LUZ ESPÍRITA
Gostaria de reagir a esta mensagem? Crie uma conta em poucos cliques ou inicie sessão para continuar.

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Página 3 de 10 Anterior  1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10  Seguinte

Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 01, 2024 7:52 pm

− Pensa que, de pouca valia será casá-los, às pressas, uma vez que isso não será garantia de nada para a nossa filha, se o infame, efectivamente, intentar desgraçá-la!
− Então o que estão esperando para pôr um fim àquele demónio? – exclama Sara, exaltando-se.
− E achas que já não conversamos sobre isso? – diz Yaacov, baixando, propositadamente, a voz. – Sicários bem treinados existem aos montes em Toledo... Basta que se estalem os dedos, e sairão de suas tocas, como os ratos!
− É uma saída, não resta dúvida! – redargui a mulher. – Mas, e se nos descobrem?... A forca ser-nos-á certeira!
− Enforcados, de antemão, já nos encontramos todos, Sara! – diz Yaacov, a passar, nervosamente, a mão sobre o rosto suarento. – Com a volta do Tribunal, quem de nós se achará a salvo?... Basta uma única denúncia! Umazinha só...
− Já não nos baptizamos na seita do Crucificado, não mudamos o nosso nome?... – explode a mulher, como lhe era do feitio, diante das contrariedades da vida. – Que mais querem de nós esses miseráveis?
− O nosso ouro, minha cara, o nosso ouro!... – responde Yaacov, a menear a cabeça, cheio de tristeza. E, a tornar-se ainda mais lastimoso: − E, além das nossas riquezas, alguns desses demónios cúpidos nada mais desejam que a desgraça das nossas filhas...
− Só se passarem por sobre o meu cadáver!... – explode Sara, levantando-se e se pondo a caminhar pela sala como uma possessa. E, quase a gritar, continua: – Carne da minha carne não lhes servirá de pasto à sanha lúbrica!... Isso eu juro!...
− De nada adiantará suas ameaças, minha querida! – diz o homem, também se levantando e se pondo a caminhar atrás da esposa. – De qualquer modo, eles nos esmagarão como vermes!...
Ninguém sobreviverá à sórdida apetência desses infames, se a perseguição contra nós for, realmente, desencadeada!... Nenhum judeu escapará, nem mesmo nós, que somos baptizados, pois sabem, perfeitamente, que apenas fingimos aceitar a fé que nos impuseram! Diz-me: de fato, és cristã, Sara?
− Não!... Sou judia!... – explode a mulher, de volta, a fremir os lábios de ódio. – Tu sabes muito bem que nunca abjurarei a fé dos meus antepassados!... Jamais!...
− Então já sabes, de antemão, o que acontecerá! – diz o homem, dando de ombros. – Farão de nós o que desejarem, minha cara!
Sara, então, foi se deixando tomar pelo desespero, e um choro convulso agitou-lhe o corpo todo. Lentamente, foi dobrando os joelhos e acabou por cair genuflexa sobre o fofo tapete de lã que recobria o chão.
Yaacov acocora-se ao lado da esposa que chorava baixinho. Os filhos do casal, alertados pelo vozerio que provinha de dentro da casa, haviam adentrado a sala e, abraçando-se, juntinhos, e, de olhos arregalados, observavam a atitude de profundo depauperamento a acometer os pais, ali prostrados sobre o tapete.
− Acalma-te, meu amor! – exclama Yaacov, a acarinhar o rosto da esposa, com o dorso da mão. – Não nos precipitemos!... Muita água ainda há de correr, até que esse maldito Tribunal venha a incomodar-nos!... Eu e Ben Hanan conversaremos, muito em breve, acerca do que fazer, acaso as coisas voltem a complicar-se por aqui!
− Ah, Yaacov!... Yaacov!... – exclama Sara, ainda extremamente exaltada. – Sabemos, muito bem, eu, tu e Ben Hanan o que vai suceder-nos, se esse maldito Tribunal voltar! Acaso já te esqueceste do que aconteceu, ainda recentemente, em Sevilha?... Esqueceste, é?... Quantos inocentes dos de nossa raça lá pereceram, covardemente perseguidos pelos desgraçados padres?
− Sim, aconteceu! – rebate Yaacov. – Mas, e daí?... Não estamos em Sevilha...
− Oh, como podes ser tão ingénuo! – ironiza Sara. – Que diferença, acaso, haverá nas acções desse abjecto Tribunal, cá ou lá?... Vamos, diz-mo!
− Nenhuma... – diz Yaacov, baixando os olhos, vencido. – Nenhuma... – e reacendendo-se, de repente: − Mas, haveremos de dar um jeito, tu bem verás!
− Que jeito, Yaacov? – brada Sara, com a voz molhada pelo pranto. – Depois que vierem arrombar a nossa porta, a rapinar o que temos e a desgraçar os nossos filhos?... Depois que isso acontecer, é que tu e Ben Hanan dareis um jeito?
− Acalma-te, meu bem! – diz Yaacov, buscando tranquilizar a esposa. – Também não é assim... Agora os tempos são outros...
− Para judeus, nunca os tempos serão outros, Yaacov! – rebate a mulher, ainda bastante nervosa. – Para nós, sabes muito bem, os pogroms são corriqueiros, esqueceste? A pecha maldita de executores do Crucificado perseguir-nos-á eternamente! – e a lamentar-se, ainda mais: − Oh, que fiz eu a Cristo?... Já se passou tanto tempo, desde aquela infamante crucificação, e teimam em culpar-nos por algo que, decididamente, não fomos nós que fizemos!... Os romanos mataram Jesus, não nós!
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 01, 2024 7:52 pm

− Ora, bem sabes, Sara, que essa história já deu muito o que falar!... – diz Yaacov, a impacientar-se. – Se ficarmos a discutir quem é que matou o Crucificado, chegaremos ao final do ano e nenhum acordo fecharemos!... O que penso é que a Humanidade matou Cristo!... E se, de repente, estivesse Ele, cá, de novo, todos nós O haveríamos de abater, bem depressa!... Aquele Homem, Sara, foi um grande revolucionário e mexeu com todas as coisas que já se achavam estabelecidas – e bem podres, por sinal! −, se queres mesmo saber o que penso a respeito! Jesus veio para dividir as opiniões acerca da religião e dos costumes, em todos os lugares!− Só se mudou a opinião do resto do mundo!... – rebate a
mulher, resoluta. – A minha ninguém mudou!
− Sei que és uma rocha, meu amor! – exclama Yaacov. – Fé como a tua, não se acha por aí, facilmente! – e se ri.
Depois, Sara foi se acalmando, aos poucos, e, abraçando-se ao esposo, diz, com fundo suspiro:
− Se Yavé anda a pôr-nos em prova, que haveremos de fazer?
Sequer nosso pai Avraham escapou, não é mesmo? O Altíssimo pediu-lhe em sacrifício o único filho que tinha...
− Sim, e Avraham não titubeou um segundo, em oferecer Yitzhak a Yavé, em holocausto...
− Mas o Altíssimo, na verdade, não desejava o filho de Avraham... O que Ele desejava, mesmo, era pôr nosso patriarca em provação, solicitando-lhe o seu maior bem...
− E Avraham deu-Lhe Yitzhak...
− Que Yavé acabou por não aceitar...
− Era só uma provação... – diz Yaacov. − Assim, certamente, agirá o Altíssimo para connosco: só anda a provar-nos e, no momento aprazado, libertar-nos-á a todos!
− Só peço a Yavé que tenhas razão, Yaacov! – exclama Sara, a enxugar os olhos lacrimosos. – Caso contrário...
− Assim será, meu amor! – e, olhando para os filhos que se mantinham em silêncio, prossegue, a apontá-los: − Achas, acaso, que Yavé teria coragem de abater criaturas tão lindas como essas?... Garanto-te que devem ser tão lindos e afáveis quanto o era Yitzhak!
− Tens razão, Yaacov! – exclama Sara, a abrir ligeiro sorriso. – São bonitos demais para perderem a vida tão cedo!... – e fazendo sinal para que os filhos se juntassem a eles, enlaça-os todos num grande abraço e diz, com os olhos rasos de lágrimas: − Meus amores!... Oh, meus amores!... Amo-vos tanto!...
Lá fora, a noite caía lânguida, pintando o mundo todo de negro.
Por aquele momento, a família Shlomo sentiu-se segura, fortemente unida pelos laços da ternura e do amor intenso que os envolvia profundamente...
___________________________________________________________________________________________________________
82. Rodrigo Bórgia (1431 – 1503), futuro papa Alexandre VI e espanhol de nascimento.
83. “− Que desejará D. Isabel, de mim?... Vamos ver...”, em castelhano.
84. “− Muito obrigada, Eminência!”, em castelhano.
85. “− Certamente, Senhora”, em castelhano.
86. A Extremadura é uma região da Espanha.
87. As pretensões de Rodrigo Borja para alcançar o papado realizar-se-iam somente tempos depois, quando usaria sua fortuna pessoal, aliada à prestimosa contribuição dos reis espanhóis, Fernando e Isabel, para comprar a maior parte dos votos dos cardeais, ao se realizar o conclave para definir a sucessão do papa Inocêncio VIII, morto em 25 de Julho de 1492.
88. Referência ao papa Sixto IV, que desencarnaria em Roma, no ano seguinte, 1484, a 12 de agosto.
89. Local onde mais tarde surgiria a praça Zocodover, cujos traços originais seriam desenhados por Juan de Herrera, durante o reinado de Felipe II (1556 – 1598).
90. Pastel da culinária judaica, recheado com queijo e ovo.
91. Reinava, em Portugal, por essa época, 1483, D. João II que, ao assumir o trono, despendeu nova perseguição aos judeus, os quais, no reinado de seu antecessor, D. Afonso V, haviam conquistado certa benemerência e até mesmo protecção do soberano. Entretanto, ao subir ao trono, D. João II acabou com a melhoria temporária da vida dos judeus no país. Sob seu reinado, outra leva de judeus espanhóis expulsos de seu país tentou se refugiar em Portugal. O rei aceitou parte das famílias sob pretexto de precisar de bons ferreiros para a preparação na guerra contra os mouros. Os judeus tinham de pagar sua estada que durou apenas 8 meses. Depois desse tempo predeterminado, os judeus espanhóis foram expulsos de Portugal, e aqueles que se recusassem a sair seriam vendidos como escravos.
92. Referência a D. Afonso V, de Portugal (1432 – 1481).
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 01, 2024 7:52 pm

Capítulo VII – Ajustes entre amigos
Naquele exacto instante, no palácio arquiepiscopal, D. Aníbal Velásquez recebia o seu particular amigo, D. Fernán Guillén.
− Presumo que já andas a par das novas, D. Fernán! – exclama D. Aníbal, abraçando-se, efusivamente, ao velho companheiro.
− ¡Por supuesto! – responde o visitante, sentando-se na poltrona que o outro lhe indicava com a mão. – Contou-me o bispo de Sevilha. Andava eu naquele lugar, por conta do recebimento das rendas de uma das propriedades que lá possuo. Mas, diz-me, D. Aníbal: conheces bem D. Torquemada?
− Se conheço... A rainha não podia ter feito melhor escolha... – fala D. Aníbal, enquanto enchia de vinho duas taças de finíssimo cristal.
− E por quê? – pergunta D. Fernán, ao receber a taça das mãos do amigo.
− Sabes que vivi uns tempos em Santo Domingo, antes de me fazer secretário do arcebispo, não é? Pois então, por esse período, tive contacto muito íntimo com D. Tomás de Torquemada; mais pelo prazer da sua conversa, pois ele, inegavelmente, é dono de cultura ímpar. Sabes muito bem o quanto prezo uma boa conversa com gente culta!
− E que impressão tiveste dele?
− Além de demonstrar profundo conhecimento sobre os cânones, D. Tomás caracteriza-se por odiar, profundamente, os marranos...
− Deveras?... – exclama o outro, a abrir largo sorriso de satisfação. – Então é dos nossos!− E como!... Devota aos judeus tamanho ódio do qual sequer podes imaginar a intensidade.
− Então, acha-se ele, de fato, talhado para esse mister! – observa D. Fernán.
− Como ninguém mais! A rainha acertou em cheio!
− E tu? – pergunta D. Fernán, depois de alguns instantes, quebrando o silêncio que se estabelecera entre ambos. – Como vai o teu coração?... Da última vez em que nos avistamos, andavas doido por uma judiazinha...
− Continuo na mesma, D. Fernán! – responde o outro, com as feições a angustiarem-se sobremodo. – Essa paixão consome-me com a voracidade de um incêndio!
− Deverias saber que assim agem as grandes paixões, mi amigo! – e se ri.
− E, com tamanho furor, acabará por consumir-me!
− Por certo que sim! – concorda D. Fernán. – Por isso é que tens de desafogar-te, bem depressa, ou acabarás calcinado por esse fogo voraz!... Dicitur ignis homo, sic femina stupa vocatur; insuflat deamons!...93
− Disso eu sei! – rebate o outro. – Mas, como agir para alcançar meus anseios?
− Acaso não és amigo de D. Torquemada, o inquisidor-geral? − observa D. Fernán. – Peça-lhe a judiazinha que tanto te faz sofrer, e ele ta servirá pronta, numa bandeja!
− Oh, não vejo como! – redargui o outro. – Às vezes, admira-me o poder que deténs em tuas ideias, para resolver intrincadas questões, assim tão facilmente! Será, acaso, esse teu pensamento advocatício a enxergar sempre a relatividade das coisas?
− Creio que sim – responde o outro, rindo-se. – Para mim, o relativismo94 gerencia a nossa vida. Occasio facit furem...95
− E, então, segundo os teus laudáveis preceitos relativistas, devo aproveitar-me dessa situação...
− Por certo que sim! – responde o outro, avivando-se. – E eu, por ser o teu amigo favorito, seguir-te-ei no vácuo que a tua corrida em busca do que desejas irá facultar-me!
− Como?... – pergunta o outro, lacónico. − Explico-me: sabes muito bem que esses marranos são muito bem de vida... O que possuo, perto do que têm, não passa de querelas!... Não vais, acaso, desgraçar a vida deles, para meteres a mão na bela donzela?... Bem, eu entro contigo nesse jogo particular e fico com parte dos despojos! – e se ri, desbragadamente: Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Hum!... – rezinga o outro, com a mão direita fechada, a sustentar o queixo. – Bem vi que atrás disso se escondia bem arrematado interesse! Sabes, como ninguém neste mundo, bem seguir os escuros e tortuosos meandros para atingir os teus anseios!
− Como muito bem sabes, sou bastante prático e considero minhas posses atuais ainda muito apoucadas − modestíssimas até!
−, diante do que possui a nobreza toledense – diz o outro. – E é preciso estendê-las ao máximo, para que eu não seja mais humilhado e ultrajado pelos grãos senhores deste reino e, ainda, para garantir que a minha velhice seja venturosa e segura! Não sabes o quanto temo a miséria!
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 01, 2024 7:53 pm

− E para que queres tanto dinheiro em tua velhice? – questiona o outro. – O dinheiro serve-nos muito mais, enquanto temos o vigor da juventude, para bem viver e haurir o amor das belas mulheres!
− Tens razão! – concorda D. Fernán. – E isso confere ainda mais força à minha tese! Para ter-se aos braços as mais belas mulheres de Espanha, é preciso muito ouro! Uma montanha de ouro!... E acho que sabes quanto custa manter duas ou três amantes...
− É esse o montante das que, no momento, possuis? – pergunta D. Aníbal, em tom jocoso, e a abrir um sorriso cínico.
− Mais ou menos... – responde o outro, a rir-se. – E, como não faço parte da Santa Madre Igreja, a favorecer-me todos os meus gastos, minhas mulheres levam quase todas as minhas rendas... Tu, entretanto, tens essa vantagem...
− Ah, crês, então, que me é tremendamente fácil meter a mão ao gazofilácio, a meu bel-prazer? – diz D. Aníbal, pondo-se de pé, com as mãos espalmadas aos flancos, fingindo indignar-se.
− E não é? – rebate o outro. – Pelo que percebo por aí...− É verdade – diz D. Aníbal. – As coisas todas me são facultadas, sim. O alto clero detém a chave do escrínio! Temos o que queremos, e ninguém nos impede! Acaso não somos a cabeça da Igreja? – e se ri.
− Mas, voltemos à judiazinha dos teus sonhos... – fala D. Fernán, fazendo-se mais sério. – O que te proponho é real: a mim me interessa sobremodo as posses de Yaacov Shlomo... Sabias que ele é muito rico?... Bem mais que eu, tu e o arcebispo juntos...
− Presumo que sim – diz D. Aníbal, a demonstrar patente desinteresse pelo fato. – Entretanto, a mim me interessa outro tesouro que ele possui...
− Então te proponho um negócio: juntemo-nos em nossos propósitos e sairemos ganhando os dois!
− Pensando bem, não é de nada mau o que me propões, D. Fernán – diz D. Aníbal Velásquez, voltando a sentar-se ao lado do amigo, altamente excitado com a proposta. E, depois de levar a sua taça de vinho aos lábios e de sorver longo trago da bebida, prossegue: − Tu terás o ouro do abjecto marrano, e eu, a sua formosíssima filha...
− Assim é que se fala! – exclama o outro, felicíssimo, elevando a sua taça em brinde. – ¡Salud!... Sairemos lucrando os dois!
− Agora, entretanto, é preciso traçar os planos – observa D. Aníbal, pondo-se mais sossegado. – Como pensas agir?
− Por ora, ainda nada faremos – diz D. Fernán. – É preciso aguardar que o Tribunal principie as suas actividades, facto que presumo não se demorar muito. E, assim que a máquina começar a movimentar-se, faremos a denúncia.
− E baseados em quê, faremos a denúncia? – pergunta D. Aníbal.
− Creio que o lugar-comum da maior parte das denúncias será a prática oculta do judaísmo, como ocorreu, recentemente, em Sevilha. Recordas-te?
− Sim, lembro-me perfeitamente – responde o outro. – O que levou à série de autos-de-fé que lá ocorreram.
− E que acabaram por deixar o papa muito enfezado com tais desmandos!− E extinguiu o Tribunal...
− Sim...
− E não crês que, se voltarmos a matar os marranos, a torto e a direito, Sua Santidade não acabará por suspendê-lo de novo?
− É um risco que correremos...
− Se não tivermos critérios, o Tribunal não sobreviverá – diz D. Aníbal.
− Suas Majestades e o Tribunal deverão agir bem depressa, ou teremos complicações – observa D. Fernán. − Por outro lado, não há como se estabelecer critérios para uma matança generalizada, pois sabes tão bem quanto eu que a finalidade única para a instauração da Inquisição, em Toledo, não vai além de se consumar a limpieza...
− E, embutido nisso, a montanha de ouro que esses desgraçados têm escondida sob o imundo colchão em que dormem... – observa D. Aníbal, com forte expressão de desprezo às feições.
− E, no momento em que esse processo desencadear-se, existe tanta cupidez em Toledo que nada escapará à sanha do povo. Será uma chuva de denúncias contra os marranos que o Tribunal não dará conta! – exclama D. Fernán, a rir-se descomedido.
− Mas será que não se estabelecerão, de fato, critérios para as denúncias? – questiona D. Aníbal. – Repito: se não houver o mínimo de cometimento, os excessos chegarão a Roma, e aí...
− É claro que o Tribunal pretenderá, ao menos aparentemente, estabelecer critérios para as denúncias! – diz D. Fernán Guillén.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 01, 2024 7:53 pm

− Nesse caso, D. Torquemada haverá de virar-se, pois sobre ele recairão todas as consequências daí advindas – diz D. Aníbal. – E espero que saiba bem usar a inteligência e o conhecimento que o caracterizam.
− Não se preocupe! Além de sábio, ele é sumamente esperto! – observa D. Fernán. – Poucos, neste desgraçado mundo, conseguiram juntar esses dois atributos: esperteza e inteligência!
Muitos são espertos, mas não são inteligentes; outros são inteligentes, porém não são argutos! Uma minoria, de facto, consegue juntar essas duas características bem humanas que, em separado, muito pouco representam, mas juntas!...
− As cobras com asas!... – exclama D. Aníbal Velásquez, a rir-se.
− Perfeitamente! – brada o outro, também se pondo a rir. – Deste a qualificação correta: as serpentes aladas! D. Torquemada é uma serpente alada!...
− Mas que, aparentemente, não se mostra como tal! – diz D. Aníbal. – Quem o vê, a envergar a sua sotaina surrada, por ele não dá um maravedi96 broquento!
− Aí é que se oculta a sabedoria desse homem! – exclama D. Fernán. – A um exegeta de tal monta não fica bem a desmesurada ostentação, e D. Torquemada disso sabe muito bem! Muito ouro e excessiva jactância já mancham, a priori, o halo dum sábio ou dum santo. Não combina, entendes?
− Acho que sim – diz D. Aníbal. – Impossível imaginar São Francisco de Assis coberto de púrpura e de finíssimas joias! Assim também se caracteriza D. Tomás: os ouropéis não lhe caem bem!
− Mas que cabem muito bem a tantos outros que por aí enxameiam, não é? – observa D. Fernán, a rir-se. – Cheios por fora e vazios por dentro...
− Certamente... Mas, diz-me, D. Fernán – prossegue D. Aníbal, propositadamente, mudando o rumo da conversa −, se fizermos a denúncia contra Yaacov Shlomo não estaremos, em contrapartida, também a assolar Ben Hanan, o secretário da rainha? Acho que já te contei que Milagros é noiva do filho dele.
− E achas que, quando se iniciar a perseguição aos marranos, a rainha desejará manter um secretário judeu? Não creio...
− Mas Ben Hanan é muito bem relacionado, além de possuir fortuna incalculável! – observa D. Aníbal. − Sabes como são as coisas: o ouro compra qualquer consciência...
− Sendo ele assim tão rico, mais se encaixa aos nossos propósitos! – exclama D. Fernán.
− Aos teus propósitos, não aos meus...
− Que seja, mas estão relacionados – rebate D. Fernán. – Se pegarmos Yaacov Shlomo, consequentemente, teremos que abater também o outro. Já reparaste no palácio que Ben Hanan habita? − Tal palácio, meu caro, os soberanos certamente não deixarão para ti! Terás de contentar-te com as sobras... E isso se as rapinas sobrarem!... Creio que uma nuvem de abutres, bem mais vorazes que tu, abater-se-ão sobre os bens desses desgraçados judeus... A carniça não tem donos; mais se abastece dela quem for mais vivo e mais voraz!
− Mais glutão por ouro que eu, conheço poucos, por estas plagas de Espanha... – diz D. Fernán, a vazar ironias. – E dizes isso porque os teus interesses ora são outros... E a Igreja abastece, diuturnamente, a tua adega, senão...
− Ora, ora, D. Fernán! – exclama D. Aníbal, um tanto agastado com o amigo. E com as feições rúbidas pela súbita raiva que o acometia, brada: – Não te ponhas acima de mim, pois somos feito do mesmo estofo!
− Oh, não te exaltes, mi amigo! – diz o outro, levantando-se e depositando a sua taça vazia sobre um guéridon de madeira escura, prossegue: – Não há motivo para te agastares tanto assim! Vamos lá!... Baixa a guarda; não te quis ofender! – e estendendo os braços abertos: − Dá-me cá um abraço...
Após se abraçarem, voltam a sentar-se. D. Aníbal já trazia o semblante quase desanuviado.
− Se não nos mantivermos unidos, difícil ser-nos-á atingir os nossos anseios, D. Aníbal! – exclama D. Fernán, recebendo do outro a taça novamente repleta de vinho.
− Tens razão, D. Fernán – diz o prelado, bem mais calmo, após sorver longo hausto da bebida rubente e capitosa. – Embora tenhamos interesses diferentes, mais fácil ser-nos-á alcançá-los, juntando as nossas forças.
− Agora, convém urdir bem o nosso plano, para que nada saia errado – observa Fernán Guillén. – Como há muitos alvos a atingir, é preciso ter munição suficiente para sairmos vitoriosos desse embate.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 01, 2024 7:53 pm

− Assim também penso. E por onde pretendes iniciar? – pergunta D. Aníbal.
− Estive, cá, pensando: primeiro é preciso sondar e descobrir tudo sobre o que fazem esses desgraçados marranos − seus hábitos e o que costumam fazer, diuturnamente − o que não nos será difícil obter, uma vez que poderemos contratar alguém da nossa confiança, para bem executar tal mister, pagando-lhe muito bem, é claro, e que poderá fazer tudo isso por nós. Precisamos ter elementos palpáveis e evidentes, D. Aníbal, a sustentarem a nossa denúncia.
− Concordo com tudo o que disseste – diz D. Aníbal. E, a abrir um sorriso de quase deboche, prossegue: – E, por tuas palavras, percebo que deve fazer, já, algum tempo que andas a planear tal patranhada, não é?
− Andas a ficar esperto, D. Aníbal! – exclama o outro, a rir-se descomedido. – Para empreitada de tal monta, necessário faz-se muito planeamento. Nada poderá dar errado!
− Certamente! Mas, diz-me, D. Fernán – pergunta D. Aníbal −, acaso já conheces, de antemão, como funcionará o Tribunal?...
Porventura não se regerá ele por legislação pré-existente nos outros tribunais inquisitoriais já instalados, aqui mesmo, em Espanha?
Acaso não serão todos eles regidos por legislação única e universal?
− Sim, há um fundo legal baseado nos cânones; entretanto, em específico, para o Tribunal de Leão e Castela, o papa fez-nos uma concessão, fruto das negociações entre o Estado castelhano e a Santa Sé: nossos soberanos terão a liberdade de escolher o inquisidor-geral – conforme já o fizeram −, e ainda, de estabelecerem um códice próprio, adicional, segundo as necessidades do Tribunal.
− Naturalmente que o papa abriu essa concessão ao reino de Castela a peso de ouro, não é? – observa D. Aníbal, rindo-se. − Por certo que sim – responde D. Fernán. – Ouro, muito ouro, meu caro!... Mas, também, por outros motivos, dentre os quais, cito o grande empenho dos nossos soberanos em defenderem, ostensivamente, a fé católica em Espanha e o apoio das forças hispânicas – que sabes muito bem o poderio que representam em toda a Europa! −, nas embrulhadas em que o papa, invariavelmente, vive metendo-se.− E como se processarão as provas contra os marranos? –pergunta D. Aníbal. – Mesmo não sendo um advogado como tu, sei que as denúncias devem fundamentar-se em provas. E provas substanciais, creio.
− Mais que as provas materiais, penso que o Tribunal basear-se-á, preferencialmente, nas provas testemunhais – observa D. Fernán Guillén. – E, nos tempos atuais, coisa mais fácil e até relativamente baratas a se comprar são as testemunhas, como bem deves saber...
− Tens razão... – responde o outro. – Há gente cujo preço é bem irrisório. Vende até a mãe, a varejo, nas feiras, por meia dúzia de dobrões de cobre...− Consequência dos tempos, mi amigo! – exclama o outro, com
um riso de fundo escárnio. − A moral malbarateia-se, em todos os círculos: desde o papa, passando pelos reis até os mendigos...− E não crês, D. Fernán – diz D. Aníbal −, que, com o plano de se instaurar a limpieza em terras espanholas, tal desmedido descalabro que campeia entre as gentes, a corroer a moral e os bons costumes, conforme bem disseste, desde os soberanos até os esmoleiros, tudo isso não será benéfico, se se fizer essa filtragem, desterrando e destruindo os que não têm sangue hispânico, as coisas não tenderão a melhorar?
− Sim! Bem verás que, após o refino da raça, quando alijarmos daqui essa gente inferior, tudo tomará outro rumo!... Sabes muito bem como são os ingleses e os nórdicos que pouco detêm dessa raça imunda, a toldar-lhes o povo! Já os latinos e os germânicos, desde há muito, temos que suportar essa imundície, a manchar-nos o nosso solo querido! – e após emitir fundo suspiro, prossegue: − Sabes, D. Aníbal, faz tempo que anseio por uma Espanha unida e, principalmente, limpa dessa escória! E desejo-lhes o desterro ou a aniquilação, não tanto pelo ouro e pelas propriedades que têm, mas por não lhes suportar as manias e os costumes, aos quais devoto o mais surdo repúdio!
− Tens razão! – concorda o outro. – Tudo isso que disseste é bem o que eu penso acerca dessa gente. E mais: não lhes suporto a altivez e a prepotência! Vivem em terra alheia, de favor, e nos destratam e nos humilham com essa pretensa superioridade!− E, entre eles, chamam-nos de “gentios”...− E não é? – concorda o outro. – “Estrangeiros”!..
− Entendes essa colocação? – observa D. Fernán, cheio de ironia à voz. – Tratam-nos de “estrangeiros” em nossa própria terra...
− Ordinários...
− Consideram-se privilegiados, os únicos e verdadeiros filhos de Deus...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 01, 2024 7:53 pm

− E nós, somos o quê? – pergunta D. Aníbal.
− Tenho cá comigo que, pela forma altiva como costumam olhar-nos, não nos consideram irmãos em humanidade; creio que, para eles, não passamos de reles imitação de homens, simples catarrinos97!
− Acho que tens razão, D. Fernán! – concorda D. Aníbal. – Sentem o maior desprezo por quem não é judeu! E os casamentos mistos quase não existem.
− Sabias que, pejorativamente, chamam-nos a nós, os cristãos, de goi, gado?
− E com que propósito fazem isso?
− Certamente com o fito de nivelarem-nos às bestas!
− Mui brevemente verão quem são as bestas! – exclama D. Aníbal e se ri, desbragadamente: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Por certo que sim! – concorda o outro e junta a sua gargalhada à do amigo.
Depois, fazem-se ambos sérios e se põem a cogitar. Fernán Guillén sonhava com a profusão de dobrões de ouro a lhe engordarem, ainda mais, a fortuna pessoal; D. Aníbal Velásquez fantasiava estonteantes enlevos de luxúria com Maria de los Milagros, a judiazinha linda, de olhos negros e amendoados...
− ¡La cena ya se sirve Excelências!...98 – ouve-se a voz grave e pausada de Gumersindo, o mordomo de D. Aníbal, que viera quebrar o fundo cismar dos dois homens.
− À ceia, D. Fernán!... – convida D. Aníbal, passando o braço por sobre o ombro do amigo e o conduzindo à sala de jantar.
− ¿Más fácil es planificar con el estómago lleno, no es cierto?99 – diz D. Fernán, a rir-se.− Amar e planejar fazem-se melhores com a barriga cheia, meu amigo! – corrige-o D. Aníbal. – Tomo-o por mim: nada faço direito, se estou faminto! Nem mesmo saberia agradar, a contento, uma dama qualquer, se estivesse com fome!...
− Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... – ri-se o outro, satisfeito. – Aliás, nada se faz direito, se a pança, primeiro, não se encontrar apaziguada!...
Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− És um pândego, D. Fernán!... – exclama D. Aníbal, também se pondo a rir, diante da chistosa colocação que fazia o amigo.
E, as estrondosas gargalhadas de ambos perderam-se, através das janelas abertas, por onde se podia perceber, fora, a pesada escuridão, muito densa, sem quaisquer laivos de luar.
Toledo preparava-se para dormir. Às ruas desertas, apenas os cães vadios, a revirarem os monturos, e vultos encapuzados que saíam, furtivamente, à cata de aventuras tão escusas quanto o negror da noite que chegava...
___________________________________________________________________________________________________________
93. “O homem é fogo, e a mulher, estopa; vem o diabo e sopra!...”, em latim.
94. Atitude ou doutrina que afirma que as verdades (morais, religiosas, políticas, científicas, etc.) variam conforme a época, o lugar, o grupo social e os indivíduos.
95. “A ocasião é que faz o ladrão...”, em latim.
96. Antiga moeda divisionária, de cobre, que teve curso na Espanha e em Portugal.
97. Subordem de primatas caracterizados pelo septo nasal estreito, pelas narinas voltadas para baixo, e por terem 32 dentes; os pequenos e grandes macacos do Velho Mundo.
98. “− A ceia já está servida, Excelências!...”, em castelhano.
99. “− É mais fácil planejar com o estômago cheio, não é?”, em castelhano.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 01, 2024 7:53 pm

Capítulo VIII – Yaacov Shlomo
A noite caíra fazia pouco. Yaacov Shlomo caminhava depressa; trazia o corpo envolto por pesado manto, e a cabeça revestida por longo capuz, a cobrir-lhe, quase que completamente, as feições, tirante os olhos escuros e brilhantes, a faiscarem na escuridão.
Amiúde, parava e olhava, insistentemente, para trás; depois, voltava a caminhar com passos céleres.
À mente, vinha-lhe o recente colóquio que mantivera com Ben Hanan, acerca de como ambos haveriam de dar cabo do secretário do arcebispo, Aníbal Velásquez, que vinha, insistentemente, assediando a sua filha, Maria de los Milagros, com o intuito de desgraçá-la. “Maldito!...”, murmura Yaacov, a rilhar os dentes de tanto ódio, “Logo bem verás o que acontece a quem ousa molestar uma filha de Sião...”.
Na noite silente, apenas o surdo ruído dos apressados passos de Yaacov sobre as pedras do calçamento das ruas ouviam-se. À mente, vêm-lhe as palavras de Ben Hanan: “Procurarás, na Viela de San Blas, a residência de Ibrahim Assib, o mouro magarefe, e o contratarás a fazer o serviço... Garanto-te que é o melhor em toda a Espanha!”.
Em meia hora, Yaacov achava-se diante do postigo de grande porta de madeira maciça, a destacar-se de alto muro de tijolos caiados. Depois de olhar, demorada e atentamente, para ambos os lados da viela, o judeu bate na pequena vigia da porta, com o nó dos dedos, e aguarda ansioso. Passados alguns minutos, ouvem-se passos ligeiros do lado de dentro, e a portinhola abre-se com pequeno rangido. Uma criada aponta a cabeça.− Procuro por Ibrahim Assib – murmura Yaacov.
− Da parte de quem, Señor? – pergunta a mulher.
− De Ben Hanan – responde Yaacov.
A criada franqueia-lhe a entrada, e ele se encaminha para o pátio interno da residência do açougueiro.
− Meu senhor já virá – diz a criada, após conduzir Yaacov para uma sala e fazê-lo sentar-se sobre as almofadas.
− A que devo a honra? – pergunta o mouro, entrando na sala, depois de algum tempo.
− Aqui estou por recomendação de Ben Hanan – diz Yaacov, a fazer pequena reverência diante de Assib.
− Sim – fala o outro, com a fleuma própria dos grandes assassinos. E pergunta: – De quem se trata?... Eu e Ben Hanan conversamos apenas ligeiramente, hoje de manhã, na praça do mercado, enquanto ele escolhia uma peça de vitelo.
− Do secretário do arcebispo... – diz Yaacov, com a voz baixíssima e a olhar cauteloso para todos os lados.
− Oh, não te preocupes com eventuais testemunhas! – exclama o outro, rindo-se. – Aqui poderás falar abertamente.
− Sabes como é, Senhor Assib! – exclama Yaacov, a emitir um risinho nervoso. – Prudência nunca é demais!
− Não, não!... Garanto que não há com que te preocupares, Señor – diz o mouro, sem deixar, por um só instante, a sua fria impassibilidade. – Esse a quem te referiste é um homem eminente, da Igreja. Conheço-o muito bem! – e, depois de fixar, por alguns instantes, os olhos do seu interlocutor, prossegue: − Dar-me-á um pouco mais de trabalho! – e se levantando de sua almofada, põe-se a caminhar pela sala, enquanto falava: − Esses, assim, mais importantes, como o secretário do arcebispo, não são nada fácil de se eliminar, sem se deixarem rastros... – depois, volta a acocorar-se sobre a sua almofada, bem diante de Yaacov, que lhe seguia as palavras, assaz atento.
− Pagar-te-emos o que pedires! – diz Yaacov.
− Sei que me pagarão! – exclama o mouro, com um fino riso cheio de ironia. – E muito caro, Senhor Shlomo!
− Quanto? – pergunta, afoito, o judeu.− Mil peças de ouro puro! – diz o outro, sem mover um único músculo do rosto.
− Tanto assim vale a vida daquele miserável?! – espanta-se Yaacov com o alto valor solicitado pelo frio sicário.
− Claro que vale! – rebate o outro. – Sabes como são essas coisas: é preciso muito planejar, sondar os hábitos e os costumes do pulha, avaliar os riscos que envolvem a acção, o tipo de arma a ser usado, quando agir, escolher o local mais propício e, ainda, o plano de fuga, pois, se formos pegos, sabes muito bem o que se nos reserva a todos... E, para armar esse plano, não deverei agir só! Em empreitada assim importante, costumo empregar o recurso de alguns amigos...
− Mas é gente de confiança, não? – pergunta Yaacov.
− Naturalmente, Señor Shlomo! – exclama o outro, rindo-se e pondo à mostra um renque de dentes alvíssimos, a contrastarem com o negro da barba e do bigode longo e basto. – Não estás a lidar com principiantes! Costumo servir-me de gente muito capaz, da minha inteira confiança!... Fica sossegado!... E te afianço que, nunca, até o presente momento, algo se me saiu errado – e, a abrir um sorriso pejado de maldade: − E olha que já despachei uma porção de desgraçados ao inferno!
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 01, 2024 7:54 pm

− Assim, sendo... – diz o outro, baixando a cabeça, convencido. E, depois de instantes: – E como deveremos pagar-te?
− Metade agora, e a outra, depois de feito o serviço – responde, de pronto, o mouro.
− Assim será feito – fala Yaacov, tirando, de debaixo do manto, razoável volume de couro, repleto de dobrões de ouro e o passa ao sicário que, bem depressa, apanha-o com olhos aguçados por desmedida volúpia. – Aí está, podes conferir o montante...
− Não será preciso, Senhor Shlomo! – exclama, contentíssimo, Ibrahim Assib. – Sei que jamais irias tentar enganar-me... – e se ri, debochado: − Hi!... Hi!... Hi!... Hi!...
− E quando deveremos aguardar os resultados? – pergunta Yaacov, após o outro ter guardado a pesada sacola de couro sob o manto.− Em breve, tu e Ben Hanan tereis notícias... – responde o assassino, com fino sorriso aos lábios. – Ficai sossegados que, bem depressa, aquele desgraçado encontrará o que merece...
Yaacov despede-se e sai. Ibrahim Assib permanece por um tempo acomodado sobre as almofadas, a cogitar. Seu rosto iluminava-se com largo sorriso de contentamento, enquanto apalpava, com ambas as mãos, o volume que ocultava sob o manto de lã. Em seguida, volta-se para uma das portas que dava à sala e diz, com a voz emoldurada pelo riso de satisfação:
− Já podes vir, Ali!... Sei que estás aí!...
− Abi!...100 – exclama o jovem de dezoito anos, acocorando-se diante do pai.
− Ouviste tudo, não é? – pergunta Assib ao filho.
− Sim, abi! – responde o rapaz de feições amorenadas e olhos negros e frios como os do pai.
− Então nada te preciso repetir sobre a conversa que tive com o judeu...
− Nada, abi!... A tudo ouvi muito bem!
− Perfeito!... Agora, depressa, vai à casa de Suleiman Al-Smadi e faz-lo vir cá.
Depois de três quartos de hora, o jovem retorna, seguido de outro mouro de meia-idade.
− Subhana Allah!...101 – exclama o visitante, ao adentrar a sala, fazendo uma reverência diante de Ibrahim Assib que, a abrir longo sorriso de satisfação, responde à saudação do amigo e o abraça efusivamente:
− Suleiman!... Como estás, meu amigo?
− Oh, assim como quer Alá, Ibrahim! – responde o outro, descobrindo a cabeça do manto de lã listrada que a envolvia.
− Vamos lá, acomoda-te aí! – diz Assib, também voltando a sentar-se sobre a almofada. – Temos coisas sérias a tratar... – e dirigindo-se ao filho: − Fica cá a ouvir! Quero que estejas a par de tudo.
Em seguida, o mouro passa a discorrer, minudentemente, sobre o negócio que Yaacov viera propor-lhe.− Dizes, então, que planejas dar cabo do secretário do arcebispo, a mando do judeu?
− Vê bem, Suleiman! – exclama Assib. – São dois os judeus que encomendaram a morte do maldito padre! E ambos são bastante ricos: um é secretário da rainha, e o outro fabrica e comercializa finas joias.
− E como pretendes agir? – pergunta Suleiman Al-Smadi, bastante curioso.
− Enquanto aguardava a tua chegada, estive cá a matutar... – e, pondo a mão sob o manto, retira o volume que ali mantinha guardado e mostra-o ao amigo: − Vês esta sacola?... Aqui tenho quinhentas peças de fino ouro!... É o adiantamento que me fez o judeu pelo serviço combinado!
− Tanto assim? – espanta-se o outro mouro.
− E é apenas a metade do combinado!... – explica Assib. E, depois de alguns instantes, prossegue: − E, como já te disse, enquanto te aguardava a chegada, cogitei acerca do seguinte: e se, em vez de darmos cabo do secretário do arcebispo, nós lhe entregássemos o plano dos judeus, em troca, naturalmente, de polpuda recompensa?
− Sim!... – brada o outro, a arregalar os olhos de desmedida cobiça. – Bem pensado!... E, além do mais, tu já tomaste considerável fortuna dos marranos... – e, a abrir um sorriso pejado de malícia: − Mostras-te bem mais esperto do que eu imaginava que fosses, hein, Ibrahim?
− E, com essa denúncia, certamente ganharemos o triplo disto! – diz Assib, exibindo ao outro a pesada sacola abarrotada de dobrões de ouro.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 01, 2024 7:54 pm

− Tens razão!... Tens razão!... – exclama Al-Smadi, excitadíssimo, a esfregar as mãos, demonstrando desmedida cupidez. – E, com a volta da Inquisição em Castela, fácil será ao padre, por sua vez, denunciar os malditos marranos ao Tribunal!
− Vês como as coisas encaixam-se perfeitamente? – diz o outro, cheio de si. – E nós sairemos livres desta empreitada e fugir para onde quisermos!
− Livres e cheios de ouro! – exclama Al-Smadi, contentíssimo. − Então, agora, devemos traçar os nossos planos – diz Ibrahim Assib, pondo-se sério. – É preciso muita cautela, para não sermos apanhados pela rede que ora principiaremos a tecer!
− Tens razão – concorda o outro. – Todo o cuidado será pouco...
− Primeiro, teremos que escrever minuciosa e bem urdida denúncia – e, voltando-se para o filho que, até então, permanecera em total silêncio, a ouvir o pai e o amigo, prossegue: − E tu, Ali, que aprendeste a escrever tão bem em castelhano, passarás a tomar nota do que te ditarei. Corre a providenciar os apetrechos de escrita.
− Aqui temos! – exclama o rapaz, voltando em seguida, a trazer fino velino102, uma pena e tinta de escrever.
Em seguida, Ibrahim Assib, altamente compenetrado, passa a ditar ao filho o teor da carta que faria a denúncia do plano dos judeus, para darem cabo da vida de D. Aníbal Velásquez. E o rapaz, por sua vez, bastante absorto em seu mister, ia desenhando, em letras bem traçadas, as palavras que lhe ditava o pai.
Pouco depois, finalizavam o trabalho.
− Agora, lê, Ali, tudo o que escreveste! – ordena o pai, curiosíssimo para conhecer o resultado da sua obra.
E o rapaz, com voz firme, leu a carta.
− Perfeito!... – brada Ibrahim Assib, a bater palmas, de contentamento. – Perfeitíssimo!... Uma obra-prima!... És um génio, Ali!
− Mas foste tu que me ditaste o que escrevi! – rebate o rapaz, sem qualquer sinal de ânimo ou de contentamento. − Eu, por mim, resumi-me tão-somente a escrever...
− Ora, não fosses tu a escrever o que o teu pai ditou-te, quem é que o faria? – diz Suleiman Al-Smadi que a tudo acompanhara com plena atenção. – De minha parte, seria incapaz de rabiscar qualquer coisa em castelhano...
− Sequer em árabe! – rebate Assib, a rir-se. – Sei que és analfabeto, Suleiman...
− Assim como tu! – brada o outro, a avermelhar-se de raiva. – Ambos somos analfabetos!
− Oh, não te quis ofender, sodir jaihit103! – diz Assib, abraçando-se ao amigo. – Somos dois analfabetos, eu e tu!... E foi justamente por isso que fiz Ali aprender a escrever! Custou-me os olhos da cara o professor que contratei para ensiná-lo a ler e a escrever, mas valeu a pena cada dobrão que gastei!
− Um homem que sabe ler e escrever vale ouro, neste mundo de cegos! – exclama Al-Smadi. – Teu filho recebeu inestimável tesouro das tuas mãos!
− Agora que detenho bom capital e vou aumentar os meus negócios, farei Ali estudar latim...
− Para quê? – pergunta o outro. – A menos que queiras torná-lo padre!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Ah, podes rir como as hienas, ya sadiiq104!... – diz Assib, cheio de despeito. – Mas Ali não será um futre assim como tu! Pretendo − quem sabe? − mandá-lo à Universidade de Salamanca!105... Sabes muito bem que um bandido bastante letrado torna-se verdadeiramente astucioso!
− Hu!... Hu!... – grita o outro, a estourar de motejo. – Sonhar nunca é demais! Acaso crês que deixarão um mourisco lá estudar?... E, ainda por cima, filho de um açougueiro e assassino?
− Podes escarnecer o quanto quiseres, Suleiman – diz Assib, com as faces vermelhas de tanta raiva −, mas que ainda farei de Ali um sujeito assaz astucioso, de primeira, ah, isso farei! E, diante do tilintar do ouro puro, qualquer porta deste mundo abre-se a quem o tenha em abundância!... E mesmo sendo um mouro e filho de um magarefe! – e a apontar um dedo ameaçador ao amigo: − Guarda bem, nessa tua cabeça dura, o que vou dizer: Ali será um homem mui letrado e bastante ladino, sim!
− Ih!... Ih!... Ih!... Ih!... – ri-se o outro, cheio de mofa. – E com isso pensas, certamente, legar-lhe a chefia do bando, no futuro!
− E comandará, senão a ti, com certeza aos teus filhos! – emenda Ibrahim Assib. – Não te esqueças de que és um refinado bandido e fino assassino, mas estúpido e tolo como os teus rapazes! E, se não houver alguém realmente esperto a guiar-vos todos, a primeira valeta que tiverdes de saltar, nela cairão todos, sem excepção...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 9:52 am

− Alto lá! – rebate Suleiman, a encher-se de cólera extrema. – Assim me ofendes sobremodo! Teu filho pode saber ler um pouquinho, mas tu também não passas de uma besta de carga!...
Por que te envaideces do nada que vales?
− Pulha!... – exclama Assib, lançando-se sobre o comparsa, a desferir-lhe socos e pontapés. – Uma nuga quem vale és tu, desgraçado!
− Parem!... – grita Ali, metendo-se entre os dois brigões. – Aqui estamos para estabelecer as considerações sobre a encomenda que nos fizeram os judeus! Por que brigar por coisa tão insignificante?... Há razões a envolverem grande monta, e vós a discutirdes que cor tem a cauda dos camelos?
− Teu filho tem razão, Assib! – diz Suleiman, suspendendo os safanões que desferia ao rosto do amigo. – Não vim cá para brigarmos...
− É mesmo! – exclama Assib, pondo-se a rir. – Percebeste como tenho razão em preparar Ali para ser um grande chefe?... Leva jeito, sabe argumentar...
− Sim – concorda o outro, também se pondo a rir. – Teu rapaz será um excelente chefe de quadrilha, bem melhor que tu!
Em seguida, sentam-se os três sobre as fofas almofadas de lã e se põem a discutir acaloradamente. Através da fina cortina que recobria a janela da sala, tecida em delicados fios de seda azul clara, a luz opalina da lua cheia coava-se, dando ao ambiente uma claridade fantasmagórica, surrealista...
*******
Quando Yaacov regressou ao lar, era tarde, já passando de onze horas. Devagar, abriu a pesada porta que dava à espaçosa sala de entrada da casa. Uma luz frouxa iluminava, fracamente, o ambiente.
− Onde estavas que demoraste tanto? – ouviu a voz da esposa que o aguardava, na semiobscuridade, recostada sobre as almofadas de lã vermelha.
− Oh, estás aí? – responde Yaacov, procurando desconversar.
− Não me respondeste: onde estavas até essa hora? – insiste Sara.
− Estive a andar pelas ruas, sem destino – mente ele.− Vem cá! – convida a esposa, fazendo-o sentar-se bem diante dela. E, a olhá-lo, sistematicamente, aos olhos, prossegue séria: − Não te fica bem mentires assim para mim!...
− Não estou mentindo... – diz Yaacov, sem encará-la aos olhos.− Conheço-te muito bem, Yaacov Shlomo! – insiste ela. – Vamos:
desembucha!... Para mim, tu nunca conseguiste mentir!
− Oh, não sei se devo colocar-te a par deste assunto, Sara!... – exclama Yaacov, reticente. – É algo que deverá permanecer em segredo absoluto!
− Vamos lá, iekiri106! – diz ela, baixando a voz, e se tornando, repentinamente, muito meiga, pois essa era a maneira com a qual costumava arrancar do marido o que desejasse. E, enlaçando-se-lhe ao pescoço, murmura, com a voz rouca: − Lakar107...
− Oh, está bem, está bem! – exclama Yaacov. – Tu me venceste!
– e, olhando-a firme aos olhos: − Tu sempre retiras de mim tudo o que desejas, não é?
− Oh, que calúnia dizes! – fala ela, mal sofreando o riso, cheia de si. – Sei que, de mim, nada gostas de esconder... – e volta ao ataque: − Responde-me, então: aonde foste esta noite?
− Fui procurar por um sicário mouro – responde o judeu, em voz baixíssima, depois de olhar, minudentemente, em redor, a certificar-se de que estavam a sós na sala.
− Ah, finalmente! – brada a mulher, levantando-se. – Até que enfim resolveste dar cabo daquele infame!
− Ssssh!... Fala baixo, sua doida! – diz Yaacov, ralhando com a esposa. – Queres que toda a Toledo fique sabendo?
− Oh, não te preocupes! – exclama Sara, voltando a sentar-se sobre as almofadas vermelhas. – Todos dormem, já faz bastante tempo! – e, depois de olhar, por algum tempo, para o preocupado rosto do esposo, pergunta: − E como chegaste até o matador?
− Ben Hanan indicou-mo – responde Yaacov. – Aliás, foi de comum acordo a escolha de um sicário para dar cabo daquele ordinário!
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 9:52 am

− E quem é esse homem?... Conheço-o, acaso?... – pergunta Sara, cheia da curiosidade natural que têm as mulheres.− Tu o conheces, com toda a certeza – responde o homem. – É Assib, o açougueiro...
− Aquele um?! – espanta-se a esposa de Yaacov. – Um sicário?!
– e a menear a cabeça, esconjurando: − Valha-me, Yavé! E eu que sempre comprei a nossa carne com ele, por todo esse tempo!...
Quem diria!... Um matador por encomenda... – e voltando a menear, insistentemente, a cabeça: − Sempre tão gentil e prestimoso!...
− Aí tens mais uma lição: é bom não se fiar em ninguém! – diz Yaacov. – Quem vê cara...
− Estás coberto de razão, Yaacov! – exclama a mulher. – Doravante, passarei a ser bem mais desconfiada... − e, depois de instantes de íntima cogitação, prossegue: − E quanto te cobrará ele pelo serviço?
− Já me cobrou adiantado: mil peças de ouro! – responde Yaacov. – Acabo de pagar-lhe a metade, e o restante, depois de feito o serviço.
− Tanto assim?! – espanta-se a mulher. – Aquele desgraçado vale mais que o próprio peso em ouro! Quanto desperdício!...
− Mas não pagarei essa quantia sozinho; Ben Hanan responsabilizou-se pela metade.
− Mesmo assim! – diz Sara. – Com tal quantia, compra-se bela vivenda em Toledo!
− Que fazer? – observa Yaacov, altamente desolado. – O ouro, certamente, ganharemos outro, mas a vida, aquele desgraçado nunca a terá de volta!
− É o nosso consolo... – diz Sara. – É o que nos conforta... – e, mudando de assunto, pergunta: − E que garantia deu-te o sicário de que cumprirá à risca o que contratastes?
− Nenhuma, além da sua palavra de honra – responde Yaacov.
− Honra de um sicário? – rebate a mulher, com funda ironia à voz.
− E o que desejavas que eu tivesse feito? – indaga Yaacov. – Não vais dizer-me que eu deveria ter-lhe exigido um recibo...
− Não um recibo, mas algo que pudesses provar que já lhe pagaste quantia tão alta!− E deixava atrás belíssima pista para que me pudessem rastrear, com facilidade, se algo der errado? – observa o judeu. – Contra palavras, fácil é safar-se, mas, se nos apresentam às fuças algo que firmamos, a história é outra...
E não te esqueças de que aquele biltre lazeirento é secretário do arcebispo!
− Não sei, Yaacov – diz a mulher, com a voz pejada de amargura −, mas desde que começamos a conversar sobre este assunto, bateu-me funda apreensão, cá, no meu peito! Não te saberia explicar o que é, mas deveríamos ficar atentos!... Esses assassinos nunca são de confiança!
− Oh, não te preocupes, querida! – diz Yaacov, abraçando-se à esposa. – Isso, certamente, não passa de tolices da tua cabeça!
− Clamo a Yavé, para que tu tenhas razão, meu caro! – exclama ela. – Mas, sempre que me vêm tais pressentimentos, não costumo errar...
Yaacov limita-se a fazer um gesto inane com as mãos. De qualquer forma, a coisa já principiava a andar e, por ora, o que poderia fazer era tão-somente aguardar. Levanta-se e estende a mão para a esposa, ajudando-a a levantar-se. Era tarde, e precisavam ir dormir...
*******
Naquela mesma noite, a sós, em seu gabinete, D. Aníbal Velásquez, recostado em confortável poltrona de veludo cinza, achava-se afogueado pela paixão que o consumia. Na semiobscuridade do ambiente, ele bebericava de uma taça de vinho.
Seus olhos brilhantes passeavam langorosos pela penumbra, enquanto que, à cabeça, um turbilhão desencadeava-se. A imagem da belíssima judia bailava em seu pensamento; a imaginação, insuflada pela concupiscência que alimentava em relação à bela donzela, dominava-o por completo.
D. Aníbal Velásquez não resistia. Alimentava, sem qualquer refreamento, seus desejos de possuir a jovem e belíssima filha de Yaacov Shlomo. E, para atingir seus intentos, seria capaz de qualquer coisa, até mesmo matar, se preciso fosse. E, em seus devaneios íntimos, chegava às raias da loucura; ansiava por Milagros e a teria, a qualquer preço...
− Tenho que acelerar os meus planos ou enlouquecerei! − murmura ele, levantando-se da sua poltrona, para repletar a taça de vinho de uma botelha que se achava sobre um aparador.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 9:52 am

Em seguida, volta a ocupar a poltrona de veludo cinza. Sua mente enche-se, novamente, da bela figura da mulher tão ardentemente desejada: “Ah, Milagros, Milagros...”, pensa ele, depois de sorver longo hausto do vinho, “... se não te tenho em meus braços, a vida torna-se-me, a cada dia que passa, mais insuportável!”. Fundo suspiro de desalento, então, brota-lhe do fundo da alma, enquanto o seu pensamento continua em seu febril devaneio: “Tenho de tomar uma atitude, bem depressa, ou morrerei de tanta paixão!...
− ¡Señor Don Aníbal! – ouve a potente voz do seu mordomo a chamá-lo. − Ya es tarde. ¿No duermes?108
− Oh, Gumersindo, estás aí? – responde D. Aníbal Velásquez, acordando-se do seu devaneio. – Não percebi que chegavas...
− Não seria melhor que fôsseis descansar? – sugere-lhe o prestimoso mordomo.
− Não conseguirei dormir, Gumersindo... – diz ele. E indicando ao serviçal outra poltrona próxima: − Serve-te de uma taça de vinho e senta-te aí. Precisamos conversar...
− Percebo que vos encontrais, de novo, cheio de melancolia, Senhor! – exclama o mordomo, após acomodar-se na poltrona, com sua taça de vinho à mão. – É, ainda, aquela jovem judia, a tirar-vos o sossego?
− Não há como esconder, não é, meu bom amigo? – diz o outro, com um sorriso amargo aos lábios.
− Pela enorme sombra que embota o vosso semblante, posso perceber que essa grande paixão ainda vos acomete, profundamente, a alma, não é assim?
− Como nunca, Gumersindo! – explode o outro. – Nem podes aquilatar o quanto essa paixão corrói-me fundo a alma!
− E como pensais agir quanto a isso?... Dessa forma é que não podereis permanecer, sob o risco de perderdes a razão! – adverte-o o mordomo. – Sabeis muito bem como são tais coisas...
− Estás certíssimo, Gumersindo! – responde D. Aníbal. – E terei de agir depressa ou enlouquecerei! − e, depois de curto silêncio, continua: − Que este assunto permaneça entre nós, mas D. Fernán Guillén e eu já andamos a arquitectar um bom plano para que eu tenha, de vez, a judiazinha em meus braços!
− E o que pretendeis fazer, Señor? – pergunta, curioso, o mordomo.
− Eu te porei a par de tudo, Gumersindo – diz D. Aníbal, a encará-lo firme aos olhos −, mas haverás de jurar pela tua honra que nada dirás a ninguém sobre o que te vou contar!
− Por certo que sim, Senhor! – reponde o serviçal. – Pela salvação da minha alma e pela imaculabilidade da minha honra, eu vos juro manter segredo sobre o que me ireis relatar!
− Certo!... – diz D. Aníbal. − Agora ouve, com bastante atenção, Gumersindo... – e passa a narrar-lhe, nos mínimos detalhes, o que ele e D. Fernán Guillén andavam a planejar sobre Maria de los Milagros e sua família.
− Creio ser esse um bom plano, D. Aníbal – fala o mordomo, após ouvir, em minudências, o que lhe relatara o patrão. – Entretanto, o que ainda esperais para delatá-los?
− Primeiro, é preciso estudar, com muita atenção, os costumes daqueles marranos, Gumersindo, para não incorrermos em nenhum erro. Depois, então, é que faremos a denúncia ao Tribunal.
− Mas a jovem Milagros, acaso, também não será presa, diante da delação? – observa o mordomo.
− Sim, certamente, será presa com os demais membros da sua família, se eu, entretanto, não a raptar, primeiro, e escondê-la em lugar seguro! – responde D. Aníbal. – Percebes, agora, como é preciso muito bem planejar as coisas, para que nada dê errado?
− Entendo... E onde pretendeis ocultar a moça, após o rapto? – pergunta o mordomo.
− Que achas de eu trancá-la, naturalmente sob severa vigilância, em Las Palmas? – sugere D. Aníbal. – Não fica muito longe, e eu poderei vê-la, amiúde...− Muito bem!... – diz o mordomo, a rir-se satisfeito. − Essa vossa propriedade mostra-se perfeita para tal intento! A casa é quase uma fortaleza, e o acesso a ela é difícil. E há, ainda, as masmorras, em seu subterrâneo, se preciso for... Fizestes excelente escolha, Señor!
− ¡Gracias, Gumersindo! – exclama D. Aníbal, com largo sorriso de lisonja a abrir-se-lhe aos lábios. – Penso que assim resolverei este problema!
− E, quanto ao destino que se dará aos familiares da moça? – pergunta o mordomo. – Se deixardes algum deles com vida, correreis o risco de serdes descoberto, um dia, mormente pelo filho de Ben Hanan, o noivo, pois sabeis, tanto quanto eu, como aquele jovem revela-se esperto e impetuoso!
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 9:52 am

− Àquele imbecil e ao pai, também se reservam surpresas bem desagradáveis! – exclama D. Aníbal, com um sorriso sarcástico aos lábios. – Preparamos-lhes, também, bem arrematada denúncia ao Tribunal! – e, a emitir largo suspiro de impaciência, prossegue: − Sabes, Gumersindo, a verdade é que se pretende que nenhum marrano que teime em ficar em Espanha sobreviva, entendes? Na realidade, o que Suas Majestades pretendem, com a limpieza, é destruírem essa raça vil e abjecta! A isso se propõe o Tribunal: arrasar, de uma vez por todas, essa espúria mancha que enodoa a Espanha toda!
− Então, não tereis nenhum embargo a impedir o vosso plano!
Agora é ir em frente, sem nenhum acanhamento!
− E posso contar contigo para tal empreitada? – pergunta D. Aníbal. – És a única pessoa, neste mundo, em quem posso confiar cegamente!
− Oh, da mesma forma como sempre pudestes confiar em meus préstimos, Señor! – responde o serviçal, com os olhos a marearem-se de lágrimas. – Ser-vos-ei fiel até à morte!
− Então, a parte referente à Milagros deixarei a teu encargo – diz D. Aníbal, animando-se, sobremaneira, e passa a orientá-lo sobre como deveria agir: − Nos próximos dias, quero que te dirijas a Las Palmas para colocardes tudo em ordem; deverás pôr o caseiro a par de tudo e, principalmente, que nada saiba sobre a origem da moça – nem mesmo o nome! – para que não possa nunca dar com a língua nos dentes.
E, principalmente, ameace-o bastante, meta-lhe muito medo, a fim de que se mantenha o mais longe possível de Milagros, pois tu, na verdade, é que te encarregarás pessoalmente dela, entendeste bem? Quero, ainda, que cuides, com muito capricho, do quarto principal da casa, pois é ali que a prenderemos e, o mais importante: trata-a com muita atenção e deferência e que nada lhe falte; encomenda muita comida e muito vinho, de excelente qualidade, e que o enxoval seja o mais primoroso que encontrares em Toledo: quero-a vestida e tratada como uma verdadeira rainha!
− Perfeitamente, senhor! – responde o mordomo, solícito. – Tudo será feito conforme me orientastes! Ficai tranquilo!
− Agora, Gumersindo, vamos recolher-nos! Minha conversa contigo me animou sobremodo! Deu-me até vontade de dormir pela noite toda!
E, a seguir, cada um tomando o seu rumo, recolhem-se a seus aposentos, pois a noite já avançava muito, e era preciso repousar para o novo dia que, dentro de algumas horas, surgiria...
___________________________________________________________________________________________________________
100. “− Meu pai!”, em árabe.
101. “− Alá seja louvado!”, em árabe.
102. Pergaminho fino, preparado com a pele de animais recém-nascidos ou natimortos.
103. “Bom amigo”, em árabe.
104. “Meu amigo”, em árabe.
105. Fundada por Afonso X, em 1218, a Universidade de Salamanca é a mais antiga da Espanha e de toda a Península Ibérica.
106. “Meu querido”, em hebraico.
107. “Querido”, em hebraico.
108. “− Senhor D. Aníbal (...) – Já se faz tarde. Não vais dormir?”, em castelhano.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 9:52 am

Capítulo IX. Mudança de planos
Ao final dessa mesma noite, ainda madrugada alta, um vulto encapuzado aproxima-se da entrada da mansão arquiepiscopal, na Plaza del Ayuntamiento, e, após olhar, detalhadamente, para todos os lados, coloca, jeitosamente, um velino dobrado em quatro partes e amarrado com fina fita de seda azul, sob a pesadíssima porta de madeira. Um momento mais a observar, com atenção, se a carta efectivamente houvera adentrado o portal, o vulto ajeita o negro capuz, com o fito de puxá-lo até encobrir-lhe, completamente, as feições e desaparece ligeiro no meio da pesada negritude que sói anteceder a aurora.
Logo ao amanhecer do dia, Gumersindo, o mordomo de D. Aníbal Velásquez, desce as esplendentes escadarias de mármore, com o fito de destrancar a porta principal da mansão, e se depara com o velino atado com a fita de seda azul.
Curioso, abaixa-se e recolhe a trouxinha.
− ¿Un mensaje?... – murmura para si, enquanto examinava, detalhadamente, a carta. − Extraño... 109
Em pouco, o mordomo entregava o inusitado velino a D. Aníbal que acabava de levantar-se.
− Uma carta, Gumersindo? Que estranho!... Dizes que a encontraste colocada sob o portal, agora de manhã?
− Sim, Senhor – confirma o serviçal. – Ainda há pouco, quando desci, com o propósito de destrancar a porta.
D. Aníbal desata a fitinha de seda azul, desdobra o velino e põe-se a ler o conteúdo da mensagem e, à medida que ia lendo, empalidecia, e suas mãos tornavam-se trémulas.− Malditos!... Desgraçados!... – exclama ele, deixando-se sentar, pesadamente, numa poltrona.
− ¿Qué pasa, Señor?...110 – pergunta o mordomo, altamente apreensivo com a reacção do seu amo, ao ler o conteúdo da carta.
− Lê tu mesmo! – responde D. Aníbal, passando ao mordomo o velino, com as mãos ainda bastante trémulas e descoradas.
− Mas é uma denúncia! – exclama Gumersindo, também se pondo bastante alterado. – Pretendem assassinar-vos, Señor!
− Sim! – confirma D. Aníbal. – Aí diz que me pretendem armar uma emboscada, com o propósito de me tirarem a vida!
− Porém não dizem quando e nem quem pretende cometer o atentado contra a vossa pessoa!
− Sim, Gumersindo! – confirma o outro. – Apenas fazem a denúncia e querem abrir a negociação... O que propõem, na verdade, é que, a peso de muito ouro, naturalmente, venham a completar as informações sobre o atentado!
− O que fareis, Senhor? – pergunta o criado, altamente preocupado. – E se tudo isso não passar de um logro, com o propósito de extorquir-vos boa fortuna em ouro?
− É um risco que corro, Gumersindo! – pondera D. Aníbal. – Mas, em contrapartida, se for verdadeiro tudo o que dizem aí?... Sabes como é...− Sim... Acho que vos encontrais numa situação deveras
embaraçosa... – diz o mordomo.
− Vou ter com D. Fernán Guillén – diz D. Aníbal, de repente, levantando-se da poltrona, resoluto. – Vamos lá, Gumersindo: ajuda-me a vestir-me; a situação exige que eu tome providências e logo!
Em pouco, o carro estacionava diante da mansão do famoso advogado Fernán Guillén.
− D. Aníbal!... – exclama o advogado, ao ver o amigo que lhe adentrava a sala. – A que devo essa honra, assim tão cedo?
− ¡Buen día, mi amigo! – saúda-o D. Aníbal, afoitamente. E, a mostrar-se assaz aflito, passa-lhe o velino que recebera havia pouco. – Toma! Lê isto!
D. Fernán Guillén apanha a carta das mãos do amigo e a lê, com atenção, de cenho franzido.− Estranho, D. Aníbal!... – diz o advogado, ao terminar a leitura.
E, dobrando o velino, devolve-o ao amigo.
− Que dizes disso tudo? – pergunta, altamente apreensivo, D. Aníbal Velásquez.
− É uma denúncia gravíssima que te fazem, D. Aníbal!
− Achas, então, que devo considerá-la? – pergunta o secretário do arcebispo, ainda cheio de aflição. – Não crês que tentam lograr-me?
− Denúncias são denúncias, meu caro! – responde D. Fernán. E fazendo largo gesto inane com as mãos, prossegue: – E só Deus para saber se tentam enganar-te ou não!
− E o que achas que deverei fazer?
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 9:53 am

− Ires adiante! – responde o outro, sem titubear. – E estarei contigo! Aliás, não estamos juntos, no caso da judia?
− Claro! – exclama D. Aníbal. – Sem o teu concurso, as coisas tornar-se-me-ão mais difíceis de realizar!
− ¡Muy bien! − exclama o outro. – Para começar, temos que iniciar a negociação com esse informante. Escreva-lhe, dizendo que aceitas o que te propõe! Ele te sinalizou o local onde deverás colocar a resposta, não é?
− Sim, sob uma pedra, abaixo do primeiro arco da Ponte de Alcântara111...
− Agora é só ires em frente!
− Mas me pedem uma fortuna pela denúncia! – rebate D. Aníbal Velásquez, pesaroso.
− Penso que a tua vida vale mais que todo o ouro do mundo, não achas? – observa D. Fernán.
− É... Acho que tens razão – concorda o outro. E depois de cogitar por instantes: − Acaso não te passa pelas ideias quem andaria a preparar-me essa emboscada?
− Não tens grandes inimigos, tens? – pergunta D. Fernán.
− Não! – responde, de pronto, o outro. – Andei a cogitar, severamente, sobre quem andaria por trás disso, mas nada consegui descobrir. Decididamente, não tenho grandes inimigos; não declaradamente, entendes? Agora, pequenas rusgas, com um ou outro, como todo mundo, sei que as tenho!− Entendo... Coisas pequenas... – diz D. Fernán, enquanto pensava. De repente, seus olhos iluminam-se: − Acho que sei quem te arma uma cilada para tirar-te a vida! Os malditos marranos!...
− Sim! – exclama D. Aníbal, lívido, levantando-se da poltrona
onde estivera sentado até então. – Tens razão!... Só podem ser eles!
− E quem mais haveria de ser? – continua D. Fernán. – E, certamente, uniram-se Yaacov Shlomo, o rico joalheiro, e Ben Hanan, o secretário da rainha! Ninguém te deseja morto, senão eles!
− Miseráveis! – brada D. Aníbal Velásques, a rilhar os dentes de tanto ódio. – É bem típico dessa raça maldita!
− Agora, podes poupar o teu rico ouro, meu caro! – diz D. Fernán. − É só tocarmos adiante o nosso plano e nos adiantaremos aos canalhas! Eles é que terão bela surpresa!...
− Mas, antes, terei de raptar Milagros! – observa D. Aníbal. – Se fizermos a denúncia, antes que a tenha comigo, também ela será presa e, aí então, ser-me-á impossível arrancá-la das garras do Tribunal!
− Tens razão! – concorda D. Fernán. – Então, ponha-te, bem depressa, a planejar como irás raptá-la, ou te matarão, primeiro!
− Crês, então, que deverei ignorar a carta do delator?
− Sim, completamente, pois não convém desperdiçares o teu ouro, tolamente, se já tens a informação de que necessitas – aconselha D. Fernán. – O melhor é desconsiderares o que te propõe o delator e que te ponhas a raptar a moça e bem depressa!
− Antes de cá vir ter contigo, já havia instruído o meu mordomo para que preparasse a minha propriedade em Las Palmas – tu a conheces, não? – para que lá eu mantivesse Milagros aprisionada.
− É um excelente lugar esse que escolheste! – concorda D. Fernán. – A casa é uma fortaleza quase inexpugnável e não chamaria a atenção de ninguém. Escolheste bem o local para cativeiro da tua amada! E como pretendes fazer para raptá-la? Não crês que os marranos já não andam a vigiá-la, para que isso não lhe suceda?− Sim, percebi que a vigiam, por todo o tempo, e não me será nada fácil encontrá-la só!
− Teremos, então, que raptá-la à força – observa D. Fernán.
− À força?!... – espanta-se D. Aníbal. – E não crês que, agindo assim, teremos testemunhas de sobra a condenar-nos pelo rapto?
Penso não ser bem esse o caminho...
− Existem meios de raptar-se alguém à força sem se chamar a atenção, meu caro... – observa D. Fernán, bem seguro de si.
− Não vejo como... – rebate D. Aníbal, a mostrar-se assazincrédulo. – Sabes muito bem o quanto se faz difícil calarem-se os cães... A cidade possui algumas centenas de pares de olhos mui atentos que nada perdem do que se lhes passa em redor!
− Essa parte tu deixarás comigo... – diz D. Fernán, cheio de si. – Conheço dois irmãos núbios que são mui espertos e bem aptos para tal mister... Verdadeiras raposas...
− Se dizes... – fala D. Aníbal, deixando-se convencer pelas palavras do amigo.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 9:53 am

− Assim farei – prossegue D. Fernán –, e, quando o cativeiro achar-se pronto, tu me avisarás para que eu encomende o rapto aos núbios.
− E crês que não falharão? – pergunta o secretário do arcebispo.
– Sabes muito bem que não poderemos falhar!
− Não será este o primeiro trabalho que a eles encomendo, meu caro! – responde o advogado. – Já me serviram, antes, e se saíram muito bem. Fica tranquilo: são pessoas bem qualificadas em quem confio plenamente...
Em seguida, D. Aníbal despede-se do amigo e volta à mansão arquiepiscopal. No caminho, enquanto o coche rolava pelas ruas calçadas de pedras, o prelado pensava. Sua mente assemelhava-se a um braseiro, e os pensamentos passavam céleres pela sua cabeça: era preciso raptar Milagros, urgentemente, ou, talvez, seu pai, juntamente com Ben Hanan, antecipassem-se a ele, matando-o numa emboscada. Era bem assim que acostumava acontecer naqueles tempos. Tantos morriam assassinados, pelas ruelas e desvãos da cidade, quase todos os dias, sem que quase nunca se encontrassem os autores desses crimes...Ligeiro calafrio perpassa, então, o corpo de D. Aníbal, e ele olha pela janela do carro, a encolher-se todo de medo. E se alguém, de repente, resolvesse atacá-lo naquele momento? Não teria como defender-se, pois a única arma que trazia consigo era um pequeno punhal, oculto sob a pesada sotaina... Tinha o cocheiro, mas o pobre era velho e de pouca valia ser-lhe-ia. Apalpa, então, com a mão trémula, o crucifixo do rosário que trazia ao pescoço. No momento, lembrava-se do Cristo e Lhe pedia protecção. Sim, dali para frente, precisaria de muita protecção. Muita protecção, mesmo...
*******
Três dias após esses acontecimentos, bem ao anoitecer, Ibrahim Assib confabulava com seu jovem filho, Ali, recostados nas almofadas de lã.
− Completou-se, hoje, o terceiro dia de prazo que estipulei na carta que enviamos ao secretário do arcebispo, e nenhuma resposta, ainda, obtivemos. Vasculhaste, com atenção, a pedra marcada sob a ponte? – pergunta o sicário mouro.
− Sim, abi – responde o rapaz. – Observei tudo com bastante cuidado e nada encontrei. É certo que ainda não nos respondeu...
− Desgraçado! – brada Assib, com os olhos injectados pelo ódio intenso. – Decerto, anda a desconsiderar o que lhe delatei!... Mas ele que não se cuide, que terei imenso prazer em degolá-lo!
− Abi – diz o jovem −, será que ele recebeu, mesmo, a carta?
− Acaso não fizeste tudo direitinho, conforme eu te instruí?
− Sim, abi – responde o rapaz. – Coloquei a carta sob a grande porta da entrada, com todo o cuidado!
− Se assim fizeste, é certo que a recebeu... – e, depois de parar, por alguns instantes, para cogitar, exclama: − A não ser que algum criado desastrado desconsiderou o velino e o deitou fora!
− É possível que isso tenha acontecido, abi – concorda o jovem Ali. – Então convém que lhe enviemos outra mensagem, não achas?
− Penso que estás certo! – aquiesce o pai. – Vamos lá: apanha os apetrechos, vamos escrever-lhe outra carta!
E, com desmedido capricho na letra, pôs-se o rapaz a escrever tudo o que o pai ditava-lhe.− Excelente! – exclama, satisfeito, Ibraim Assib, após o filho ter lido, pausadamente, o que escrevera. – Ratificamos tudo o que já dissemos à primeira carta! E, amanhã, no mesmo horário, tu a colocarás sob a porta do maldito! Aguardarei por mais três dias; se nada obtiver de volta, ele que encomende bem a alma ao diabo!... – e explode em maldosa gargalhada: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Se o padre, uma vez mais, ignorar a nossa carta, como pensas agir? – pergunta o rapaz, cheio de curiosidade.
− Bem, nesse caso, perderemos boa fortuna que pensava amealhar para mandar-te a Salamanca, para estudares leis – responde o sicário. – Eu não estava brincando, quando disse que anelava enviar-te para a universidade... Entretanto, como as coisas não andam a caminhar como eu planejei, terás de esperar um pouco mais, para que isso aconteça... – e, depois de olhar, com olhos cheios de ternura, para o filho que tanto amava: − Sabes, Ali, por ti faço qualquer coisa! És a única riqueza, de fato, que Alá deitou-me às mãos... – e, com a voz embargada por funda emoção, prossegue: − Na verdade, nunca te quis a chefiar uma quadrilha de assassinos como tenho eu feito pelos últimos tempos. Foi a necessidade e o desejo de fazer de ti um homem rico e eminente que me lançou nas terríveis sendas do crime!... Entretanto, garanto-te: este será o derradeiro assassinato que cometerei!
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 9:53 am

Vou redimir-me, e, quando tu terminares os teus estudos, ir-nos-emos daqui.
Quem sabe para a Inglaterra ou para a França, onde a perseguição aos de nossa raça faz-se menos intensa que em Espanha?
− Louvo os teus sacrifícios, pai – diz o rapaz −, mas acho que o único lugar neste mundo onde estaríamos, efectivamente, a salvo, seria na África, junto aos de nossa raça e onde poderíamos praticar a nossa fé a descoberto – e depois de se calar por instantes, prossegue: − Bem sabes o que pretendem os reis de Espanha, com a instauração do Tribunal em Toledo... Não é só aos judeus que desejam exterminar!
− Sei muito bem o que se passa em Espanha, Ali – diz Ibrahum Assib. – Não sou nenhum tolo! O último reduto mouro112 não demorará a cair, e seremos todos mortos ou proscritos daqui. Por isso é que te disse que deveremos deixar a Península, assim que concluíres a escola de Salamanca.
− E será que haverá tempo para isso, abi? – questiona o rapaz, um tanto descrente das palavras do pai. – Do jeito que as coisas caminham, ninguém escapará à sanha dos castelhanos...
− Acho que não tens fé – rebate Assib. – E não creio que o Tribunal irá perseguir a todos, sem qualquer critério: apenas os que a eles interessam...
− E quem interessa à Inquisição? – pergunta o jovem. – Pensava que qualquer um que não tivesse sangue espanhol seria passivo de perseguição!
− Oh, tu te enganas! – rebate o mouro. – Aos reis e aos padres interessam os ricos, os que detêm grandes fortunas, não simples magarefes como eu! Ser-lhes-íamos até úteis! Quase ninguém gosta de mexer com sangue... Sabes como é, matar não é para qualquer um! E além disso, quem fará os serviços que requerem paciência e muita sabedoria, como os herbanários, os médicos, os ourives, os construtores, os escreventes, os comerciantes, os mercadores... Os espanhóis não são muito dados a esses misteres e sempre deixaram tais tarefas a nós, os mouros e os judeus...
− Até então tem sido assim, abi – rebate o rapaz. – Mas os tempos andam a mudar!... Se se extinguem os que se ocupam de tais ofícios, a necessidade, naturalmente, forçá-los-á a suprirem a nossa ausência! Não te fies nesses conceitos, pois, neste mundo, ninguém se faz insubstituível!
− Tu me surpreendes com tais ideias, Ali! – exclama o sicário mouro, altamente admirado com os falares do filho. – Onde é que foste aprender tais coisas?
− Tu mesmo pagas os mestres que me ensinam, esqueceste? – diz o rapaz, a abrir um sorriso cheio de condescendência. – Ando a instruir-me...
− É, tens razão, e vejo que não estou a gastar os meus dobrões em vão... – observa Assib, a rir-se.
− Ainda terás muito orgulho de mim, abi! – exclama o jovem. E, depois de curto silêncio, durante o qual ambos cogitaram, intimamente, o rapaz prossegue: − Sabes, pai, deposito grandes esperanças em meu futuro, mas, por outro lado, sempre penso que a nossa situação, diferentemente do que tu costumas dizer-me, não se mostra tão segura assim, se colocarmos em evidência a questão da nossa religião. Não desconheces que os padres nunca toleraram o Islã e sua prática...
− Bobagem, Ali! – rebate o mouro. − Faz séculos que a nossa gente domina parte do solo espanhol, e sempre vivemos de acordo com os preceitos da nossa fé, sem que nos incomodassem ostensivamente!
− Entretanto, como bem o sabes, ao longo de todos esses anos, nossa gente foi, paulatinamente, sendo escorraçada de volta à África. O que, de fato, temos conquistado do solo espanhol? Do muito que já detivemos, resta-nos mínimo reduto – Granada – que penso, mui em breve, será sitiada pelos castelhanos e tomada de volta. Aí, então...
− Nada nos restará por aqui, não é? – completa o pai. – Mas te esqueces do principal: nossa gente já faz parte do povo espanhol, pois há mais de sete séculos andamos por aqui! Fundamos cidades, pequenos reinos e, principalmente, os nossos costumes já se misturaram ao viver dessas pessoas todas!113 Não somos, simplesmente, estrangeiros nesta terra. Nós nascemos aqui, Ali!
− Em parte tens razão, abi! – diz o jovem. – Porém te esqueces de que os castelhanos não nos consideram iguais a eles; nem a nós, nem aos judeus e, se pensares bem, não somos iguais nem mesmo entre nós! Na realidade, houve, sim, pequena mistura de nossos costumes com os das demais raças que habitam estas terras. Mas é só isso, entendes? Poucas coisas que, em nada, influenciarão no desejo que têm os catelhanos de nos verem fora daqui! – e tomando a mão do pai, segura-a firme entre as suas e prossegue: − Não te iludas, abi! Na primeira oportunidade que os catelhanos tiverem, cairão sobre nós como abutres e nos reduzirão a pó!
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 9:53 am

Teremos duas chances, tão-somente: voltarmos às nossas origens, em África, ou aqui permanecermos e encararmos a nossa destruição!
− Não, Ali! – brada o pai, soltando a mão do filho e, pondo-se de pé, passa a caminhar em círculos pela sala, a esbravejar: − Não, eu não quero que seja assim, entendes? Alá não permitirá que isso aconteça! Haverá luta, e muto sangue será derramado! Não e não!...
Nós não vamos, passivamente, deixar-nos imolar como os cordeiros, sem luta!
− Oh, abi! – diz o jovem, também se pondo de pé e, segurando o pai pela manga do manto, prossegue: − Vem, acalma-te! Senta-te aqui, ao meu lado, vamos conversar mais tranquilos...
− Está bem! – exclama o magarefe, acocorando-se sobre as almofadas. E, deixando-se vencer, com fundo suspiro de desolação, aquiesce: – Tu tens razão! No fundo, não quero aceitar que as coisas andam a mudar, perigosamente, para nós; porém sei que, às ocultas, tudo se encaminha para um final desastroso! Tento enganar-me, mas tens razão, e é preciso ponderar, com muita justeza, sobre o que fazer.
− A realidade, infelizmente, assim se mostra para nós, pai, e se bem pensares, não passamos de verdadeiros apátridas! Em Espanha, consideram-nos estrangeiros indesejados; se voltarmos para a África, também lá nos considerarão estranhos...
− Olhando os fatos por esse lado, tu tens razão... – concorda Assib, a encher-se de infinita tristeza. – Anelava com a conquista definitiva de uma nesga de terra, na Península, por nossa gente, mas vejo que esse sonho torna-se impossível! Os espanhóis jamais nos tolerariam por aqui! Seria uma guerra sem fim!
− Acaso assim não tem sido desde que os nossos ancestrais aqui vieram? – observa o jovem. – Essa esperança, abi, tu já a podes desconsiderar. Nunca se realizará!
− Tens razão... – e, a abrir ligeiro sorriso nervoso, prossegue: − Sabes, Ali, todos temos sonhos, mesmo um açougueiro inculto como eu tem idealizações. E eu sonho, meu filho, em ver-te rico e famoso, um dia! Mas, diante desta insegurança toda, que fazer?... O tempo passa, tu cresces e te tornas homem feito! E confesso, meu filho: no fundo, nunca me agradou ver-te envolvido nessas atitudes criminosas que venho praticando com meus comparsas... E repito: se assim tenho agido, foi pensando em ti e no teu futuro, pois não quero que tenhas a vida sacrifícios que tive.− Oh, pai – diz o jovem, a enternecer-se sobremodo com as palavras de Assib −, deixam-me lisonjeado as tuas palavras e tens razão; entretanto, não temes a ira de Alá, e não te faz medo queimares, eternamente, no mármore do inferno?
− Sim, e creio que sequer podes imaginar o quanto a minha consciência anda a abrasar-se ultimamente! – e baixando, propositadamente, a voz, prossegue, com um calafrio a percorrer-lhe o corpo todo: − Nunca me referi a isto, mas, amiúde, vejo as fisionomias carregadas de ódio dos que já despachei aos infernos, a perseguirem-me e a jurarem vingança!
− Deveras?! – espanta-se o rapaz com as revelações que lhe fazia o pai. – Conta-me como é isso!
− Sabes que já assassinei um sem número de pessoas, por encomenda, ou, simplesmente, para roubá-las, não? – e, depois de obter a confirmação do filho, que assentiu com ligeiro gesto de cabeça, Assib prossegue: − E garanto-te que, desses que matei, nenhum era muçulmano, eram todos infiéis: espanhóis, judeus, ciganos...
− Para a nossa consciência, matar infiéis faz-nos grandes, diante de Alá... – diz o rapaz, a olhar, fixamente, para o rosto do pai.
− Sim! – concorda Assib. – Por isso é que nunca titubeei em mandar qualquer um desses desgraçados aos infernos! Sei que, antecipadamente, já tenho o perdão do Altíssimo! – e a coçar o queixo, cheio de nervosismo: − Entretanto, Ali, por que será que vejo esses fantasmas, constantemente, a perseguirem-me, com as fisionomias transfiguradas de ódio? Não consigo compreender isso... Não combina, entendes?... Se Alá já me perdoou, por que, então, acossam-me e juram vingar-se de mim, a rilharem os dentes de tanto ódio?
− Por mim, não saberia explicar tal coisa, abi – responde o rapaz.
E depois de cogitar por instantes: − Por que não vais ter com Ismail
Abou Saab, o mago? Ele sempre tem as respostas certas para tudo...
− Oh, bem lembrado, Ali! – exclama o açougueiro, animando-se.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 9:54 am

– Amanhã mesmo irei procurá-lo! Depois disso, como já se fazia tarde, pai e filho, após abraçarem-se em despedida, recolhem-se em seus respectivos aposentos para o repouso da noite. À distância, ouvia-se o ladrar dos cães vadios das ruas, e os galos, numa destoante sinfonia, disputavam entre si qual deles teria o canto mais longo e mais sonoro de toda a cidade...
___________________________________________________________________________________________________________
109. “− Uma mensagem?...” (...) “Estranho...”, em castelhano.
110. “− Que está acontecendo, Senhor?” – em castelhano.
111. Construída pelos romanos, sobre o rio Tago, no ano 106 d.C., a Ponte de Alcântara dá acesso à cidade de Toledo, Espanha, e tem 194m de comprimento, 8m de largura e 71m de altura.
112. A reconquista da Península Ibérica foi finalizada com a tomada de Granada por parte dos reis espanhóis, Fernando e Isabel, que a anexaram à Coroa de Castela, em 1492.
113. A invasão muçulmana da Península Ibérica deu-se por meios militares e populacionais, ocorridos a partir do ano 711, quando tropas islâmicas vindas do Norte da África, sob o comando do general omíada, Tariq Ibn Ziyad (670 – 720), cruzaram o Estreito de Gibraltar, penetraram na Península Ibérica e venceram Rodrigo, o último rei dos Visigodos da Hispânia, na batalha de Guadalete, ocorrida entre 19 e 26 de julho de 711. Após a vitória das forças islâmicas, termina o Reino Visigodo de Toledo. A partir daí, os muçulmanos foram alargando as suas conquistas na Península Ibérica e as dominaram por quase oitocentos anos, até serem definitivamente expulsos do solo espanhol, em 1492.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 7:19 pm

Capítulo X. Ismail, o mago
O velho de barbas brancas e longas fixa os olhos de Ibraim Assib, por algum tempo, enquanto pensava.
− Sei o que se passa contigo, Assib – finalmente diz o mago, com a voz pausada, como lhe era do costume. – Tudo o que me contaste é passível de acontecer, sim – e, depois de longo silêncio, durante o qual ordenava as ideias acerca do que iria dizer ao consulente, prossegue: − Existem leis a regularem a vida, meu caro.
Independentemente do que pregam as religiões, pensam ou desejam os homens, existe uma Ordem Maior que governa o mundo, sem mistérios, sem engodos, sem subterfúgios...
− Não entendo... – murmura Ibraim Assib, um tanto embaraçado.
– Não consigo atinar com o que dizes...
− Explico-me: no teu íntimo, sempre pensaste que a morte fosse o fim de tudo, não é assim? E não te recrimino: por todo esse tempo, essa tem sido a crença disseminada entre muitos de nós, tanto muçulmanos quanto cristãos e judeus! – e a abrir ligeiro sorriso: − Afinal, até hoje ninguém voltou do além, a relatar o que se passa por lá, não é mesmo?... E, do que se tem notícia, vulgarmente, é que, uma vez morto, a coisa se acaba, de vez!
Entretanto, pergunto-te: será que ocorre exactamente isso? Ao morrer, o homem diluir-se-á no nada, no não existir, como pensam alguns, ou, como pregam as religiões, quase que unanimemente, que seremos todos julgados e premiados ou condenados, segundo as nossas obras?... Aguardar-nos-ia o paraíso, o purgatório ou a danação eterna, de onde, invariavelmente, uma vez lá nos achando, jamais retornaríamos. Eu, particularmente, não creio que deva ser assim!
− Não?! – espanta-se Assib. – Mas é como sempre tenho pensado e sei que não sou o único a considerar esse assunto dessa maneira!
− Sei que isso tem acontecido dessa forma não só para ti, mas para muita gente também! Mas insisto: será o correto? – e, depois de pensar por instantes, prossegue: − Eu vejo coisas, Assib, que a maioria dos homens não vê!
− O que vês que não podemos ver, Senhor? – pergunta Assib, angustiado.
− As almas dos mortos, por exemplo, como tu também vês... – diz o mago, fleumático.
O açougueiro espanta-se sobremodo:
− Dizes que isso que vejo é, de fato, a alma dos que já morreram?!... Pensei que fossem vertigens da minha cabeça!... Mas como é isso possível? O que dizes vai, patentemente, contra o que aprendi e destoa de tudo quanto a maioria do mundo inteiro pensa!
− Sei disso... Sei disso... – rebate o velho, extremamente paciencioso, como lhe era do feitio. – Entretanto, conforme eu te disse antes, Assib, existem leis ocultas as quais tu e os demais mortais sequer suspeitam que existam!
− E ver os mortos, acaso, insere-se nalguma delas? – pergunta o outro, aflito.
− Tudo indica que sim – responde o mago. – Um dia, certamente, todos os homens saberão que é possível, sim, verem-se os que já morreram.
− Mas como posso crer que o que dizes é verdade? – pergunta o comerciante de carnes. – Não há como provar, ou há?
− Sim, há como provar a ti ou a qualquer outra pessoa que os mortos continuam a viver, como eu e tu! – e, levantando-se das almofadas onde estivera recostado até então, convida Assib: − Vem!... Vou mostrar-te!
O mago Ismail conduz Assib mais para dentro da casa e, abrindo uma porta dissimulada num grande móvel de madeira escura, adentram-na e dão num corredor sombrio. Tacteando, o velho místico apanha um grande archote que se achava preso a um tocheiro, na parede, acende-o, e seguem ambos pela passagem baixa e abafada. Depois de caminharem alguns metros, dão numa sala de proporções médias, totalmente fechada. Com o archote que trazia à mão, o velho acende uma série de outras tochas que se achavam presas às paredes. Razoável luminosidade, então, revela o ambiente: a sala era provida de uma mesa redonda, colocada bem ao centro do espaço; sobre a mesa, um grande castiçal de ferro e alguns livros encadernados com grossas capas de couro; a um lado e junto à parede, um catre recoberto com algumas mantas de lã colorida.
− Aguarda um instante, que volto já – diz o mago a Assib.
O velho retorna, pouco depois, seguido de uma moçoila, que trazia as feições cobertas pelo véu, à moda islâmica. Sem entender o que se passava, o açougueiro postava-se meio atoleimado, a observar as atitudes do mago.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 7:19 pm

− Esta é Nabiha, minha neta – diz Ismail, apresentando a jovem.
– Ela irá auxiliar-nos no procedimento.
Em seguida, o mago indica uma almofada a Assib, fá-lo sentar-se e, depois, pede à neta que se deite sobre o catre.
A jovem obedece e, a seguir, o velho joga um punhado de ervas secas sobre pequeno fogareiro de brasas que pusera a arder, antes, a um canto, sobre um tripé de ferro. Espessa fumaça branca, então, imediatamente sobe do queimador e inunda o ambiente, com forte e penetrante perfume, cujo odor era completamente desconhecido de Assib. Em seguida, o velho aproxima-se do catre onde jazia a jovem Nabiha e lhe aplica uma série de passes, desde a cabeça até os pés, enquanto proferia uma porção de palavras numa língua estranha.
O açougueiro a tudo seguia, com bastante atenção, sem deixar passar qualquer detalhe do que fazia o mago. Por um bom tempo, Ismail magnetizou a neta, até que esta passou a ressonar tranquila.
Em seguida, o velho continuou a sua estranha reza só que, agora, traçava no ar, com a mão direita, uma série de sinais cabalísticos.
O tempo passava, e a pesada fumaça houvera deixado no ar, além do perfume inebriante e penetrante, como que uma ténue cortina fúmea a dar ao ancião e à jovem deitada sobre o grabato uma aparência quase fantasmagórica.
Durou algum tempo o estranho ritual que fazia o velho mago que, encerrando a ladainha, dita toda ela naquela língua estranha, acocora-se ao lado da cama e se concentra, aparentemente cerrando, fortemente, os olhos.
Assib a tudo seguia, cheio de expectativa, ao mesmo tempo em que achava tudo muito extravagante. O silêncio meditativo do velho durou um bom tempo, ao final do qual, abriu os olhos e, novamente aplicando passes ao longo do corpo da neta, voltou a repetir a série de palavras na língua desconhecida. Aí então, fato curioso aconteceu: da boca, das narinas e dos ouvidos de Nabiha, uma estranha fumaça branco-fosforescente e bastante ténue começou a surgir e a tomar a forma de peculiar nuvem vaporosa, a oscilar aeriforme sobre o corpo da jovem.114
O velho mago pareceu, então, exultar de contentamento, olhou para Assib que se mostrava de olhos arregalados, espantadíssimo com o fenómeno que presenciava, e lhe disse em voz baixa:
− Agora terás a confirmação do que eu te disse! – e, afastando-se um pouco mais do leito, agacha-se ao lado de Assib e lhe cochicha: – Observa, atentamente, o que vem a seguir!
A nuvem fosforescente oscilou no ar e, afastando-se um pouco de sobre a jovem, mas sem se desvincular, completamente, dela, revoluteou, lentamente, no ar, e, expandindo-se, ostensivamente, foi tomando a forma de um corpo humano.
De repente, Assib torna-se lívido: uma pessoa que lhe fora conhecida, de tempos atrás, materializava-se ali, diante dele!
− Que coisa demoníaca é essa?! – exclama ele, encolhendo-se todo de pavor. E, com a voz enrouquecida pelo terror, diz, apontando para o espectro que surgia, ameaçadoramente, diante de si: – Não é possível!... Você morreu!...
− Acaso pareço morto, desgraçado? – diz o Espírito materializado, encarando Assib, com feições horríveis, terrivelmente transtornado pelo ódio. – Naturalmente, achavas que me havias matado, não, maldito?... Mas, como podes muito bem constatar, encontro-me vivo! Mais vivo que nunca! − Não! Isto é um engodo! Abati-te, a golpes de punhal!... Tu morreste!... Eu bem constatei que estavas morto!
− Ah, acaso pareço morto, lazeirento? – grita o espectro, a tornar-se possesso, diante do sicário. – Aniquilaste tão-somente o meu corpo, não a minha alma!
− Por meio de qual sortilégio infernal tu ideaste tamanha engabelação? – pergunta Assib, transtornadíssimo, voltando-se para o mago.
− Nem mesmo vendo, tu crês? – observa o velho, com a voz firme. – Não consegues enxergar a evidência dos fatos? Porventura não reconheces a tua vítima?...
− Sim, assemelha-se em tudo a Juan Ximen que despachei aos infernos, por encomenda de Javier Colares!...
− Justo! – grita o Espírito. – Vês como sabes de tudo? – e a rilhar os dentes de extremo ódio, prossegue: − E que tinhas tu contra mim?... Nada, pois sequer sabias quem eu era de facto!...
Assassinaste-me pelo ouro, tão-somente!
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 7:19 pm

− Não! Não posso crer no que vejo! – e, dirigindo-se ao velho Ismail, exclama estentóreo: − Tu me enganas!... Isso é uma ilusão!
− Não é ilusão, maldito! – grita o espectro, assaz alterado. – Tu verás o que reservo para ti, assim que deixares a tua vestimenta de carne! E sei que isso não tardará a acontecer! Tu verás, pulha! – e, a abrir um riso pejado de ironia, prossegue: − Acaso pensas que não estou a par de tudo o que te vai pela cabeça?... Sei muito bem quem pretendes assassinar, desta vez: o secretário do arcebispo, D. Aníbal Velásquez!
Ao ouvir o nome da sua próxima vítima, o sicário tem um sobressalto:
− Quem te contou isso?!
− Crês agora que sou bem quem sou, ordinário? – e a mostrar-se ufano: − Conheço o que pensas, patife!... De mim nada poderás ocultar, pois te sigo, diuturnamente, como a tua própria sombra!
Assib cala-se, diante de tão claríssimas evidências. Cabisbaixo e altamente chocado, põe-se pensativo.
O mago, satisfeitíssimo com a demonstração que fizera a seu consulente, passa a traçar no ar uma série de sinais estranhos e a dizer uma porção de fórmulas cabalísticas, naquela língua incompreensível. O espectro, então, perde as forças e principia a diluir-se no ar, enquanto que a nuvem vaporosa, que lhe dera a forma, recua, num ligeiro redemoinho, e, lentamente, é reabsorvida pelos orifícios naturais da jovem que permanecera a dormir, profundamente, alheia a tudo que acontecia no ambiente.115
Cessado, por completo, o inusitado fenómeno, o velho, então, aproximando-se da neta, aplica-lhe uma porção de passes, ao longo do corpo, desde a cabeça até os pés. Depois de emitir uma série de longos gemidos, como se estivesse a sofrer, Nabiha desperta da sua letargia e olha em redor. O avô, sorrindo-lhe amável, dá-lhe a mão e auxilia-a a levantar-se do leito.
− Muito bem, querida! – diz ele, com um sorriso gentil. – Uma vez mais foste maravilhosa!
Pouco depois, já em outro ambiente da casa de Ismail, o sicário permanecia estupefacto e muito pálido.
− Ainda não consigo crer no que vi, há pouco! – exclama ele, com o rosto apoiado entre as duas mãos, que se mostravam ainda bastante trémulas.
− Entretanto, juro-te que tudo o que viste e ouviste trata-se da mais pura realidade, meu caro! – diz o velho mago em sua fleuma habitual.
− Mas, como é isso possível? – pergunta o consulente, cheio de assombro. – Não é nada comum o que me revelaste!
− O vulgo sequer desconfia dessa realidade, Assib – explica o mago. – Confiei-te tal revelação, porque já desconfiavas dessa verdade, não é? As almas mostravam-se a ti, constantemente, conforme me confiaste!
− Ora posso dizer-te que assim é! – responde o outro, ainda bastante pasmado pela inusitada revelação – e a menear, lentamente, a cabeça, diz: − Não supunha que assim fosse...
− A humanidade – salvo raríssimas excepções – desconhece, complemente, que a vida não se interrompe com a morte, que segue além! – explica o velho. – Percebes, agora, como andam todos equivocados a esse respeito?
− Sim! – concorda o outro. – Se disso desconfiassem! − Tens razão – prossegue o mago. – Talvez, se tal verdade fosse disseminada entre as gentes, as coisas principiariam a mudar; entretanto, sei que ainda não é tempo. Existem grandes interesses envolvidos, e a verdade, terá, infelizmente, que esperar! Quem sabe, no futuro?... Por ora, quem se atrever a espalhar tal novidade terá, por destino certeiro, as fogueiras da Inquisição...
− Por muito menos, já queimaram tantas pessoas vivas! – concorda o sicário.
− E nós não seríamos excepção; portanto, uma vez mais, repito: cala-te sobre tudo o que hoje aqui viste e ouviste!
− E tu crês que aquele um que se mostrou a nós – o que matei por encomenda – cumprirá, de fato, a promessa que me fez?
− Penso que assim deverá ser – responde o velho. – Entretanto, existem coisas que desconheço, acerca desse assunto. E deves estar pensando, aí, em teu íntimo, como é que descobri tal coisa, não é?... E posso dizer-te que esse conhecimento é muito antigo – vem desde a Babilónia, pelo que sei −, e poucos tiveram e têm acesso a ele. No meu caso, aprendi-o do meu mestre, mas que, sob severo juramento, a ninguém mais deverei ensinar como manejar, seguramente, este fenómeno, senão a alguém sobre quem eu deposite a mais absoluta confiança!
− E já descobriste a quem passarás esse conhecimento? – pergunta Assib altamente curioso.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 7:19 pm

− Ainda não – responde o velho. E olhando sério nos olhos do outro, prossegue: – Mas terá que ser a alguém que nunca tenha manchado as mãos com sangue humano...
O sicário baixou a cabeça. Não que lhe estivesse no intento apossar-se de tão extraordinário conhecimento; na verdade, davam-lhe eram arrepios, só de pensar no que presenciara àquela manhã...
Já em casa, o filho vê-o que chegava mais apreensivo de quando saíra, horas antes.
− Pelo que percebo, teu encontro com Ismail deixou-te mais acabrunhado do que antes... – observa o rapaz, a sondar o semblante carregado do pai.
− Nem imaginas o que hoje vi em casa de Ismail, o mago, Ali! – diz o mercador de carnes, deixando-se sentar, pesadamente, sobre as almofadas de lã.
− Não consigo atinar com o que seja, mas, pelo visto, foi algo que conseguiu arrasar contigo!
− E como! – exclama o outro, a revelar-se ainda plenamente possuído pelo assombro.
− E não vais contar-me? – pergunta o rapaz, deixando-se tomar por grande expectativa.
− Conto-te, sim – responde Assib. – Mas, antes, ordena a trazerem-me água fresca: tenho a garganta ressequida pelo calor, mas, ainda mais, pelo assombro!
O rapaz cumpre a solicitação feita pelo pai, e uma criada, em pouco, aparece, a sobraçar pequena bilha de água fresca e a serve ao patrão.
− Agora vai lá, abi... – diz o rapaz, mal sofreando a ansiedade que lhe roía a alma. – Conta-me tudo!
E, minuciosamente, o comerciante de carnes narra ao filho toda a inusitada aventura que vivenciara em casa do mago Ismail.
− O que me contaste é surpreendente, abi! – exclama o rapaz, ora possuído de profundo espanto, após ouvir toda a narrativa que lhe fizera o pai. – E creio que isso responde as tuas indagações sobre as visões que tinhas!
− Foi-me por demais convincente, Ali – diz Assib. – Não há como iludir-me mais...
− Então, doravante, tens conhecimento de que é impossível, de facto, abater alguém...
− Tudo indica que sim, Ali...
− E isso, naturalmente, far-te-á mudar o comportamento em relação a essa questão... Não mais assassinatos por encomenda ou para roubar os desgraçados estrangeiros que tu e teus amigos pilham pelos caminhos...
− Assim deveria ser, Ali – responde o açougueiro. – Mas sabes que ainda tenho um último negócio a resolver...
− E não temes as consequências serem ainda maiores que as que, possivelmente, aguardam-te, no futuro?
− No fundo, ainda nada concluí, meu filho, pois tenho de muito pensar acerca dessas coisas – e, depois de alguns instantes de funda cogitação, prossegue: − Por um lado, ora tenho a certeza de que tais práticas são altamente condenáveis pelas leis da vida; por outro lado, sabes que empenhei minha palavra ao judeu, e temos, ainda, o teu futuro a zelar... Sem esse dinheiro, como te manterás em Salamanca?
− Abi – diz o rapaz, aproximando-se mais do pai e, tomando-lhe as mãos, amorosamente, entre as suas, prossegue:
− Jamais desejaria que te condenasses, eternamente, ao mármore do inferno, para que eu tivesse uma vida melhor que a tua! Olha, sou feliz assim, mesmo sem ter a cultura que desejas que eu tivesse ou, ainda, uma montanha de ouro e vivendo num palácio! Não seria isso a trazer-me a felicidade plena, não! E, como poderia eu ser feliz, depois que morresses, sabendo-te a arder nas chamas eternas do inferno?
− Alá é misericordioso; perdoar-me-á os meus crimes!
− Não duvido da misericórdia do Altíssimo, pai, mas que lhe disse o mago? Há coisas que desconhecemos acerca da vida...
− Oh, Ali, assim confundes-me a cabeça! – responde o magarefe, levantando-se agitado. E, a altear a voz, sobremaneira, prossegue: – Como posso, agora, ter certeza das coisas?... No fundo, a minha ida até Ismail deixou-me ainda mais atazanado das ideias! Antes, cria que Alá perdoar-me-ia os crimes, por serem todos praticados contra infiéis; ora, entretanto...
− Mas não confabulaste com a tua última vítima? – persiste o rapaz. – Que te disse ele?
− Que me aguarda, a ajustarmos as contas, no momento em que eu me for deste mundo...
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 02, 2024 7:20 pm

− Viste?... E não crês no que os teus olhos viram e os teus ouvidos ouviram? Que te fala mais à consciência: o que te ensinaram pela tradição ou o que os fatos, hoje, atestaram-te?
− Ora, Ali! – esbraveja Assib. – Ando quase a arrepender-me de ter-te pagado os mestres a instruírem-te! Já não consigo mais acompanhar, plenamente, o teu raciocínio!
− Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... – ri-se o rapaz das confusões que iam pela cabeça do pai.− E tu ainda te ris? – esbravece Assib, com a explosão hilária do filho. – Não vês que sofro?
− Perdoa-me, pai! – diz o filho, contendo-se. – Mas tu te meteste em bela confusão! Foste em busca de esclarecer as tuas dúvidas e, pelo contrário, tu as multiplicaste!
− Ai de mim! Infelizmente, assim tudo se mostra, Ali! – geme o açougueiro, cheio de desalento. – Mas é preciso que eu tome uma atitude e depressa! – e, depois de cogitar por instantes: − Decido-me: esta será a derradeira empreitada neste tipo de negócio! Depois de tudo concluído, terei o dinheiro que te possibilitará o ingresso na escola de Salamanca e, quando concluíres os teus estudos, ir-nos-emos da Espanha!
− Já tens uma boa quantia amealhada, pai – rebate o rapaz. – Se passarmos a levar uma existência mais simples, eu e tu poderemos viver com pouca coisa, lá mesmo em Salamanca.
− Oh, não me acostumarei mais às exiguidades, Ali! – opõe-se Assib. – Já passei tantas necessidades nesta vida que não suportarei viver na miséria outra vez!
− Não te propus vivermos na miséria, pai! – contesta o rapaz. – Apenas que passássemos a viver de forma mais simples.
− Mas já vivemos sem qualquer luxo ou ostentação, Ali! – diz o mercador de carnes. – O que ganho no comércio mal nos permite modesta subsistência, como bem sabes! E queres que nos privemos ainda mais do pouco que temos?
− Não será por muito tempo; apenas que vendas esta nossa casa e, com parte do dinheiro, compres ou alugues modesta vivenda, em Salamanca, e, com o que restar, pagaremos com folga a minha escola. E isso será por alguns poucos anos tão-somente, até que eu conclua os meus estudos! – argumenta o rapaz. E completa: − E tu te verás livre dos perigos que incorres, constantemente, com as tuas empreitadas arriscadas!
− Mas e o meu empenho neste negócio, já em andamento? – pergunta Assib. – Se bem pensares, acho-me numa enrascada: se o desgraçado padre não aceitar a nossa denúncia, não teremos mais o dinheiro; por outro lado, se não der cabo dele, os judeus virão no meu encalço, a cobrarem o resultado ou a restituição do montante que já me adiantaram. Acaso já cogitaste nessa hipótese?
− Não... – responde o rapaz, lacónico. E depois de pensar por um instante: − E por que não fugimos, tu e eu? Em Salamanca, ser-lhes-á difícil encontrarem-nos!
− Aí é que te enganas, redondamente! – rebate Assib. – Tu não conheces bem esses judeus! Por dinheiro, são capazes de irem ao inferno em nosso encalço! E nada lhes custará ajustarem um assassino, se não para reaverem o seu dinheiro de volta, mas para vingarem-se de nós. Nada lhes escapa, facilmente, e nós não teríamos sossego aonde quer que fôssemos, pois eles nos caçariam, diuturnamente, sem tréguas!
− Sendo assim – diz o rapaz −, devolva-lhes o adiantamento que te deram, e vamo-nos daqui, livres e desimpedidos.
− Oh, Ali! – geme o comerciante de carnes. – Para ti as coisas afiguram-se tão simples...
− E o são, abi! – exclama o jovem. – Basta que te predisponhas a perderes, nem que seja por única vez, e te acharás livre de tantos problemas porvindouros!...
− Não sei, Ali! – responde Assib. – Vou pensar sobre o que me disseste.
E, como o dia já avançasse bastante, Ibraim Assib decidiu-se por sair. Havia muitas coisas por resolver e, entre elas, pensar muito sobre a sua situação actual...
*******
No palácio arqui-episcopal, D. Aníbal Velásquez confabulava com seu amigo D. Fernán Guillén.
− Ainda permaneces firme no propósito de exterminares os malditos marranos que te pretendem matar? – pergunta D. Fernán Guillén.
Ave sem Ninho
Ave sem Ninho

Mensagens : 122635
Data de inscrição : 07/11/2010
Idade : 68
Localização : Porto - Portugal

Ir para o topo Ir para baixo

As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 3 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Conteúdo patrocinado


Conteúdo patrocinado


Ir para o topo Ir para baixo

Página 3 de 10 Anterior  1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10  Seguinte

Ir para o topo

- Tópicos semelhantes

 
Permissões neste sub-fórum
Não podes responder a tópicos