lhe lançou aos ouvidos o Marquês de Villalba tinha qualquer fundamento. Simplesmente aceitou-a, diante da prova material que o outro lhe apresentara.– Apenas um lenço? – observa D. Aníbal. – Não cogitou o meu pai que tal prova poderia ter sido forjada?
– Creio que não, D. Aníbal. Vosso pai aceitou-a, sem nada mais questionar.
– Pobre mamãe! – murmura o prelado, com os olhos a marearem-se de lágrimas. – E tudo suportou ela, em silêncio, por esses anos todos!... Que suplício, meu Deus!
– Vossa mãe se deixou imolar, Senhor! – diz o mordomo. – E eu lhe segui o brutal martírio pela vida a fora.
– Ora entendo porque o meu pai não permitiu que eu me ligasse à Teresa! – diz D. Aníbal, visivelmente alterado, a tremer-se de funda comoção. E, a segurar a taça de vinho à mão trémula, levanta-se da sua poltrona e se encaminha para a janela alta. Em silêncio, observa, por alguns instantes, o céu límpido e azul. Depois, volta-se e novamente se senta. Deposita a taça sobre a bandeja e encobre o rosto com as mãos. Por um tempo assim permanece, sem nada dizer. Sua respiração tornara-se difícil, e funda amargura notava-se-lhe à alma.
– Agora de tudo sabeis, Senhor – diz o mordomo. – Vosso pai jamais permitiria que vos associásseis a uma parenta daquele que lhe fora o motivo da desgraça em seu relacionamento com a esposa. Vosso pai, simplesmente, abominava o Marquês de Villalba e como poderia aceitar que o filho tomasse por esposa justamente a sobrinha do seu maior desafecto?
– Essa, Gumersindo, é a resposta para a pergunta que sempre me atormentou a alma, por todos esses anos: o motivo de o meu pai não aceitar o meu casamento com Teresa – diz D. Aníbal altamente estupefacto. – Então era isso!... Oh, e por conta dessa infâmia, não só desgraçou a vida da minha pobre mãe, como também a minha, obrigando-me a professar! Agora entendo tudo!... Forçando-me a entrar para a vida eclesiástica, impedia-me, mesmo após a sua morte, de consumar o meu amor com a minha adorada Teresa!
– Sim – concorda o mordomo –, o vosso pai não quis, mesmo depois que morresse, que vos ligásseis à sobrinha do seu odioso rival – e a encher-se de indignação, prossegue: – Sempre respeitei o vosso pai, Senhor, mas, ao perceber que ele se decidira por desgraçar a vossa vida, para sempre, também eu me tomei de fundo ódio por ele que somente agora ouso confessar-vos!... Em meu íntimo, cogitava sempre que só um monstro poderia ser capaz de tornar tão infeliz a vida da esposa e do filho!... Alguém que assim age não pode ser humano; é um ser plenamente desnaturado!
– Meu pai era um monstro, Gumersindo! – diz D. Aníbal, num desabafo. E com a voz entrecortada por funda comoção, continua: – Hoje seria capaz de matá-lo! Oh, como desgraçou a minha vida e também a da minha adorada Teresa!... – e, levantando-se e se pondo a caminhar em círculos pela sala, prossegue: – Teresa não suportou a minha decisão de professar! Ela não entendeu esse meu ato, Gumersindo, percebes? Não conseguiu atinar com esse meu estúpido despropósito!
Oh, Deus, e o miserável do meu pai também é o culpado da morte dela!... – e a tornar-se mais desesperado ainda: – Vês até onde chega o cabedal de desgraças deflagrado por aquele demónio?... – e, com as palavras molhadas pelo pranto, quase a gritar de tanto desespero: – Ele também matou Teresa, Gumersindo! Meu pai assassinou-a!
– Penso que assim foi, D. Aníbal – concorda o outro. – Quando vos internastes no seminário, a Condessinha de Fuenteguinaldo também andou a definhar e, em pouco tempo, a tuberculose levou-a, a meio de grandes sofrimentos!
– E eu a sofrer o inferno, fechado naquela maldita masmorra!... – geme D. Aníbal. – Oh, Gumersindo, não sabes o que é a clausura!– Posso imaginá-la, senhor! É o mesmo que se deixar aprisionar, voluntariamente, numa enxovia! Assim penso que seja!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 31, 2024 10:39 am

– E é, Gumersindo!... A partir do momento em que fazes os votos, tu não és mais o dono do teu destino: outros é que passam a gerir a tua vida; não terás mais nada de teu, pois fazes o voto de pobreza, e todas as tuas posses passam, de pronto, para a Igreja; dizem o que deves e o que não deves fazer, uma vez que fazes, também, o voto de obediência absoluta!... Oh, se quiseres tornar alguém um morto vivo, lança-o à clausura!
– Imagino ser horrível, Senhor!
– Inda mais a alguém como eu que para lá foi sem nenhuma vocação, Gumersindo! Eu não queria ser padre, entendes? Eu queria amar Teresa e com ela ser feliz; ter a minha casa, a minha família!... Desejava amar e ser amado por uma mulher, compreendes? Não viver abrasado, diuturnamente, por uma paixão como a que nutria por Teresa! Mas meu pai tudo destruiu, com a sua desgraçada imposição!...
– Vivestes uma vida de cruéis sofrimentos, D. Aníbal – observa, pesaroso, o velho mordomo.
– Teresa foi-se, há tanto tempo, e eu jamais a esqueci, embora as cinzas do tempo, como bem o sabes, foram desligando o grande determinante do meu amor, e a paixão fulminante, advinda desse amor, viesse, paulatinamente, sendo sepultada pelo agoniador desfilar dos meus dias. Assim soi acontecer, meu amigo, na vida de todos nós, com o processo de cicatrização das feridas da alma, por mais fundas e doloridas que sejam. Entretanto, das cinzas daquele louco amor, agora, nova e infrene paixão reacende-se, Gumersindo! – desabafa D. Aníbal.
– E essa moça por quem vos apaixonastes? – pergunta o mordomo. – Como se explica o fato de ela vos ter despertado, de novo, a paixão por uma mulher?
– A semelhança que achei entre ambas, meu caro – diz D. Aníbal. – Maria de los Milagros lembra-me Teresa, enormemente!...
Em muito se parecem!... Deverias vê-la: tenho a certeza de que também tu serias capaz de encontrar muita semelhança entre ambas!
– Mas que bela peça pregou-vos o destino, não é, D. Aníbal? – diz o mordomo. – Agora que o tempo já andava a deitar pó sobre a paixão que sentíeis pela Condessinha de Fuenteguinaldo, surge-vos essoutra.
– E, como aconteceu com Teresa, anda esta também a matar-me de paixão, de dor de amor, Gumersindo!... E, o pior disso tudo é que Maria de los Milagros é uma marrana, e ainda por cima, é noiva:
está prestes a consorciar-se com belo, jovem e rico rapaz da sua mesma raça!
– Não tendes mesmo sorte, D. Aníbal! – condói-se o mordomo.
Curto silêncio estabelece-se entre ambos. Era o momento em que reflectiam sobre aquela conversa.
– Que fazer, Gumersindo? – pergunta D. Aníbal, por fim, quebrando o silêncio. E, levantando-se, com o propósito de deixar a sala, repete: – Que fazer?
O outro nada responde. Com olhos muito tristes, segue o amo que, cheio de desolação, encaminhava-se rumo à porta.
Gumersindo tinha pena de D. Aníbal. Muita pena mesmo...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 31, 2024 10:39 am

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38. Diáspora: A dispersão dos judeus, no decorrer dos séculos.
39. Pogrom: ataque organizado contra comunidades judaicas, com grande destruição, e, geralmente, morticínio, insuflado ou tolerado pelas autoridades oficiais.
40. Por essa época, Cristão-novo ou converso era a designação dada em Espanha e Portugal aos judeus e muçulmanos convertidos ao Cristianismo.
41. Os judeus eram artesãos, pequenos e grandes comerciantes, homens de leis, funcionários da corte, e os reis recorreram largamente às suas capacidades e aos seus serviços. Formavam uma terceira classe – a burguesa – que se interpunha entre a plebe camponesa e a aristocracia dominante.
42. Durante a maior parte da Idade Média, a Inquisição não teve actuação expressiva na Espanha, em razão de sua localização peninsular e, ainda, por não ter sofrido, de forma marcante, a influência ou a ocorrência de movimentos heréticos significativos como o dos Cátaros (ocorrido no Sul da França e Norte da Itália), ou dos Fraticelli (parte da Itália e da Provença).
Em 1197, o rei Pedro II de Aragão reiterou o edito que seu pai Afonso II houvera baixado contra os inimigos da Igreja, que eram declarados hereges e expulsos de suas terras, e, no ano de 1198, pela primeira vez em território espanhol, ocorreu a pena de morte pelo fogo, aplicada a membros de seitas heréticas. Dessa forma, até o século XV, a Inquisição na Península Ibérica pouco mais fez do que esporádicas perseguições a heresias que se mostraram raras ali. Porém, em meados do século XIV, entre os anos de 1320 e 1339, o dominicano Nicolau Eymerich, o grande inquisidor do Reino de Aragão, escreveu o manual dos inquisidores − Directorium Inquisitorum − no qual apontava os principais temas a serem abordados nas acções inquisitoriais, tais como o total sigilo do processo imposto ao acusado; que os autos-de-fé seriam cerimónias abertas ao público, em festivas onde eram pronunciadas as sentenças contra os hereges, apóstatas, bruxos e feiticeiros que, nesses eventos, abjuravam, publicamente, as heresias; outros eram fustigados e torturados, e os condenados à morte eram executados na fogueira. A partir do século XV, chegou ao seu ponto máximo a perseguição a judeus e a mouros; estes, por esse tempo, ainda se encontravam acuados em Granada, seu derradeiro reduto em solo hispânico. Em consequência dessa acirrada perseguição, grande parte da população de judeus e de mouros, com receio de serem expulsos das terras espanholas, converteram-se ao Cristianismo. Entretanto, muitos dos milhares de antigos judeus, convertidos, forçadamente, ao Cristianismo, para escaparem à morte, à expatriação ou à confiscação de bens, foram acusados de judaizarem, isto é, de praticarem o Judaísmo, em segredo, incorrendo, dessa forma, na acusação de apostatarem o baptismo. No entanto, vale ressaltar que, apenas em Espanha, é que os judeus convertidos foram sistematicamente investigados e perseguidos pela Inquisição, de forma peculiar.
43. “– Onde tua irmã aguarda por ti?...”, em castelhano.
44. “– Onde estáveis até esta hora?”, em castelhano.
45. “– A verdade, meninas!... Vamos!...”, em castelhano.
46. Desde o século XI, quando de sua retomada aos mouros, por Afonso VI, Toledo tornou-se a capital do reino de Castela, até Filipe II transferir a corte espanhola para Madrid, em 1561.
47. “– Não vais comer, Senhor?” (...) “– Olha, toda a comida esfria-se!...”, em castelhano.
48. “– Eu não tenho fome, Gumercindo!... Retira tudo isso daqui!”, em castelhano.
49. “– O que se passa, senhor? Não desejaríeis abrir o vosso coração?”, em castelhano.
50. “– Suponho que sim, Senhor!” – em castelhano.
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Capítulo III – A família Shlomo
O sol ia alto no céu, quando a família Shlomo se sentava a uma mesa posta para o almoço, aos fundos da casa, sob frondoso e perfumado dossel de hidranjas.
– E Benyamin, por que será que ainda não veio? – pergunta Yaacov, o patriarca da casa, enquanto era solicitamente servido de generosa porção de cabrito assado pela esposa Sara. – Não achas que deveríamos esperar por ele?
– Vá comendo, Yaacov, vá comendo, antes que tudo se esfrie!...
Benyamin não se demorará – responde a esposa. – Pedi a ele que, antes de tornar a casa para o almoço, passasse no mercado, a comprar alguns víveres de que preciso para cozer o jantar.
– Mesmo assim, acho que se demora – insiste o homem. E se levantando, sem tocar na comida, espia, altamente preocupado, através do longo corredor que passava por dentro da grande casa.
Depois diz, voltando a sentar-se à mesa: – As coisas não andam nada boas para o nosso lado! Logo de manhã, ao passar pela praça, vi os soldados darem uma tunda de pau no lombo de Ben Yoel, porque ele lhes escarrou nos rastros, quando faziam a ronda pela rua.
– E por que Ben Yoel fez-lhes tamanha má criação? – pergunta Sara, a repletar de vinho a taça do esposo.
– Por quê? Simplesmente porque, de tempos para cá, nós, os judeus, vimos sendo tratados como dejectos! – diz o homem, enchendo-se de indignação. – Ninguém suporta ser escorraçado como se fosse um cão danado das ruas!– Oh, que exagero, Yaacov! – diz a mulher. – Sempre nos respeitaram por aqui!
– Antes, minha cara! Antes!... – rebate Yaacov. – De uns tempos para cá, passaram a tratar-nos como cães sarnentos!... Aliás, como porcos!... Acaso já não andam a chamar-nos de marranos?
– E tu te importas com isso? – diz a mulher, sentando-se ao lado do esposo e se pondo a roer bom pedaço do cabrito assado.
– Claro que me importo! – rebate o homem. – Onde é que fica o nosso orgulho?
– Ora o orgulho! – exclama ela. – Diz-me: onde é que alguma vez o orgulho encheu a pança de alguém? Olha, pois eu não me importo: se me quiserem chamar de marrana, cabra, vaca ou qualquer bicho que seja, não lhes dou a mínima!... Que se danem!...
Eu não como na casa deles!
– Entretanto, acho que deverias importar-te! – contesta Yaacov. – É bom que saibas que assim é que começam as perseguições à nossa raça!
– Oh, lá vens tu com essas conversas tolas!... Há mais de um século não temos tido mais nenhum levante contra nós!51 – responde a mulher. – E eu não tinha nem nascido, quando a última perseguição à nossa raça aconteceu por aqui!
– Acho que andas mesmo fora do mundo, minha cara! – prossegue Yaacov. – Acaso ainda não percebeste que, ultimamente, os castelhanos andam a seguir-nos o caminhar pelas ruas, com laivos de ironia aos olhos, e a cochicharem entre si e a se rirem
escarninhos, somente por sermos judeus? Este reino não é mais o mesmo, digo-te com toda a sinceridade. Acaso te esqueceste do que aconteceu, há pouco tempo, em Sevilha?... Reafirmo: andam a armar alguma para nós! O tempo dirá!
– Acho que te apoquentas à toa, meu caro! – diz a mulher, no afã de dar cabo de sua porção de cabrito assado. – É certo que andaram a prender e a judiar de alguns de nossos conterrâneos, em Sevilha, mas te esqueces de que o papa logo deu contra e mandou
que se cessassem as perseguições?
− Este papa tem ficado do nosso lado, mesmo sabendo que somos judeus. Mas, quem nos garante que será sempre assim? E quando ele morrer?... Será que o próximo papa fará o mesmo?...
Além do mais, já se sabe que os reis andam a forçar a Igreja a restaurar o Tribunal! E, desta vez, pretendem instalá-lo, aqui mesmo, em Toledo!...
− Oh, não creio que os reis tenham tanta força assim, a ditarem ordens ao papa! – diz Sara. – Desde sempre, os papas sempre estiveram acima dos reis!
− Mas os tempos andam a mudar, minha cara! – rebate Yaacov. − O papado enfraquece-se, pois depende da ajuda dos reis, e estes, por sua vez, ganham o mando, e de acordo com seus interesses, andam a pressionar o papa... E até quando o pontífice de Roma resistirá à pressão?
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 31, 2024 10:40 am

As outras duas filhas do casal, Maria de los Milagros e Consuelo, comiam em silêncio, apenas a acompanharem curiosas a conversa dos pais.
– Mas que Benyamin demora-se, demora-se! – diz Yaacov, novamente a se levantar e a observar através do longo corredor.
– Acalma-te, homem! – admoesta-o Sara. – Desse jeito, nem conseguirás comer direito!...
– Perdi o apetite! – diz Yaacov, afastando de si o prato com o assado. – Acho que me vou no encalço do meu filho!
– Não chegues a tanto, meu caro – fala Sara. – Vai ver que o mercado deverá estar cheio de gente, como sempre.
– Ou os soldados andam a dar de pau aos cornos dos judeus pelas ruas! – resmunga o homem.
Nesse comemos, ouvem-se passos a se aproximarem.
– Não te disse? – exclama a mulher. – É o nosso filho a retornar!
O jovem de barba e cabelos negros e brilhantes surge à porta que dava ao corredor, a sobraçar pesada sacola de mantimentos.
– Uh, que calor! – diz ele, depositando a carga sobre uma mesa e, depois, aproximando-se de um alguidar com água fresca, posto sobre um tripé, com o propósito de servir à higiene da família, põe-se a lavar o rosto e as mãos, sistematicamente.
– Onde é que andavas por todo esse tempo? – pergunta Yaacov, voltando a puxar o prato com o assado de cabrito para perto de si. – No mercado, pai – responde o rapaz, agora se sentando à mesa, ao lado das irmãs. E, a receber o prato de terracota com a sua porção de carne assada das mãos da mãe, prossegue: – Precisáveis ver a confusão que se armou por lá, inda há pouco! Os soldados da rainha caíram de pau e destruíram as bancas dos cambistas!... Recolheram, antes, os valores que os coitados expunham em suas mesas de câmbio e dividiram entre si; depois, quando os cambistas revoltaram-se e se lançaram sobre os malditos esbirros, foram recebidos com uma chuva de cacetadas, a deixarem-nos todos moídos, caídos pelo chão.
– Por Deus! – exclama Yaacov, altamente assustado. – E ninguém socorreu os pobres coitados?
– Não, o povo que se achava no mercado assistiu a tudo, divertindo-se às pampas com os apuros dos desgraçados cambistas. Ninguém levantou um só dedo, a tomar-lhes a defesa!
– Eu não te disse? – exclama Yaacov, altamente excitado, dirigindo-se à mulher que a tudo ouviu, em silêncio, com os olhos baixos. – E tu te negas a admitir que as coisas andam a mudar por aqui!
– Alguma os cambistas devem ter feito aos soldados! – persiste Sara em não admitir que o esposo encontrava-se com a razão. – Sabes muito bem o que fez Ben Yoel, para atrair sobre si a ira dos milicianos!... O paspalho apanhou porque cuspiu atrás dos soldados! Bem-feito para ele! Quem mandou ser assim tão malcriado?
– Que fizeram os cambistas aos soldados, Benyamin? Vamos: di-lo à tua mãe! – ordena Yaacov.
– Pelo que sei, recusaram-se a pagar-lhes a propina – responde o rapaz. – Quando vieram buscar o dinheiro, negaram-se os cambistas de pagar-lhes!
– Bem-feito! – exclama Sara Shlomo. – Se deviam, tinham mesmo é que pagar!
– Mas pagar o quê, criatura? – observa Yaacov. – Que é que os pobres cambistas deviam àqueles pulhas desgraçados? Aqueles canalhas cobram propina pela protecção, sendo que zelar pela ordem nas ruas não vai além da obrigação daqueles ordinários! Oh, Sara, tu desconheces, mesmo, a justa medida das coisas!
– Procuro pender sempre para o lado prático da vida, meu caro!
– rebate a mulher, depois de sorver largo gole de sua taça de vinho.– Se fosses, mesmo, esperto, saberias que as coisas deste mundo todas têm um preço!... Já deverias saber...
– Tudo, não, querida! – responde o homem. – As coisas que nos dá Yavé52, por exemplo, nada nos custam!
– Aí é que te enganas, redondamente! – redargui a mulher, ufana. – Esqueces-te de que, quando vais à sinagoga, por lá deixas uns bons punhados de maravedis53, não é? Nem Yavé dá-te de graça aquilo de que necessitas...
– Oh, como podes raciocinar de forma assim tão atravessada, mulher? – exclama Yaacov, já se desgastando com a teimosia da esposa.
– Acaso não é assim que acontece? – prossegue ela: – Quando Benyamin fez o Bar-Mitzvá54, os rabinos não te esvaziaram o saquitel? Vais dizer que não é verdade?
– Sim, a cerimónia custou-me os olhos da cara, é verdade – diz o homem. – Mas o que tem Yavé a ver com isso?
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 31, 2024 10:40 am

– Oh, Yavé, na realidade, conforme creio, não precisa de ouro, nem de prata, nem de outras preciosidades que existem por aí.
Acaso tudo o que há no mundo já não Lhe pertence de antemão?
– Oh, não é bem assim que funciona, minha cara – rebate Yaacov. – Na verdade, Yavé faz-nos depositários da Sua fortuna pessoal!
– Ah, então é isso que pensais tu e os rabinos, é? – diz a mulher, com forte tom de ironia à voz. – Por mim, acho que os homens é que inventaram tais patranhadas, a fim de enganarem-se uns aos outros! Nesse ponto, cristãos e muçulmanos não vos são diferentes!
São todos iguais. Para vós, Yavé, Cristo ou Alá são do mesmo estofo!
– Yavé, não, minha cara! – rebate o homem, a mostrar-se patentemente ofendido. – Como podes nivelar o Altíssimo a esses outros dois? Só tu mesma...– Procuro dar clareza aos meus pensamentos e à minha vida, Yaacov – diz a mulher. – Para mim, não há diferença entre os três: são um único Ser. Os homens é que O dividiram assim, naturalmente, com o propósito de que Ele lhes sirva aos interesses!
Só e exclusivamente isso!... Moldaram Yavé a seu talante, a atender-lhes, tão-somente, aos desejos! E, além do mais, tens de dar a tua contribuição a Cristo, esqueceste? Os padres também vendem tudo que lhe estão ao alcance: as missas, o baptismo, a crisma, o casamento...
– A encomenda dos mortos... – completa Yaacov. – Convenceste-me: tudo se compra e se vende também nas coisas da alma!
– Na realidade, vivemos todos a mercadejar, não é mesmo?
Os três filhos do casal Shlomo comiam em silêncio, a ouvirem atentos a conversa dos pais.
– E pior para nós que temos de ter as duas religiões, não é? – prossegue Sara, depois de curto silêncio. – Enfiaram-nos Cristo goela abaixo e temos de contentar, também, os senhores padres!
– E ai de nós se assim não fizermos, minha cara! – exclama Yaacov. – A perseguição virá bruta e implacável!
– A propósito, Yaacov – prossegue a mulher –, não sei por que não nos forçaram a trocar o nosso nome! E o padre nem se importou em baptizar o nosso filho com um nome judeu!
– Oh, como não? – contesta Yaacov. – Ouvi-o, muito bem, quando pronunciou o nome do nosso menino: Benjamim, não Benyamin, como eu lhe havia dito!
– E não são a mesma coisa? – observa Sara. – Para mim não há diferença.– Mas há! – rebate Yaacov. – De propósito, ele o baptizou com a forma Cristã!
– E tu e eu, quando fomos forçados a nos submeter ao baptismo?
Sabes muito bem que não nos trocaram o nome!
– Como não? Também o meu nome o sacerdote disse Jacó! Ouvi claramente!
– Mas o meu, não! – diz a mulher.– Não trocaram o teu nome porque em ambas as situações, judaica e cristã, o teu nome soa da mesma forma! – explica Yaacov.
– Se o teu nome tivesse pronúncias diferentes, eles o teriam trocado!
– Já com Consuelo e Milagros, fomos forçados a dar-lhes nomes eminentemente cristãos, lembras-te?
– Se me lembro! Até o nosso nome de família tivermos de trocar, para fugirmos à perseguição!
– Deram a ti e à tua descendência o sobrenome Fuentes...
– Sou obrigado a apor o meu nome, hoje, em todas as situações, como Jacó Fuentes...
– Mas, na sinagoga e entre nós, ainda és Yaacov Shlomo!
– Até à minha morte!... – exclama o homem, cheio de orgulho. – Esses desgraçados forçaram-me ao baptismo cristão, mas não submeterão, jamais, o meu coração e a minha alma!... Nasci judeu e assim haverei de morrer!
– Mas terás de viver uma vida dupla, até que chegue o dia de te haveres com Yavé, meu caro! Se não quiseres juntar-te a Ele, antes da hora aprazada! Sabes muito bem o que aconteceu aos que se negaram a aceitar o baptismo cristão!55
– Não creio que os cristãos vão tolerar, por muito tempo ainda, a existência das sinagogas neste reino, minha cara – observa Yaacov.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 31, 2024 10:40 am

– Os rumores de que todos os judeus serão proscritos desta terra já andam à boca miúda, e sei que o farão, pois se aguarda, tão-somente, que o papa emita a bula para a restauração da Santa Inquisição por aqui; até agora, o sumo pontífice tem-se negado a assinar o documento, mas a pressão para que isso aconteça, o mais brevemente possível, já existe há algum tempo.56
– E como sabes dessas coisas todas? – pergunta Sara.
– Tu te esqueces de que a minha profissão coloca-me em contacto com os cortesãos todos de Toledo? Quem é que lhes vende as joias mais perfeitas e mais cobiçadas de toda a Espanha? E alguns deles são meus amigos, de longa data, e andam a advertir-me do grande perigo que corremos.
– Esquecia-me desse detalhe... – diz Sara. E a dar um tom de funda ironia à voz, prossegue: – Principalmente as cortesãs visitam-te amiúde...
– Oh, com ciúmes, é? – brinca Yaacov com a esposa. – Acho que nem deverias cogitar sobre tais coisas, minha cara. Sempre te fui plenamente fiel...
– Será mesmo?... Pois te afirmo que somente Yavé é Quem pode ler-te os escaninhos do coração, meu caro! – rebate a mulher, um tantinho amuada. – De mim, não confio tanto assim nos homens!
– Pois deverias confiar! – exclama Yaacov. – Sempre existem as excepções para tudo neste mundo!
– E, certamente, és uma delas, presumo!
– Pela luz dos meus olhos! – brada Yaacov. – Que Yavé cegue-me, neste momento, se alguma vez tive olhos para outra mulher, senão tu!
– Se dizes... – responde Sara, a olhá-lo fixamente. E prossegue:
– Mas, divagamos... Dizias que os judeus seremos todos proscritos de Castela...
– É o que comentam – diz o homem. – Muitos já me aconselharam a emigrar para outro reino, antes que a perseguição, efectivamente, seja retomada.57
– Crês, mesmo, que o rei e a rainha far-nos-ão deixar a terra em que nascemos, onde nasceram os nossos filhos e onde conquistamos, honestamente, os nossos bens?
– Creio, sim, porque isso já aconteceu. Lembras-te, muito bem, é claro, quando nos forçaram à conversão... Àquela época, nossos patriarcas aconselharam-nos a nos deixarmos baptizar e a, falsamente, aceitarmos o Cristianismo. Entretanto, sabes que muitos não se converteram, e o que lhes aconteceu? Seus bens foram confiscados, e todos eles foram proscritos do reino ou barbaramente assassinados.
– E o que querem mais de nós? – pergunta Sara, com forte tom de indignação à voz. Acaso já não nos curvamos diante do Crucificado, conforme nos exigiram?
– Mas sabem, perfeitamente, que a nossa conversão não foi sincera, minha cara! Ou achas que a plena actividade das sinagogas leva-os a supor o quê?... Imbecis é que não são!...– É... Tens razão... – concorda a mulher. E, depois de algum tempo de silêncio, prossegue: – E o que pretendes fazer? Vais deixar tudo aos malditos castelhanos?
– Sabes que posso muito bem levar comigo meus petrechos, e a ourivesaria poderá ser reaberta, facilmente, em qualquer lugar. A arte dum artífice aloja-se em sua cabeça, não num estabelecimento.
– Mas e a nossa casa, a nossa loja, as nossas propriedades? – pergunta ela.
– Desses bens, infelizmente, teremos que abrir mão, minha cara – responde Yaacov. – Não há como levarmos essas coisas.
– Malditos sejam esses demónios que nos querem arrebatar o que conseguimos com o suor do nosso rosto! – exclama Sara, a extravasar a revolta que lhe roía a alma. – Mas, antes de me ir, juro que atearei fogo a tudo o que não puder carregar comigo!... Deixar-lhes-ei tão-somente as cinzas!
– E te arrancarão a cabeça, de imediato, minha cara! – rebate Yaacov. – Pois é exactamente isso que querem de nós! Se lhes tirarmos o objecto do desejo, virar-se-ão contra nós com toda a sua fúria! Não te esqueças de que faz tempo que os padres andam a açular o povo para que se volte contra nós!58
– E crês, então, que tudo isso que nos diz, efectivamente, dar-se-á mui em breve? – pergunta Sara, com a voz embargada pelo pranto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 31, 2024 10:40 am

– Tão certo como esta luz que nos alumia, minha cara! – responde Yaacov. – Basta que o papa emita a bula, a criar a Inquisição neste reino! É tão-somente isso que aguardam, para iniciarem, abertamente, a perseguição contra nós! Bom que nos preparemos para o pior!
Fundo silêncio estabelece-se entre aquelas pessoas. De repente, o apetite pareceu arrefecer-lhes e, um a um, afastaram o prato que tinham diante de si. Sara Shlomo chorava baixinho. Então, de súbito, deu evasão à revolta que se avolumava dentro do seu peito e que veio a explodir qual violento furacão.
– Malditos cúpidos! – grita ela, levantando-se da mesa. – Não têm coragem de ganhar o dinheiro próprio, com o suor do rosto, e vêm, então, como aves de rapina, tomar o que não lhes pertence!...– e a erguer os braços, brada, a olhar para o céu: – Oh, desgraçados, que tirais o pão e a paz dos corações dos justos!...
Que sobre vós recaia toda a ira de Yavé e, em Seu nome, eu vos amaldiçoo!
– Acalma-te, querida! – diz Yaacov, levantando-se e, tomando-a aos braços, continua: – Acalma-te, meu bem, pois Yavé não nos desamparará! Se aqui nos perseguem, em outro lugar, haveremos de encontrar repouso em terra abençoada! Não foi assim com os nossos pais? Moshe livrou-os da escravidão no Egipto e, acaso, não os conduziu sãos e salvos à Terra da Promissão? Por quarenta anos, vagaram pelo deserto, a sofrerem a provação extrema, mas o Altíssimo não cumpriu a promessa de libertá-los? Tem fé, minha querida, pois nosso Pai não nos desamparará! Tem confiança!...
– Oh, Yaacov, gostaria que a minha fé fosse assim tão forte e tão verdadeira quanto a tua! – diz a mulher, deixando-se abater. – Mas já envelheço e não terei mais forças para reconstruir tudo outra vez!
A velhice bate-me à porta, e sei que não terei ânimo para novamente juntar tudo o que de mim, certamente, mui em breve, roubarão!
– Oh, já temos o suficiente para uma velhice sossegada e tranquila! – rebate Yaacov, procurando tranquilizá-la. – Nossos filhos já estão criados, e o nosso ouro que amealhamos por todos esses anos ninguém de nós tomará, eu te juro!
– Escondeste, então, muito bem o nosso ouro, Yaacov? – pergunta Sara, a mostrar-se extremamente preocupada.
– Sim – responde ele –, em lugar onde ninguém suspeitará encontrar-se, meu bem! Fica tranquila!
– E se morreres, Yaacov? – pergunta ela, preocupada. – Como o encontraremos nós?
– Eu te revelarei o esconderijo, não te preocupes – diz ele. – Por ora é bom que ninguém mais saiba, pois, se eventualmente nos apanharem, nenhum de vós poderá revelar-lhes o esconderijo, mesmo sob tortura!
– Mas e se te apanham? Acaso não lhes revelarás o esconderijo do nosso ouro?– Não, minha cara! – rebate ele. – Mesmo que me esfolem vivo, eu lhes direi onde se encontra a nossa fortuna! E fica sossegada, que tenho como revelar somente a ti o segredo. Escreverei uma carta de amor a ti e nela, como costumeiramente fazem os da nossa raça, deixarei oculta, sub-repticiamente, uma mensagem com as pistas sobre o paradeiro do nosso ouro.
– Um códex?59
– Sim, um códex – explica ele. – Já o tenho pronto e vou colocá-lo em tuas mãos. Assim, ninguém neste mundo, a não ser tu e eu, saberá onde ocultei a nossa fortuna!
– Bem pensado, meu bem! – exclama Sara, desanuviando as feições. – Quero ver qual será o desgraçado que meterá as mãos no nosso ouro que nos custou tantos anos de suor e de economias!
– Agora só me preocupa o destino dos nossos filhos – prossegue Yaacov. E se voltando para a filha mais velha: – E tu, Milagros, que diz o teu noivo sobre o vosso casamento?
– Andrés deseja unir-se comigo em matrimónio o mais breve possível, papai – responde a moça. – Só não sei o que o impede de isso fazer, de imediato.
– Falarei com Ben Hanan, o pai do teu noivo. Presumo que seja ele a impedir que as bodas se realizem logo. E lhe entendo as preocupações. No fundo, ele tem medo de que as perseguições precipitem-se e não ter o filho ao lado, a dar-lhe apoio. Todos nós andamos com esse fantasma a assombrar-nos os dias e as noites!
– Nada deixou ele transparecer sobre isso, papai, mas se assim entendes...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 31, 2024 10:41 am

– Tenho a absoluta certeza de que é isso, minha filha – diz Yaacov. – Mas vou procurar Ben Hanan e tranquilizá-lo sobre essa questão: se é medo de perder a protecção do filho, nada vos custará morardes em casa do sogro, não é mesmo?
– Sujeitar-me-ei a qualquer condição para juntar-me ao meu adorado Andrés, papai! – exclama a moça. – Para ser feliz, moraria até numa tenda, no deserto!
– Oh, não chegarás a tanto, Milagros! – intromete-se a mãe na conversa. – Teu noivo é bastante rico, a ponto de dar-te uma vida de rainha, num palácio!– Andrés já mora num palácio, mamãe! – observa Benyamin, também entrando na conversa. – Esqueces o quanto o solar de Ben Hanan é grande e luxuoso?
– Não, não esqueci! – responde Sara. – Naquela imensidão de quartos e salões, moraríamos nós e eles com todo o conforto, e ainda sobraria espaço para, com muita folga, ainda aquartelar toda uma legião!
– Lá morarias, mamãe? – pergunta Consuelo, a filha do meio, a entrar na conversa.
– Bastaria que Ben Hanan me convidasse! – responde Sara, ligeira.
– Oh, deixa disso, mulher! – exclama Yaacov. – Tu já tens uma casa bastante grande e confortável!
– Mas não é um palácio! – rebate ela. – Nunca morei num palácio e não sei como é isso!
– Garanto-te de que não haveria muita diferença, minha cara! – diz o homem. – Tu já tens uma vida de rainha! E, além do mais, Ben Hanan é alto funcionário do governo de Sua Majestade; por isso é que vive num palácio!
– E achas que não corre ele o risco de perder tudo, se, efectivamente, deflagrar-se nova perseguição? – pergunta Sara.
– Sim, ele corre esse risco – responde Yaacov. – Perderá todas as honras e a fortuna pessoal, se começarem nova perseguição contra nós. E isso, afectivamente, ainda não começou, às claras, porque o papa demora-se em permitir a volta da Inquisição ao reino. – Então Milagros correrá sério risco, se isso acontecer!
– Com certeza, ninguém escapará – afirma Yaacov. – Não só Milagros, seu esposo e seu pai como nós também – e depois de curto silêncio: – Estamos todos no mesmo barco, minha cara! Não há para onde correr! E acho que, sob a forte pressão que os nossos soberanos andam a fazer sobre o papa, mui em breve, ele a concederá.
– E se emigrarmos antes? – pergunta Benyamin. – Muitos estão fugindo para Portugal.
– Sim – responde Yaacov. – Desde 1478, com a instauração do Tribunal em Sevilha, com muito medo, uma porção de nossos patrícios, à época, fugiu para Portugal, onde a tolerância aos de nossa raça é mais branda que aqui, em Castela. Mas a que preço?... Deixaram para trás tudo o que tinham e para lá rumaram com as mãos abanando!
– Então, com o Tribunal voltando, desta vez, também para Toledo, estaremos perdidos, papai! – diz o jovem Benyamin. – Que rumo achas que deveremos tomar?
– Por muito tempo, não me senti suficientemente acossado, para ter de fugir desse modo, como baratas afrontadas no ninho! Sempre considerei que muitos dos que deixaram Castela desesperaram-se por pouca coisa. Por toda a minha vida, tenho pensado que o reino precisa de nós e que se sentiria desfalcado em muitos pontos, se todos os judeus, de repente, resolvessem emigrar. Acaso a maioria dos médicos e cirurgiões não são judeus?60 Quem entende mais do preparo dos remédios que nós? E a fundição, a ourivesaria, a marcenaria, a carpintaria, a cantaria, a cerâmica, a escrituração?
Quem nos supera nessas profissões? Ninguém! Entretanto, enganei-me!
– E como se arranjarão os castelhanos quanto a isso? Na verdade, já se acostumaram com os nossos préstimos e, se nos expulsarem, quem lhes prestará tais serviços? – observa Benyamin.
– Acho que se virarão sem nós, meu caro! – responde Yaacov, com fundo desalento. – Tu te esqueces de que, no século passado, milhares e milhares de judeus foram massacrados, e a maior parte deles vivia exactamente aqui, em Toledo.61 Sem esse contingente de excelentes prestadores de serviço que, de repente, desaparecia, a realidade do dia-a-dia apresentou-se desastrosa ao povo castelhano; aos poucos, entretanto, as coisas ajeitaram-se, e tu verás que ninguém é indispensável neste mundo. Imbecil aquele que se considera insubstituível, pois sempre haverá alguém a tomar-lhe o posto; não fora assim, e o mundo pararia, facto que não acontece: a máquina da vida continuará a girar, a despeito de qualquer um de nós!
– Mas a Inquisição que tanto tememos ainda não se instaurou, efectivamente, entre nós, papai! – observa o jovem. – Por que tanto medo, então?
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