LUZ ESPÍRITA
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 8 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 8:17 pm

− Uma pessoa, sendo judia e ter sido baptizada segundo os cânones católicos não é condição para que seja considerada, efectivamente, cristã! – intervém D. Torquemada ao interrogatório, cheio de ironias à voz. – A grande maioria dos judeus baptizados continuam suas práticas religiosas pagãs à sorrelfa!... E quem poderá afiançar-nos de que também não sejas dada a tais costumes?
− Posso garantir-vos de que sou cristã! – insiste Maria de los Milagros. – Vou sempre à igreja, confesso meus pecados ao padre e recebo a comunhão, todos os domingos, conforme bem o podereis confirmar com o pároco de São Bartolomeu!207
− Fica certa de que iremos confirmar tudo o que disseres neste Tribunal, mocinha! – adverte o fiscal. E prossegue: − Que não passas de deslavada marrana, é justo e certo; entretanto, o que pesa sobre a tua cabeça é outro crime: és acusada pela vítima, D. Aníbal Velásquez, de tentativa de homicídio!
− Não intentei matar aquele miserável, conforme dizeis, Senhor!
– rebate a jovem judia. – Apenas procurei defender-me de ignóbeis propósitos que o maldito padre tinha sobre mim! Nada, além disso, posso jurar-vos!− Ah, queres jurar, é?... E teres acrescida ao teu processo mais uma grave acusação, a de perjúrio?
− Não sou perjura! – rebate Milagros, firme. – Se vos afirmo que aquele um tentou violentar-me, é porque é verdade!
− Como ousas acusar um honorável prelado da Santa Igreja de intentar violentar-te, desgraçada? – grita D. Torquemada, furibundo.
E, levantando-se, aplica formidável tapa ao rosto da jovem.
− Feristes-me, cruelmente, o rosto, mas o que vos disse é verdade! – reafirma Milagros, a massagear a face com a mão, pois a pele da cútis magoada pelo sopapo que, violentamente, aplicara-lhe D. Torquemada, queimava como fogo.
O chefe da Inquisição volta a sentar-se atrás da sua secretária e faz um sinal para que o fiscal prosseguisse.
− Consta na denúncia que fugiste, juntamente com o teu amante, para o estrangeiro, dificultando a tua prisão como ré dessa infamante acusação! Que tens a dizer sobre isso? – pergunta Gabriel Sánchez.
− Sim, fugimos para Portugal, eu, meu noivo e meu irmão! Como poderíamos permanecer em Toledo, se pesava sobre mim essa falsa acusação de ter atacado aquele covarde miserável que me queria desgraçar?
− Se nada devias, por que não te apresentaste à Justiça?
− Para quê? – responde ela, com ironia à voz. – Para ser logo presa e, quiçá, já ter sido enforcada?
− Desse modo, cretina, lesa-nos a todos, pois, decididamente, assim não agem os impolutos juízes da nossa Corte de Justiça! – novamente intervém D. Torquemada, assaz ofendido. – Vejo que tens excelente língua para caluniar!... – e, voltando-se para o fiscal, ordena: − Prossegui com o interrogatório, D. Sánchez!
− Com que propósito invadiste a residência do nobilíssimo D. Velásquez? − pergunta o fiscal.
− Acaso desejavas com ele fornicar? – atalha D. Torquemada, a rir-se, cheio de deboche.
− Não sou uma vadia, como pretendeis, Senhor! – responde Maria de los Milagros, com as faces a ruborizarem-se num misto de ódio e de pudor.− Ah, não? – prossegue o inquisidor, cheio de cinismo à voz. – Se não foi esse o teu intento, que pretenderia uma mulher jovem e solteira, ao invadir a casa dum homem?
− Não invadi a casa de quem quer que seja! – responde Milagros, cheia de revolta. – Fui, sim, sequestrada, covardemente, juntamente com a minha pobre irmã, quando nos achávamos na catedral, à espera do confessor!
− Ah, iríeis confessar? – observa D. Torquemada. – Certamente vos acháveis cheias de pecados, não? – e depois de alguns minutos de silêncio, enquanto folheava, lentamente, as páginas do processo, a fingir que o lia, prossegue: − Entretanto, mentes, deslavadamente, porque nestas páginas nada consta que fostes levadas à força da catedral!
− Fomos, sim, minha pobre irmã e eu, truculentamente dominadas e levadas à força, da catedral, e, por carro, fomos conduzidas à casa de campo daquele miserável! E quem comandava tudo era o vil mordomo daquele um!
− Engraçado!... – ri-se o inquisidor. E voltando-se para o fiscal, exclama: – Nada disso consta por aqui!... – e, a mostrar-se profundamente indignado, prossegue: − Assim podemos concluir o quanto essa marrana é mentirosa e falsa!
− Não sou mentirosa! – grita Milagros. – Além do mais, o maldito mandou assassinar a minha irmãzinha, que foi covardemente atirada do alto do precipício, a despedaçar-se toda, lá embaixo, nas pedras!
− Oh, mas que grave acusação fazes! – exclama D. Torquemada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 8:18 pm

− E que prova tens a apresentar-nos sobre esse facto?
− Minha irmã apareceu-me, depois de morta, a revelar-me o que lhe tinha sucedido, depois que fomos separadas, pois nos achávamos, até então, presas juntas, reféns daquele maldito!
− Ouviste que descalabro ela acaba de dizer, D. Sánchez? – observa D. Torquemada, voltando-se para o fiscal, a mostrar-se extremamente estupefacto. Depois, inquire Milagros: – Acaso és, também, dada a práticas de bruxaria?
− Não!... – responde Milagros, apressadamente, ao perceber que havia dito algo que, decididamente, não deveria. Um arrepio perpassa-lhe, então, a coluna, de alto a baixo, pois sabia muito bem o que se reservava aos acusados de prática de bruxaria! E tenta corrigir o erro: – Não quis dizer isso!
− Ah, não? – ironiza o fiscal. – Que nome dás, então, aos que evocam os mortos?
− Não evoquei mortos, Senhor! – diz a jovem, agora, a mostrar-se cheia de medo. – Ouvistes mal!
− Ah, além do mais, tem-nos à conta de surdos?! – atalha D. Torquemada, pondo-se altamente furioso. – Ouvimos muito bem o que disseste, mocinha: falaste com a tua irmã morta!
− Não!... Entendestes, mal! – Milagros tenta corrigir a grave falta que cometera. – Minha irmã pareceu-me, assim, do nada, a contar-me o que lhe havia feito o mordomo daquele maldito!
− Do nada?!... – ri-se D. Gabriel Sánchez, zombeteiro. Depois, pergunta, na tentativa de induzi-la a contradições: − E o que havia feito à tua irmã o mordomo de D. Velásquez?
− O infame mordomo livrara-se de Consuelo, a mando de D. Velásquez, lançando-a do alto do desfiladeiro! – explica Milagros: − Assim mo revelou ela, depois de morta!...
− Ah, então reafirmas que evocaste a tua irmã morta! – exclama o fiscal, cheio de si. E se voltando para D. Torquemada, conclui: − A mim já me convenceu: além de homicida traiçoeira e vil, ainda é uma bruxa maldita!
− Também eu já me acho convencido! – diz D. Torquemada. – A desgraçada marrana é culpada e ré de morte!
− Destarte, referendo a confissão! – conclui D. Gabriel Sánchez.
– Atentai bem, senhores notários, e assentai aos escritos: a marrana Maria de los Milagros Shlomo é ré confessa de tentativa de homicídio contra Sua Excelência, D. Aníbal Velásquez, além de práticas judaizantes e de bruxaria, por evocação dos mortos!
− Não!... – geme Maria de los Milagros, pois entendera muito bem o que disseram os inquisidores a seu respeito. E implora: − Por piedade!... Não, não podeis fazer isso comigo!... Eu sou inocente do que me acusam!...
Entrementes, D. Torquemada, impassível diante dos rogos da jovem judia, faz sinal aos esbirros que, perfilados à porta do salão, montavam guarda e lhes ordena:
− Levai a prisioneira e a devolvei aos calabouços!
Maria de los Milagros, diante de situação tão desesperadora, não suportou e tombou, pesadamente, ao chão, sem sentidos.
___________________________________________________________________________________________________________
201. “É certo que os Espíritos podem tornar-se visíveis e tangíveis aos animais e, muitas vezes, o terror súbito que eles denotam, sem que lhe percebais a causa, é determinado pela visão de um ou de muitos Espíritos, mal-intencionados com relação aos indivíduos presentes, ou com relação aos donos dos animais. Ainda com mais frequência vedes cavalos que se negam a avançar ou a recuar, ou que empinam diante de um obstáculo imaginário.” Trecho de uma comunicação dada pelo Espírito Erasto, em seguida a uma discussão, que se travara, sobre o assunto, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, e contido no capítulo XXII, item 236, de O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec, edição da Federação Espírita Brasileira.
202. “− Obrigado a ti, Deus, por tudo!”, em hebraico.
203. “− Assim seja!”, em hebraico.
204. Eram notários do Tribunal de Toledo: Martín Pérez, Juan de León e Antón González.
205. Os passos do julgamento de um condenado pelo Tribunal da Inquisição eram: a demanda e a acusação do fiscal; as confissões do réu apresentadas pelo fiscal em contraprova; as testemunhas de acusação apresentadas pelo fiscal; o veredicto do jurado; a publicação dos testemunhos; reparos, defesas, tormento e última confissão do réu; relação dos testemunhos contra o réu e finalização do processo e o auto-de-fé.
206. Gabriel Sánchez, fiscal do Tribunal em La Guardia.
207. Referência à igreja de São Bartolomeu, erigida em Toledo, por volta de 1145.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 8:18 pm

Capítulo XXV. Novas acusações
Quando Milagros despertou, já se fazia noite. O estômago enjoava-se-lhe sobremodo e sentia fortes dores à cabeça. De imediato, não atinou com o que se passava com ela, mas, aos poucos, vêm-lhe à lembrança os fatos daquele dia: o interrogatório deixara-a completamente arrasada, pois os inquisidores haviam conseguido complicar-lhe a situação um pouco mais, e então, um calafrio percorre-lhe a espinha, de alto a baixo. Deus do céu!... Iria morrer, certamente, na fogueira!... Em pouco, os seus olhos foram acomodando-se à escuridão da cela e, então, conseguiu divisar os rostos preocupadíssimos do pai, do irmão, de Andrés e de Ben Hanan.
− Oh, minha filhinha! – diz Yaacov, tomando-a aos braços. – Que fizeram contigo aqueles demónios?
− Pai!... – geme ela, com a voz fraca. – Eles conseguiram
enredar-me, ainda mais...
− Como fizeram isso? – pergunta Andrés, tomando-lhe as mãos entre as suas.
− Agora pesa sobre mim também a acusação de feitiçaria! − responde Milagros, com a voz embargada pelo pranto.
− O quê?! – exclama Yaacov. – De onde tiraram esse despautério?
− A meio do interrogatório, confundi-me e lhes contei sobre a aparição de Consuelo...
− Oh, Milagros, não deverias jamais ter dito tal coisa! – diz Andrés, a pôr-se altamente preocupado. – Não sabias que isso poderá mandar-te à fogueira?− Sabia, sim, meu querido, mas não havia como me mostrar inocente, se não relatasse tal facto!
− Que eles, covardemente, usaram para acusar-te de feitiçaria, não é? – observa Yaacov, cheio de revolta.
− São uns demónios! – diz Ben Hanan, indignadíssimo. − Mostraram-se verdadeiros lobos rapaces, a lançarem-se sobre uma criança inocente!
− E agora que faremos? – pergunta Milagros, a tomar-se de terror intenso. – Eu não quero morrer queimada!
− Oh, não morrerás na fogueira infamante, não, meu anjo! – exclama Yaacov, a acarinhar, ternamente, os cabelos maltratados da filha.
− Aqui estamos a proteger-te, meu amor! – diz Andrés, a tomar as mãos da noiva entre as suas.
Os três jovens juntam-se e, acomodando-se, buscam dormir, pois a tensão do dia fê-los esgotarem-se enormemente.
− Entretanto, é preciso que se tome uma providência, Yaacov! – diz Ben Hanan, em voz baixíssima, para não perturbar o descanso dos três jovens que já ressonavam profundamente. E, a revelar-se preocupadíssimo com a situação da pobre Milagros, prossegue: − Não podemos ficar, assim, impassíveis diante de tanta injustiça, e a tua esposa Sara é a nossa única esperança!
− Sim, meu bom amigo! – diz Yaacov. – Doravante, Sara será a nossa derradeira esperança, pois é a única que ainda goza de liberdade e que poderá ajudar-nos! Mas, sinto-me extremamente abalado! Na verdade, nada sei sobre os destinos da minha pobre esposa, a sós, neste mundo!... – e, acocorando-se, põe-se a chorar e a lastimar-se: − Não sei se conseguirei suportar essa situação por muito tempo!
− Vem, Yaacov, acalma-te! – exclama Ben Hanan, abraçando-se, ternamente, ao amigo e, procurando consolá-lo, convida gentil: – Vem, acomodemo-nos e tentemos dormir. Amanhã, certamente, Sara aqui estará acompanhada dum advogado.
− Que Yavé santíssimo ouça as tuas palavras, Ben! Se Sara aqui não aparecer, acho que enlouquecerei!− Tem fé, meu amigo! – diz Ben Hanan. – Procuremos imitar os nossos filhos: veja como já dormem profundamente!
− Ah, a juventude! – exclama Yaacov, a olhar, candidamente, para os dois rapazes e para a filhinha adorada que, abraçados, ressonavam tranquilos. – Nada, mesmo, consegue tirar-lhes o sono!
− Sequer imaginam o perigo que corremos todos à unha dos inquisidores! – observa Ben Hanan. E depois de emitir fundo suspiro, prossegue em desabafo: − Sempre fui fiel à Sua Majestade, a rainha; gozei de prestígio no governo, a ocupar cargo de relevância, entretanto a que me vejo resumido? A um reles prisioneiro das masmorras do Tribunal da Inquisição, juntamente com o meu filho amado!
− Mas ainda deténs a tua fortuna! – exclama Yaacov. – Onde está o teu mordomo que não te vem resgatar?
− O meu mordomo? – pergunta Ben Hanan, com um sorriso amargo aos lábios. – Desde que ele soube da minha desgraça junto à rainha, tenho a certeza absoluta de que já limpou o meu cofre e, por este momento, já haverá ganhado o mundo! E, além do mais, deverá ter vendido todas as vindimas das minhas propriedades, bem como os meus animais todos e embolsado tudo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 8:18 pm

− Como é que podes ter tanta certeza de que ele haverá feito isso? Não te foi sempre fiel e honesto? – pergunta Yaacov.
− Quanto queres apostar que ele fez exactamente tudo isso que te afirmei há pouco? Se, realmente, ainda estivesse sob meu comando, não teria ele já virado o mundo todo à minha procura?...
No entanto, quanto tempo faz que aqui estamos presos, praticamente incomunicáveis, e nem a sombra do meu mordomo por cá apareceu!... – e a fazer um gesto inane com as mãos, prossegue: − As notícias correm, meu caro...
− Pensando por esse lado... – diz Yaacov.
− Além disso, meu mordomo sabe muito bem que não tenho nenhum parente mais, neste mundo, a não ser o meu filho, e isso lhe facilitaria, enormemente, apoderar-se de tudo o que tenho e não lhe custaria nada subornar os guardas para que me relegassem bem mais à deriva, sem ninguém a vir socorrer-me! − E os amigos? – pergunta Yaacov. – Onde é que estão os teus amigos?
− Amigos, Yaacov? – retruca Ben Hanan, com um sorriso muito triste aos lábios. – Amigo, mesmo, só tenho a ti; os demais, por serem também judeus, certamente, achar-se-ão enroscados com alguma denúncia infame, pois todos eles também eram ricos... E ouro é o que, primeiramente, interessa aos reis e aos senhores inquisidores, pelo lado da Igreja!...
− Crês, mesmo, que seremos todos mortos? – pergunta Yaacov, com um nó na garganta.
− Ainda tens alguma dúvida, meu bom Yaacov? – responde o antigo secretário da rainha de Castela. – Hoje consigo depreender, muito bem, o porquê de tanto empenho de Suas Majestades junto ao papa, para conseguirem reinstaurar o Tribunal em terras castelhanas: a limpeza de sangre e os excelentes benefícios que dela, certamente, provirão!
− E quais seriam esses grandes proveitos tão anelados pelos reis? – pergunta Yaacov.
− Caro Yaacov, os planos dos reis castelhanos casam-se muito bem com os da Igreja, pois não te esqueças de que os padres sempre nos detestaram e, por todo o tempo, vêm pregando contra nós, em todas as paróquias da Espanha! E, até então, os papas, embora contrariando a vontade da maioria do clero, sempre nos deram a mão, intervindo, providencialmente, quando a ganância dos monarcas tentava abater-se sobre o nosso ouro, e nos livraram, quase sempre, dos massacres covardes pelos quais o nosso povo vem sofrendo ao desfilar dos séculos!
− Mas nem todos os papas estiveram do nosso lado; alguns até fomentaram perseguições contra nós! – rebate Yaacov.
− Sei disso, Yaacov! – responde Ben Hanan. – Mas o papa Sixto, conforme bem o sabes, mantém severa vigilância sobre o Tribunal de Toledo, haja vista o que já aconteceu em Sevilha!
− Sim, sei! – diz Yaacov. – Conheço muito bem os desmandos e assassinatos que o Tribunal cometeu por lá! E crês, firmemente, que voltarão a fazer o mesmo cá?− Tens alguma dúvida? – fala Ben Hanan. – O que me preocupa é que Sixto está velho e, transitando pelo palácio, não me escapava que os reis, desde algum tempo, vêm trabalhando para que um papa espanhol seja coroado!
− Deveras?! – espanta-se Yaacov. – E quem, precisamente, apontam para o cargo?
− Ao bispo de Valência, D. Rodrigo Borja208 − observa Ben Hanan.
− Yavé santíssimo! – exclama Yaacov. – Se vivos estivermos até que isso ocorra, ser-nos-á, então, dificílimo escapar às perseguições da Inquisição!
− Disseste-o bem, Yaacov: se vivos estivermos! – diz Ben Hanan com fundo suspiro.
− Mas, voltemos ao momento, Ben! – exclama Yaacov. – Crês, mesmo, que não escaparemos à sanha dos inquisidores?
− Não sei, meu amigo... – diz o outro, sem muito ânimo. – Deveríamos ter fugido antes, pois sabíamos muito bem que as coisas andavam a mudar...
− Mas quem poderia prever que seríamos presos assim de pronto? – observa Yaacov. – Não fosse aquele maldito padre ter deitado os olhos cúpidos sobre a minha Milagros, e ainda estaríamos soltos e a arrumar as nossas malas para a fuga!
− Sorte dos que ainda estão livres! – diz Ben Hanan. – E como os boatos espalham-se como fogo na palha seca, à esta hora, os mais espertos deverão já se achar a caminho, indo para bem longe das terras espanholas!
− Mas indo para onde? – pergunta Yaacov. – Não te esqueças de que eu e tu já havíamos cogitado sobre para onde fugiríamos, se a perseguição, de facto, se efectivasse!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 8:19 pm

− Portugal, meu velho!... Portugal seria a nossa salvação! – diz Ben Hanan. – Não desconheces que o rei português anda a tolerar os judeus por lá!
− Em troca de dinheiro, claro! – observa Yaacov. – Sabes muito bem que os poucos que para lá já fugiram têm de pagar um tributo à coroa portuguesa pelo asilo209.− Trouxas é o que somos eu e tu! – diz Ben Hanan. – Tínhamos fortuna razoável, o que nos teria permitido levar por lá uma vida igual ou melhor da que aqui levávamos!
− Por que dizes que tínhamos uma fortuna? – pergunta Yaacov.
– Acaso não te precaveste contra os desarranjos do destino, salvaguardando uma boa porção dos teus bens?
− Não tive tempo... – responde Ben Hanan. E corrige: − Aliás, no fundo, não acreditava que sofreríamos perseguição assim tão covardemente!
− Eu, entretanto, de minha parte, consegui esconder – e muitíssimo bem escondida! – bem mais que a metade da minha fortuna, em lugar completamente ignorado!
− Mas se somente tu sabes o paradeiro do teu ouro e estando cá preso, como é que farás para recuperá-lo? – observa Ben Hanan.
− Deixei sob a guarda de Sara um códex com linguagem cifrada!
– explica o ourives, com um sorriso pleno de satisfação! – Ela saberá como interpretá-lo e ter acesso ao ouro!
− Mas, como farás para ter contacto com Sara?... Sabes o quanto é-nos difícil mandar um recado para fora dos calabouços, a não ser corrompendo os carcereiros!... E que nos restou de valor em mãos?
− Fica tranquilo, que a minha adorada esposa dará um jeito! – diz Yaacov e se ri. – Se conhecesses Sara como eu conheço!...
− Assim espero, meu bom Yaacov!... Assim espero!... E, agora, é bom que durmamos um pouco.
O silêncio, então, toma conta do frio e escuro cárcere dos subterrâneos do Tribunal da Inquisição de Toledo.
Mal amanheceu o dia subsequente ao interrogatório de Maria de los Milagros, Sara já se encontrava de pé, a fazer as orações da manhã. E, depois de tomar frugal refeição, chama pelo criado:
− Yitzhak!... Yitzhak!... Onde te meteste?
− Cá estou, Senhora! – aparece o rapazito todo esbaforido. – Andava a varrer as folhas secas no pátio...
− Deixa lá as folhas secas e vai em busca do rabino Mordechai Hagiz e não retornes sem ele, ou te haverás comigo!
Yitzhak Dayan sai a correr, e Sara, aflitíssima, põe-se a torcer as mãos, premida pela ansiedade que a consumia, fazia, já, alguns dias, desde que o marido também fora preso, juntamente com os filhos.
Depois de algum tempo, o criado volta em companhia do velho rabino.
− Querida Sara... – diz o homem, a abraçar, respeitosamente, a esposa de Yaacov Shlomo. – Alguma novidade sobre os teus?
− Nenhuma, Senhor Hagiz! – diz a mulher, a enxugar com a ponta dos dedos uma lágrima que lhe rolara face abaixo. – Ando a desesperar-me!...
− Já tentei, por diversos meios, conseguir algum contacto com os teus parentes, mas, infelizmente, todas as portas fecham-se aos da nossa raça. O desespero toma conta de todas as famílias judaicas, e ando eu ocupadíssimo em atender a todos os chamados que me fazem! Mas, infelizmente, quase nada posso fazer!... Também eu me acho tolhido pelos pés e mãos!
− De antemão agradeço-te, Senhor Hagiz, pelo empenho, mas é preciso agir! – e tirando de sob as vestes pequena caixa de madeira branca, exibe-a ao rabino: − Vês, é um códex que descreve o local onde meu querido Yaacov ocultou grande parte do nosso ouro e, resgatando-o, conto com o teu auxílio, a empregá-lo para libertar os meus queridos!
− E o usarás para corromper os do Tribunal? – pergunta o rabino, a fixar, firmemente, os olhos nos da sua interlocutora.
− Sim, Senhor Hagiz! – confirma ela. – E posso garantir-te de que se trata de fabulosa fortuna, a comprar, com bastante folga, a liberdade dos meus queridos!
− Não sei, Sara... – diz o rabino, reticente. – É preciso ir devagar com essa gente! O melhor é consultarmos, antes, um bom advogado, a indicar-nos, com mais segurança, os trâmites a seguirmos!
− Por que pensas assim? – contesta Sara. – Acaso o ouro vivo não costuma comprar consciências e chaves de prisões?
− Sim, o ouro costuma comprar a maioria das consciências e as chaves de qualquer porta, neste mundo! – responde o rabino. – No entanto, reafirmo: com os do Tribunal, há que se ter muita cautela! − E por que seriam diferentes? – insiste a mulher. – Examina bem os palácios episcopais... Acaso os da Igreja não são os piores, a adorarem o luxo, acima de qualquer coisa?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 12:02 pm

− São... – responde o rabino, cabisbaixo, a coçar a barba branca e longa, com a ponta dos dedos. – Como quase todo o resto da humanidade também...
− Se te mostras assim reticente, em chegarmos tão-somente nós dois, acintosamente, com uma cascata de ouro, a açular-lhes o focinho cúpido, que busquemos, então, o auxílio de um bom advogado!
− Não conviria, de fato, Sara, que nós dois chegássemos sozinhos ao Tribunal e, abertamente, fôssemos negociar a soltura dos teus parentes em troca de ouro! – observa o rabino. − Creio que ambos acabaríamos presos, também, e penso que esse trâmite deveria ser conduzido por pessoa experiente nesse ramo! – e a coçar a calva brilhante do cocuruto, com a ponta dos dedos, prossegue: − Mas quem contrataríamos para tal mister?
− Não achas que deveria ser um de nosso povo? – pergunta Sara.
− Sim, esse seria o ideal – responde o rabino −, mas devo advertir-te de que a nossa gente, ultimamente, anda bem desacreditada pelos castelhanos... E seria até provável que os inquisidores sequer se dignassem a receber um advogado judeu!
− Oh, andamos assim tão por baixo no conceito dos castelhanos, é? – observa a mulher, a indignar-se enormemente. – Nem esse direito temos mais?
− É o que vem acontecendo pelos tempos mais recentes, minha cara! – diz o rabino. – Não é à toa que nos alcunharam de marranos...
− Marranos... – diz Sara, com fundo suspiro, cheio de desolação.
– Logo nós que tanto abominamos os porcos...
− Para veres o quanto andamos a valer para essa gente que tanto nos odeia!...
− Contudo, eu não me deixarei abater, mesmo assim! – exclama Sara, reacendendo o seu ânimo. – Que me chamem de marrana ou de qual bicho imundo mais desejarem, mas não me abaterei e lutarei até à morte, para livrar os meus queridos daquele cárcere infamante!
E, se não toleram um advogado judeu, contrataremos um castelhano, ou aragonês, ou valenciano, mas não deixarei de lutar!... Vamos, Senhor Hagiz, vamos à busca de alguém que possa servir aos nossos propósitos!
Sara ajeita o tichel à cabeça e saem ambos. Era preciso, urgentemente, tomar uma posição acerca do aprisionamento dos seus familiares, e era o que ela, naquele momento, decidira fazer, sem mais delongas.
Nesse entretempo, no palácio arquiepiscopal, D. Aníbal Velásquez recebia seu amigo D. Fernán Guillén e ambos mantinham importante diálogo à meia voz.
− Bom que aqui vieste hoje, D. Fernán, pois por cá esteve, de passagem, ainda ontem à noite, D. Juan de León, um dos notários do Tribunal, e me relatou sobre os andamentos do processo a envolver Maria de los Milagros!
− Deveras? – exclama D. Fernán, a iluminar-se sobremaneira. – E a quantas anda o processo?
− Contou-me ele que, ontem, logo de manhã, inquiriram-na em segunda vez! – explica D. Aníbal. E a mostrar-se assaz preocupado:
– Entretanto, algo novo surgiu no caso, D. Fernán, e que anda, desde então, a deixar-me bastante aborrecido!
− E o qual é a novidade? – pergunta o outro.
− Contou-me o notário que, durante o interrogatório, Milagros deixou escapar que mantém contacto com a irmã morta!
− Mas que azar! – exclama D. Fernán. – Isso é, deveras, gravíssimo! Sabias que, depois disso, ela passará, também, a ser ré de bruxaria?
− Sei... – responde o outro. – E sei também que, com mais essa grave acusação, poderá tornar-se mais difícil pleitearmos a sua libertação junto ao Tribunal!
− Corrijo-te: diante de D. Tomás de Torquemada! – exclama D. Fernán. – Acho que podes imaginar o quanto ele é intolerante para com tais denúncias!
− Acrescentaria mais: D. Tomás reaviva-se, quanto tem em mãos casos a envolverem a prática de bruxaria! Sei que ele chega a transtornar-se, a entrar em êxtase!
− E que razões apresentarás ao Tribunal para libertar a tua amada? – pergunta D. Guillén.
− Razões que tu me ajudarás a encontrar! – responde D. Aníbal, sério.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 8 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 12:02 pm

− Depois do que me revelaste sobre o caso, adianto-te de que não nos será nada fácil arrancarmos Milagros da sanha daquele um!
– e a menear a cabeça, comenta: − Vê só: a mocinha é dada a práticas de bruxaria!... Aliás, não seria de nos espantar, pois a maioria dos judeus é praticante de magia negra, como bem o sabes210!
− Infelizmente, as coisas tomaram outro rumo e começam a escapar-nos do controle, D. Fernán! – observa D. Aníbal, a mostrar-se bastante nervoso.
− E queres que eu dê um jeito nisso? – diz o outro, com laivos de cinismo à voz. – Melhor que a relegasses à própria sorte e achasses outra, a aquentar-te as noites hibernais! – e se ri debochado: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Poupa-me do sarcasmo, D. Fernán! – exclama D. Aníbal, furibundo, com os olhos a chisparem-se-lhe, cheios de ódio. E observa extremamente irado: − Outra?... Como outra?... Acaso já não percebeste que só Milagros interessa-me, e que não viverei sem ela? Afirmo-te, meu caro, de que não passo um só instante da minha vida, sem pensar nela, sem anelar o desejo intenso de tê-la, definitivamente, em meus braços!... Eu a amo, D. Fernán, e não serei capaz de viver sem ela!
− Oh, não percebi que te envolvias tanto assim com aquela jovem, meu amigo! – diz D. Fernán, agora se contendo e se fazendo sério e condoído pela patente exasperação do outro. – Achei que por ela nutrias fogosa paixão, tão-somente, e que o tempo se encarregaria de arrefecer, mas vejo que me enganei: tu te envolveste em demasia com Milagros, e isso anda a meter-te em fundo desespero! – e a mostrar-se bastante arrependido, diz: − Difficile est longum subito deponere amorem!211
− Assim se passa comigo, D. Fernán! – diz o outro, tentando conter o desequilíbrio que lhe invadira, completamente, o ser. – Minha vida, doravante, depende de Maria de los Milagros e, se não conseguirmos livrá-la das garras do Tribunal, estarei perdido!
− Em que pese a minha ajuda para livrá-la dessa enrascada, podes ter a minha palavra de honra de que tudo farei para ajudar-te nesta empreitada!
− Obrigado, meu amigo! – exclama D. Aníbal, abraçando-se ao outro e já um tantinho mais aliviado. – Com a tua prestimosa colaboração, as coisas, por certo, tornar-se-ão mais fáceis para mim.
− Mas terei de abrir mão da rapina do ouro desses judeus! – diz D. Fernán, mostrando-se, agora, bastante infeliz.
− Ora, deixa-te de cobiças desmedidas!... Tu já tens o suficiente para viveres, nababescamente, até o fim dos teus dias!
− Ouro nunca é demais, meu caro!... – responde o outro, a rir-se.– Inda mais que tenho a sustentar minhas mulheres e meus filhos!...
− É verdade! – concorda o outro. – Tens tantos filhos perdidos por este mundo que penso como é que consegues ter em conta todos eles!
− Para tanto, dá-se um jeito! – explica D. Fernán. – Além do mais, sabes que as mães sempre sabem quem são os seus filhos e, como eu conheço todas as mães, por extensão, tenho-lhes as crias todas sob total controlo!
− Ah, só tu mesmo, a teres tais ideias, D. Fernán! – exclama D. Aníbal a rir-se. E, depois de instantes: − Mas, não nos detenhamos em outros assuntos: como pretendes auxiliar-me com Milagros?
− Ainda não pensei, mas te prometo que, em breve, trar-te-ei uma solução – e, levantando-se, despede-se do amigo: − Agora, vou-me, e vê se te mantém mais tranquilo que, para tudo, nesta vida, dá-se um jeito! – e acena com a mão em despedida: − ¡Adios!...
D. Fernán Guillén vai-se, e D. Aníbal permanece sozinho em seu gabinete. Tentou desanuviar as ideias, mas não adiantava: a lembrança de Milagros não o deixava um só instante. Um forte aperto no coração fê-lo levar a mão ao peito. As palpitações eram tão intensas que lhe fizeram perder o ar.− Preciso ver Milagros... – murmura ele. – Não vou suportar nem mais um dia sem vê-la, pois a saudade corrói-me o coração!
Cambaleante, D. Aníbal encaminha-se até alto móvel fechado de madeira preta, escancara-lhe uma das portas e dali retira uma botelha de vinho e uma taça. Trémulo, destampa a garrafa, repleta a taça e a sorve, avidamente, em dois tragos tão-somente. Depois, com passos trôpegos, deixa o gabinete, devagar. Ia atrás de Gumersindo, pois precisava ver Milagros, urgentemente.
Neste entretempo, o rabino Mordechai Hagiz avistava-se com um amigo advogado, com o propósito de buscar auxílio para o caso de Yaacov Shlomo e sua família.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 8 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 12:02 pm

− Urge que me dês uma luz para esse caso, caro Moshe! − pede o rabino ao amigo advogado. – E sei que tu mesmo não poderás auxiliar-me, directamente, porque também és judeu! Mas, certamente, conhecerás outro advogado que seja espanhol e que possa auxiliar-nos!
− Sim, D. Hagiz – responde Moshe Navon −, conheço um excelente advogado valenciano que reside, actualmente, em Toledo.
Aliás, é figura proeminente no reino; talvez até já o conheças. Trata-se de D. Fernán Guillén.
− Fernán Guillén... Guillén... – repete o rabino, a puxar pela memória. – Esse nome não me é estranho, mas, no momento, não consigo atinar quem seja esse D. Fernán Guillén!... Mas se me dizes que o conheces bem...
− Sim, eu o conheço, desde algum tempo – responde Moshe Navon. – E, se assim o desejares, levo-te até ele, pois sei onde mora.
− Perfeito, meu caro Moshe! – exclama o rabino, a iluminar-se de contentamento. – E saibas que o meu amigo que se acha preso pelo Tribunal da Inquisição é rico e tem muito dinheiro a gastar!
− Se assim é, mais fácil tornam-se as coisas! – diz o advogado. – D. Fernán, pelo que sei, jamais recusou uma causa, mormente quando se tratam de figurões do reino!
Em pouco, os dois judeus batiam à porta de D. Fernán Guillén.
− A que devo a honra, caro Moshe? – diz D. Fernán Guillén, a cumprimentar, efusivamente, o conhecido.− Aqui temos o rabino D. Mordechai Hagiz, que necessita dos teus préstimos, caro Fernán! – exclama Moshe Navon, apresentando-lhe o amigo.
− De que se trata? – pergunta D. Fernán, depois de gentilmente acomodar os dois judeus em seu gabinete.
− Caro Senhor D. Guillén... – principia o rabino a narrar-lhe o caso de Yaacov e sua família.
E, à medida que Mordechai Hagiz ia-lhe narrando os fatos, os olhos de D. Fernán iluminavam-se, num misto de surpresa e extremo contentamento. Mal se segurava para não esfregar as mãos de tanta felicidade! E não é que a caça vinha, espontaneamente, enroscar-se à sua rede?...
Depois de, pacientemente, ouvir toda a narrativa da história que ele, afortunadamente, já conhecia de cor, nada deixou transparecer e disse:
− Senhor Hagiz, a inculpação dos vossos amigos é, deveras, muito grave, inda mais, com a agravante que envolve a jovem Maria de los Milagros, por prática de bruxaria. Sabeis muito bem que tal acusação, dificilmente, será anulada pelo Tribunal, uma vez que se trata de crime imperdoável pela Santa Madre Igreja! Se, efectivamente, for provado que a moça é uma bruxa, estará irremediavelmente perdida e será, inexoravelmente, queimada viva num auto-de-fé!
− Mas nada podereis fazer, efectivamente? – pergunta o rabino. – O Senhor Shlomo é muito rico e poderá recompensar-vos muitíssimo bem, se conseguirdes livrá-los todos da prisão!
− Eu não disse ser impossível a libertação dos vossos amigos, Sr. Hagiz! – observa D. Fernán. – Quero dizer-vos que se faz assaz difícil pô-los fora da prisão, em consequência da grave acusação que recai sobre a jovem Milagros! Entretanto, deveremos tentar e, antes de iniciarmos a defesa, devo advertir-vos de que meus honorários são altíssimos, além das custas naturais que processo desta monta costuma envolver. Então, se aceitardes as minhas condições...
− Aceitamos, Senhor Guillén! – apressa-se em responder o rabino. – Seja qual for o custo deste processo, dinheiro não será problema algum. Isso eu vos afianço!
− Então, estamos concordes, Senhor Hagiz! – diz D. Fernán, dando-lhe a mão a apertar. Depois, despede-se deles à porta da sua casa e, ao vê-los que se iam pela rua, abre fino sorriso de mofa aos lábios e murmura, a esfregar as mãos, de tanto contentamento: − Imbecis!... Vieram constituir ao lobo o guardião do aprisco! – e se ri, pleno de satisfação: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... – e depois, quando os dois judeus já haviam desaparecido pela rua, diz: − D. Aníbal nem vai acreditar, quando eu lhe contar!...
___________________________________________________________________________________________________________
208. Efectivamente, D. Rodrigo Borja (italianizado, depois, para Roderigo Borgia), à época, ainda bispo de Valência, era espanhol de nascimento e se tornou o papa Alexandre VI, eleito a 10 de agosto de 1492, por forte influência dos reis espanhóis, Fernando e Isabel.
209. A migração de judeus castelhanos para Portugal iniciou-se logo que o Tribunal Inquisitorial principiou as perseguições aos marranos e, a partir de 1492, famílias inteiras de judeus castelhanos exilaram-se em Portugal, mediante o pagamento de “dois dourados” per capita. O acordo assinado entre o governo e os judeus enfatizava que Portugal seria apenas uma estação temporária, devendo os exilados, mormente, tomar o rumo de São Tomé, possessão portuguesa em África.
210. Por esse tempo, em terras espanholas, era corrente o pensamento de que os judeus eram contumazes praticantes de bruxaria e que, para a realização de seus rituais macabros, raptavam crianças para delas extraírem o sangue e o coração, tanto que um dos processos mais rumorosos levado a termo pela Inquisição em Toledo foi o caso do Santo Niño de La Guardia. Santo Niño porque a criança pretensamente morta pelos judeus foi canonizada e tornou-se o Santo protector da vila de La Guardia, em Toledo. O processo inquisitorial teve como réu a Yuçé Franco, judeu que foi queimado em praça pública, em 16 de novembro de 1491.
211. “− É difícil esquecer, de repente, um longo amor!”, em latim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 12:02 pm

Capítulo XXVI. Tramas e trapaças
Mal o rabino e o advogado Moshe Navon partiram, D. Fernán Guillén apressou-se em levar a novidade a D. Aníbal Velásquez.
− Então dizes que os judeus te procuraram com o propósito de defenderes Milagros e seus parentes das garras do Tribunal? – pergunta o prelado, estupefacto com a notícia que o amigo lhe trazia.
– Mas que coincidência, não?
− Se não!... – responde o outro, contentíssimo. – Vê só como são as coisas desta vida!...
− E agora, o que farás? – quer saber D. Aníbal.
− Ainda não sei, de fato, e nada faria, sem antes vir cá ter contigo, D. Aníbal! – diz o advogado. – Agora, as coisas poderão afigurar-se de modo diferente!
− Para mim nada muda – observa D. Aníbal, directo. – Tu deverás, com ou sem o apoio dos judeus, achar um jeito de livrar Milagros dessa acusação!
− Estive a pensar, desde que aqui estive, ontem, e concluí que, se retirares a acusação que fizeste contra Milagros sobre a tentativa de homicídio, tu te desvincularás desse processo; entretanto, não nos será nada fácil desqualificar a acusação de prática de bruxaria que, infelizmente, persistirá! E não te esqueças de que ela mesma se enroscou toda, ao confessar espontaneamente!
− Não confessou nada, D. Fernán! – rebate D. Aníbal, furioso. – Eles a induziram, propositadamente, ao erro, e isso, a meu ver, é coacção! E te cabe, naturalmente, contestares tamanho desaire junto ao Tribunal!− É o que farei, oportunamente, D. Aníbal – responde o outro. – Mas, primeiro, deixa-me rapar todo o ouro dos judeus, pois essa se me afigurava a parte mais difícil dessa empreitada! – e se ri debochado: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Se vais ou não tomar o ouro aos judeus, é problema teu! – exclama D. Aníbal. – Eu me ponho fora disso!... Mas, em contrapartida, exijo que te empenhes ao máximo no propósito de libertares Milagros! E o quanto antes!...
− Faremos isso, D. Aníbal!... Não te apoquentes!... Agora, entretanto, deveremos passar no Tribunal, a avistar-nos com D. Tomás e retirarmos a queixa que fizeste contra Milagros, por tentativa de homicídio, e ainda, apresentar-me como defensor desse processo. E deveremos, também, enquanto para lá nos encaminharmos, inventar bom motivo que bem justifique a tua repentina mudança no intento de processares a moça.
− Diremos tão-somente que decidi, como bom servidor da Igreja, não levar avante tão ignominiosa intenção que teve a judiazinha de ferir-me, mortalmente, com uma faca! – diz D. Aníbal. – Simplesmente que perdoo a agressão recebida! – e a mostrar-se com propositado cinismo às feições: − Não crês que, em assim agindo, não crescerei ainda mais aos olhos do inquisidor-geral?...
Mostro-me, dessarte, um autêntico seguidor do Cristo!...
− Melhor que essa não acharemos, D. Aníbal! – responde D. Fernán, a rir-se. − Perfeito!... Experientia praestantior arte!212
− Além do mais, mal aguento esperar o momento de ver as feições do inquisidor-geral, ao saber que um dos mais proeminentes advogados de toda a Espanha ocupar-se-á da defesa da judiazinha!
– observa D. Aníbal Velásquez.
− Também eu, D. Aníbal!... – exclama D. Fernán, a rir-se. – Também eu!...
Em pouco, D. Aníbal e D. Fernán Guillén achavam-se diante de D. Tomás de Torquemada.
− Espanta-me, deveras, o facto de virdes retirar tão grave acusação sobre a tentativa de homicídio que sofrestes, D. Velásquez! – observa o inquisidor-geral, depois de ouvir, com bastante atenção, o inusitado pedido que lhe fazia D. Aníbal. − Reflecti muito sobre tal questão, D. Tomás, e cheguei à conclusão de que não mais estaria compensado de tamanha afronta que não devolver à assassina o perdão por esse nefando procedimento! Agindo dessa forma, posso garantir-vos, trouxe-me real alívio aos ardores de revolta tamanha que me abrasava a alma! – mente D. Aníbal.
− Oh, assim demonstrais possuir grande devoção, muitíssimo bem alicerçada nos ensinamentos do Cristo: a prática do perdão incondicional! – exclama D. Torquemada, com ênfase incomum à voz. – E vos felicito, intensamente, por tal procedimento!
− Senhor D. Torquemada − intervém D. Fernán Guillén –, aproveito a ocasião para apresentar-me como real defensor deste processo e, desde já, em vista do já exposto, solicito a libertação imediata da ré Maria de los Milagros Shlomo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 12:03 pm

− Como libertar a ré, D. Guillén?! – espanta-se D. Tomás. E mudando, drasticamente, o modo de agir, prossegue: – Acaso desconheceis que, além de tentar contra a vida de D. Velásquez, ela também é culpada de prática de bruxaria?
− Sim, sabemos, Senhor! – rebate o advogado. – Mas se se a desclassifica como culpada de tentativa de homicídio – fato que a induziu a relatar algo por acidente, conforme bem o sabeis – como se a poderemos manter como ré dum caso que, diante de Deus e dos homens, de fato, não existiu?
− Andais a chicanar, D. Guillén! – exclama D. Tomás, pondo-se sumamente exaltado. – Como o fato não existiu, se a judia confessou, neste Tribunal, a prática de bruxaria, conforme bem o podereis confirmar nos autos?
− Será que isso foi realmente o que aconteceu, D. Tomás? – prossegue o advogado, enfático. − Como podeis afirmar assim tão veementemente que uma acção sucedeu a outra que não existiu?... – e a botar forte tom de ironia à voz: − Como alguém em sã consciência poderia afirmar que colheu boa vindima, se não plantara as videiras antes?... Isso é irreal, D. Torquemada, e foge aos mínimos preceitos da razão ordinária!
− Oh, chicaneiro desgraçado! – grita o inquisidor-geral de Espanha, de punhos cerrados. – Quereis é confundir-nos a todos!− Data máxima venia213, Senhor – retruca D. Guillén, cheio de si −, bom que vos deis por convencido e aceiteis a evidência dos factos:
Maria de los Milagros Shlomo é inocente dos crimes que sobre ela recaem!
− Também assim penso, D. Tomás! – ajunta D. Aníbal Velásquez.
– A moça é inocente, e vede bem que sou o maior prejudicado nessa questão! Peço: dai-vos por convencido!
– Não me convencestes de nada! – rebate o inquisidor-geral, furibundo. E continua: − Na realidade, estou, cá, a inquirir-me qual seria a verdadeira razão de tamanho empenho de vossa parte, Senhores, pela libertação dessa judiazinha! − e pergunta altamente desconfiado: – Vamos lá, cavalheiros, sede sinceros diante desta Corte: que, efectivamente, esconde-se por trás disso tudo?
− Oh, nada além de questão meramente humanitária, Senhor! – apressa-se em responder D. Aníbal Velásquez. – Mais pelo encarecido pedido que me fez o pai da moçoila, D. Yaacov Shlomo, pessoal amigo, e, como bem o deveis saber, talvez o melhor ourives de toda a Península!
− Acaso não sabeis que D. Shlomo também se acha preso? – observa D. Tomás, a fitar, firme e propositadamente, os olhos de D. Aníbal. E, depois de confirmar, com sua experiente perspicácia, que o outro mentia, prossegue: − Para mim, o Senhor mente: há outra razão mais específica embutida nesse forte interesse pelos destinos dessa moça, e nos facilitaria, enormemente, os trabalhos, se dissésseis a verdade e fôsseis directo ao ponto!
− Repito-vos, D. Tomás – responde D. Aníbal −, nada há além do que vos relatei!
− E, então, Senhor, como ficamos? – pergunta D. Fernán, depois de alguns minutos de silêncio, durante o qual, percebeu-se que D. Torquemada pensava profundamente. – Nenhum motivo mais tendes a vosso favor para manterdes presa a nossa cliente e seus familiares!
− Como não?! – responde o inquisidor-geral, com as faces enrubescidas pelo ódio intenso. – Temos motivos, sim, muito pertinentes, aliás, para mantermos encarcerados todos esses malditos marranos! E reforço: a judiazinha é uma feiticeira confessa, e os demais membros da sua família, além do noivo e do seu pai, são réus, sim, por acobertarem uma assassina e, ainda, por tentativa de suborno de exemplar soldado da nossa guarda!
Portanto, baseando-nos no que consta dos autos desse processo, ninguém cujo nome nele estiver citado como réu será libertado!
− Apelaremos, então, para Sua Majestade, a rainha! – exclama D. Fernán. – A magnanimidade de D. Isabel, mormente para os injustiçados, é notadamente reconhecida!
− Podereis ir aonde bem o desejardes! – diz D. Torquemada. – Quem sabe a rainha não vos mandará prender por chicanice!...
D. Aníbal Velásquez e D. Fernán Guillén despedem-se de D. Torquemada, tautocronamente, com longa reverência, e deixam o salão de audiências do Tribunal.
D. Tomás de Torquemada segue-os com os olhos cheios de raiva; depois se vira para D. Juan de León, um dos notários do Tribunal, e lhe diz:
− Ouvistes bem, D. Juan? Os malditos chicaneiros, certamente, têm-me à conta de imbecil: como iria eu, em sã consciência, soltar uma marrana bruxa? – e a crispar os dedos da mão de tanto ódio: − Se ao menos conseguissem imaginar o quanto odeio bruxos e, principalmente, o quanto abomino esses marranos desgraçados!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 12:03 pm

Ardo-me de intenso desejo de vê-los todos a arderem numa pira descomunal, a iluminar o mundo! E me encho de tanto orgulho por Deus ter-me concedido a chance de engrandecê-Lo ainda mais e à Sua Santa Igreja, livrando a Espanha dessa escória maldita! – e a arregalar os olhos que se lhe iluminaram, inopinadamente, de estranha loucura: − Deus deu-me essa missão, D. Juan, e vou levá-la até o fim! − em seguida, o inquisidor-geral põe-se de joelhos, toma o rosário do bolso da batina e se põe a rezar, fervorosamente:
− Pater noster qui es in caelis...214
Já fora do Tribunal, D. Aníbal Velásquez e D. Fernán Guillén confabulavam:
− Pareceu-me que a tua ideia não se saiu lá muito bem, D. Fernán!... – resmunga D. Aníbal Velásquez, cheio de zangas. – Conseguiste tão-somente deixar D. Torquemada mais nervoso ainda!− Ora, tu te intimidaste com as bravatas daquele doido? – observa D. Fernán, cheio de si. – Aquele idiota poderá até entender muito de Direito Canónico, mas dos meandros e falcatruas que permeiam todos os desvãos deste mundo de Deus, nada entende!
− Será que não? – questiona D. Aníbal. – A meu ver, acho que andas a subestimá-lo! Não terá sido à toa que ele se tornou o confessor da rainha!
− Pois acho que tu é que andas a dar-lhe muita papa ao bico!
Aquele imbecil só enxerga três coisas à frente da sua gorda fuça:
judeus marranos, mouriscos e bruxos!... Nada, além disso!
− Pode ser que tenhas razão! – diz D. Aníbal. E mudando de assunto: − E o que faremos agora? Achas que deveremos, mesmo, apelar para a rainha?
− Oh, não! – responde D. Fernán. – Jamais faremos isso, mesmo porque a rainha está metida nisso até às orelhas! Será pura perda de tempo!... Faremos algo melhor: com parte do ouro dos marranos, vamos corromper o chefe da guarda do Tribunal; a outra parte ficará comigo, como pagamento pelos meus honorários!
− Como?... E tu te esqueces de que parte da família de Maria de los Milagros, mais o noivo dela e o pai acham-se presos exactamente por tentativa de suborno?... Acaso pretendes que também nós acabemos por fazer-lhes companhia nas enxovias do Tribunal?
− Ora, os idiotas foram pegos porque não souberam fazer a coisa de modo correto! – rebate D. Fernán. – Fica tranquilo e deixa comigo que sei como fazer isso!...
− Não sei... – diz D. Aníbal, cheio de desconfianças.
− Pelo que vejo, não confias nada em mim... – observa D. Fernán, a olhar, sistematicamente, para o amigo.
− Para ser franco, não! – responde D. Aníbal. – Isso poderá ser muito arriscado para nós. – E, além do mais, estamos a jogar cacos nas pretensões de D. Torquemada, e o que é pior: deverias saber que ele não passa de mero executor das vontades da rainha!
− Sim, conheço muitíssimo bem quais são os verdadeiros desejos dos soberanos da Espanha, meu caro! – diz D. Fernán. – Executarem a limpeza de sangre, a qualquer custo, e todo o que não for espanhol, deverá ser destruído ou escorraçado daqui!− E os mais ricos, preferencialmente, deverão ser, primeiramente, espoliados dos seus bens!
− E, acaso, teria graça deixá-los irem-se todos, a carregarem consigo a fabulosa fortuna que detêm?... Que se vão, mas de mãos abanando!
− Se bem os conheço, nenhum marrano, em sã consciência, deixará atrás de si todo o ouro que amealhou pela vida inteira! – diz D. Aníbal.
− Por isso, a necessidade de se os matarem! – exclama D. Fernán. – E seria outra a função do Tribunal que não essa?
− A de dar-lhes um julgamento justo! – ironiza D. Aníbal.
− Sim e se a pretensão é essa, que mal haverá em burlarmos tais julgamentos “justos”? – observa D. Fernán. – Não te esqueças de que andaremos a dar o troco a desonestos...
− Nesse ponto, estás coberto de razão! – concorda D. Aníbal. E a rir-se: − Então, vá em frente, mi amigo!...
− ¡Por supuesto que yo iré!...215 – exclama D. Fernán, em tom jocoso.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 8 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 12:03 pm

Em seguida, ambos se despedem com um abraço.
− Aguardarei, ansiosamente, as novidades, D. Fernán! – diz o prelado.
− ¡Adios! – exclama D. Fernán, a montar o seu cavalo que o aguardava amarrado a uma árvore, na praça diante da mansão arquiepiscopal. – Em breve, trarei notícias!...
Saindo dali, D. Fernán Guillén foi directamente ter com o colega Moshe Navon, com o propósito de propor-lhe a nova ideia sobre a libertação de Maria de los Milagros.
− Dizes, então, D. Fernán, que nos propões a possibilidade de corromper o capitão da guarda, com o propósito de induzi-lo a libertar Milagros? E os demais, acaso também se incluem eles no teu plano?
− Por ora, somente a moça libertaremos; depois, com o passar do tempo, iremos libertando-os um a um – explica D. Fernán.
− E crês que nos será fácil assim corromper o capitão da guarda? – pergunta Moshe Navon. – Não achas um procedimento bastante arriscado?− Não te disse que nos seria fácil; é difícil, mas não impossível, pois onde está o homem, também aí reside a corrupção! Deves saber bem como é isso...
− Sei e acho que tens razão – diz o outro. E, depois de pensar por instantes: − Dá-me o tempo de confabular com a parte interessada, bem como avaliar os custos desse procedimento que, pelo que me consta, deverá custar boa fortuna, não é?
− Sim – responde D. Fernán. – Já fiz os meus cálculos e te passo o montante: 100 arráteis de ouro puro!
− Tanto assim?! – espanta-se o jovem advogado. – Não pensei que a quantia fosse tão alta!
− Correremos riscos, meu caro! – rebate D. Fernán. – Deves saber que correremos altíssimos riscos, mas por que o espanto?...
Acaso já não me disseste que dinheiro não é problema para os judeus?
− De fato, não é! – exclama Moshe Navon. E, depois de pensar por alguns minutos, estende a mão ao amigo e diz: – Combinado, então, D. Fernán! Aguarda que, ainda hoje, trar-te-ei a resposta.
Bem à noitinha, Moshe Navon volta a procurar por D. Fernán Guillén.
− Oh, vieste bem antes do que eu imaginava, mi amigo! – exclama D. Fernán ao recebê-lo em sua casa. – E então, trazes boas notícias?
− Perfeitamente, D. Fernán! – responde Moshe Navon. – Porém, os meus clientes querem garantias, antes de te passarem a primeira parte do pagamento.
− A garantia que posso dar-lhes é tão-somente a minha palavra, pois não convém deixarmos qualquer coisa escrita a esse respeito, não achas? – observa D. Fernán, cauteloso. − Qualquer pista que deixarmos ser-nos-á fatal!
− Nesse ponto, concordo com o que dizes, D. Fernán – diz o jovem advogado. – Não convém deixarmos as nossas pegadas soltas por aí! Mas, estamos combinados!... E quando pretendes dar início às negociações com o capitão da guarda?
− Imediatamente, D. Navon − responde D. Fernán. – Torna-se-me um pouco mais difícil, porque o antigo capitão da guarda simplesmente desapareceu, logo após ter prendido os parentes de Maria de los Milagros por corrupção, e ninguém sabe do seu paradeiro, conforme já investiguei. Entretanto, já me informei sobre quem é o novo comandante da guarda do Tribunal e, logo amanhã, principiarei a fazer-lhe o cerco!
− Boa sorte, então, D. Fernán! – exclama o jovem advogado judeu. – E que tenhas sucesso na tua empreitada!
− Assim que conseguir corrompê-lo, avisar-te-ei, e tu me trarás a primeira parte do pagamento, e, então, passar-te-ei a segunda parte do meu plano para libertarmos, de vez, a judiazinha das garras de D. Torquemada! – diz D. Fernán, despedindo-se do amigo, à porta da sua casa.
Mal amanhece o dia subsequente, D. Fernán Guillén põe-se a seguir o capitão da guarda, antes mesmo que ele se dirigisse às masmorras do Tribunal.
− Perdão, Senhor! – aborda-o D. Fernán, ainda na rua, logo que o homem deixava a sua pequena casa, situada na periferia de Toledo. – Posso falar-te por um instante?
− Que queres? – responde o capitão da guarda, com modos brutais. – Estou com pressa, pois me aguardam as minhas funções no Tribunal!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 12:03 pm

− Sei disso! – rebate D. Fernán, aparentemente sem se importar com o jeito grosseiro do outro. – Mas tenho algo especial a dizer-te! – e, olhando em derredor, convida. – É, ainda, um pouco cedo.
Posso ofertar-te um bom gole de vinho, a esquentares as friagens desta manhã?
− Vá lá, estranho! – exclama o capitão da guarda, depois de cogitar por instantes, enquanto media D. Fernán Guillén, de alto a baixo, com os olhos cheios de desconfianças. – Vamos ver por quantas é que andas a rodear-me!
− Vamos, então, à La Polla Gorda216! – diz D. Fernán. – Fica mesmo mais adiante, em nosso caminho!
Em pouco, estavam os dois sentados ao lado de tosca mesa, diante de dois grandes copos de capitoso vinho, na taberna, que, àquela hora, acabara de abrir as portas e se achava ainda quase vazia.− E, então, Senhor – fala o capitão, depois de sorver dois largos goles da excelente bebida que D. Fernán solicitara ao taberneiro −, que é que queres de mim?
− Propor-te negócio que te renderá a independência financeira para o resto da tua vida! – ataca D. Fernán, directo.
− Queres dizer um bom dinheiro? – pergunta o homem, ainda sem atinar direito com o que lhe propunha o outro.
− Bom dinheiro? – ri-se D. Fernán. Era preciso delongar um pouquinho mais o assunto, para que o vinho subisse todo à cabeça do capitão e lhe abrisse bem abertas as ideias. – Na verdade, trata-se de excelente fortuna em ouro puro com a qual jamais sonhaste em toda a tua vida!
− Então, explica-te, Senhor! – exclama o homem, já com a língua meio amolecida pelo álcool. – De onde vem toda essa montanha de ouro?
− Eu mesmo ta darei, se me fizeres um servicinho à toa! – diz D. Fernán. – Basta que facilites a fuga duma pessoa das prisões do Tribunal...
− Ah, e tens isso à conta dum reles servicinho? – exclama o homem, com a mente já bastante amortecida pelo vinho, ingerido logo à manhãzinha. – E não crês que, se eu fizer o que me pedes, não serei eu preso e encarcerado?
− Não, se tiveres em mão fabulosa fortuna que te propiciará deixares Toledo bem depressa, assim que acabares o serviço e antes mesmo que dêem pela fuga que facilitarás, pois, acaso, não compete a ti fazeres o comunicado à chefia do tribunal sobre a ocorrência de qualquer fato? Então, se não fizeres qualquer ocorrência de fuga, quem é que ficará sabendo, de imediato? E, tendo à mão ouro farto, terás tempo mais que suficiente para ganhares o mundo!
− E quanto me darás, se eu resolver aceitar o que me propões? – pergunta o homem, já ferroado pelo bicho da ganância.
− Vinte arráteis de ouro puro! – responde D. Fernán.
− Tudo isso?! – espanta-se o capitão da guarda, ao ouvir o montante que o sagaz advogado lhe oferecia. – Mas é muito ouro! − Sei que é! – diz D. Fernán, cheio de si, pois percebia que o outro já engolia, totalmente, a isca que lhe atirara. E, prossegue, no afã de convencer o homem: – A tua independência para sempre e, com essa fortuna, poderás muito bem escapar para Portugal ou para onde bem entenderes!
− Deixa-me pensar um pouco, antes! – diz o capitão da guarda, bastante entontecido pelo vinho e pela proposta que lhe fazia D. Fernán.
− Pensa o quanto desejares, Senhor – fala D. Fernán. Depois emenda: – Melhor: dou-te o dia todo para que peses muito bem a proposta que te fiz e, bem à noitinha, quando deixares o teu posto na guarda do Tribunal, eu estarei a aguardar-te, aqui mesmo, neste lugar, para obter a tua resposta. – e antes de o homem levantar-se da mesa, pergunta-lhe: − Qual é a tua graça?
− Alejando Álvarez – responde o outro e deixa a taberna.
Em seguida, D. Fernán sai, a esfregar as mãos de tanto contentamento. A questão saíra-lhe bem mais fácil do que imaginara.
Depois, sem muita pressa, dirige-se à mansão arquiepiscopal, a fim de avistar-se com D. Aníbal Velásquez.
− Vejo que madrugas, D. Fernán! – exclama D. Aníbal, ao vê-lo que, tão cedo, já lhe chegava à porta. – Vem, convido-te a tomares o desjejum comigo!
− Antes do desjejum, mi amigo, dou-te as excelentes novas: o homem já mordiscou a isca que lhe armei!
− Assim tão cedo e tão rapidamente? – admira-se o prelado.
− Para que perder tempo, meu caro? – responde D. Fernán, a rir-se. – Na verdade, encontrei-o, bem de manhãzinha, quando demandava o serviço, e lhe expus as minhas pretensões. Espantou-se, a princípio, mas, sob a evidência dos meus fortes argumentos, deixou-se levar e me pediu um tempinho para pensar no caso.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 8 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 12:03 pm

− Então andas a contar as favas antes de colhê-las! – observa D. Aníbal, deixando-se abater, repentinamente, pela decepção.
− Ora, não vejo bem assim a questão: Dimidium facti qui bene coepit habet!...217 – diz ele, cheio de si. E prossegue: − É que não estavas lá para veres a cara de cobiça que o sujeito demonstrou! E não te desapontes, assim, precipitadamente!... Quanto queres apostar que ele aceitará a proposta que lhe fiz?
− Se dizes... – responde D. Aníbal, sem muito ânimo. E continua, depois e alguns instantes de silêncio: − Na hipótese de o homem aceitar a tua proposta e conseguir, efectivamente, libertar Milagros, que pretenderás fazer em seguida?
− Já pensei em tudo – responde D. Fernán. – Ao receber a moça já liberta, tu que a aguardarás, bem próximo aos calabouços, tratarás de sumir, rapidamente, com ela, para lugar ignorado e seguro.
− Mas, para onde a conduzirei, assim tão rapidamente? Para fuga de tal monta, é preciso tempo e arrumar as coisas de antemão, em minúcias, para que nada saia errado! E, ao que me consta, tu a conseguirás libertar muito em breve!
− Acabo de ter uma ideia excelente! – exclama D. Fernán. – A tua casa em Las Palmas, onde já a mantiveste presa! E, para não levantarmos suspeitas a teu respeito, como executor dessa façanha, lá tu a manterás, naturalmente, sob severa vigilância do teu fiel mordomo, até que as coisas novamente se ajeitem e ganhes tempo para planejares a tua fuga definitiva com bastante folga!
− Não é má a tua ideia, uma vez que Las Palmas fica em lugar quase deserto e à boa distância de Toledo. Além do mais, penso que, dificilmente, alguém se lembrará de buscá-la por lá!
− Sim! – concorda D. Fernán. – Seria muito óbvio, e isso vem a nosso favor! Bom que já delineies, juntamente com o teu mordomo, as acções que ambos tereis que realizar, assim que o capitão da guarda puser Milagros em tuas mãos!
− E já calculaste, também, os possíveis riscos que correremos? – pergunta D. Aníbal. – Se algo der errado, a pesada mão de D. Torquemada recairá, infalivelmente, sobre nós!
− Acalma-te, pois nada deverá sair errado! – responde D. Fernán. – Para nossa total segurança, avaliarei, minudentemente, cada passo do nosso plano, para que não tenhamos qualquer tipo de surpresa desagradável! E, quanto a D. Torquemada, natural que ficará uma fera ao saber que a sua bruxa de estimação evadiu-se!...
Pude observar, muitíssimo bem, em seus olhos, o inominável prazer que esse caso causa-lhe! Percebi que assar bruxas na fogueira dá-lhe incomum prazer à alma louca!
− Então, ele não se dará por derrotado e envidará todos os esforços possíveis para recapturar Milagros! – observa D. Aníbal, preocupando-se enormemente. – Desse modo, as coisas tornar-se-ão mais difíceis para nós!
− Eu não disse que a nossa empreitada será fácil, meu caro! – diz D. Fernán. – Mas penso que será apenas questão de redobrarmos os nossos cuidados em cada passo que dermos!
− Seja feita a vontade de Deus, então! – exclama D. Aníbal, com fundo suspiro.
− Queres desistir? – pergunta D. Fernán, após estudar, detalhadamente, as desanimadas feições do outro.
− Não!... Nunca! – exclama D, Aníbal, recuperando-se de súbito.
– Desistir jamais!
− Então correremos o risco! – diz D. Fernán, contentíssimo. Mais pelos oitenta arráteis de ouro puro que iria ganhar dos judeus.
− E os marranos que financiarão essa empreitada?... Que dirás a eles? – pergunta D. Aníbal.
− Também já pensei nisso – responde o advogado. – Dar-lhes-ei uma prova material qualquer que confirme a soltura da moça. E também direi que a jovem, temporariamente, encontrar-se-á escondida em lugar oculto, para salvaguardar-lhe a liberdade da perseguição do Tribunal. Penso, assim, convencê-los a manterem-se quietos, até que possas fugir, definitivamente, com ela, para lugar distante e seguro. E, a propósito, já definiste para onde irás levá-la, mais tarde?
− Ainda não sei, ao certo, mas, talvez, para a Alemanha, pois calculo que, quanto mais distante daqui, melhor ser-nos-á escapar às perseguições, se, efectivamente, vierem a acontecer.
− Concordo, pois, além de auxiliares uma acusada de bruxaria escapar das garras do Tribunal Inquisitorial, ainda incorrerás no crime de apostasia!
− Sim, eu sei! – exclama D. Aníbal, assaz irritado. – E correrei também esse risco!− Então, estamos de acordo e, amanhã, com certeza, trar-te-ei a resposta definitiva do capitão da guarda, para que dês início, sem delongas, aos preparativos para dares suporte à fuga de Milagros.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 8 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 12:04 pm

Agora, vou-me... ¡Adios!
D. Fernán Guillén saiu e, logo mais à noitinha, já se encontrava em La Polla Gorda, à espera do capitão da guarda, a bebericar dum pichel de excelente vinho.
Não teve de esperar muito, pois logo avistou o homem que se aproximava, notadamente, cheio de ansiedade.
− Salve, D. Alejandro! – grita o advogado, saudando, efusivamente, o capitão da guarda do Tribunal Inquisitorial. – Vem, senta-te aqui! − e lhe serve um pichel de vinho da botelha que, pouco antes, o estalajadeiro colocara sobre a mesa. E, a seguir, enquanto o outro tomava sôfregos goles da bebida, pergunta-lhe em voz baixa: – E então, já tens uma resposta para a minha proposta?
− Acho que sim – responde Alejandro Álvarez, a olhar, desconfiadamente, para todos os lados.
− ¡Muy bien! – diz D. Fernán, satisfeitíssimo. – Agora, convém que combinemos as coisas em detalhes, para que nada saia errado!
A seguir, por um bom tempo, os dois homens confabularam, a ajustarem, minudentemente, as acções que deveriam levar à soltura de Maria de los Milagros da prisão inquisitorial. E tudo ficou combinado para agirem dali a três dias.
Mais tarde, D. Fernán Guillén procura pelo advogado judeu, Moshe Navon, para contar-lhe as novidades e, principalmente, apanhar o ouro prometido, sem o qual, nada poderia ser resolvido.
− D. Fernán! – exclama o advogado judeu, ao ver o amigo que lhe chegava a casa. – Presumo que trazes boas notícias!
− As melhores possíveis, caro Moshe! – responde D. Fernán. – Tudo já está combinado para daqui a três dias!
− Perfeito! – exclama o outro. – E, naturalmente, também aqui estás para buscares o teu pagamento!
− Sim e também para comunicar-te que decidi eu mesmo conduzir Maria de los Milagros para lugar seguro, após a sua soltura – explica D. Fernán.− Mas por que nós não poderemos apanhá-la? – pergunta o advogado. – Essa foi uma das exigências de D. Sara Shlomo, a mãe de Milagros, pois teme que a filha se perca por aí, sem amparo!
− Não, Moshe – rebate D. Fernán. – Peço que deixes a meu encargo também essa parte, pois já escolhi lugar seguro para ocultá-la, ao menos temporariamente!
− Entretanto, D. Fernán, não poderei responder por essa parte, sem, antes, consultar a minha cliente.
− Pensei ocultá-la, assim que se a soltarem, porque, certamente, os inquisidores irão procurá-la entre os seus, e isso seria uma tragédia, se a conseguissem recapturar! – explica D. Fernán.
− Por esse lado, penso que tens razão – concorda o advogado judeu. E pergunta: − Em assim ocorrendo, onde pretendes ocultá-la?... Tens, mesmo, certeza de que se trata de lugar bem seguro?
− Seguríssimo, meu caro! – responde D. Fernán. − Podes ficar sossegado, pois se trata de propriedade de amigo meu, localizada bem distante da cidade e em lugar quase inexpugnável! Dificilmente alguém irá procurar a fugitiva por aquelas paragens!
− Se, efectivamente, garantes a segurança de Milagros, creio que sua mãe a nada se oporá! Mas, repito: só consentirei que a escondas, se D. Sara permitir!
− Perfeito, Moshe! – exclama D. Fernán. – Aguardo, dessarte, a tua resposta, ainda hoje, pois preciso delinear, com bastante precisão, o meu plano – e, pronto para despedir-se, sorri e pergunta:
− E o ouro?
− Vou apanhá-lo para ti! – diz o jovem advogado levantando-se e se encaminhando para cómodo contíguo. Em pouco, estava de volta, a sobraçar pesada sacola de couro. – Aqui está a primeira parte do pagamento!... Podes conferir!
− Não será necessário, pois confio em ti! – exclama D. Fernán, apanhando o saco cheio de finíssimas peças de ouro. – Agora, vou-me! – diz ele, despedindo-se felicíssimo.
D. Fernán deixa a residência de Moshe Navon e torna a casa, pois era preciso guardar aquela fortuna em lugar seguro e, também, separar a primeira parte do pagamento que caberia ao capitão da guarda. Tudo feito, o advogado demanda a casa de Alejandro Álvarez, com o propósito de entregar-lhe o ouro referente à primeira parte do pagamento combinado.
− Agora que já tens a primeira parte do dinheiro ajustado, compete a ti desenvolveres a contento a parte que te cabe no plano!
– explica D. Fernán ao capitão da guarda inquisitorial. – A propósito, já sabes como soltar a prisioneira?
− Sim – responde o capitão. – À terceira noite, a partir de hoje, eu te entregarei a moça aos fundos da prisão!
− Perfeito! – exclama D. Fernán. – E, quando isso acontecer, terás em mãos o restante do teu ouro!
Tudo acertado, D. Fernán Guillén, felicíssimo com o bom andamento do negócio, trata de retornar a casa, o mais rapidamente possível, a fim de conferir, minuciosamente, a quantia recebida e depois guardar o seu tesouro em lugar muito bem seguro.
______________________________________________________________________________________________________________
212. “A experiência vale mais que a ciência!”, em latim.
213. “− Com o devido respeito”, em latim.
214. “− Pai nosso que estás nos céus...”, em latim.
215. “− Claro que irei!”, em castelhano.
216. Literalmente, “A Galinha Gorda”, em castelhano.
217. “Trabalho bem começado, meio acabado!...”, em latim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 7:52 pm

Capítulo XXVII. Tragédia em Las Palmas
O tempo passou, D. Fernán obteve de D. Sara Shlomo a permissão para conduzir a filha a lugar seguro, após a fuga, e, quando se fez noite alta, no terceiro dia, a meio da forte escuridão reinante, dois vultos aguardavam, ansiosamente, a chegada de Alejandro Álvarez e Milagros. Eram D. Fernán Guillén e o fiel mordomo de D. Aníbal Velásquez, Gumersindo Acuña. Ambos achavam-se montados sobre cavalos e se mantinham calados, e o mordomo segurava à mão montaria adrede preparada para Milagros.
O tempo escoava-se devagar, naquela ansiosa espera.
Entretanto, de repente, do meio das trevas, ouvem-se abafados ruídos de passos.
− D. Álvares? – pergunta D. Fernán, ao divisar dois vultos que se destacavam do negror da noite alta.
− ¡Sí, aquí hay la señorita!218 – responde o capitão da guarda, mal se revelando à pesada escuridão.
− Solta-a! – ordena D. Fernán.
− O meu ouro! – exclama Alejandro Álvares, a segurar, fortemente, Milagros por um dos pulsos. – Primeiro, passa-me o meu ouro!
− Aqui está! – diz D. Fernán, atirando ao capitão da guarda, um volume de couro, a conter o pagamento combinado. E ordena: – Agora, vamos, depressa, liberta-a! Alejandro Álvares apanha a sacola de couro no ar e solta o punho de Milagros que corre em direcção de D. Fernán.
− Aqui! − interpõe-se Gumersindo ao caminho da moça, após haver saltado ligeiro da sua montaria e, rapidamente, toma-a aos braços como se ela fosse uma pluma e, rapidamente, fá-la montar o cavalo para ela de antemão preparado.
Em seguida, o mordomo salta sobre a sua própria montaria e, ligeiros, os três cavaleiros desaparecem no breu da noite alta.
Cavalgaram a pleno galope, por um bom tempo, pela densa escuridão, evitando as ruas centrais da cidade e, quando a madrugada já ia bem alta, deixaram a cidade e tomaram pequena estrada que margeava o rio Tago.
Depois de quase três horas, quando o dia já lançava os primeiros albores, finalmente, o grupo de cavaleiros, depois da longa cavalgada, estacionava no pátio de pedras irregulares que calçavam a magnífica vivenda de D. Aníbal Velásquez.
A jovem Milagros, cansada pelo intenso esforço causado pela desabalada fuga, não conseguira, ainda, atinar com segurança, para onde estava sendo conduzida por aqueles par de cavaleiros. Como os dois homens pouco falaram, durante o trajecto, e, ainda, por estarem todos acobertados pelo manto negro da noite, mais os trajos escuros e longos chapéus que traziam à cabeça, a jovem não sabia, exactamente, quem eram. Entretanto, à luz da manhã nascente, pôde estudá-los um pouco melhor. Um deles, que já descobrira a cabeça, ela, decididamente, não conhecia. O outro... O outro, entretanto, ainda se mantinha coberto pelo longo chapéu negro e, no momento em que ele se aproximou e levantou o rosto para auxiliá-la a desmontar, Milagros soltou um grito:
− Tu?! – e a olhar, detalhadamente, em derredor, entendeu tudo.
– Este lugar!... Eu conheço bem este maldito lugar! – exclama ela, cheia de terror, e tenta escapar, cutucando a ilharga do animal com os calcanhares.
Entretanto, Gumersindo, percebendo-lhe a intenção de fugir, rapidamente, consegue segurar as rédeas do animal, freando-lhe, assim, a tentativa de evadir-se dali.− Não vais escapar, não, mocinha! – exclama o mordomo e a segurando, fortemente, pelo punho da mão, força-a a desmontar.
− Desgraçado!... Assassino!... – grita Milagros, a sacudir o braço, violentamente, numa tentativa desesperada de soltar-se. – Fizeste-me escapar da prisão para trazeres-me a esta outra?
− Vamos, tranquiliza-te! – diz o mordomo, rispidamente, conduzindo-a para o interior da casa. – Ou preferes voltar àquela imunda enxovia?
− Espera um momento, Gumersindo! – exclama o advogado, antes que o mordomo carregasse a moça para o quarto. – Deixa-me apanhar isto! – e arranca, com gesto ligeiro e brusco, o sujo e já puído tichel de seda azul-clara que Milagros trazia à cabeça. – Preciso de uma prova para entregar aos judeus!
D. Fernán Guillén guarda o lenço de seda ao bolso da casaca e fica na ampla sala de visitas, a aguardar o mordomo que seguia, com grande dificuldade, a arrastar Milagros com o propósito de encerrá-la num dos quartos de dormir.
− Maldito!... Desgraçado!... Solta-me!... – gritava a jovem, debatendo-se diante da iminência de novamente ver-se encarcerada naquela casa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 7:53 pm

Em pouco, finalmente, Gumersindo empurrava-a, violentamente, para dentro dum dos quartos de dormir.
− Fica-te aí, em silêncio, que mais tarde virei cá ter contigo! – exclama ele e, rapidamente, tranca a porta a chave.
Em pouco, o mordomo estava de volta à sala.
− Bem, acho que a tarefa encontra-se concluída! – exclama D. Fernán, ao ver que o outro retornava. E emenda: − Pelo menos, na parte que me cabe!...
− ¡Por supuesto, Señor D. Fernán! – diz Gumersindo, satisfeitíssimo. E a abrir ligeiro sorriso: – A propósito, acaso fareis saber ao meu senhor sobre o excelente andamento dos factos?
Certamente andará ele a morrer de ansiedade para saber como tudo ocorreu!
− Fica sossegado, Gumersindo! – diz o advogado. – Vou-me, já, de volta, à cidade e levarei as novas a D. Aníbal! D. Fernán Guillén deixa Las Palmas e, tranquilamente, cavalga de retorno a Toledo.
Depois de bom tempo, estava diante de D. Aníbal Velásquez que, ao vê-lo adentrar a porta do seu gabinete, não conseguiu esconder a enorme ansiedade que lhe corroía a alma.
− E então, D. Fernán? – exclama o prelado, extremamente afoito.
− Perfeito, mi amigo! – responde o outro, deixando-se sentar, pesadamente, sobre a poltrona de veludo vermelho. E a abrir um sorriso cheio de satisfação: − A tua pombinha já se encontra presa na gaiola, a aguardar-te!
− ¡Gracias a Dios! – murmura D. Aníbal, persignando-se. – E como está ela?
− Aparentemente, está bem! – responde o advogado. – Entretanto, ao reconhecer o local para onde a havíamos levado, pôs-se a gritar e tentou escapulir! Mas o teu mordomo, com a capacidade que lhe é peculiar, dominou-a, facilmente, e a trancafiou num dos quartos da tua casa. E, a rir-se, faz pilhéria: − A ti só te restou a pior parte: ires até lá, bem depressinha, e te lançares aos braços daquela delícia!... – e a estalar os lábios: − Ah, como eu te invejo, mi amigo!
− Ora, deixa de facécias, D. Fernán! – diz D. Aníbal, fingindo amofinar-se com as brincadeiras do amigo. – Sabes muito bem que não é assim...
− Bem, se é assim ou não, agora que o caso encerrou-se, vou à casa do meu amigo Moshe Navon, a buscar o restante do meu ouro.
Depois, viajarei para Valência e de lá não voltarei até que de mim se tenham esquecido! – ¡Adios, mi amigo! – exclama ele, abraçando-se, efusivamente, a D. Aníbal. – Deixo-te na paz de Deus!
− Vai em paz, D. Fernán! – diz D. Aníbal, despedindo-se do amigo. – E agradeço-te, imensamente, por tudo o que fizeste por mim!
Depois que D. Fernán se foi, o prelado sentiu-se tomar por insustentável desejo de ver Milagros. Pensou em se dirigir, de imediato, para Las Palmas, mas tinha tantas coisas prementes a resolver dos negócios da arquidiocese que se lhe afigurava quase impossível sair àquele momento.− Agora não dá! – murmura ele, extremamente contrariado. – Também, tudo fica às minhas costas!... O arcebispo vive solto, a haurir, indefinidamente, as delícias do mundo, e cá fico eu a roer os sabugos! Que desgraça!... – depois, entretanto, refaz-se, sorri e emenda: − É só ter calma!... Calma!... Muita calma que, logo que a noite cair, vou-me para lá, a abocanhar o que me pertence!...
Nesse entretempo, D. Fernán Guillén, já de malas prontas, passava pela residência de Moshe Navon, a cobrar dele o restante do combinado.
− Dizes, então, que Milagros já se encontra em liberdade, D. Fernán? – pergunta o advogado judeu.
− Perfeitamente, meu amigo – responde D. Fernán. E metendo a mão num dos bolsos da casaca, retira o lenço de seda azul-clara e o entrega ao outro: − Eis a prova que me solicitaste, a confirmar que cumpri a minha parte do trato!
− Um tichel! – exclama o jovem advogado, à vista do lenço surrado. – Deverá ser certo que pertenceu à Milagros!
− Se quiseres conferir com a mãe da moça... – diz D. Fernán.
− Acho não ser necessário, D. Fernán! − observa o outro. – Confio na tua palavra! − e, levantando-se, vai a cómodo contíguo, de onde retorna, em brevíssimo tempo, a trazer à mão uma sacola de couro. – Aqui tens o restante do combinado! – exclama ele, ao passar o ouro a D. Fernán. – Agora, entretanto, deves confiar-me onde se acha escondida Milagros.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 8 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 7:53 pm

− Perfeitamente! – diz D. Fernán. E mente: – Contudo, para a total segurança da moça, e para que não na encontrassem com facilidade, de última hora, mudei os planos antigos: ao invés de ocultá-la em propriedade de amigo confiável, como antes te houvera relatado, deixei-a com as freiras de Santa Isabel219 que, garanto-te, dela cuidarão com todo o esmero deste mundo! E, quando quiseres resgatar Milagros, é só te dirigires para lá! E, se algo mais de mim ainda precisas saber, pergunta-o agora, pois, ainda hoje, viajarei à minha terra e por lá permanecerei por longo tempo − e, diante da negativa do outro, levanta-se, despede-se e sai.
Em pouco, já cavalgava felicíssimo pelo caminho que dava a Valência, a puxar pelas rédeas duas boas mulas bem carregadas de pesada bagagem...
Assim que D. Fernán Guillén deixou a sua casa, o jovem advogado judeu procurou por Sara Shlomo, a levar-lhe as novidades.
− Aqui tens a prova de que a tua filha está salva da prisão, D. Sara! – e lhe entrega o surrado lenço de seda: − Reconheces este tichel?
− Yavé santíssimo! – grita Sara, à vista do tichel de seda azul clara. – Sim, é de minha menina! – e a cheirar e a passar o gasto lenço pela face: − Sim, eu o reconheceria entre milhares, pois fui eu mesma que o bordei e o presenteei à minha filhinha! Oh, Yavé seja louvado! – e entre lágrimas de alegria, pergunta: − E onde está ela?
Onde está a minha menina?
− Com as freiras do Convento de Santa Isabel! – responde o jovem advogado.
− Vamos, Sr. Navon! − convida Sara, resoluta. E, a ajeitar o tichel à cabeça: − Vamo-nos, sem mais delongas, pois quero abraçar a minha criança!... Oh, quanto tempo não a vejo?
Depois de boa caminhada, estavam ambos diante do portão que dava entrada à clausura do convento.
Moshe Navon bate com os nós dos dedos, insistentemente.
Depois de alguns instantes de dolorosa espera, o postigo abre, uma freira aponta o rosto e pergunta:
− Que desejais?
− Viemos resgatar uma vossa acolhida, a senhorita Maria de los Milagros Shlomo − diz o jovem advogado, com modos assaz gentis.
− Maria de los Milagros? – estranha a freira porteira. – Não acolhemos cá nenhuma moça com esse nome.
− Tens certeza, Senhora? – insiste o advogado. – Tivemos informação segura de que para esta clausura foi trazida essa jovem!
− Sim, cá se acha a minha filhinha! – intervém Sara, aflitíssima.
− Deve haver algum engano, Senhores! – responde a freira. – Tendes, mesmo, certeza de que é este o convento?
− Temos – insiste Moshe Navon. E, diante da hesitação da freira, solicita: − Poderias, acaso, levar-nos até à superiora do convento?− Certamente, Senhor – responde a religiosa. – Aguardai, que vou abrir a porta.
Em pouco, estavam diante da superiora da instituição. A freira porteira já lhe relatara, sucintamente, o caso.
− Se andais à procura duma jovem com tal nome, posso afirmar-vos de que aqui ela não se encontra – diz a religiosa, categórica.
− Não é possível! – exclama o advogado, de repente, caindo em si. E se voltando para Sara: – Será possível que nos enganaram?
− Por Yavé santíssimo! – diz Sara, com os olhos rasos de lágrimas. – Será que, uma vez mais, enganaram-nos?
− Certamente, poderá ter havido um engano! Vamos, D. Sara, percorreremos todos os conventos de Toledo! Nalgum deles Milagros deverá encontrar-se!
Despedem-se ambos da superiora do convento e se propuseram a percorrer todos os conventos da cidade.
E foi longa essa peregrinação, por todo o resto do dia, e, quando a noite já se aproximava, cansados e esgotados, Sara Shlomo e Moshe Navon sentam-se na Plaza del Ayuntamiento para descansar.
− Oh, desgraça! – lamenta-se a mulher, com as lágrimas a rolarem-lhe face abaixo. – Uma vez mais eles nos lograram!
− Não é possível! – exclama o jovem advogado. – Conhecia muitíssimo bem a D. Fernán Guillén! Deverá ter havido algum engano! – e de repente, lembra-se, com forte abalo: − Mas ele se foi!... D. Fernán viajou para Valência!
− Mais uma prova de que o biltre passou-nos a perna! – geme Sara, desgostosa. – E levou-nos imensa fortuna!
− Mas que miserável! – diz o advogado. E, levantando-se, resoluto, exclama: − Vem, D. Sara, acompanho-te até à tua casa! E te garanto que me vou a Valência: aquele desgraçado não ficará impune!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 7:53 pm

− Que nos adiantará ir atrás daquele pulha? – diz Sara, a soluçar, de tanta tristeza. – Vá Yavé saber o que aquele desgraçado fez à minha filha! Antes, embora presa, eu sabia onde ela estava, mas agora?− Mantém-te calma, D. Sara, que daremos um jeito – e, com grande cuidado, conduziu a desesperada mãe de Milagros de volta à sua casa.
A noite já principiava a cair, quando D. Aníbal Velásquez, em trajes seculares, afoitamente, toma o cavalo adrede selado que o aguardava à porta da mansão arquiepiscopal e, rapidamente, monta-o e dispara, velozmente, em direcção de escura viela que saía da Plaza del Ayuntamiento.
Entretanto, na sua muita pressa em demandar Las Palmas − a sua magnífica propriedade campestre − não reparou que uma figura encapuzada, logo de imediato, pôs-se a cavalgar atrás de si e, quando atingiram local bem mal iluminado da escura ruela, o estranho cavaleiro que vinha atrás acelerou um pouco mais a sua montaria e se colocou apenas a três ou quatro metros de distância de D. Aníbal que, na sua desmedida afobação, não havia percebido que o seguiam tão de perto.
Entretanto, a seguir, num átimo, D. Aníbal Velásquez sentiu um forte e inesperado baque às costas, seguido de dor lancinante, como se lhe abrissem as carnes com ferro em brasa.
Instintivamente, voltou-se e viu o cavaleiro que o seguia, mas que, ao perceber que atingira o alvo, com certeiro golpe de pesado punhal, refreava, de súbito, a sua montaria, parando, pronto a aguardar os resultados da sua ousada peripécia.
Num instante, D. Aníbal Velásquez percebeu, assaz estupefacto, o que lhe sucedia.
− Deus do céu!... – murmurou ele, aterrado, enquanto a sua montaria afrouxava, completamente, os passos: – Não!... Agora, não!...
A dor que lhe advinha das costas era insuportável. Tentou descobrir quem o atingira tão covardemente, mas o assassino mantinha-se à segura distância, quase envolvido pelas trevas da noite.
D. Aníbal Velásquez, lentamente, fez meia volta e tentou se aproximar do outro cavaleiro, mas se sentiu fraquejar; tontura intensa, então, invadiu-lhe, de inopino, a cabeça, enquanto grosso gorgolhão sanguinolento adveio-lhe à garganta, sufocando-o. Quis gritar, pedir socorro, mas a voz não lhe saiu e, tombando da sela, caiu pesadamente sobre as pedras do calçamento.
O outro cavaleiro que, estacionado à curta distância, a observar o desenrolar dos factos, incitou a sua montaria com as esporas e, lentamente, aproximou-se. Sem muita pressa, apeou do animal e cutucou o corpo caído, com a ponta da botina. Como o outro não se mexeu, acocorou-se e, com a ponta dos dedos, sondou-lhe a veia do pescoço.
− Agora já deverás estar na boca do inferno, maldito! – murmura o assassino, a abrir um sorriso de plena satisfação. Depois, descobre-se, a enxugar com a mão o suor que lhe brotava abundante da testa amorenada: era Ibrahim Assib, o sicário mouro que, finalmente, cumpria a sua promessa de assassinar D. Aníbal Velásquez pelo logro que dele recebera, tempos atrás. − Al-hamdu lillahi rabb al-alameen!220 – reza ele, em agradecimento.
Nesse entretempo, em Las Palmas, o mordomo Gumersindo Acuña preocupava-se com a demora do seu patrão. Houvera preparado, às instâncias de D. Aníbal, régia ceia e, ainda, fizera Maria de los Milagros banhar-se e vestir rica roupagem de seda rosa bordada em finas pedrarias, mais frasco de inebriante fragrância egípcia, para a jovem perfumar-se, tudo por ele adrede comprado. Havia lhe dado, ainda, para enfeitar-se, magnífico colar e brincos de puríssimos diamantes africanos, a ela presenteados por D. Velásquez.
Na sala, achava-se a grande mesa preparada com fino requinte à espera dos dois comensais; entretanto, D. Aníbal demorava-se tanto!
Através da grande janela do salão de jantar, Gumersindo não tirava os olhos do pátio fronteiriço à mansão. Será que acontecera algum imprevisto?... O chefe prometera ali estar, antes das dez, mas já passava, e muito, das onze horas!
Trancada no quarto, lindíssima em seu esplendoroso vestido de seda rosa e a ostentar as finíssimas joias de diamantes que o mordomo, truculentamente, fizera-a trajar, Milagros já se cansara de aguardar e, como se encontrava assaz exausta e tão cheia de tristezas, acabara por adormecer, deitada, assim mesmo, ricamente vestida, sobre o leito.
Gumersindo, preocupadíssimo, via um novo dia amanhecer, e o patrão não viera. Certamente, houvera acontecido algo, pois D. Aníbal achava-se tremendamente ansioso para reencontrar a sua amada. Por fim, decide-se por confirmar o que havia acontecido e despacha Juan, o jardineiro, com o propósito de descobrir o que se passava em Toledo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 7:53 pm

− Vai até à mansão arquiepiscopal e te inteira de D. Velásquez porque não veio a Las Palmas e lhe solicita a mandar-me, por escrito, o que fazer com a moça – ordena ele ao jardineiro que, tomando um cavalo, vai-se, ligeiro, rumo a Toledo.
Algumas horas depois, o jardineiro Juan retornava e trazia o cenho tristonho e carregado.
− ¿Qué pasa? − interpela Gumersindo Acuña ao serviçal, indo-lhe ao encontro, lá fora, cheio de ansiedades. −¿Has estado con d. Aníbal?221
− ¡Malas noticias, señor!222− responde o jardineiro, muito triste, a baixar os olhos. – Nosso Senhor está morto!
− Morto?!... – exclama o mordomo, estupefacto. – Como morto?!...
− Mataram-no, D. Gumersindo! – explica o jardineiro, em lágrimas. – Encontraram-no morto, hoje de manhã, numa das vielas, bem próximo à sua casa!... E o estão velando na catedral!... Eu mesmo lá estive, a visitar-lhe o corpo!
− Mas quem o matou? – pergunta o mordomo, a tremer-se todo, diante da crueza da notícia. – Mas D. Aníbal não pode morrer!...
Não, o meu menino não pode morrer!... Não agora!... – e, como um autómato, põe-se a subir a escadaria de pedras que dava à entrada principal da casa.
Lá dentro, deixa-se sentar, pesadamente, sobre uma poltrona e, com a cabeça apoiada às mãos, chora, copiosamente, a morte do patrão.
Por um bom tempo, Gumersindo Acuña chorou a morte de D. Aníbal Velásquez. Depois, quando a tarde já caía, levanta-se, ainda bastante trôpego pela grande comoção, dirige-se ao quarto onde se achava presa Milagros e entra. A moça, ao vê-lo que adentrava o quarto, deixa-se tomar pelo pânico e, acuada como um animalzinho indefeso, aproxima-se da parede e se encolhe toda.
O mordomo, com os olhos intensamente vermelhos e inchados de tanto chorar, fita, por um longo tempo, a mocinha assustada.
Depois, com a voz pausada e cheia de dor, diz:
− O que havia de vir a ter contigo, ontem à noite, D. Aníbal, como bem o deves saber, não veio – e a fazer pequena pausa, durante a qual fundo suspiro de intensa tristeza ouviu-se, prossegue: − E nem não virá nunca mais... – depois, mais uma longa pausa e, em seguida, prossegue: − Pensei em lançar-te ao precipício, como fiz à tua irmã, mas acho que meu Senhor não iria gostar que eu fizesse isso... – e a apontar a porta com a mão, diz: − Vai-te!... Estás livre!...
Maria de los Milagros, a princípio, não acreditou nas palavras de Gumersindo. Estaria ele a fazer um jogo, com o propósito de assassiná-la, como fizera à pobre irmãzinha?
− Vai-te!... – repete o mordomo. – Anda, antes que eu me arrependa disso!
A jovem, então, a ganhar forte alento, deixa o quarto a correr. Depois que Maria de los Milagros saiu apressada, Gumersindo Acuña, maquinalmente, em passos lentíssimos, também deixa a casa e se dirige para os lados do alcantil que ficava aos fundos da propriedade.
Em pouco, o mordomo de D. Aníbal Velásquez se achava à beira do abismo. Seus olhos, totalmente esgazeados, fitavam o longe, na magnífica manhã ensolarada; entretanto, nada viam, pois se achavam embaciados pelas lágrimas.
− Para que continuar vivendo?... – murmura ele, aproximando-se mais da borda do abismo. E olhando para o assustador vazio que se lhe abria, imenso, aos pés, diz, com as palavras molhadas pelo pranto: − Tudo acabado!... – e se lança ao descomunal abisso.
O corpo de Gumersindo Acuña cai a pino, num tétrico e ligeiro voo que culmina numa batida seca e fofa, lá embaixo, nas pedras que margeavam o Tago que por ali passava a rugir, raivoso, a lutar, bravamente, pela sua passagem. Nesse ínterim, a correr como um bicho assustado, Maria de los Milagros dirigia-se de volta a Toledo. Em mente, só um objectivo:
alcançar a casa paterna, pois, possivelmente, sua mãe ali ainda se encontrasse.
Depois de bom tempo a correr, aos tropeções e alguns tombos, a jovem estava diante da porta do lar. Ah, que saudade!... As lágrimas, então, descem-lhe abundantes à face.
Abre a porta, de inopino, e chama:
− Imi?...223
− Bat!...224 – grita Sara, ao ver a filhinha adorada que lhe surgia à porta. – Yavé santíssimo!... Tu estás de volta! – e se abraçam efusivamente.
Quanta saudade!... Tanto tempo fazia que não se viam!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 7:54 pm

− Minha mãe! – repete Maria de los Milagros em pranto. – Oh, como senti a tua falta!
− Também eu, minha menina, também eu senti muito a tua falta! – exclama Sara, a beijar as faces da filha. – Oh, mas como estás magra e judiada! – observa ela, agora, a olhar para Milagros.
− Sofri muito naquela prisão horrível, mãe! – diz a jovem. – Todos nós sofremos muito naquele horror!
− E o teu pai e o teu irmão? – pergunta Sara. – Como estão eles?
− Sofrendo muito, mãe! – responde a jovem. – Nem imaginas o que é aquilo!
− Posso imaginar, sim, meu bem! – diz Sara, deixando-se sentar, pesadamente, sobre as almofadas. E convida: − Vem, senta-te aqui, vamos conversar: conta-me tudo!
E, em minúcias, Maria de los Milagros relata à mãe como se livrara da prisão e como fora libertada, misteriosamente, pelo mordomo de D. Aníbal Velásquez.
− Não consigo entender porque aquele maldito libertou-me, mãe!
− Deixou-te escapulir, assim, sem mais nem menos? – pergunta Sara.
− Estranhei muito, mãe, porque me achava presa num quarto e vestida para um banquete, conforme bem podes verificar as minhas roupas!
− E essas joias que ostentas? – diz Sara, a observar, atentamente, os magníficos colar, brincos e pulseiras de finíssimos brilhantes que a filha usava. – Ao que me consta, são peças legítimas!
− Não achas tudo muito estranho? – pergunta a jovem.
− Estranhíssimo, minha filha! – responde Sara. – Algo muito grave poderá ter acontecido, pois presumo que quem estava por trás da tua soltura e te deu essas roupas e joias fabulosas deverá ter sido...
− Sim, mãe – atalha Maria de los Milagros. – Estás certíssima, pois fui levada de novo à casa do maldito padre que me perseguia!
− Ah, então foi ele! – exclama Sara. E ligando alguns pontos: − Sim!... Tudo se encaixa: aqui esteve um advogado judeu, trazido pelo rabino, e eu lhe entreguei uma fortuna para que subornasse o capitão da guarda do Tribunal, com o intuito de te soltarem! Sim, o desgraçado padre, certamente, estava por trás de tudo! E, anteontem, mesmo, o advogado veio ter comigo e disse que tu estavas livre em lugar seguro, um convento, mas lá estivemos, o advogado e eu, e nem a tua sombra encontramos! Diante disso,
supusemos que tínhamos sido enganados uma vez mais!... Mas, não, eles realmente te libertaram, mas com outros propósitos!...
− Que será que aconteceu? – pergunta Maria de los Milagros. E, de repente, deixando-se tomar pelo pavor, abraça-se à mãe e diz: − Eles certamente virão atrás de mim, com o propósito de recapturar-me, mãe! Oh, temos de fugir!... Não posso permanecer nesta casa, pois aqui será o lugar onde primeiro virão procurar-me!
− Acalma-te, meu bem! – exclama Sara, procurando tranquilizar a filha. E, a notar a súbita palidez da jovem, exclama: – Mas como estás enfraquecida!... Até parece que vais desmaiar!... A propósito, já tomaste o teu aruchat boker225?
− Sequer comi o aruchat erev226 de ontem à noite, mãe! – responde a jovem.
− Oh, pobrezinha! – exclama Sara. – Por isso é que ias desmaiar!... Estás com fome!... Vem, que te ponho a mesa para o desjejum! Maria de los Milagres tomou o seu desjejum, com bastante apetite, e depois descansava ao lado da mãe, sentadas ambas nas fofas almofadas da sala de estar.
− Que faremos, mãe? – pergunta a jovem. – Aqui não poderei permanecer!
− Falaremos com o rabino – diz Sara. – Ele, certamente, terá esconderijo seguro para ti!
− Mas não poderemos demorar-nos, mãe! – exclama a moça, a mostrar-se assaz nervosa. – Aqui corro o risco de ser recapturada!
− Será que cá virão, mesmo, à tua procura? – questiona Sara. – Não achas certo pensarem que te evadiste para bem longe?...
Nesses casos, esconderijos óbvios costumam mostrar-se mais seguros...
− Não sei, não, mãe! – diz a moça. – Aquela gente do Tribunal pareceu-me bastante esperta!... Tu não conheces o inquisidor-geral, D. Tomás de Torquemada!... É o demónio em pessoa!
− E já estiveste diante dele?! – espanta-se Sara. – E por que te levaram à presença daquele homem?
− Por que somos todos processados e fazem, então, o interrogatório! – explica Milagros. – E já me acho, de antemão, condenada à morte por bruxaria, mãe!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 7:55 pm

− Como?!... – exclama Sara, a indignar-se, enormemente. – Tu nunca praticaste bruxaria! Por que te condenaram por essa prática?
− Por que deixei escapar, durante o interrogatório, que Consuelo apareceu-me depois de morta... – explica Milagros.
− Oh, por que é foste dizer isso, Milagros? – diz Sara. – Agora te condenarão por bruxaria! E sabes o que acontece aos condenados por tal prática? – pergunta ela, a tremer os lábios de pavor.
− Sei, mãe: condenam-nos à morte pela fogueira! – responde a jovem, a baixar os olhos.
− Oh, minha filha! – diz Sara, tomando Milagros aos braços. – Agora entendo que tens mesmo de te esconderes dos malditos inquisidores ou te queimarão viva!
− Tenho que fugir, mãe! – exclama a jovem. – Aqui não posso permanecer, pois corro grande risco! Eles não me perdoarão!
− Sim – concorda Sara. – Mas não nos precipitemos. Por hora, recomendo que te ocultes em teu antigo quarto, enquanto irei ter com o rabino. Ele haverá de dar-te guarida em lugar seguro.
Sara sai apressada e, em pouco tempo, estava de volta, juntamente com o rabino Modechai Hagiz.
− Não sei se Toledo constitui-se, ainda, lugar seguro para ti, minha filha – diz o rabino para Maria de los Milagros. – Aliás, para nenhum judeu mais, este lugar faz-se seguro. Muitos patrícios nossos já andam a demandar outras terras, mormente Portugal, e acho que é para lá que todos nós deveremos ir – aconselha ele.
− Para Portugal?... – pergunta a jovem, a mostrar-se assaz desencantada. – Para lá já fugimos, permanecendo quase um ano, mas acabamos sendo descobertos, presos e repatriados!...
− Sei que para lá já escapaste, antes, mas as situações que te envolviam eram outras: um desgraçado padre perseguia-te e fez de tudo para trazer-te de volta, com o ignóbil propósito de desgraçar-te; agora, entretanto, são outros os perigos que corres: como a tua mãe já me advertiu, tu te achas processada por bruxaria, fato que se faz muito mais grave, pois já te encontras, de antemão, condenada à morte!
− E como se arranjaria a minha menina, a sós, por este mundo, D. Hagiz? – questiona Sara. – O que lhe propões fazer afigura-se-me impossível de ser realizado!
− E, por outro lado, se aqui permanecer, correrá o risco de ser recapturada e condenada à morte! – reforça o rabino. E, depois de cogitar por instantes, dirige-se a Sara: − Então, por que tu também não foges com a tua filha para Portugal? Infalivelmente, sei que todos acabaremos, bem proximamente, mortos pela Inquisição ou exilados por algum decreto real. Fiquei sabendo que já se cogita isso na corte!
− Um êxodo? – pergunta Sara. – Crês, mesmo, que isso possa acontecer?
− Como esta luz que nos clareia, Sara! – responde o rabino. – Tenho plena convicção de que isso irá acontecer e mui brevemente!
Tu e a tua filha apenas vos adiantareis a isso!− Mas e o meu esposo e o meu filho? – pergunta Sara, aflita. – Se os deixar atrás, que será deles?
− Dificilmente os teus parentes serão libertados pelo Tribunal, Sara! – explica o rabino. – Como se acham presos, seus processos já estarão em andamento e, como bem o sabes, o Tribunal foi constituído, exclusivamente, para perseguir, espoliar e matar os judeus e mouros, minha cara. E, não devo ser hipócrita, a dar-te falsas esperanças: eles, fatalmente, serão julgados culpados e executados, não alimentes dúvidas acerca disso! Foge com a tua filha, enquanto estais livres!
− Jamais deixarei os meus queridos à própria sorte! – brada Sara, indignadíssima. – Prefiro, antes, aqui ficar e morrer juntamente com eles!
− É o que fatalmente irá acontecer, minha cara! – diz o rabino, deixando-se ficar muito triste. – Infelizmente, quem não partir, morrerá! Nenhum judeu sobreviverá ao que promete advir em toda a Espanha, mui em breve!
− Mesmo assim, permanecerei! – persiste Sara.
− Lamento, mas, em assim sendo, nada poderei fazer por vós – diz o rabino, preparando-se para sair. – Entretanto, se mudares de ideia, Sara, avisa-me, que tomarei as providências para que tu e a tua filha deixeis Toledo, o mais rapidamente possível!
O rabino Mordechai Hagiz despede-se e sai. Sara e Maria de los Milagros abraçam-se fortemente. A tarde avançava e, na confortável sala de estar da casa da família Shlomo, apenas o triste e profundo soluçar das duas mulheres ouvia-se...
_______________________________________________________________________________________________________________
218. “– Sim, aqui tens a mocinha!”, em castelhano.
219. Referência ao Convento de Santa Isabel de los Reyes, fundado em 1477 por D. Maria Suárez de Toledo, conhecida como Sóror Maria la Pobre, no reinado de Carlos I.
220. “− Louvado seja Deus, Senhor do Universo!”, em árabe.
221. “− Que se passa?” (...) “− Estiveste com D. Aníbal?”, em castelhano.
222. “− Más notícias, Senhor!”, em castelhano.
223. “− Mãe?...”, em hebraico.
224. “− Filha!...”, em hebraico.
225. O café da manhã, em hebraico.
226. O jantar, em hebraico.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 7:55 pm

Capítulo XXVIII. Torturas inquisitoriais
D. Tomás de Torquemada recebe a notícia do notário Antón Gonzáles.
− Que dizes, D. Gonzáles?!... A maldita bruxa marrana evadiu-se?! – grita o inquisidor-geral, furibundo.
− Uma vez mais os marranos subornaram a chefia da guarda, e a desgraçada fugiu! – explica o notário.
− É a segunda vez que isso acontece! − ruge D. Torquemada, tomado de fúria intensa. – O antigo capitão da guarda recebeu a peita, mas traiu os malditos marranos e fugiu, ele mesmo, certamente com a gorda propina que para isso recebeu!... – e a menear a cabeça, sistematicamente, a esconjurar, prossegue: − E agora esse outro que foi maior traidor que o outro, pois permitiu que a marrana, efectivamente, escapasse!
− ¡Por supuesto, Señor! – concorda o notário. – E que atitude tomareis?
− Faze vir à minha presença os marranos parentes da bruxa, pois pretendo interrogá-los – ordena o inquisidor-geral.
Em pouco, os quatro judeus estavam diante de D. Torquemada.
− Quem é o chefe do grupo? – pergunta o inquisidor-geral, rispidamente.
− Não temos chefe, Senhor – responde Yaacov Shlomo. – Somos apenas uma família judia que se encontra presa, arbitrariamente, por este Tribunal!− Bom que evites as ironias, marrano! – grita D. Torquemada, altamente ofendido pelas palavras de Yaacov. – E pelo teu tom, tu deves, mesmo, ser o chefe desta matula! – e, furioso, vai directo ao ponto: − A maldita bruxa marrana, que pertence ao teu bando, evadiu-se da prisão, certamente sob corrupção por ti urdida! Então, responde, velhaco: − Para onde fugiu a desgraçada?
− Nem não sabia que a minha filhinha havia escapado! – exclama Yaacov, a olhar felicíssimo para os companheiros que, por sua vez, iluminaram-se com a notícia. – Yavé seja louvado! – exclama o ourives, pondo-se de joelhos. – Ao menos, ela conseguiu escapar!
− E, seguramente, foste tu a financiar esse corrupto que a deixou evadir-se! – exclama D. Torquemada. E, a olhar, alternadamente, para os quatro judeus, diz: – Mas, juro por Deus que vos farei abrir a boca, a dizer-me onde é que a maldita bruxa esconde-se!... Ah, isso eu vos prometo!
− Como poderei dizer-te onde se esconde a minha menina, se sequer sabia que ela se havia evadido? – responde Yaacov.
− Ah, tu me dirás, com toda a certeza, onde se oculta a desgraçada bruxa, marrano! – esbraveja D. Torquemada, com estranhíssimo brilho aos olhos. – Garanto-te de que temos métodos bastante eficazes para amolecer-te a língua! – e, levantando-se, ordena aos esbirros que se achavam de prontidão, à entrada da sala. – Levai os outros três marranos de volta à cela!
− Não!... – grita Benyamin, abraçando-se, firmemente, ao pai. – Tereis de levar-me com ele!
− Oh, valente o rapazote! – exclama D. Torquemada, com olhos de louco. E, voltando-se para o notário, pergunta-lhe: − Acaso te lembras, D. Gonzáles, por que é que se acha preso este bravo jovem?
− Ao que me consta, Senhor, está preso por ajudar a acobertar os crimes da irmã bruxa – responde o outro.
− Mas se mostra tão valente, este um! – observa D. Torquemada, agora a medir Benyamin, de alto a baixo, minuciosamente. E a iluminar o rosto, sinal de que gozava intensamente aquele tipo de situação, diz: – Vamos ver se continuas assim corajoso: dou-te a liberdade, agora, se relegares o teu pai à própria sorte!
− Vai-te, Benyamin! – grita Yaacov. – Foge!...
− Não, pai! – grita o jovem. – Sem mim, eles te matarão!
− Aproveita, Benyamin! – diz Andrés. – És muito jovem, ainda!
− Vai, meu filho! – suplica Yaacov, com os olhos cheios de lágrimas. – Lá fora, tua mãe te espera!
− E então? – pergunta D. Torquemada. – Vês como a Igreja e seu Santo Tribunal são magnânimos, diferentemente do que andam os marranos a apregoar por aí? Também somos misericordiosos para com os pecadores!
− E tu, papai? – pergunta Benyamin, agora já com a dúvida a invadir-lhe a cabeça. – Como ficarás?
− Deixa-me, que saberei defender-me, meu filho! – e abraçando-se a Benyamin, com o intuito de despedir-se dele, murmura-lhe ao ouvido, em hebraico: − Vai, mas não para a nossa casa, de imediato. Procura, antes, a D. Mordechai Hagiz, entendeste?
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 8 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 7:55 pm

O rapaz, assente e se despede dos demais companheiros com forte e longo abraço. Em seguida, quase a correr, ganha a porta do salão do Tribunal e desaparece.
Nesse comenos, D. Torquemada trocara significativos olhares com o notário Antón Gonzáles que, enquanto todas as atenções achavam-se voltadas para o colóquio entre Yaacov e seu filho, aproveitara-se e saíra, antes do jovem, com o propósito de segui-lo, certo de que ele o levaria até o esconderijo de Milagros.
Entretanto, não foi isso o que aconteceu. Instruído pelo pai, Benyamin foi directamente para a casa do rabino e dali não saiu mais, fato que deixou o notário bastante decepcionado.
− D. Tomás armou excelente tiro, mas não conseguiu abater a caça! – murmura ele, a deixar a rua onde morava D. Mordechai Hagiz, depois de muitas horas de tocaia. E, quando a noite caiu, e se fez escuridão total, resolveu ir-se. – Acho que esses marranos são mais espertos que imaginamos! – disse ele, em voz baixa, a lamentar o engodo que lhe aplicara o jovem judeu.
− Então, não conseguiste o teu intento, D. Gonzáles? – pergunta D. Torquemada, extremamente decepcionado. – Pregou-nos uma peça o rapazito!... Mas, deixemos para lá esse fato! Amanhã, bem ao alvorecer, arrancaremos a verdade àquele marrano ourives! E, quanto àquele marranito que se achou tão esperto, enganando-nos, não nos será difícil encontrá-lo e o recambiar de volta à prisão, pois deverá, à esta hora, achar-se escondido sob as vestes da mãe.
Agora, entretanto, vamo-nos, que já se faz noite alta, e é preciso descansar!
Bem tarde daquela mesma noite, dois vultos encapuzados deixavam a casa do rabino Hagiz, a caminharem apressados. Eram o próprio rabino e Benyamin que, acobertados pela escuridão, dirigiam-se à residência de Yaacov Shlomo.
Em pouco, mui discretamente, batiam ao portão de entrada da casa. Uma criada veio abrir e pergunta altamente desconfiada:
− Quem sois?
− Delilah, sou eu, Benyamin! – murmura o rapaz, descobrindo-se.
− Tu?!... Yavé sagrado!... – diz a serviçal, estupefazendo-se, à vista do jovem. – A patroa não vai acreditar!
Em pouco, Sara, ainda sonolenta, vem ao encontro dos dois que a aguardavam sentados sobre almofadas da sala de estar.
− Benyamin! – grita ela, abrindo os braços, à vista do jovem. – És tu mesmo, meu filho!
− Sim, mãe, sou eu! – exclama o rapazinho, abraçando-se à mãe. – Oh, senti tanto a tua falta!
− Também eu, meu tesouro! – diz Sara, entre lágrimas de incontida alegria. – Também eu sofri tanto por ti! – e a afastar-se um pouco do filho, pergunta: − E o teu pai, como está ele?
− Deixei-o bem, mãe – responde o rapaz.
− Mas, como conseguiste evadir-te de lá? – pergunta Sara.
− Eles me libertaram – responde Benyamin.
− Mas, com que intuito libertaram-te? – pergunta Sara, não conseguindo, ainda, entender como o filho encontrava-se livre.− Parece que o próprio D. Torquemada libertou-o, Sara – explica o rabino, a entrar na conversa.
− Mas com que propósito? – questiona Sara, altamente desconfiada. – Ao que me consta, aqueles monstros não costumam fazer isso!
− D. Torquemada admirou-se de como eu defendi o meu pai e, então, achando-me tão corajoso, mandou que me soltassem!
− Não creio nisso! – exclama Sara, agora, a trocar olhares com o rabino. – A mim não me enganam: por trás disso deverá esconder-se alguma armadilha! – e depois de cogitar por instantes: − Já sei: a tua irmã! Eles te lançaram como isca! – e a pôr-se desesperada, prossegue: − D. Hagiz, não crês que soltaram Benyamin, com o propósito de o seguirem e descobrirem o paradeiro de Milagros?
− Yaacov mesmo já previu isso e, ao despedir-se de Benyamin, ordenou que para aqui não viesse, directamente, que me procurasse antes, com o intuito de despistar qualquer tentativa de o seguirem!
− Mas aqui não se faz lugar seguro para nenhum dos dois! – exclama Sara, preocupadíssima. E, com olhos súplices, dirige-se ao rabino: − D. Hagiz, ajuda-nos, por Yavé!
− Infelizmente, Sara, nenhum lugar mais em Toledo mostra-se seguro para os teus filhos! – responde o rabino. – A única solução é a que já te expus antes: deves emigrar para Portugal.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 08, 2024 7:56 pm

− E deixar meu Yaacov para trás? – rebate a mulher. – Não, D. Hagiz, jamais farei isso!
− Então, para uma solução temporária, sugiro que deixeis Toledo e demandeis Madrid, por exemplo: não é tão longe daqui e poderei, eventualmente, mandar-te notícias de Yaacov. E, por feliz circunstância do destino, a caravana de D. Avner Gabay, o mercador, parte, amanhã de manhã, para Madrid! Destarte, podereis imiscuir-vos entre os caravaneiros e viajardes com mais segurança, a salvo das eventualidades que poderão surgir pelos caminhos!
− Que achas disso, meu filho? – pergunta Sara, dirigindo-se a Benyamin.
− Penso que D. Mordechai tem razão, mãe – responde o jovem.
– Por aqui é que não poderemos mais ficar. E por que não vamos, de vez, para Portugal? Creio que lá estaremos mais seguros que aqui, em Espanha!
− Não, meu filho! – rebate Sara. – Não tão longe do teu pai!
− Papai também poderá ser libertado! – diz o rapaz. – Acaso não conseguiste que libertassem Milagros?− Sim, D. Hagiz ajudou-me a libertar a tua irmã, corrompendo o chefe da guarda – e se voltando para o rabino: − Não crês, Senhor, que poderemos também libertar Yaacov?
− Impossível não é, Sara! – diz o velho rabino. – Entretanto, digo-te que não será nada fácil, pois não crês que, tendo acontecido pela segunda vez, os inquisidores não hajam tomado providências para coibirem tal prática? Mas, advirto-te: os teus filhos correm sério risco de serem recapturados!
− Oh, mãe, D. Mordechai pode ter razão! – exclama o jovem. – Por que não permites, ao menos, que eu e Milagros fujamos para Madrid e lá aguardemos até que consigas libertar papai?
− Eis uma solução, Sara! – diz o rabino. – Mas penso que devereis fugir amanhã, bem de madrugada, a seguirdes a caravana de D. Gabay, que deverá partir, mesmo antes que o dia clareie!
− Está bem! – concorda a mulher. – Ficareis em Madrid e lá aguardareis por mim e pelo teu pai que, com a ajuda do Altíssimo, conseguirei, também, libertar!
Depois disso, Sara despertou Milagros, que já dormia, e a pôs a par do plano de fugir para Madrid com o irmão.
Pequena azáfama, então, instaurou-se na casa, com o propósito de arranjarem as bagagens e petrechos necessários para a viagem e, antes mesmo que se fizesse dia claro, tudo já estava pronto sobre o lombo de dois fortes muares, além de dois bons corcéis de monta.
− Segundo as recomendações de D. Hagiz, devereis juntar-vos à caravana ao pé da ponte!... Ide depressa, que já se faz tarde!... E que Yavé santíssimo acompanhe a vossa caminhada, meus queridos! – exclama Sara, chorosa, a despedir-se dos filhos, − E assim que vos estabelecerdes em Madrid, mandai dizer-me, por mercador judeu que por lá passar!
E, com os olhos rasos de lágrimas Sara Shlomo vê partirem os filhos amados, logo engolidos pela pesada escuridão que ainda se abatia sobre Toledo.
Logo que o dia seguinte amanheceu, D. Tomás de Torquemada já estava a postos.
− Retomemos a questão da bruxa marrana, D. Gonzáles – diz ele ao notário. – Para mim, torna-se ponto de honra recapturar aquela maldita!
− E não concordais que, primeiro, deveríamos fazer uma devassa na casa do pai da bruxa? – observa o notário. – Quem sabe não se esconderá ela por lá, nalgum cómodo discreto?
− Tendes toda a razão, D. Gonzáles! – concorda o chefe da Inquisição de Toledo. − E acho que vós, em pessoa, devereis seguir com os esbirros até lá!
− Se a desgraçada lá se encontrar, D. Tomás, eu a trarei de volta, presa pelos cabelos! – exclama o notário, com cínico sorriso aos lábios!
− Que Deus vos acompanhe, D. Antón! – exclama D. Torquemada, a abençoar o outro, traçando uma cruz no ar.
Em pouco, Sara surpreendia-se com os soldados do Tribunal, a invadirem, truculentamente, a sua casa.
− Vasculhem tudo, em minúcias! – ordena D. Antón Gonzáles aos esbirros. – Nada deixeis escapar! – e, voltando-se para Sara, prende-a, violentamente, pelo punho e grita: − E tu ficarás aqui, marrana desgraçada, e melhor farias se me antecipasses onde é que escondeste a tua filha bruxa!
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