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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 7 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 7:06 pm

Capítulo XXI. Na prisão inquisitorial
Enquanto tais coisas aconteciam, numa escura, húmida e abafada cela, nos subterrâneos do vetusto edifício onde se instalavam as prisões do Santo Ofício, Maria de los Milagros, Andrés e o jovem Benyamin achavam-se sentados sobre a palha seca que servia de leito aos prisioneiros.
− Oh, que será de nós, doravante, meu amor? – geme a jovem judia, abraçada ao seu noivo. – Será que nossos pais sabem do nosso cativeiro?
− Por certo que sabem, minha querida! – reponde o rapaz. – Não te esqueças de que ficamos algum tempo na praça e que, ainda, desfilamos pelas ruas da cidade! Alguma pessoa conhecida, por certo, deverá ter-nos visto e avisado os nossos familiares!
− Mas já faz alguns dias que aqui estamos presos e ninguém ainda não apareceu! – atalha Benyamin. – Acho que tivemos azar e ninguém conhecido percebeu que éramos nós os que estávamos presos sobre os cavalos!
− Não vamos nos desesperar, de antemão – diz Andrés. – Neste momento, é preciso ter confiança. Eu tenho, sim, a certeza de que fomos vistos por alguém conhecido e que nossos pais foram, sim, avisados; entretanto, aqui ainda não apareceram, certamente, porque os impediram de isso fazer!
− Oh, queira o santíssimo Yavé que tu tenhas razão, meu amor! – diz Milagros, com a voz chorosa.
− Tenhamos paciência, que tudo irá esclarecer-se! – diz o rapaz, procurando consolar os dois irmãos. Andrés era o mais velho dos três e tinha de mostrar-se forte, caso contrário, o desespero tomaria conta da noiva e do seu irmão, ainda tão jovens e já envolvidos em tão pesadas provações.
− Às vezes, penso que não mais seremos libertos daqui – diz Milagros, com a voz molhada pelo pranto. E, a deixar-se tomar pelo desespero, levanta-se e a bater, freneticamente, as mãos, nas grossas barras de ferro da cela, põe-se a gritar: − Tirem-nos daqui, desgraçados!... Somos inocentes!...
Andrés, imediatamente, põe-se-lhe atrás e a abraça, fortemente, fazendo-a sentar-se, novamente, sobre a palha.
− Acalma-te, meu amor!... – diz ele, ainda abraçado a ela. – Tem fé e paciência! Logo os nossos pais virão ter connosco, eu te prometo!
− Nada me podes prometer, Andrés! – diz a jovem, com a voz molhada pelo pranto. – Estamos já condenados, não percebes?
Tão-somente a morte aguarda-nos!
− Oh, não! – exclama o rapaz. – Ninguém poderá ser assassinado, assim, sem mais nem menos! Deveremos, antes, ser julgados, e nossos pais e amigos ficarão sabendo e virão em nosso socorro! Não há porque nos desesperarmos!... Confia!...
− Não sei, Andrés... – diz a mocinha, agora, deixando-se tomar por grande lassidão. – Sinto tanto medo... Tu te lembras dos sonhos que eu tinha?
− Sim... – responde o rapaz. – Mas nada disso tem a ver com os teus sonhos... Podes estar certa disso!
− Enganas-te, meu querido – diz ela. – Tudo acontece, exactamente, como vi nos sonhos... Esta cela, as cadeias... – e aponta os pesados grilhões presos aos matacões que formavam as grossas paredes de pedras escuras. – Tu estavas preso a correntes como essas!...
− Ora, apenas coincidem com o que viste nos teus sonhos!
Nada, além disso! Tu verás!
− Vejo que não entendes... – diz a moça, com triste sorriso à face bastante maltratada pelo choro. – Os ratos esfaimados devoravam-te os pés ensanguentados... Num átimo, um calafrio percorre a espinha de Andrés, e um pensamento tenebroso perpassa-lhe o cérebro: Milagros teria razão? Estariam, efectivamente, condenados e jamais sairiam dali com vida? Entretanto, conseguiu conter-se e nada deixou transparecer.
− Ora, tudo isso são bobagens da tua cabeça, meu amor! – diz ele, a segurar-lhe forte as mãozinhas trémulas. – Em breve, tu verás que tudo isso não passou de temores infundados!
− Se Milagros sonhou que morreríamos todos aqui presos, é porque isso, efectivamente, acontecerá! – exclama Benyamin, a encher-se de temor. – Papai disse-nos, várias vezes, que a nossa avó Elisheba tinha sonhos que aconteciam depois! Milagros também é assim!... Eu sei!... E, levantando-se, começa a chorar desesperado, enquanto falava: – Se ela sonhou que vamos morrer aqui, é porque vamos morrer mesmo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 7:06 pm

− Vem, acalma-te, Benyamin! – diz Andrés, abraçando-se ao rapaz, procurando contê-lo. – Não te desesperes à toa! Posso garantir-te de que não é dessa maneira que essas coisas acontecem! Sei, sim, que existem sonhos que se realizam, como aconteceu com Yosef do Egipto, ao interpretar os sonhos do faraó!
Mas Yosef era ungido por Yavé! Tu conheces muito bem tudo isso!
− Oh, se ao menos papai soubesse que aqui estamos! – geme o rapaz, deixando-se cair, desolado, sobre as palhas do chão da cela.
– Mas eu tenho a certeza de que papai e mamãe não sabem que estamos aprisionados tão perto deles, senão já teriam vindo vernos!
− Eu, entretanto, tenho a certeza absoluta de que todos sabem que aqui estamos, Benyamin! – exclama Andrés. – E se ainda connosco não estiveram é porque não nos deixaram entrar, mas, cedo ou tarde, eles virão, podes crer no que eu te digo!
− Queria ser tão confiante como tu, meu amor! – intervém Milagros. – Porém o desespero mostra-se maior que a minha confiança de que tudo isso irá terminar bem!
− Tem fé, querida! – diz o rapaz. – Não será difícil a meu pai conseguir que a rainha mande libertar-nos!... Não te esqueças de que D. Isabel o tem em grande conta! Será tão-somente uma questão de tempo!
− Oh, querido! – diz Milagros, achegando-se mais ao noivo e o abraçando com grande ternura. – Não sei o que seria de mim, se aqui não estivesses comigo!
− E eu já teria morrido de aflição, se não te tivesse em meus braços, mesmo em tal situação! – fala o rapaz, abraçando-a forte.
− Mas essa inconstância em nossa vida anda a exaurir-me! – exclama a jovem, deixando-se levar pela tristeza. – Anelava tanto casar-me contigo, constituirmos a nossa família, estando sempre juntos!
− Tem esperança de que, um dia, isso se realizará!
− Não sei... – diz Milagros. – Entretanto, ultimamente, tenho-me deixado levar pela descrença! Já faz tanto tempo que estamos fugindo, escondendo-nos!... Que vida é essa?...
− Sei que isso te cansa, querida! – concorda o rapaz, com longo suspiro. – Também eu ando a cansar-me dessa situação! – e depois de cogitar por instantes, exclama: − Espera aí!... Tive uma ideia:
acaso tu trazes contigo alguma joia de relativo valor?
− Este colar que tu mesmo me presenteaste! – responde a moça, enquanto baixava a alta gola do vestido, e exibe, em seguida, grosso colar de finíssima ourivesaria. – Recordas-te dele?
− Claro que me lembro! – responde o rapaz, com os olhos a iluminarem-se grandemente. − Dei-o a ti, pela passagem do teu aniversário, dois anos atrás! − e a estender a mão, pede: – Passa-mo cá!
− Por que o queres de volta? – pergunta Milagros, a estranhar o pedido que lhe fazia o noivo.
− Com ele, vou subornar um dos guardas, para que leve uma mensagem ao meu pai! – cochicha-lhe o rapaz.
− É mesmo! – concorda a jovem, a desabotoar, apressadamente, o esplêndido colar e o passando, em seguida, a Andrés. – Muito bem pensado, querido!... Faz-lo logo!
Depois, Andrés aproxima-se das grades da cela e chama pelo sentinela que dormitava, escorado à parede de pedras do escuro corredor.− Que queres, prisioneiro? – pergunta o guarda, grosseiramente, aproximando-se das grades.
− Vês esta joia? – pergunta Andrés, a exibir aos espantados olhos do homem a finíssima peça de rica ourivesaria que faiscava à fraca luminosidade do escuro corredor. – Será tua, se me fizeres grande favor!
− Que desejas que eu faça? – pergunta o homem, assaz encantado com o brilho da joia, ao mesmo tempo em que olhava, preventivamente, para os lados.
− Deverás levar tão-somente um recado ao meu pai! – diz-lhe Andrés em voz baixa.
− Um recado apenas? – pergunta o homem, a mostrar-se bastante interessado no assunto, diante da expectativa de ganhar valiosíssimo tesouro, em troca de algo que lhe pareceu tão insignificante a realizar. E, depois de certificar-se, cuidadosamente, de que ninguém os ouvia, disse, estendendo, avidamente, a mão: − Feito!... Dá-me cá o colar!
− Primeiro, quero que memorizes muito bem o recado que te vou passar! – exclama Andrés, a recolher, abruptamente, o colar, ocultando-o à mão fechada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 7:07 pm

− Vai lá! – diz o homem, a mostrar-se cheio de enfados. – Diz logo qual é o assunto.
E, Andrés, pacientemente, recita-lhe as palavras que deveria dizer ao pai, assim que o encontrasse.
Em seguida, fez o homem repetir várias vezes o que lhe tinha passado. Por fim, satisfeito, entregou o colar ao soldado que o guardou, apressadamente, sob as vestes.
O esbirro voltou a encostar-se à parede e, pachorramente, voltou a cochilar.
− Pronto! – exclama Andrés, voltando a sentar-se sobre as palhas secas. – Agora é só esperar!
− Será que o soldado vai passar o recado ao teu pai? – cochicha-lhe Milagros.
− Temos de ter confiança – responde o rapaz. – Se não fizer, eu o denunciarei ao capitão da guarda!− E valerá isso algo? – intervém Benyamin, que a tudo acompanhara, em total silêncio. E desabafa: – Pois eu não confio em nenhum dessa corja!
− É preciso manter as esperanças, Benyamin! – admoesta-o a irmã. – Não te entregues, assim, ao desânimo!
− Não é desânimo, não, Milagros! – rebate o rapaz. – Mas não confio naquele um! Vai é vender a valiosa joia por qualquer bagatela e beber tudo na taverna!
− Correremos esse risco! – diz Andrés. – Mas tínhamos que tentar!
− Tens razão, meu amor! – exclama Milagros. – Tu agiste certo!
Era preciso fazer algo!
− Pois eu só acreditarei, quando ele trouxer alguma resposta de volta! – persiste o jovem. E, reafirma: − Não confio nesses ratos!
Neste entretempo, D. Aníbal Velásquez e seu companheiro, Fernán Guillén, chegavam ao Tribunal do Santo Ofício e eram recebidos por D. Torquemada.
− Que vos trazem de retorno ao Tribunal, Senhores? – pergunta D. Tomás de Torquemada, a meio de algumas pilhas de documentos, os quais era patente que ele estivera analisando. – Como bem podeis ver, as coisas avolumam-se: uma chuva de denúncias contra marranos e mouros! E é preciso analisá-las, uma a uma, com paciência e cuidado! – e a abrir ligeiro sorriso cínico, prossegue: − Aqui não se pretende cometer nenhuma injustiça!
− É possível perceber que andais ocupadíssimo, D. Tomás! – observa D. Aníbal Velásquez. – Porém, sinto dizer-vos que esse cabedal de documentos irá avolumar-se! – e virando-se para D. Fernán, prossegue: − Com mais este!
D. Tomás apanha o documento das mãos de D. Fernán, folheia-o com certa curiosidade e, depois de algum tempo, pergunta:
− Então cá denunciais os pais dos jovens aprisionados por judaizarem?
− Sim – apressa-se em responder D. Aníbal Velásquez. – E creio que o advogado D. Guillén tenha feito tudo conforme a lei.
− Perfeitamente, D. Aníbal! – responde D. Torquemada. – Prometo-vos que tudo lerei e analisarei com muito cuidado! − E teremos que aguardar muito tempo, para obtermos uma resposta definitiva do Tribunal? – pergunta D. Fernán Guillén.
− Pelo volume de denúncias que ainda terei de analisar, D. Guillén, presumo que só poderei dar-vos uma resposta somente em dois ou três meses. É preciso seguir a ordem de protocolo! − e, com o indicador da mão direita, percorre a imensa pilha de documentos que se amontoava sobre a sua secretária.
− Tanto assim, D. Torquemada? – pergunta D. Aníbal, supondo que o processo caminharia mais rapidamente.
− Sim – confirma o chefe da Inquisição. E, diante do desapontamento do outro, sorri e, apanhando o processo que D. Fernán lhe passara, pouco antes, coloca-o sobre a pilha, ao invés de pô-lo por baixo, e diz: − Contudo, é possível dar-se um jeito,
encurtando-se os prazos, não é!
− ¡Oh, muchas gracias, Señor!189 – agradece D. Aníbal. – Destarte, creio que as coisas caminharão mais apressadamente!
− Podes ter a certeza disso! – confirma D. Torquemada. E, depois de alguns segundo de cogitação, prossegue: – Agora, pensando bem, acho que farei uma classificação desses documentos todos por assunto de denúncia, e como presumo que a maioria deles é por prática do Judaísmo, penso em convencer os conselheiros do Tribunal em fazermos um julgamento colectivo. Que pensais disso, D. Guillén?
− Perfeito, D. Torquemada! – responde o advogado. – Agindo assim, poupareis tempo, e a sentença e respectiva execução dar-se-ão mui rapidamente!
− É o que pretendo! – diz D. Torquemada. – Delito, denúncia, julgamento e execução da sentença deverão acontecer em tempo brevíssimo, antes que as coisas esfriem-se, ou o intuito punitivo perderá o efeito!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 7:07 pm

Além do mais, o processo da limpeza não poderá demorar-se muito! Suas Majestades têm pressa!
Em seguida, D. Aníbal e D. Fernán despedem-se de D. Torquemada e saem.
Três dias após esses acontecimentos, nos subterrâneos do Tribunal, o soldado aliciado por Andrés aproxima-se, disfarçadamente, das grades da cela e chama:− Aproxima-te, prisioneiro!
− Deste o recado ao meu pai? – pergunta Andrés, ansiosíssimo.
– Que disse ele?
− Acalma-te, homem! – rebate o soldado, irritando-se. – Vamos devagar!... Eu dei, sim, o recado ao teu pai, e ele mandou dizer-te o seguinte: “Dize ao meu filho que eu e Yaacov já estamos a par de tudo e que estamos agindo para libertá-los.”
− Oh, que Yavé te abençoe! – exclama Andrés, contentíssimo, agradecendo ao soldado. E, voltando-se para Milagros e Benyamin que, também ansiosos, a tudo tinham ouvido: − Vistes?... Eles de tudo já sabem!
− Graças, Yavé poderoso! – brada Milagros, pondo-se de joelhos. – Agora sei que teremos uma chance de sair daqui!
− Sim! – diz Andrés. E se pondo, também de joelhos, ao lado da sua amada, prossegue: − E é verdade o que disse o soldado, pois citou o nome do teu pai!
− É mesmo! – concorda Milagros! – Ele citou o nome do meu pai!
– e se voltando para o irmão, diz: − Agora crês que papai e mamãe sabem que aqui estamos?
− É... – rende-se o rapaz. – Aquele brutamontes não poderia, de forma nenhuma, ter adivinhado o nome do nosso pai!...
− E o que faremos agora? – pergunta Milagros, a mostrar-se mais animada.
− Nada mais há a fazer, por ora, querida! – responde Andrés. – Agora é só esperar...
Nesse ínterim, Yaacov Shlomo e Ben Hanan, acompanhados de célebre advogado de Toledo, solicitavam uma audiência com o chefe do Tribunal do Santo Ofício.
D. Tomás de Torquemada, avisado por seu secretário, como da outra vez em que ali estiveram os dois judeus, fê-los esperarem por mais de duas horas, de propósito, antes de atendê-los.
− Em que vos posso ser útil, Senhores? – pergunta o chefe da Inquisição, com voz um pouco mais afável, pelo motivo de que ambos faziam-se acompanhar por renomado advogado da cidade.
− Primeiramente, o protesto por, novamente, fazerdes com que esperássemos por tanto tempo! – exclama Ben Hanan! Acho que sabeis muito bem que...
− Que éreis secretário de Sua Majestade?... – atalha D. Torquemada, cheio de funda ironia à voz.
− Como éreis?!... – protesta Ben Hanan, cheio de zangas. – Que quereis dizer com isso?... Eu ainda sou secretário de Sua Majestade!
− Bom que vos informásseis melhor sobre isso, Senhor! – diz D. Torquemada, com pesado tom de cinismo à voz. E se voltando para o seu secretário que, ali do lado, também se enchia de cínicos risinhos de deboche, pergunta-lhe: − Que me dizes, Ramón?... Qual foi o derradeiro boato que ouviste no paço real?
− Ouvi mui bem, Senhor: que Sua Majestade, a rainha, acaba de proscrever todo e qualquer marrano ou mouro que ocupavam funções no governo!... O decreto é claríssimo: rua com todos!...
Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− E isso, naturalmente, incluiu Vossa Excelência! – emenda D. Torquemada. E, a olhar, zombeteiramente, para Ben Hanan, diz, a fazer amplo gesto inane com as mãos: – Portanto...
− Isso é mentira! – protesta Ben Hanan, ofendidíssimo. – O que afirmastes não passa de deslavada calúnia!
− Bom seria que fostes, pessoalmente, averiguar! – observa D. Torquemada. – Mas, aconselho-vos a que pergunteis de longe, caso contrário, garanto-vos de que sereis escorraçado do paço real como um cão hidrófobo!
− Desgraçado! – grita Ben Hanan, de punhos cerrados, ameaçando saltar sobre D. Torquemada.
− Contenha-te, Ben! – exclama Yaacov, segurando o amigo pelo braço, antes que, irado, ele se lançasse sobre o chefe da Inquisição.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 7:07 pm

E lhe sussurra, bem próximo: − Não percebes que o pulha faz isso com o propósito de achar motivos para prender-nos? Depois conferirás, se o que ele disse é verdade ou não!
− Tens razão, Yaacov! – concorda Ben Hanan, a custo, contendo-se. – Aqui viemos pelos nossos filhos!
− Nosso advogado, D. Alfonso Martins, trouxe-vos uma petição, Senhor! – diz Yaacov, apontando o advogado que, até então, tudo acompanhara em silêncio. O advogado aproxima-se da secretária de D. Torquemada e lhe entrega o documento petitório. O chefe da Inquisição apanha o velino e passa a lê-lo com atenção.
− Sinto negar-vos o que me solicitais, Senhores! – exclama D. Torquemada, após a análise do documento.
− Mas se trata de solicitação legítima, amparada pela lei! – protesta o advogado. – Para negardes o nosso pedido, é necessário que apresenteis motivo real, embasado em lei!
− Este decreto recente de Suas Majestades será suficiente? – retruca D. Torquemada, estendendo ao advogado um documento. D. Alfonso Martins examina o decreto com cuidado.
− O decreto dá-vos amplos poderes para julgardes as acções deste Tribunal, conforme as vossas necessidades! – exclama o advogado, estupefacto. – Mas isso é uma arbitrariedade!... Protesto com veemência!...
− Podeis protestar à vontade, Senhor! – diz D. Torquemada, agora bastante fleumático, a causar ainda mais irritação aos três homens. – E como mui bem pudestes depreender do que reza o decreto, o Tribunal do Santo Ofício é independente, não se subordina a ninguém mais, senão ao próprio conselho que o constitui! Portanto, já vos dei o resultado da vossa petição: negado!
− Como podeis negar aos pais o sagrado direito de, ao menos, verem os filhos encarcerados? – pergunta Yaacov, a desesperar-se sobremaneira.
− Tivésseis, antes, tomado mais cuidado ao educardes os vossos filhos que ora não nos teríeis facínoras assassinos! – esbraveja D. Torquemada, enchendo-se de zangas. E, a bater sobre o tampo da secretária, violentamente, com as mãos, ordena, aos gritos: − Agora, sumam-se daqui, ou mandarei que vos encarcerem por desacato à ordem deste Tribunal!
− Mas, Senhor!... – ainda tenta Yaacov Shlomo.
− Fora!... Fora!... – grita o chefe da Inquisição, com as feições deformadas pela raiva extrema. − Fora!...
Cabisbaixos, os três homens deixam, lentamente, a sala de D. Tomás de Torquemada.− E agora, Ben? – pergunta Yaacov ao amigo, já fora das dependências do Tribunal. – Que faremos?
− Não sei, Yaacov – responde o outro, arrasado. – Pois vejo acabarem-se todas as perspectivas de, ao menos, vermos os nossos filhos!
− Mas como pode alguém agir assim, tão arbitrariamente?... E os nossos direitos?... – diz Yaacov, cheio de revolta. E, a levantar os braços, exclama: − Oh, santíssimo Yavé, iluminai a nossa cabeça!
− Credes que, de fato, nada mais poderemos fazer, Senhor? – pergunta Ben Hanan ao advogado que ainda permanecia ali ao lado deles.
− Sinto dizer-vos, Senhor, que, do modo como o chefe do Tribunal nos recebeu e apresentou as suas razões de não atender à nossa petição, presumo que nada mais, dentro da lei, possamos, efectivamente, fazer!
− E nada tendes a sugerir-nos? – pergunta Yaacov.
− Quereis, mesmo, saber, Senhores? – diz o advogado, em voz baixa, após, minuciosamente, ter olhado para todos os lados. – Fazei o seguinte: sondai os criados e agentes do Tribunal, também os soldados, os vigilantes e quem mais for possível; vós tendes dinheiro, corrompei alguns deles, pois muito bem o sabeis que isso não é difícil de se fazer, neste reino, e, dessa forma, noite alta, podereis ser conduzidos aos calabouços, a manterem alguma aproximação com os vossos filhos!
− Tendes razão! – concorda Ben Hanan. E diz resoluto: – E é isso que vamos fazer!
Três dias depois desses acontecimentos, Ben Hanan e Yaacov, após terem facilmente subornado o capitão da guarda do Tribunal, os vigilantes e mais alguns esbirros, foram admitidos ao calabouço onde os três jovens achavam-se aprisionados.
− Tendes tão-somente pouco tempo para avistardes com os prisioneiros! – diz o capitão da guarda, em voz baixa, a indicar a cela onde Milagros, Andrés e Benyamin dormiam sobre o amontoado de palhas secas que lhes servia de leito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 7:07 pm

Na quase escuridão do sinistro corredor onde se localizava o calabouço, Yaacov e Ben Hanan, extremamente ansiosos, aproximam-se das grades. Yaacov trazia à mão grosso brandão de cera aceso e, com ele, alumia o interior da cela, plenamente dominado pelas trevas da noite.
Os dois homens, então, com o coração prestes a lhes sair pela boca, de tanta excitação, varrem o ambiente com os olhos e divisam, à fraca luminescência, três corpos que se amontoavam, com o propósito de aquecerem-se da frialdade que fazia no húmido e tétrico subterrâneo.
Os três jovens dormiam, pesadamente, e Yaacov e Ben Hanan, com os olhos mareados pelo pranto, não se contiveram.
− Andrés!... – chama Ben Hanan.
− Milagros!... Benyamin!... – chama Yaacov.
O primeiro a despertar foi Andrés. E, com os olhos embotados pelo sono e pela quase escuridão, tenta enxergar quem estivera a chamar.
− Cá estou, meu filho! – exclama Ben Hanan, com o peito quase a explodir de alegria, ao rever o filho amado.
− Pai!... − grita o rapaz, reconhecendo a voz do genitor. E, antes de levantar-se, sacode Milagros e Benyamin, com o intuito de também despertá-los.
− Que está acontecendo? – pergunta a jovem, tonteada pelo torpor do sono.
− Veja!... São os nossos pais que aqui estão! – brada o rapaz, já de pé, a espremer-se às grades da cela, com o propósito de abraçar-se ao pai querido.
− Meu filho! – exclama Ben Hanan, a tentar, como podia, corresponder ao abraço do filho amado. E com as lágrimas a ensoparem-lhe a voz enrouquecida pela forte emoção, pergunta: – Que fizeram contigo, meu querido?
− Meu pai, paizinho!... – diz Andrés, a beijar as mãos do genitor.
Ao lado e com igual emoção, Yaacov tentava fazer o mesmo com os dois filhinhos adorados. Apesar do impedimento das grossas grades, abraçava-os e beijava-os com sofreguidão.
− Milagros!... Benyamin!... Oh, Yavé amado!... Estais bem, não é, meus amores? – pergunta o ourives, todo trémulo pela grande emoção de rever os filhos.− Oh, pai, meu paizinho!... – exclama Milagros, a beijar, com sofreguidão, as mãos de Yaacov.
− Tira-nos daqui, pai! – pede Benyamin, a chorar desesperado. – Não suporto mais viver assim!
− Oh, meu querido! – diz Yaacov. – Eu te prometo: por Yavé, vou tirar-te daqui!
E, por alguns minutos, aquelas cinco almas cheias de aflição e de dor falaram-se e se tocaram. Porém, logo, o capitão da guarda aproxima-se e diz, em tom enérgico:
− Agora, chega!... Vamos acabar com isso! O tempo esgotou-se!
– e a empurrar Ben Hanan e Yaacov, com estupidez, e, com a ajuda de mais dois esbirros, literalmente, arrancou-os dali.
− Pai!... Paizinho!... – geme Milagros, ao ver o pai afastar-se, violentamente empurrado pelos soldados.
− Oh, que desgraça!... Que desgraça!... – exclama Andrés, com o rosto ensopado de lágrimas.
− Não vou suportar isso! – diz Milagros em prantos.
Benyamin, completamente tomado pela emoção, nada dizia.
Resumia-se tão-somente a soluçar um pranto cheio de desconsolo.
Em pouco, a desolação tomou conta dos três jovens. Nada se diziam, apenas choravam baixinho, cada qual contido em sua imensa dor. Suas mentes fervilhavam, cheias de aflição, e uma pergunta comum lhes bailava no pensamento: que seria de suas vidas dali para frente?
Já fora dos calabouços do Tribunal, caminhando de volta para casa, Yaacov e Ben Hanan, ainda com os corações cheios de fortíssima comoção, confabulavam.
− Penso que a única solução que nos resta para libertarmos os nossos filhos será a corrupção da chefia da guarda do Tribunal – observa Ben Hanan. – Para o momento, não vejo outra saída!
− Estás com toda a razão, meu amigo! – concorda Yaacov. – E isso deveremos fazer, mesmo que nos custe a minha e a tua fortuna somadas!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 7:08 pm

− E será exactamente quase isso que nos custará, para libertarmos os nossos meninos! − exclama Ben Hanan. – Sim – assente Yaacov. E acrescenta: − Sem mais delongas, eu e tu deveremos buscar um estratagema que nos propicie armar essa empreitada a qual reputo dificílima de ser executada!
− Difícil, mas não impossível! – rebate Ben Hanan. – Pois deves muito bem saber, tanto quanto eu, que não existem homens incorruptíveis nestes tempos! A corrupção é condição do ser humano, nos nossos dias!
− Sim! – assente o outro. – O ouro, actualmente, compra qualquer consciência, aonde quer que se vá, neste mundo perdido pelo desbragamento e pela derrocada da moralidade e dos bons costumes! – e, em seguida, convida: − Vem à minha casa, logo que puderes, para darmos início a esse procedimento.
A noite já se fazia bastante alta, e os dois judeus, a conversarem muito baixo, caminhavam sem pressa, de volta a casa. Seus corações ainda batiam, doloridamente, pela grande comoção sofrida, mas, no fundo, mantinham laivos de esperança para que um final feliz pudesse ser dado àquele triste impasse, a devolver-lhes sãos e salvos os filhinhos amados...
___________________________________________________________________________________________________________
189. “− Oh, muito obrigado, Senhor!” – em castelhano.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 7:08 pm

Capítulo XXII. Ouro e traição
Três dias após o colóquio que tivera com os filhos, nos calabouços do Tribunal do Santo Ofício, Yaacov Shlomo, ora em sua casa e, ainda de manhã, recebia Ben Hanan, e ambos conversavam com o capitão da guarda que já fora, anteriormente, por eles corrompido.
− Convidamos-vos a novo colóquio, senhor capitão, pelo justo motivo de que tão bem nos auxiliastes na questão com os nossos filhos! – diz Ben Hanan.
− Sim!... Sim!... – atalha Yaacov, entrando na conversa. – Vossa preciosa colaboração trouxe-nos grande alívio ao coração, uma vez que pudemos rever os nossos filhinhos, depois de longo tempo!
− Sim, e o que quereis de mim agora? – pergunta o homem, com a desmedida arrogância que lhe era peculiar.
− Que nos presteis novo e valioso serviço! – diz Ben Hanan directo.
− Mas vos advertimos, Senhor, de que, desta vez, não será tão simples como a outra! – observa Yaacov.
− Sim, agora, entretanto, solicitamos-vos favor mais arriscado, mas que, para tal, naturalmente, sereis tão bem remunerado que podereis decretar a vossa própria independência financeira para o restante da vossa existência! – diz Ben Hanan.
− Se aceitardes a nossa proposta, vós vos tornareis um homem bastante rico e, depois disso, podereis ir viver, sossegadamente, em qualquer lugar deste mundo! – emenda Yaacov. – Não mais obedecereis a ordens de quem quer que seja!− Vamos lá! – diz o capitão da guarda, desarmando-se um pouquinho, a demonstrar bastante interesse no assunto. – Dizei-me do que se trata desta vez!
− Que faciliteis a fuga dos nossos filhos! – diz Ben Hanan, em voz baixíssima.
− Sabeis, de facto, o absurdo que andais a pedir-me que faça, Senhores? – exclama o capitão da guarda, directo. – Isso é impossível!
− Entendemos, perfeitamente, que não vos será fácil
executardes tal tarefa! – responde Ben Hanan. – Mas, contrariamente ao que afirmais, cremos ser possível, sim, que a façais!
− A meu ver, dependerá, exclusivamente, de que tenhais boa vontade em realizá-la! – rebate Yaacov. – Acaso, por lá, tudo não passa, antes, por vossas mãos?
− Sim! – diz Ben Hanan. – Quem é que irá contestar as vossas palavras?
− Acho que deveis saber que devo obediência ao chefe do Tribunal, não? – diz o capitão da guarda. – A ele é que deverei prestar contas, se algo de esse porte acontecer. Que explicações apresentarei a D. Torquemada sobre a fuga dos vossos filhos?
− Que devereis lançar a culpa da evasão deles sobre os esbirros que ficarão de guarda à noite da ocasião da fuga! Se os soldados da guarda, de repente, dormirem, excessivamente, durante o cumprimento do dever, que culpa tereis? – observa Yaacov.
− Sim – diz Ben Hanan −, fácil ser-vos-á ministrar-lhes à bebida forte dose de lupulino190 que os fará dormirem umas boas horas de sono profundo! E, desse modo, tereis tempo suficiente de libertardes os nossos filhos com toda a segurança. Depois, apenas tereis de surpreendê-los a dormirem, desbragadamente, durante as horas de serviço!
− E não vos esquecerdes, naturalmente, de contardes com três ou quatro boas testemunhas para o caso!... – acrescenta Yaacov.
− Assim procedendo, penso dar certo o que me propondes, Senhores! – exclama o capitão da guarda, após cogitar por um tempo. – Se bem realizado, esse plano não haverá como dar errado, e não correrei, dessarte, qualquer risco de comprometer-me!
− Sim! – diz Yaacov. – Depois de resolvida toda a questão e de presos os esbirros “culpados”, devereis aguardar algum tempo para que a poeira baixe e, então, podereis demandar outras plagas, a gastardes a fortuna que vos poremos em mãos!
− Pensando bem na proposta que me fazeis, Senhores, acho que poderemos entrar em negócios... – diz o capitão. E a expressar às faces desmedida cupidez, esfrega as mãos e pergunta: − Quanto?...
− Que tal o vosso próprio peso em ouro puro? – adianta-se Ben Hanan, a tomar, propositadamente, a frente da negociação. E, a medir o capitão de acima a baixo, com os olhos, prossegue: – E se percebe, muito bem, que tendes um corpo avantajado...
− Meu peso?! – espanta-se o homem.
− Sim, e calculo que deveis pesar um pouco além de duzentos arráteis191, não? – observa o judeu.
− Por volta disso – responde o capitão, mal concatenando as ideias, diante de oferta tão vantajosa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 7:08 pm

− E então, que vos parece? – prossegue Ben Hanan. – Se aceitardes essa proposta, ganhareis excelente fortuna!
− Em assim sendo... – responde o capitão da guarda, ainda sem acreditar, efectivamente, na surpreendente proposta que lhe faziam os dois. – Dessa forma, eu aceito...
− Perfeito, capitão! – exclama Ben Hanan. – Em breve vos poremos em mãos duzentos arráteis de ouro puro!
− Não convém que proponhamos metade da quantia para antes e metade para depois de realizado o fato? − intervém Yaacov um tanto preocupado.
− Naturalmente que assim faremos, caro Yaacov! – responde Ben Hanan. – Não é, Senhor capitão? Como de costume...
− Perfeitamente, Senhores! – responde o chefe da guarda inquisitorial, ainda zonzo pela fortuna que andava na iminência de saltar-lhe às mãos, tão facilmente. – Como de costume...
Pouco depois de o capitão ter deixado a casa, Yaacov e Ben Hanan confabulavam a sós.− Crês que poderemos confiar assim, plenamente, nesse homem? – pergunta Yaacov. – Acho que deves saber muito bem como é essa gente...
− Sei tanto quanto tu que essa gente não presta, Yaacov; que são uns covardes infames, mas que saída temos, além dessa? – responde o outro.
− É, tu tens razão! – diz Yaacov, a passar as mãos pelos cabelos revoltos. – Se não arriscarmos, como é que ficaremos sabendo?
Além do mais, se nossos filhos forem julgados pelo maldito Tribunal, será bem capaz que sejam condenados a morrer garroteados ou numa fogueira infamante, ainda em tão tenra idade!
− Sim – concorda Ben Hanan. – E a troco de quê?
− De nada! – responde o ourives. – Que fizeram eles, efectivamente?
− A tua filha ainda tem um desconto: feriu aquele desgraçado secretário do arcebispo; mas, Andrés e Benyamin o que foi que fizeram?
− Nada fizeram, Ben! – responde Yaacov, com lágrimas aos olhos. – E é por isso que, de bom grado, troco toda a minha fortuna pela vida deles!
− Também eu, Yaacov!... – diz o outro. – Também eu farei isso...
Pouco tempo depois, o capitão da guarda achava-se numa taberna dos arrabaldes de Toledo, a beber com amigo chegado, Ignacio Sánchez, um seu subalterno no corpo de esbirros do Tribunal.
− Inda há pouco, Ignacio, encontrava-me eu de colóquio assaz proveitoso com dois judeus mui ricos a proporem-me empreitada assim grossinha... – diz o capitão da guarda, com a língua já bem
amolecida pelos altos teores da grapa capitosa.
− Que bons negócios seriam esses, D. Valdez? – pergunta o soldado, também já quase borracho pelo vinho forte. – Vamos lá:
conta-me tudo, posto que ora me acho bem curioso!
− Que ninguém mais tu ponhas a par disso, ou te cortarei a língua sem dó! – ameaça o capitão, a meter a mão sobre o cabo do punhal que trazia preso à cinta. O outro, amedrontado, faz significativo sinal com as mãos, a prometer sigilo absoluto.
O capitão, então, a baixar, propositadamente, a voz, cochicha ao ouvido do outro: – Conto-te o que me propuseram os dois ricos judeus, inda há pouco... – e relata ao amigo, com riqueza de detalhes, a proposta recebida.
− ¡Por Dios! – exclama Ignacio Sánchez, a arregalar, desmedidamente, os olhos. – É mesmo verdade isso?!
− Como não! – responde o capitão, a mostrar-se grandemente ofendido. – Achas que ora dei para mentiras?
− Oh, não te quis ofender! – exclama o outro, a abestalhar-se com a novidade que lhe contava o amigo. – Mas o que me contaste é deveras assombroso!
− Se é!
− E como pretendes meter as tuas mãos nesse ouro todo? – pergunta Ignacio. – Não te será fácil agir sozinho! Não crês seja isso bem arriscado? E se te pilham a fazer tamanha massagada?
− Por isso é que contarei com a tua ajuda, Ignacio! – diz o capitão. – Eu e tu faremos isso e, depois, dividiremos a rapa entre nós!
− Feito! – exclama o outro, a dar a mão a apertar ao amigo, para selarem o trato. Em seguida, após entornar, sofregamente, o seu pichel de aguardente, pergunta: − E como faremos?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 06, 2024 7:08 pm

− Vamo-nos daqui para lugar mais seguro! – convida o capitão Valdez, depois de olhar, cuidadosamente, à volta.
Ambos deixam a taberna e tomam o rumo da casa do capitão, que era solteiro e morava só. Em pouco, os dois soldados confabulavam.
− Deixo a teu encargo de, ainda hoje, conseguires boa quantidade de pó de lúpulo – observa o capitão ao amigo.
− Acho que sei onde conseguir o pó – fala o soldado. – Logo mais irei colhê-lo.
− Perfeito! – exclama o capitão. – Depois de recolhê-lo, trá-lo cá, a fim de prepararmos a beberagem que tu mesmo oferecerás aos da guarda.
− Mas como irei fazê-los beberem? – observa o soldado. − E crês que não irão desconfiar?... Sabes muito bem que a bebida é proibida entre os soldados em serviço; e, como capitão, sabes muito bem qual é a punição para tal.
− Sei – diz D. Valdez, directo. E a fitar o outro, firmemente, com olhos pejados de cinismo, continua: – E daí?... Vais dizer-me que, ao achar-te de guarda, nunca deste bons tragos de grapa pelas caladas das frias madrugadas, naquele maldito subterrâneo?...
− Sim... – responde o soldado, baixando os olhos. – Todo o mundo faz isso...
− Até eu o faço, Ignacio! – exclama o capitão, a rir-se. – E sabes muitíssimo bem que eu mesmo é que deveria mandar aplicar as vinte chibatadas nos soldados beberrões, não?... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Porém nunca vi ninguém ser supliciado por tal insubordinação até hoje...
− E nem nunca será, enquanto eu comandar a guarnição do Tribunal!... Pode ficar sossegado!
− E então, como farei tudo?
− Primeiro, apanharás o pó de lúpulo (e vê lá que seja por mais de dois bons punhados, hein?); depois, passarás pela taberna e comprarás uma botelha de boa sidra e, em seguida, venha cá ter comigo que estarei a aguardar-te! E não demores, pois isso deveremos fazer ainda hoje. Amanhã mesmo deveremos pôr esse plano em acção; os judeus têm pressa em libertar os filhos, e eu ainda mais em meter a mão naquele ouro todo!
O soldado sai e D. Valdez põe-se a pensar acerca de como daria bom cabo ao plano que houvera acordado com os dois judeus.
Entretanto, enquanto cogitava nisso, perpassou-lhe à mente a possibilidade de as coisas saírem erradas, e ele acabar com os burros n’água.
Então pensou e pensou e mediu muito bem a possibilidade de o plano vir a frustrar-se.
− Se as coisas atrapalharem-se, isso será o meu fim!... – murmura ele, baixinho. – Se descobrem tudo, a forca ser-me-á pouca! – e tremeu-se todo de medo com tal hipótese vir a acontecer e, por outro lado, entristeceu-se bastante, com a possibilidade de perder aquela grande fortuna que, subitamente, batia-lhe à porta. Então, pôs-se a matutar, a pesar a delicada questão, por um bom tempo. De repente, seus olhos iluminam-se. Acabava de ocorrer-lhe que havia outra possibilidade de arrancar, ao menos, parte daquela montanha de ouro aos judeus e, ainda por cima, sair-se muito bem.
Porém, frustra-se pelo fato de já ter colocado o comparsa a par de tudo: – Que idiota fui, em ter metido Ignacio na coisa! – murmura ele, bastante contrafeito. – Precipitei-me e agora terei de dar-lhe boa parte do meu ouro, para manter-lhe a boca fechada!
Pouco depois, Ignacio retornava com a encomenda debaixo do braço.
− Deita tudo lá na cozinha, Ignacio – ordena o capitão, desenxabidíssimo. – Depois darei conta dessa tarefa!
− Mas não tinhas tanta pressa? – pergunta o soldado, a estranhar a atitude do outro.
− Os planos mudaram, mi amigo! – exclama D. Valdez, bastante desanimado. E, depois de coçar a espessa barba, por alguns instantes, ordena: − Pensando bem, desfaz-te do pó de lúpulo e traze cá a botelha de grapa!... Vamo-nos à borga!
− Por que essa agora? – pergunta o soldado, a decapitar o gargalo da botelha de sidra com o seu pesado punhal. – Não estou a entender nada...
− Primeiro, enche cá o meu pichel até a boca, que te conto o que acontece...
− Vamos lá, então – pergunta Ignacio, pouco depois, sentando-se à mesa com o amigo e logo após sorver grosso gole do seu picho −, diz-me lá o que te fez mudar tanto assim as ideias...
− Logo que saíste, meti-me a pensar e repensar no plano dos judeus e aventei a possibilidade de tudo sair errado. E, se isso, de facto, acontecesse, eu, tu e os marranos iríamos todos balançar à ponta da corda, não concordas?
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 10:11 am

− Certamente! – responde o outro. – Mas o teu plano não era seguro? – e a desenxabir-se todo, exclama: − Desiste de tudo, não é?... Assim vamos perder todo aquele ouro! – e a lamentar-se, prossegue, altamente desgostoso: − Bem que eu imaginava: o diabo só abana a cauda aos mais rabudos que ele mesmo!− Oh, não te amofines assim! – diz D. Valdez. – Eu não te disse que ia desistir do ouro! Apenas que mudei os planos, pois descobri uma saída bem melhor que aquela e que não nos trará riscos nenhuns!
− E que mudanças são essas? – pergunta o soldado, a reacender-se.
− De antemão, advirto-te de que não receberemos a fortuna toda que nos prometeram os judeus; apenas a metade dela, mas que, mesmo assim, não deixará de ser um montante bem razoável, não achas?
− Uns cem arráteis de ouro puro, presumo! – exclama Ignacio, com olhos desmedidamente cúpidos.
− Por volta disso! – diz o capitão. – O que não deixará de me proporcionar vida bem folgada, até o final dos meus dias, neste mundo de Deus!
− E a minha parte? – pergunta o soldado, meio ressabiado com as falas do outro. E a mostrar-se assaz desconfiado, prossegue: − Acaso não andas a pensar em agora deixar-me de fora do negócio, depois que a quantidade do ouro minguou!... Ou andas?...
− Oh, claro que não, sua besta! – responde o capitão, cheio de enfados. – Acaso não te meti na embrulhada?... Palavra é palavra!
Ignacio fita o outro, por alguns instantes, e depois, pergunta, ainda cheio de desconfianças até as orelhas:
− Se juras que não vais passar-me a perna...
− Se não confias em mim, és livre para safar-te! – diz o capitão, cheio de ironias e com uma ponta de esperança de que o outro desistisse, deixando-o só naquela empreitada.
− Está bem! – convence-se Ignacio, depois de bem estudar a fisionomia do amigo. − Acho que posso confiar em ti e estarei contigo até o final, aconteça o que acontecer!
− Não há como dar errado! – prossegue o capitão, depois de emitir longo suspiro de desapontamento. – Ao invés de seguirmos o plano dos judeus, dando de beber pó de lúpulo aos vigias da noite e soltando os prisioneiros, nós é que armaremos uma armadilha para os marranos!
− Como? – pergunta Ignacio.− Logo mais irei ter com os judeus e apanharei a metade do ouro que me prometeram para antes do negócio e, tendo em mãos e bem seguro o montante devido, dir-lhes-ei que tudo já está armado e que em bem altas horas da noite de amanhã, deverão pôr-se preparados, com montarias, bem próximos dos calabouços do Tribunal, para darem fuga rápida aos prisioneiros.
Entretanto, não serão os três jovens libertos que lá estarão, no horário aprazado, mas, sim, nós e pequeno contingente armado para aprisioná-los, pois teremos em mãos ordem de prisão assinada pelo próprio D. Torquemada, uma vez que pretendo, eu mesmo, fazer a denúncia da proposta indecente que me fizeram esses desgraçados marranos!
− Acho excelente essa ideia, D. Valdez! – vibra o soldado. – Dessa forma sairemos livres de qualquer acusação!
− E crescerei ainda mais aos olhos de D. Torquemada pelo zelo com que ando a conduzir o meu posto! – exclama o capitão, cheio de vaidades.
− Entretanto, o que farás, se os judeus lançarem uma contra-acusação contra ti? – pergunta Ignacio, de repente, fazendo-se assaz preocupado.
− Desinquieta-te, mi amigo! – diz o capitão. – Que valerá a palavra de um marrano contra a minha, um capitão da guarda do Tribunal? Eles que se atrevam a macular o meu nome!
− Assim sendo, achei o teu plano perfeito! – e estende a mão ao outro em cumprimento.
− Obrigado, companheiro! – exclama D. Valdez, satisfeitíssimo, a apertar, efusivamente, a mão do amigo. – Agora, deixa-me só que preciso pensar e repensar muito bem sobre o que direi a D. Tomás, para que ele de nada desconfie!
− ¡Muy bien, Señor! – diz o soldado, animadíssimo. – ¡Hasta la vista!
− Também para ti preciso estabelecer qual será a tua verdadeira paga pela participação neste serviço! − murmura D. Valdez, com os olhos frios como gelo, depois que Ignacio fechou a porta atrás de si.
E, a abrir um sorriso horrível, murmura: − Idiota!...Já estava bem escuro, quando o capitão Valdez resolveu procurar pelos dois judeus, com o propósito de apanhar a metade do ouro que lhe fora prometido e também a notificá-los sobre o andamento do plano que ora se propunha a falsear.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 10:12 am

− E então, capitão? – pergunta Yaacov Shlomo a D. Valdez, depois de franquear-lhe a entrada e de conduzi-lo a reservado canto do jardim da sua casa. – Que novidades trazeis?
− Tudo acertado, Senhor! – responde o capitão, a abrir um sorriso cheio de confiança. – E cá estou tão-somente a receber a primeira parte do pagamento, conforme nosso acordo!
− Credes, destarte, que nada poderá dar errado? – pergunta o judeu, para melhor certificar-se sobre o andamento do plano.
− Garanto-vos de que nenhum imprevisto ocorrerá, pois já tenho tudo certo e ajustado e, ainda, contarei com a colaboração de velho camarada de confiança. Ficai tranquilo!
− Tendes mesmo a certeza de que o vosso auxiliar é realmente de estrita confiança? – insiste Yaacov. – Vede bem que andaremos a envolver a integridade dos nossos filhos!
− Ficai sossegado, que vossos filhos nada sofrerão, Senhor!
Estais a lidar com pessoas confiáveis e altamente capazes!
− Assim espero! – diz Yaacov, a olhar para o rosto do capitão, com firmeza. – Afinal, a fortuna que vamos pagar-vos não se encontra em qualquer toca de coelhos abandonada!
− Ficai tranquilo, Senhor! – repete o capitão, fleumático. – Já vos disse que tendes a minha palavra de honra de que nada deverá sair-se errado!
− Está bem! – exclama Yaacov, convencendo-se. – Ben Hanan já me enviou a sua parte do montante combinado e me autorizou a prosseguir a negociação convosco – e a fazer significativo sinal com a mão, prossegue: − Fazei a gentileza de seguir-me! – e conduz D. Valdez para lugar mais reservado da casa e, afastando pesado reposteiro da porta de pequeno compartimento, aponta-lhe um volume, constituído de avantajada sacola de couro cru que se encontrava sobre uma mesa de madeira tosca e diz: − Lá está a primeira parte do vosso pagamento!− ¡Por Dios! – exclama o capitão, a emitir longo assobio de admiração, diante do que via.
– Já vistes tanto ouro assim junto? − observa o judeu, com fina ironia à voz, enquanto apalpava, ostensivamente, o pesado volume.
Depois, desata o cordel que fechava a boca do saco e afunda ambas as mãos na profusão de peças de ouro finíssimo; em seguida, retira-as repletas das fascinantes preciosidades e, depois, deixa-as cair em rutilante cascata, com o propósito de açular ainda mais a cobiça de D. Valdez. E, diante da estupefacção do outro, pergunta cheio de sarcasmo: − Acaso tendes força suficiente para carregardes isto tudo?
− Até duas vezes esse montante, Senhor! – responde o capitão, com um riso debochado aos lábios. – Sendo ouro, sou capaz de desdobrar-me em dez, para carregá-lo! – e se ri desbragado: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Agora, entretanto, que já tendes a metade da paga que vos prometemos, fazei o favor de pordes-me a par de como faremos o resgate dos nossos filhos – diz Yaacov, directo.
− Perfeitamente, D. Shlomo! – exclama o capitão, fazendo-se sério. – Negócios são negócios! – e ali mesmo, no pequeno e reservado recinto da casa do judeu, dá-lhe as instruções: − Primeiro, que arranjeis bons e robustos cavalos e vos ponhais bem atrás da muralha norte da prisão e lá devereis aguardar, logo soe a primeira hora da madrugada do dia depois de amanhã, pois nos será mais conveniente que não haja mais ninguém às ruas; então, eu e o meu companheiro lá estaremos a acompanhar os prisioneiros por nós libertos e os poremos às vossas mãos, sãos e salvos!
− Então, se tudo assim ocorrer, recebereis a segunda metade do que convosco combinamos – observa Yaacov, já dando a entender que tudo estava bem acertado e a, rapidamente, encerrar o colóquio com D. Valdez.
Em seguida, o capitão, sem despender muito esforço, bota a sacola repleta de ouro às avolumadas costas e deixa a residência de Yaacov Shlomo, e se perde, bem depressa, a meio do pesadíssimo negror que fazia lá fora. − Quem era aquele homem com quem conversavas e o que lhe deste a levar naquele saco? – pergunta Sara ao esposo, depois que o capitão se fora. – Não gostei nada do jeito dele!
− Nem eu! – responde Yaacov, deixando-se sentar, pesadamente, sobre as almofadas. – Sujeito mais frio e ganancioso!
− Mas não me disseste, ainda, quem é ele e o que continha aquele pesado volume que carregava às costas! – insiste Sara.
− Pensava deixar-te fora desse negócio, minha cara – diz o judeu, com fundo suspiro de desalento −, mas vejo que é impossível, pois tu sempre me vigias...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 10:12 am

− Meu dever é impedir que faças tolices, Yaacov! – objecta Sara.
– Ajo assim, porque sempre achaste um jeito de fazer as tuas asneiras!
− Oh, e quando é que fiz parvalhices nesta minha vida? – pergunta o homem.
− Sempre! – responde ela. E a fazer significativo gesto com a mão, diz: − Vamos lá: não mais proteles!... Ainda não me disseste o que veio fazer cá aquele tipo estranho e grosseiro e o que carregava ele naquele saco de couro!
− Ó, poderoso Yavé, como é difícil esconder algo desta mulher! – exclama Yaacov, a levantar os braços. – Pois bem, vou contar-te tudo, mas vê lá, hein?... Se deres com a língua nos dentes...
− Acaso não confias em mim? – diz ela, a fingir-se extremamente ofendida. – Ingrato!... Quando foi que te traí em alguma coisa?
− Ora, deixa para lá! – responde ele. E a baixar, propositadamente, a voz, prossegue: − Aquele brutamontes que aqui esteve era o capitão da guarda do Tribunal e veio receber a primeira paga que eu e Ben Hanan prometemos-lhe para que ajudasse os nossos filhos a evadirem-se da prisão!
− Yavé santíssimo! – grita Sara, levantando-se, rapidamente, como se uma víbora a tivesse picado. – Tu e Ben Hanan íeis libertar os meus meninos e andáveis a deixar-me fora disso?!... Oh, Yaacov, não te perdoarei por esse descaso nunca!
− Não sei por que ages assim, Sara! – diz Yaacov, defendendo-se. – Quisemos poupar-te disso! E se as coisas saírem erradas, e também formos parar na prisão, quem é que lutará por nós?− Eu, fica sabendo, desde já!... – fala Sara, deixando-se sentar sobre as almofadas. – Quem mais a lutar por ti e pelos meus filhos, neste mundo?... – e depois de cogitar por instantes: − Mas que fará uma mulher sozinha contra todos aqueles desgraçados do Tribunal?
− És uma leoa, Sara, e sei que enfrentarás até a rainha para libertar-nos, se for o caso! – responde Yaacov, com ligeiro sorriso aos lábios. – E confesso: neste mundo, de fato, só confio em ti, minha querida!
− Oh, mas sempre pareces agir de modo contrário... – diz ela, a mostrar-se bastante envaidecida.
− Se não te ponho a par de tudo, é porque te quero poupar! – exclama ele, a tomar-lhe, amorosamente, a mão entre as suas. – Tu és o meu bastião!...
− Se sou mesmo a tua fortaleza, por que não permites que eu também vá ao encontro dos nossos filhos? – pede ela.
− Porque isso poderá ser perigoso! – responde Yaacov. – E quem nos garante que aquele capitão não nos trairá? Ele já tem em mãos significativa fortuna em peças de ouro puro!
− É, acho que tens razão! – concorda Sara. E, depois de pensar por alguns instantes, diz: – Ficarei, cá, a suplicar ao Supremo para que tudo saia a contento!
Na noite do dia subsequente, com tudo preparado, bem próximo à meia-noite, e montados em valentes corcéis, Yaacov Shlomo e Ben Hanan puseram-se a esperar no local combinado com o capitão da guarda prisional do Tribunal. Conjuntamente, o ourives segurava as rédeas dos cavalos adrede preparados para a fuga dos filhos, mais uma mula que carregava grande e volumosa sacola de couro, a conter o restante da paga combinada pelo suborno do chefe da guarda; Ben Hanan resumia-se a segurar a rédea da montaria que serviria à fuga do filho.
− Crês que devemos confiar plenamente naquele biltre? – pergunta Yaacov a Ben Hanan.
− Não sei... – responde o outro. – Se considerarmos que ele já tem em mãos boa fortuna, nada lhe custará trair-nos!
− Também assim penso – concorda Yaacov. E a limpar a testa suarenta com um lenço de seda vermelha, diz: − E esta espera apoquenta-me sobremodo!
− Também a mim, Yaacov! – exclama o outro, a mostrar-se enervado e impaciente.
− Mas é preciso manter a tranquilidade! – diz o ourives. E depois de curto silêncio: − Já pensaste que não traçamos nenhum plano de fuga, se aquele miserável resolver trair-nos?
− É, tens razão! – responde Ben Hanan, de repente, dando-se conta de que, se fossem atraiçoados pelo capitão Valdez, estariam irremediavelmente perdidos. – Se o maldito resolver delatar-nos ao Tribunal, não teremos como escapar!
− Deveríamos ter pensado nisso antes e armado pequena escolta! – diz Yaacov. – Ao menos, teríamos uma chance de escapar, aproveitando-nos da escuridão da noite!
− Sim, pois, a meio de uma escaramuça, teríamos alguma chance de fuga; entretanto, agora é tarde! Teremos de contar, exclusivamente, com a sorte!
E então, pesado silêncio abate-se entre ambos, na agoniante espera a torturar-lhes, pesadamente, a alma.
___________________________________________________________________________________________________________
190. O lupulino, pó que se desprende quando se sacodem as pinhas do lúpulo (Humulus lupulus), contém uma essência rica em terpenos que lhe confere acção sedativa e sonífera.
191. Arrátel, antiga unidade de medida de peso, equivalente a 459g ou 16 onças.
192. “−Muito bem, Senhor!” (...) “− Até à vista!”, em castelhano.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 10:12 am

Capítulo XXIII. Escaramuça na noite
Um pouco mais de agónica espera, e um ruído de pisadas de cavalgaduras evidencia-se, a meio da escuridão da noite.
− Ouve! – diz Yaacov, enchendo-se de fortes apreensões. – São ruídos de muitos cavalos!
− Sim! – concorda o outro. E observa, altamente preocupado: − Acho que fomos traídos!... O capitão e os nossos filhos deveriam aqui chegar caminhando, não montados!
− Tens razão, Ben! – grita Yaacov, extremamente nervoso. – Fomos traídos por aquele infame!... Vamos fugir!
Entretanto, era um pouco tarde, pois umas três dezenas de soldados montados já cercavam o local, munidos de balestras armadas uns, e de longas lanças, outros.
− Permanecei onde estais! – ouve-se a possante voz do capitão Valdez, a portar grossa tocha, a iluminar-lhe o corpanzil, destacando-se das trevas da noite.
− Maldito traidor! – grita Yaacov, a desembainhar a sua espada.
– Agora tu me pagarás!
− Mantém-te quieto e guarda a tua arma, Yaacov! – aconselha Ben Hanan, postando-se-lhe ao lado. – Nada poderemos nós dois contra eles!
− Morrerei lutando! – persiste o outro. – Não me pegarão vivo!
− E que valerás morto para a tua família? – ralha Ben Hanan. – Juntos seremos mais fortes, a pelejar por nossa liberdade e pela dos nossos filhos! Por ora, seria loucura resistir!
− Deitai fora as vossas armas! – grita o capitão Valdez, aproximando-se mais e secundado por uma dezena de soldados bem armados. – Considerai-vos prisioneiros do Tribunal da Santa Inquisição!
− Desgraçado! – exclama Yaacov, a rilhar os dentes de tanto ódio. – Tu nos traíste, demónio! Já abocanhaste a metade do nosso ouro!
− Cala a boca, marrano idiota! – grita o capitão Valdez, aproximando-se de Yaacov e, a desferir-lhe violento safanão ao rosto, acrescenta: − Mede as tuas palavras, antes de acusares, levianamente, um comandante das forças do Tribunal do Santo Ofício!
− Levianamente?!... Vou é delatar-te ao Tribunal! – ameaça Yaacov. – E irás balançar à ponta da corda, ao nosso lado, ordinário!
− Cala-te, Yaacov! – ralha Ben Hanan. – Ainda não é hora de dizermos tais coisas!
− Manietai os marranos! – ordena o capitão Valdez aos seus subordinados. – Vamos conduzi-los aos calabouços! – e, violentamente, arranca das mãos de Yaacov as rédeas da mula que carregava o saco cheio de ouro e, a abrir um sorriso repleto de deboche, acrescenta, a olhar, firmemente, nos olhos do ourives: − Isto me pertence, lembras-te?
− Desgraçado!... – murmura Yaacov, a rilhar os dentes de tanto ódio. – Tu me pagarás caro essa traição!
E, no meio da quase escuridão total da noite, os dois judeus são conduzidos fortemente manietados para os calabouços do Tribunal da Santa Inquisição...
Em pouco, o próprio capitão Valdez empurrava, violentamente, os dois prisioneiros para dentro da mesma cela em que se achavam trancafiados os próprios filhos!
− Pronto! – exclama o capitão da guarda. – A família encontra-se, finalmente, reunida! – e se ri sarcástico: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
− Papai?... – exclama Andrés, de repente, acordando-se a meio da confusão de vozes no recinto.
− Oh, meu filho!... Meu filho!... – grita Ben Hanan, abraçando-se ao rapaz.− Que está acontecendo? – pergunta Maria de los Milagros, também despertando em seguida. E ao divisar a figura amorável do pai, a meio da pesada penumbra que fazia no cárcere, lança um grito de alegria: − Pai!... És tu?
− Sim, meu amor! – exclama Yaacov, entre lágrimas, a abraçar-se à filha adorada.
− Papai?... – diz Benyamin, também se acordando. E a esfregar, sistematicamente, os olhos, com o dorso das mãos, a fim de livrá-los do embotamento do sono, pergunta: − Como entraste aqui?
− Não entrei, Benyamin! – responde Yaacov, tristemente, abraçando-se ao filho amado. – Eles me prenderam!
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 7 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 10:12 am

− Como isso aconteceu? – pergunta Andrés, agora todos sentados em roda sobre as palhas que cobriam o frio e húmido chão da cela.
− Fomos covardemente traídos, meu filho! – responde Ben Hanan, com a voz pejada de tristeza.
E, a alternarem-se na longa narrativa, Yaacov e Ben Hanan contam aos filhos os acontecimentos dos últimos tempos, desde quando os três haviam sido presos nos calabouços do Tribunal.
− Mas que desgraçado covarde! – exclama Andrés, cheio de indignação. – E o maldito capitão, com toda a certeza, acabou por ficar com aquela grande quantidade de ouro!
− Sim, meu filho! – diz Ben Hanan.
− E ainda acabamos também presos! – exclama Yaacov, cheio de tristeza.
− Oh, e agora, quem é que nos libertará? – geme Benyamin. E a desesperar-se, enormemente, levanta-se e põe-se a gritar: − Eu quero sair daqui!... Eu não quero morrer!...
− Oh, acalma-te, meu bem! – exclama Yaacov, abraçando-se ao filho. – Tu não vais morrer, eu te garanto!... Acaso não me tens aqui?
− Que me vale ter-te aqui, se também estás preso? – observa o rapaz, cheio de aflição. – Agora, ninguém mais se encontra fora, a tentar tirar-nos desse maldito lugar!
− Tua mãe lá está! – diz Yaacov. – Sei que não nos abandonará à nossa própria sorte!− Minha mãe! – rebate o rapaz. – Que poderá fazer uma mulher e sozinha?... Oh, não me tentes enganar, pai!... Estamos todos perdidos!
− Confia em mim, meu filho!... – fala Yaacov. − Acho que conheces a tua mãe muito bem, sabes que ela é forte como uma leoa e que moverá mundos e fundos para livrar-nos daqui!
− Oh, quem é que tentas enganar? – diz o rapazinho, com a voz molhada pelo pranto desesperado. – Acho que ainda não entendeste: o que realmente desejam os castelhanos é exterminar os de nossa raça, e ninguém, doravante, poderá fazer-lhes frente!
− Não, Benyamin, não penses assim! – intervém Ben Hanan. – Sou secretário de Sua Majestade e, logo amanheça o dia, eu me apresentarei ao carcereiro e serei libertado! Tem confiança!...
− Gostaria de crer nisso, pai! – rebate Andrés, altamente decepcionado. – Mas duvido, pois muitas vezes já tentaste tirar-nos daqui e nunca conseguiste!... Aliás, ainda te consideras secretário da rainha?... Ora nem mais nisso acredito!...
− Oficialmente, ninguém ainda me desligou de tal função, meu filho! – diz Ben Hanan.
− E isso só saberemos, efectivamente, ao clarear do dia, quanto te fizeres revelar ao carcereiro! – observa Yaacov.
Pelo resto da noite, ninguém mais conseguiu dormir, uma vez que era grande a expectativa pelo amanhecer, quando ficariam conhecendo a extensão da situação em que se achavam.
Finalmente, pelas estreitas e poucas vigias do subterrâneo, a claridade do dia chegou às sórdidas celas, e, logo, o carcereiro passou a vistoriar os prisioneiros, e Ben Hanan abordou-o, revelando-se:
− Senhor, sou Ben Hanan, conselheiro de Sua Majestade e solicito que me liberteis imediatamente!
− Hum!... – murmura o carcereiro, examinando-o, atentamente, de alto a baixo. E, depois, a fazer jocosa reverência, diz zombeteiro:
− Perdão, Excelência, mas quem tem o exclusivo poder de libertar prisioneiros é o senhor capitão da guarda!
− E onde está o cap... – Ben Hanan nem completa a frase, pois Yaacov cutucava-o, insistentemente, o flanco e lhe cochichou ao pé do ouvido: − Esqueceste, homem, quem é esse capitão?!...
− É mesmo!... – diz Ben Hanan, empalidecendo, enormemente.
E se voltando para o carcereiro: − Fazei a gentileza de perdoar-me, Senhor!... Eu me equivoquei!...
− Ah, vós vos equivocastes, é? – e, rindo-se, debochado, afasta-se pelo corredor das celas.
− Oh, agora creio estarmos, deveras, perdidos! – exclama Ben Hanan, voltando-se para o interior da cela. – A quem recorreremos?
− Tão-somente Sara resta livre, a socorrer-nos! – fala Yaacov. – Mas, como chegaremos a ela?... Sequer sabe o que nos aconteceu!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 10:13 am

− E nem nada mais temos em mãos com que subornar algum guarda! – observa Ben Hanan, desolado.
− Calma!... Nem tudo ainda se perdeu! – diz Yaacov, a exibir pesado anel de ouro a enfeitar-lhe o dedo médio da mão direita. – Isso nos facultará subornar algum carcereiro, a levar-nos uma mensagem até Sara!
− Perfeito! – exclama Ben Hanan, reanimando-se à visão da bela joia! – Mas convém que aguardemos momento aprazado!
Nesse entretempo, o dia já amanhecera por completo, e o capitão Valdez recebia, em sua rústica vivenda, o amigo Ignacio.
− Oh, até que enfim retornaste! – exclama ele, com fundo suspiro de enfado, a franquear a entrada ao amigo. – Dize lá: onde enfiaste a mula e a sua carga que te dei a esconder?
− Vê tu mesmo! – diz o soldado, a apontar para a entrada da casa. – Lá está ela!
− És um louco inconsequente! – brada o capitão, a empurrar violentamente, o outro, para que saísse do caminho. E a rilhar os dentes de raiva, ordena: − Vem, ajuda-me a descarregá-la, imbecil!
Já à rua, D. Valdez olha, meticulosamente, para todos os lados, e, a prescindir, grosseiramente, da ajuda do outro, com ágil movimento, apanha o volumoso saco aos braços e, rapidamente, volta para o interior da casa.
− Que faço com a mula? – pergunta Ignacio que tão-somente se resumira a seguir o amigo em seu trajecto de ir e vir, a descarregar a preciosa carga.− Livra-te dela, rapidamente, e depois volta cá! – ordena D. Valdez.
− Não posso vendê-la no mercado? – pergunta Ignacio. – Renderia qualquer coisa, para comprarmos algumas botelhas de boa grapa...
− Não, idiota! – responde o capitão, extremamente irado. – Atira-a ao desfiladeiro!... Queres, acaso, semear por aí uma porção de vestígios para que possam chegar até nós?... Anda, conduz a mula até alguns bons pedaços depois da ponte e, então, lança-a às funduras!... E olha lá, hein? Sê discreto, o mais possível, ou então te haverás comigo!
Ignacio sai, e D. Valdez, com olhos extremamente cúpidos, desata a fita de couro que fechava o saco e, com desmedida volúpia, afunda as mãos na preciosidade que se revela, a exibir intenso brilho.
− Aqueles marranos estúpidos não folgaram em serviço! – exclama ele, cheio de satisfação. E a brincar com aquela abundância de peças de finíssimo ouro, murmura: − Estou rico!... Riquíssimo!...
Por um bom tempo, ficou a enterrar as mãos na profusão do ouro e a tirá-las, em seguida, como se fosse uma criança a divertir-se, até que, de inopino, um temor intenso invadiu-o. Era preciso, então, juntar toda aquela preciosidade àquela outra que já detinha em seu poder e esconder tudo, muito bem escondido, antes que alguém mais viesse a descobrir que ele guardava aquela imensa fortuna em sua casa.
Então, com relativo esforço, carrega a pesada sacola de couro até o singelo quarto de dormir e, depondo-a ao solo, enrola o colchão de palhas e levanta o estrado do leito; depois, arrasta o saco e o deposita junto ao outro que já lá estava oculto, fruto do primeiro pagamento que lhe fizeram os judeus.
Em seguida, devagar, ajeita de volta o estrado e, por fim, acerta o colchão e recobre tudo com grosseiro cobertor de lã.
Depois, retorna à pequena sala e se senta ao lado da tosca mesa e, apanhando uma caneca de latão, enche-a de grapa. Ao primeiro gole, sente o ardor da aguardente queimar-lhe a boca e a garganta e, estalando a língua, invade-o inominável prazer à alma e, então, a sentir-se afogueado pelos vapores do álcool, ri-se satisfeitíssimo.
− Agora é preciso planejar as coisas, tudo com muito cuidado! – murmura ele. E, de repente, lembrando-se do amigo Ignacio, prossegue: − Também a tua parte é preciso calcular... – e seus lábios abrem-se num sorriso estranho...
Por volta de duas horas, D. Valdez aguardou o retorno do amigo, até que, finalmente, ouve-o que estava de volta.
− Pronto, capitão! – diz Ignacio. – Tudo consumado! – e a abrir um sorriso tolo: − Sequer soltou um grito, a pobre!
− Admira-me, se aquela mula tivesse gritado, imbecil! – ironiza D. Valdez. – Se, ao menos, tivesse relinchado... – e a mostrar-se cheio de enfados, diz: − Mas, antes de fazermos a divisão da carniça, deveremos comemorar com uma boa bilha de fino vinho, não achas?
− Ah, isso viria bem a calhar! – exclama Ignacio, avivando-se ao máximo. – A caminhada de volta de atirar aquela desgraçada mula ao fundo do precipício deixou-me deveras sedento! Aonde iremos para a esbórnia?
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 10:13 am

− Ah, queres ir à taverna, é? E gastarmos uma fortuna em bons vinhos, a chamar a atenção até do bispo? – retruca D. Valdez, extremamente irado. – Não, tu irás à bodega e trarás apenas duas bilhas de bom vinho!... Aqui mesmo é que vamos ao destempero!
Toma lá! – e atira ao outro pequena moeda de ouro.
Ignácio apanha o dinheiro e se volta para sair. Entretanto, nem tivera dado mais de dois passos para transpor a porta e sente um baque surdo às costas, ao mesmo tempo em que se lhe afigurava como se uma barra de ferro incandescente penetrava-lhe bem ao meio da espinha.
Sem ainda entender muito bem o que lhe sucedia, volta-se e se depara com D. Valdez, de pé, com os olhos desmedidamente abertos, e os lábios a revelarem um rictus satânico. Tinha os braços e mãos tesos, à meia altura, como quem tivesse acabado de arremessar um dardo. Atónito, Ignacio compreende, finalmente, o que estava acontecendo. Fora um ato tão inesperadamente covarde o que lhe fizera o capitão que, mesmo à evidência da dor lancinante que lhe brotava das costas, custava a acreditar.
Trémulo e extremamente estupefacto pelo que lhe sucedia, tenta ensaiar um passo em direcção do outro, mas as pernas pesavam muito e se recusavam a obedecer-lhe.
− Maldito!... − exclama Ignacio, com a voz trémula. – Esta é a paga que me deste?!... – e a crispar os dedos das mãos, prossegue, a fitar D. Valdez, com os olhos afogueados pelo ódio. – Desgra... – e não consegue terminar a palavra, pois um gorgolhão sanguinolento sufoca-o. Dobra-se, então, sobre os joelhos e, depois, estatela-se de bruços, de vez, ao chão.
D. Valdez encaminha-se até o corpo caído e o cutuca com a ponta da botina. Depois, abaixa-se e dele retira o pesado punhal que se lhe cravara bem fundo às costas; limpa a arma, meticulosamente, com velho lenço de pano vermelho, e a guarda de volta à cinta. Em seguida, tomando o morto pelos braços, arrasta-o até mais para dentro da sala.
− É preciso que se espere o escurecer para, então, deitar-te ao fundo do precipício, a te juntares à mula... – murmura o capitão para si mesmo e se ri debochado.
Depois, apanha o pichel vazio de sobre a mesa, repleta-o de vinho e fita, demoradamente, o cadáver do amigo. A seguir, levanta o caneco à guisa de brinde e exclama: − ¡Salud, mi viejo compañero!193
Neste comenos, em sua residência, Sara Shlomo, altamente preocupada com a demora do esposo em retornar ao lar, após o empreendimento de tão arriscada empreitada, cobrira-se com o tichel194 e, diante da menorah195, orava o shacharit196.
− Ledavid maskil ashrei nesui-pesha kesui hhataa...197 − murmura ela, cheia de fé.
Embora orasse altamente contrita, Sara trazia o peito opresso.
Tinha a mente concentrada nas palavras sagradas que repetia, mas mantinha os ouvidos aguçados aos menores ruídos que vinham da rua, na esperança de que Yaacov retornasse, a trazer-lhe a notícia de que tudo correra bem e que os filhos se achavam a salvo, já longe do perigo.
Entretanto, rezou toda a tefilá, e nada de o marido aparecer. O dia todo passou ela entre orações e espiadelas à janela, na esperança de que o esposo voltasse. A noite caiu, e Sara não pregou os olhos, premida pela preocupação. Não era normal acontecer aquilo: Yaacov jamais houvera passado uma noite sequer fora de casa, sem que ela soubesse onde se encontrava ele.
Novo dia amanhece, o medo invade-lhe o ser, e ela chama pelo criado de confiança:
− Yitzhak!
O rapazinho apresenta-se, rapidamente, a limpar as mãos sujas no avental, pois andava a varrer e a recolher as folhas caídas do pátio fronteiriço à casa, como fazia todas as manhãs, em sua primeira tarefa do dia.
− Chamastes, Senhora?
− Sim, Yitzhak, corre à praça e às imediações dos calabouços do Tribunal, a fim de colheres alguma notícia acerca do teu patrão que saiu a meio da noite de ontem, a resolver graves problemas e, até esta hora, ainda não retornou!
− Puxa, faz tanto tempo assim que ele saiu?... E ainda não voltou?... E que problemas foi ele resolver, Senhora? – pergunta o jovem criado, cheio de curiosidades.
− Ora, Yitzhak Dayan! – exclama Sara, a impacientar-se com o rapaz. – E eu tenho cá tempo de ficar a dar-te explicações sobre o que não te diz respeito?... Vamos, avia-te ligeiro!
O criado sai, e Sara deixa-se sentar, pesadamente, sobre as almofadas. Nervosa, torce as mãos de tanta preocupação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 10:13 am

Entretanto, nada poderia fazer, a não ser esperar pela volta do criado.
Depois de longo tempo, Yitzhak, o criado da família Shlomo, retornava a casa, depois de ter estado na praça do mercado, a perguntar aos amigos e conhecidos sobre se tinham visto Yaacov e, mesmo até ido até os portões da prisão do Tribunal, com o propósito de indagar a algum guarda se não tinha alguma notícia sobre o patrão sumido, desde a véspera; tudo, porém, sem ter logrado qualquer êxito.
− Então, Yitzhak, obtiveste alguma notícia sobre o teu patrão? – pergunta Sara Shlomo ao criado, assim que o viu adentrar a casa.
− Nada, Senhora – responde o rapazinho. – Andei pela praça do mercado, pelas ruas; fui até ao portão da prisão do Tribunal, mas ninguém sabe sobre o paradeiro do vosso esposo!
− Oh, acho que não perguntaste direito, Yitzhak Dayan! – exclama Sara, tomando o jovem criado pelo braço. – Penso até mesmo que gastaste todo esse tempo a jogares dado com os outros criados, pelas ruas!... Vamos lá: diz a verdade ou mandarei que Juan encha-te de pancadas!
− Oh, por Yavé, não, Senhora! – exclama o rapazinho, a pôr-se extremamente apavorado. – Não, juro-vos que sequer joguei uma só partida de dados! – e grita: − Por Yavé, não!... Juan tem a mão muito pesada!... Vai arrebentar-me todo!
− E não é o que mereces? – diz Sara. Porém, condói-se do pobre criado que se tremia todo e lhe diz: – Vai até a cozinha e apanha um pedaço de pão, pois percebo que nada comeste desde a manhã. Depois, volta, imediatamente, às ruas e indaga sobre se viram o meu marido a quem mais lá encontrares! – grita Sara. – E cá não retornes até que não tenhas novidades!
O rapazinho corre para a cozinha, e Sara sente-se tomar, ainda mais, pelo desespero. De repente, vem-lhe à mente uma ideia e chama o criado de volta:
− Yitzhak, vem já aqui!
− Aqui estou, Senhora! – retorna o rapazinho, imediatamente. E reclama, altamente contrariado: − Ainda nem apanhei o meu pão!
− Depois tu comerás! – diz ela, afoita. – Agora, corre até a casa
de Ben Hanan e lhe indagues sobre o paradeiro de Yaacov. Sei que ambos saíram juntos, ontem à noite!
E, durante todo o tempo em que aguardava o regresso do criado, Sara manteve-se cheia de fundas apreensões.
Depois de algum tempo, o criado retorna, altamente esbaforido pelo ir e vir, muito apressado, até à casa de Ben Hanan. − Ben Hanan também ainda não retornou a casa, Senhora – diz ele a Sara. – Informou-me o seu mordomo que, por sinal, também se encontra assaz preocupado com a demora do seu patrão.
− Oh, por Yavé, que será que aconteceu aos dois e aos nossos filhos? – exclama Sara, pondo-se ainda mais desesperada. – O capitão! – diz ela, depois de alguns instantes de cogitação. – Depressa, Yitzhak, descobre onde mora o capitão da guarda do tribunal!
Ele, com certeza, poderá dar-te informações acerca do paradeiro de Yaacov e de Ben Hanan, pois ambos tinham com ele negócios a ajustar, anteontem à noite!
− Mas, Senhora, já se faz tarde, e ainda nada comi hoje! – lamenta-se o rapazinho. – Será bem capaz que eu acabe por sucumbir à fome, aí pelas ruas!
− Ora, deixa-te de lamentos, Yitzhak Dayan! – exclama Sara, contrafeita. – Também eu nada comi, desde a manhã de hoje, e não morrerei por isso! Além do mais, percebe-se que estás bem fortezinho, pelo excesso de rações que comes em troca do pouco que andas a fazer, ultimamente! Vamos, avia-te a descobrires onde é que mora aquele um! E cá não voltes, até que não tenhas notícias do paradeiro de Yaacov!
O rapazinho sai, a queixar-se em resmungos, e Sara mantém-se bastante apreensiva com os últimos acontecimentos a envolverem-lhe os familiares.
De repente, dava-se conta de que estava totalmente só, neste mundo, pois os que lhe eram mais próximos e a quem mais amava andavam a desaparecer. “Yavé santíssimo...”, pensa ela, cheia de desespero, “que será da minha vida, doravante, se eu os perder?, e duas grossas lágrimas rolam-lhe face abaixo.
Nesse entretempo, D. Aníbal Velásquez recebia seu velho amigo, D. Fernán Guillén, na mansão arquiepiscopal.
− Oh, há quanto tempo não apareces! – exclama D. Velásquez, a abraçar, efusivamente, o amigo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 10:13 am

− Estive a viajar, D. Aníbal! – responde o outro. – Sabes muito bem que tenho algumas propriedades em Valência, e é preciso delas não descurar, ou os administradores me roubam tudo!... − e emenda: − Et absque argento omnia vana!198− Tens razão, amigo! – concorda D. Aníbal. E faz troça: – Os que, como tu, muito têm são alvos da cobiça dos que, como eu, nada detenho!
− Ora, deixa de facécias, D. Velásquez! – retruca o outro, a rir-se.
– Como é que nada tens? – e a girar o indicador num círculo, observa: − Explica-me, então, de que modo consegues morar em vivenda tão esplêndida como esta?
− Aqui vivo, não nego, mas nada do que vês me pertence, como sabes muito bem! São bens da Igreja! Esta, sim, é riquíssima e poderosa!
− E se dela fazes parte...
− É, tens razão, pois, como prelado da Igreja, faço parte do seu gigantesco corpo! Mas reforço: de meu, nada possuo!
− Nesse caso, seria preciso que tivesses as escrituras? – rebate o advogado. – És depositário de tudo isso e podes agir como quiseres, como se legítimo dono de tudo fosses!
− E o arcebispo, onde é que fica? – brinca D. Aníbal. – Na verdade, esta casa e tudo o que nela há, ao menos, temporariamente, a ele pertence!
− Mas, afinal, onde é que vive o tal? – pergunta D. Guillén, a fingir buscar, sistematicamente, com os olhos, por todos os lados. – Sempre que aqui venho, nunca o encontrei!
− Oh, sabes muito bem que Sua Eminência vive em Roma! – diz o outro, a arrufar-se. – Na verdade, quem toma a frente, na arquidiocese, a fazer a máquina funcionar, sou eu!
− E disso fazes enfado, é? – pergunta o advogado. – Deverias era louvar a Deus, sem cessar! Imagina se tivesses o arcebispo, a todo o momento, a ditar-te ordens e mais ordens!
− Mas, como tudo anda a funcionar muitíssimo bem, pela arquidiocese toda, o galardão é sempre dele, que anda a esbaldar-se em Roma, a levar uma vida esplêndida e regada de inomináveis prazeres! – exclama D. Aníbal, cheio de amuos. – E a mim, restam-me os sobejos disso tudo!
− Macte animo!... Generose puer sic itur ad astra!199 − brinca o outro, a dar-lhe amigável tapa às costas− Alterius non sit qui suus esse potest!200 − devolve D. Aníbal, sarcástico.
− Se assim pensas... – diz D. Fernán, dando de ombros. E prossegue: − Mudando de assunto, que novidades tens acerca dos judeus?
− Grandes novidades, meu amigo! – exclama D. Aníbal, reacendendo-se sobremodo. – Chegou-me ao conhecimento, ainda hoje, bem de manhãzinha, de um informante que mantenho no Tribunal, que os pais dos três judeuzinhos também foram presos!
− Deveras?! – admira-se o advogado. – Então, o que estamos esperando para irmos abocanhar o nosso quinhão do festim?...
Aliás, nem haveria essa festa, não fôssemos nós...
− Acho que precisamos ir com calma, D. Fernán! – objecta D. Aníbal. – A coisa faz-se ainda bem recente! E não crês que, se formos, imediatamente, em busca da nossa parte dessa carniça, não nos tomarão à conta de descarados abutres?
− E daí? – contesta o outro. – Acaso não sabes que muita gente já anda a deitar as garras sobre os despojos dos marranos e mouros presos? E o fazem bem depressinha, antes que o populacho disso se aperceba e, então, salve-nos Deus!... Nenhuma migalha de mais nada a ninguém de nós sobrará!
− E te esqueceste, naturalmente, de que o Estado anda a cuidar para que as grandes fortunas dos marranos e mouros não se lhe escapem? É a força do leão, a exigir o seu quinhão nesta carnagem!
Acho que deverias bem o saber!
− Sei, sei! – retruca D. Fernán, algo contrariado. – Mas já pensei em tudo! E ainda não te contei que, adrede, mandei preparar uma porção de documentos falsos – letras de câmbio, para ser mais exacto – pretensamente firmadas pelos dois ricos marranos, ora presos, como que, supostamente, devessem-me, por empréstimos que lhes fiz, de fortuna que bem calculei, a rapar-lhes tudo o que têm. É só apresentar ao Tribunal as letras por eles assinadas em meu favor e exigir que me façam o resgate das mesmas, nada mais!
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 7 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 10:14 am

− E crês que o Tribunal ou os tesoureiros do reino não irão investigar se os documentos são reais, antes de te darem autorização para que avances sobre os bens daqueles dois marranos?
− Vejo que, em questões de negócios, tu não és lá muito esperto, meu caro! – diz o outro em tom de pilhéria. – Acaso estais a rotular-me de parvo?... Quem me falsificou tais documentos é gente de primeira!
− Mas, antes, precisas esperar que se instaurem os processos contra eles! – observa D. Aníbal.
− Tua memória anda meio fraca, meu amigo! – brinca D. Fernán.
– Acho que a paixão que sentes pela judiazinha embotou-te o raciocínio! Esqueces que já denunciamos os marranos?
− Sim, mas figuram como réus apenas os três jovens! E os dois velhos? – pergunta D. Aníbal.
− Perdoo-te a ignorância, meu caro, pois a tua especialidade não são as leis! – exclama D. Fernán. – Permite-me explicar-te: a prisão dos dois marranos mais velhos, certamente, deu-se por motivo de suborno, a envolver a fuga dos filhos, queres apostar?... E, se, de facto, assim se passou, serão, nada mais, nada menos, incluídos no processo que já anda em curso, entendeste? Tudo isso fará parte de uma coisa só!
− Entretanto, agora, o fato que me revelaste preocupa-me sobremaneira! – diz D. Aníbal. – Deves lembrar-te de que o combinado foi que Maria de los Milagros ficaria de fora dessa mistela toda que nós dois engendramos! Temos que, agora, livrá-la do processo!
− Foi o planejado, D. Aníbal! – diz D. Fernán, baixando os olhos, um tantinho acovardado. – E te aviso que, talvez, não nos seja muito fácil convencer D. Torquemada a alijá-la do rol dos inculpados no processo!
− Como não?! – exclama D. Aníbal, enchendo-se de raiva. − Então me enganaste!
− Calma, calma! – diz D. Fernán, tentando tranquilizar o amigo. – Tu te precipitas! Eu não quis dizer que seja impossível livrar a judia da acusação; apenas supus que não nos será fácil, só isso!
− Então, se queres meter a tua mão na fortuna dos marranos, primeiro, terás de livrar Milagros dessa embrulhada, ou então, tu te verás comigo! − e se fecha numa carantonha, a indicar ao outro que a sua visita já se havia encerrado.
− ¡Entonces, hasta la vista! – exclama, ressabiadíssimo, D. Fernán Guillén, em despedida.
D. Aníbal Velásquez limita-se a tão-somente enviar-lhe um sinal com a mão em resposta.
D. Fernán Guillén deixa a sala extremamente ressentido, e D. Aníbal Velásquez encaminha-se até a janela alta e espia a praça lá embaixo. Entretanto, seus olhos nada fixam, especificamente, uma vez que seu pensamento fervilhava, a apontar-lhe hipóteses desencontradas e desesperantes acerca do que lhe reservaria o futuro com Maria de los Milagros...
Neste entretempo, em casa de Yaacov Shlomo, o criado Yitzhak Dayan retornava esfalfado e acabrunhadíssimo, depois de estar fora por quase três horas.
− Afinal retornaste! – exclama Sara, ao vê-lo que adentrava a sala. E pergunta, cheia de esperanças: − E então, descobriste a casa do tal?... Falaste com ele?...
− Descobri, sim, a casa do capitão, depois de inquirir metade da população de Toledo! – desabafa o rapazinho, totalmente extenuado pelas longas e ininterruptas andanças a que se submetera desde a manhãzinha. E prossegue, com as feições extremamente pálidas pelo cansaço e pelo prolongado jejum: – Finalmente, cheguei até à casa dele, bati à porta, cansei de bater, até ferir os nós dos dedos da minha pobre mão, mas não obtive nenhuma resposta. Até que um vizinho, assaz incomodado com o barulho que eu fazia, interveio e me lançou uma porção de impropérios e xingamentos ao focinho e, depois, disse-me que, horas antes, o tal havia deixado a casa, a cavalo, no meio de grossa bagagem, o que suponho tenha ele se mudado de lá.
− Ai, Yavé poderoso! – exclama Sara, deixando-se tomar pelo desespero. – Que farei para descobrir o paradeiro de Yaacov e dos meus filhos?
− Se me permitis, Senhora... – ousa interromper o jovem criado.
− Por que não procuras o rabino Mordechai Hagiz? Quem sabe não poderá ele vos dar ajuda nesta questão?− Oh, meu querido Yitzhak! – exclama Sara, abraçando-se ao jovem criado. – Yavé deu-me a luz, através da tua boca! – e beija o rapazinho, efusivamente, às faces descoradas. E, depois, notando-lhe o patente quebrantamento, diz: – Mas estás tão pálido!... Vai ver que ainda nada comeste hoje, não é?... Pobrezinho!... Vai, corre à cozinha e pede à Elisheva que te sirva pão e carne! E, depois de comeres, vai depressa à casa do rabino e o traze cá!
O jovem criado sai em disparada para a cozinha, e Sara põe-se a murmurar sentida prece, a suplicar ao Criador que não a desamparasse naquela busca pejada de aflição e agonia..
___________________________________________________________________________________________________________
193. “− Saúde, meu velho companheiro!”, em castelhano.
194. Véu com o qual as mulheres judias cobrem a cabeça ao orar.
195. Candelabro com variável número de braços, usado, principalmente, nos serviços religiosos do Judaísmo.
196. Shacharit é a tefilá, oração diária da manhã do povo judeu.
197. “− Bem-aventurado aquele cuja transgressão é perdoada, e cujo pecado é coberto...” – Salmos, 32.1, em hebraico.
198. “− E, sem dinheiro, tudo é vão!”, em latim.
199. “− Coragem, jovem!... É assim que se sobe aos céus!”, em latim.
200. “− O que pode ser teu, sendo de outro é loucura!”, em latim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 8:16 pm

Capítulo XXIV. Morte no caminho
Depois de, covardemente, ter dado cabo de Ignacio Sánchez, e, naquele mesmo dia, tão logo se fez noite fechada, o capitão Valdez tratou de livrar-se do cadáver do amigo que mantinha oculto em sua casa e, apanhando grande saco de aniagem, meteu nele o corpo do pobre soldado e, com desmedido cuidado e capricho, dele fez bem arrematado embrulho. Em seguida, sem muito esforço, pois era de porte bastante avantajado, apanhou o tétrico fardo, jogou-o aos ombros e deixou a casa, não sem antes conferir, minudentemente, que, à pesada escuridão que fazia, ninguém o poderia ver. Depois, encaminhou-se, apressadamente, até à rua onde duas montarias por ele adrede preparadas aguardavam-no e dispôs, transversalmente, a carga ao lombo de um dos cavalos e, em seguida, montando o outro, pôs-se em viagem, a arrastar a lúgubre carga pela rédea e, rapidamente, foi tragado pela forte treva da noite alta.
O capitão Valdez cavalgou por um bom tempo, através de caminho que margeava o grande alcantil, em cujo fundo corria célere o Tago, que lutava, furiosamente e sem tréguas, contra os escolhos que se lhe interpunham à passagem rápida e violenta.
Depois de algum tempo e convencido de que já cavalgara suficiente distância, estacou a montaria e, apeando-se, estudou, com bastante atenção e cuidado, o imenso e escuro abismo que se lhe abria aos pés como se fora imensa e apavorante boca, prestes a dar um bote fatal a quem dali se aproximasse.
Em seguida, volta-se para a montaria que carregava o sinistro fardo, desata as cordas que o prendiam ao lombo do cavalo e, sem grandes dificuldades, mete-o ao ombro e, com extremada cautela, aproxima-se, novamente, da borda do báratro hiante e, sem um segundo sequer de hesitação, lança-o ao vazio escuro.
Pondo a mão em concha ao ouvido, tentou perceber o baque do corpo chocando-se contra as pedras dos escolhos lá embaixo, mas nada conseguiu escutar, pois era muita a altura, além do ruído que faziam as águas do rio que por ali passavam violentas.
− Pronto! – murmura o capitão, a abrir um sorriso pejado de satisfação. – Agora te juntas à mula!...
Depois, sem pressa nenhuma, monta o cavalo e volta para casa.
Em lá chegando, meteu-se a preparar a bagagem, pois pretendia sair bem cedinho, a ganhar o mundo, bem depressa, antes que alguma surpresa desagradável viesse a acabar-lhe com a alegria, antes da hora.
Mal amanheceu o dia, o capitão Valdez carregou duas montarias com as sacolas de couro, a conterem a fortuna em ouro que houvera recebido dos judeus, em paga do serviço que, decididamente, não lhes prestara e, tomando mais um cavalo, montou-o e desapareceu, a demandar país estrangeiro – talvez Portugal −, onde pudesse muito bem aproveitar a imensa fortuna que o destino lhe pusera em mãos.
Assim, muito apressado, logo aos primeiros albores da manhã do novo dia, já atravessava a ponte, deixando a cidade natal para trás.
Ao pé da ponte, estacou a montaria e, voltando-se, olhou Toledo pela última vez e murmurou, a abrir um sorriso pleno de contentamento:
− Adeus!... Até nunca mais!
D. Valdez cavalgou pelo dia todo, só parando por uma hora, tão-somente, para comer algo do bornal que trazia e para dar de beber às cavalgaduras.
Quando a tarde já agonizava, deixando o seu espaço à noite que se avizinhava, a arrastar atrás de si o seu espesso manto de crepe, ao dobrar acentuada curva do caminho, a montaria de D. Valdez, de repente, refugou, ostensivamente, e meteu-se sobre as patas traseiras, elevando-se bem alto, a relinchar e a escoicear, violentamente, o ar, com as patas dianteiras.− Ô!...Ô!... Ô!... – gritou D. Valdez, retesando as rédeas, na tentativa de controlar o animal.
Entretanto, o cavalo continuava a priscar, violentamente, e o capitão mal se sustinha sobre a sela. E, por alguns segundos, conseguiu ele se manter montado, mas, como a sua montaria corcoveava, violentamente, ele não conseguiu sustentar-se sobre o lombo do animal e acabou por estatelar-se de cabeça e, como consequência da formidável queda, quebrou o pescoço!
D. Valdez, de imediato, sentiu fortíssima dor advindo-lhe do pé da cabeça e, em seguida, um torpor intenso invadiu-lhe os sentidos e ele desfaleceu. Quanto durou aquele entorpecimento da razão, ele não pôde precisar, mas, em seguida e aos poucos, foi readquirindo a consciência. Abriu os olhos, devagar, e sentiu que estava, ainda, estatelado a meio do chão duro do caminho, mas percebeu que, estranhamente, pairava a alguns palmos acima do que parecia ser o seu corpo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 8:16 pm

Que coisa estranhíssima era aquela?!... Olhou-se, apalpou-se e, altamente estarrecido, constatou que, ao mesmo tempo em que percebia, plenamente, o seu corpo, abaixo dele jazia outro bem semelhante àquele, estendido sobre a terra batida do caminho!
Como flutuava na horizontal, tentou erguer-se, mas sentiu dores ainda mais fortes à cabeça, além de grande tontura que o fez cambalear e ele acabou por voltar à posição anterior.
− Que desgraça é essa? – pergunta-se, agora, conseguindo pôr-se totalmente de pé, depois de algumas tentativas frustradas. E, olhando para os lados, percebeu que seu cavalo e os outros dois que carregavam o seu tesouro pastavam sossegados a relva que medrava à margem do caminho.
Com extremada dificuldade, tentou encaminhar-se para a sua montaria, mas, de repente, de detrás do volumoso tronco de uma árvore que margeava a estrada, surgiu algo que, de imediato, se lhe fez eriçarem todos os cabelos da cabeça: estranha e tétrica aparição surgia-lhe à frente, como se fosse um terrífico espantalho errante.
− Reconheces-me, desgraçado? – grita o espectro, aproximando-se do capitão que, cheio de espanto, nada ainda conseguia entender.
− Quem é você? – pergunta D. Valdez, altamente impressionado com a repentina aparição do Espírito.
− Ah, não me reconheces, maldito? – responde o abantesma, aproximando-se mais.
− Não pode ser! – grita o capitão, enchendo-se de terror, ao reconhecer Ignacio Sánchez. – Vade retro!... Eu te matei e te joguei no abismo, ainda ontem!
− Como me mataste, se aqui estou, monstro? – exclama o Espírito, cheio de ironia.
D. Valdez nada responde de imediato. A primeira reacção que teve foi tampar os olhos com as mãos, mas a estupefacção diante de tão inusitado fenómeno fê-lo, ao contrário, abri-los bem mais para estudar, em minudências, o que era, de fato, aquilo que à sua frente surgira, aparentemente do nada. Assemelhava-se, enormemente, a Ignacio, que ele, com certeiro golpe de punhal, assassinara, na véspera. A criatura apresentava a pele do rosto toda ferida, com arranhões e cortes profundos, e coberta de uma palidez sobrenatural, fato que impediu que o capitão identificasse, de pronto, de quem se tratava; a boca, aberta num rictus feroz, encontrava-se extremamente inchada; os membros – tanto os braços quanto as pernas − estavam todos feridos e deles se podiam perceber, facilmente, brancas pontas de ossos que se evidenciavam das carnes totalmente esfaceladas, e as roupas, todas esfarrapadas, achavam-se completamente empapadas de sangue.
− Vai embora, demónio! – grita D. Valdez, cheio de espanto. – Arreda-te!... Deixa-me em paz!...
− Demónio és tu! – rebate o Espírito. E a levantar, com extremada dificuldade, o braço todo esfrangalhado, prossegue, a apontar-lhe um dedo: − Traíste-me, covardemente, a mim, que era o teu amigo! – e com os olhos a marearem-se de lágrimas: − Se não querias dividir comigo o ouro que roubaste dos judeus, era só me teres dito que eu teria entendido!... Não precisavas ter chegado ao cúmulo de tirar-me a vida por conta disso!
− Está bem, assim fiz, e daí? – retruca o outro, ousadamente, sem esboçar o mínimo sinal de arrependimento. E zangando-se, ordena: − Vamos, desaparece da minha frente, pois tenho de prosseguir viagem antes que se faça mais escuro!... Vai, some-te daqui, senão...
− Senão o quê? – rebate o outro. E ironiza: − Vais matar-me outra vez?...
− Sai daqui, molambo desgraçado! Deixa-me em paz! – vocifera o capitão, já a perder a paciência. E, com extrema dificuldade, pois lhe doía, imensamente, a cabeça, encaminha-se para o cavalo e tenta, debalde, meter o pé ao estribo, com o intuito de montar. Mas, o seu pé, inexplicavelmente, atravessa o metal do esteio.
− Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... – ri-se o Espírito, com as repetidas e frustradas tentativas que fazia o outro em galgar o lombo da montaria.
− De que se ri, maldito? – grita D. Valdez, enfurecendo-se ainda mais. E encabulando-se com aquele estranho fenómeno, prossegue: – Não sei o que me acontece!... Deve ser um pesadelo!...
− Pesadelo?! – ri-se o outro. – De fato, é um pesadelo do qual jamais irás acordar, pois te proporcionei, sim, maldito, o mesmo fim que me deste: a morte!... – e, com extremada satisfação à voz, declara: − Estás é morto, desgraçado!
− Morto, demónio?!... – espanta-se o outro. E se apalpa todo. – Como morto, se estou vivo?
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 7 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 8:17 pm

− Também eu, acaso, não estou vivo? – observa o Espírito de Ignacio Sánchez. – Porventura não me abateste, covardemente, com um traiçoeiro golpe de punhal e até atiraste o meu corpo sem vida ao fundo do desfiladeiro?... Então, como explicas isso?
− Não!... Tu mentes!... Na verdade, acho que não passas de maldita miragem, a atenazar-me as ideias! Deve ter sido o excesso de sol que tomei à cabeça! − rebate o capitão, enquanto tentava, inutilmente, montar o seu cavalo. – Queres é desviar-me do meu caminho, mas eu me vou, para sempre, para Portugal!
− Ah, é, ordinário! – revida o Espírito. E, aproximando-se mais, põe-se a um palmo das fuças do cavalo e grita: − Arre, bicho!...
O cavalo que, até então, vinha pastando sossegado, à revelia do que acontecia, percebendo a aproximação do Espírito201, emite estrondoso relincho e se põe em desesperada fuga, a arrastar, também as outras duas bestas de carga que a ele se achavam atreladas e, em louca trotada, seguem, a correr como loucos, pela estradinha sinuosa que demandava a fronteira portuguesa.
− Meu ouro! – grita o capitão, desesperado, pondo-se a correr atrás dos animais em descontrolada disparada. – Ai, que o meu ouro perde-se!
− Corre, idiota! – exclama o Espírito de Ignacio Sánchez. – Avia-te, ligeiro, que perdes a fortuna que rapaste dos judeus! – e gargalha, desbragadamente, pelo apuro do outro em correr atrás dos cavalos que galopavam como doidos: − Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... – depois, cansado de tanto rir, senta-se à beira do caminho e murmura: − Vai, doido, corre atrás do teu ouro, até chegares a Portugal!... – e a emitir fundo suspiro de satisfação, arremata feliz: − O ouro que nunca será teu...
A noite já caíra, quando o criado de Sara Shlomo retornou, seguido pelo rabino Mordechai Hagiz.
− Oh, D. Hagiz! – exclama Sara, entre lágrimas, ao avistar o rabino que lhe adentrava a sala. – Yaacov desapareceu, desde a noite de anteontem, e nenhuma notícia dele tenho, desde então!
− Acalma-te, Sara! – diz o rabino. E, fazendo-a sentar-se sobre as almofadas, prossegue: – Agora, conta-me tudo o que aconteceu.
E a esposa de Yaacov Shlomo relata, em minudências, tudo o que sabia sobre o negócio que o marido e Ben Hanan haviam proposto ao capitão Valdez, mais a fortuna em ouro que a ele tinham entregado.
− Então é isso! – exclama o rabino. – Com toda a certeza, foram vítimas de uma cilada, armada pelo capitão! Só pode ser isso!
− Será que o amaldiçoado matou o meu Yaacov? – pergunta Sara em pranto.
− Sinceramente, Sara, temos de incluir também essa triste hipótese! – diz Mordechai Hagiz, cheio de pesar. – Mas, não entremos em desespero, antes da hora. Primeiramente, irei investigar se eles não se acham encarcerados!
− Acho que não, pois já enviei Yitzhak até as masmorras do Tribunal, a indagar aos vigias se Yaacov e Ben Hanan não haviam sido presos, mas lhe disseram que não!
− Não tenhas isso como resposta definitiva, minha cara, pois a maioria dos esbirros do Tribunal são umas bestas que de nada têm conhecimento! Deixa comigo, que irei eu mesmo averiguar! Fica em paz, que não me demoro!
O rabino sai, e Sara põe-se a orar, fervorosamente, para que o esposo estivesse, efectivamente, preso, em vez de morto.
Algum tempo depois, Mordechai Hagiz retorna, e Sara recebe-o cheia de ansiedade.
− E então, Senhor Hagiz? – pergunta ela, a torcer as mãos, nervosíssima.
− Tranquiliza-te, Sara! – responde o rabino. – Das piores notícias, a melhor: Yaacov e Ben Hanan encontram-se presos, juntamente com os filhos!
− Yavé santíssimo! – grita Sara, caindo de joelhos. E, levantando as mãos, agradece, em lágrimas: − Todá lecha Elohim al col!
− Ani Maamim!203 – diz o rabino.
− Estiveste com eles? – pergunta Sara, após enxugar as lágrimas e voltando a sentar-se sobre as almofadas.
− Sim, e não me foi difícil subornar dois dos guardas que me conduziram até às masmorras do Tribunal – explica o rabino. E a abrir ligeiro sorriso: – À visão das moedas de ouro, qualquer porta abre-se em Toledo!
− E como se acham eles? – pergunta Sara, a demonstrar funda aflição.
− Fica sossegada, pois todos se encontram bem, na medida do possível.
− Falaste com eles?
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 8:17 pm

− Sim, foi-me possível trocar algumas palavras com eles, e fica sabendo que já pensavam em mandar-te uma mensagem por algum dos carcereiros que intentavam corromper com um anel que Yaacov ocultou sob as vestes.
− Oh, meu querido Yaacov! – exclama Sara, com os olhos mareados de lágrimas. – E os meus filhos, também conseguiste vê-los?− Sim, vi-os e estão todos bem, assim como Ben Hanan e seu filho Andrés!
− E o que me queria dizer o meu amado esposo?
− O que exactamente fizeste, Sara: que me procurasses! – diz o rabino, sem ocultar uma pitada de satisfação.
− E, então, eu já te procurei!... Mas, afinal, nada disse ele sobre o que deveremos fazer?
− Que tu constituas um advogado a defendê-los diante de acusações que sobre eles pesam no Tribunal!
− Mas de quais acusações falas? – pergunta Sara. – Isso me confunde a cabeça, pois, pelo que me consta, ninguém da minha família, que lá se acha preso, é criminoso ou andou a fazer coisas erradas!
− Nos tempos atuais, minha cara, em se sendo judeu, nesta terra, não é preciso fazer coisas erradas: basta que possua um pouco de ouro, tão-somente!
− Se é ouro que querem, Yaacov e Ben Hanan acaso já não lhes enfiaram grande fortuna goela abaixo?... Mais ainda querem?
− Na verdade, Sara, devo dizer-te que as coisas começam a complicar-se para todos nós, judeus – explica o rabino. – O que, de fato, querem os espanhóis todos é verem-nos alijados desta terra para sempre!
− E, de preferência, que deixemos atrás tudo o que temos, para que se locupletem do que conseguimos amealhar pela nossa vida inteira, a custo do suor do nosso rosto, não é?
O rabino limita-se a assentir com a cabeça.
− Que fiquem, pois, com o nosso maldito ouro, com as nossas casas, com as nossas propriedades, com os nossos animais, mas que nos deixem ir em paz! – desabafa a mulher, entre lágrimas. – O que não quero é que nos assassinem, impiedosamente, como já fizeram no passado! Ouro e bens, nós os conseguiremos reaver em outras terras, uma vez que não somos vagabundos e nem espertalhões como esses que nos querem dizimar, a troco das nossas riquezas!... Isso, meu bom Mordechai, eu não aceito e não consigo entender!− Estás certa, Sara! – diz o rabino, a emitir fundo suspiro. – Mas, que fazer?... Essa é a situação em que nos encontramos, no momento: a desgraça não só atinge a tua casa, pois, como pude bem conferir, os calabouços do Tribunal acham-se repletos de judeus e de mouros!... E, estranhamente, a grande maioria deles se constitui de gente de posse!...
− E crês que seja isso por mero acaso?... – redargui ela, a agitar-se toda pela excitação nervosa que a dominava por completo. E prossegue, com os olhos cheios de lágrimas: − E tremo só em pensar, quando é que começará a matança!...
− Podes estar certa disso, minha cara!... – confirma o rabino, com a voz pesarosa. – E, pelos rumores que ando a ouvir e pelas atitudes que vejo os espanhóis, indistintamente, tomarem a nosso respeito, a desgraça não se demorará!...
− E a quem achas que deverei procurar para a defesa dos meus que se acham aprisionados? – pergunta Sara, ora mudando os rumos da conversa.
− Estava, cá, a pensar exactamente nesse ponto! – exclama Mordechai Hagiz. – Então se me apresentaram as seguintes situações: se constituíres um advogado judeu, certamente, o Tribunal irá, premeditadamente, opor-lhe férrea resistência a que defenda os teus familiares, pois o que desejam, de fato, é aniquilá-los; em contrapartida, dificilmente conseguirás contratar um advogado castelhano, pois presumo que nenhum deles quererá abrir qualquer querela contra os inquisidores, por motivo bastante óbvio, não achas?... E, quanto aos advogados mouros, nem se fala, porque esses também se acham perseguidos, como nós, pela Inquisição!
− Então, como agir? – pergunta Sara, já se deixando tomar pelo desespero.
− Na verdade, Sara, eu não sei! – responde o rabino, com um forte suspiro de desolação. – E não consigo entender como ainda não se voltaram contra as sinagogas! Entretanto, algo me diz que esse dia não anda muito longe, pois os padres, invariavelmente em todas as paróquias, andam a incitar o povo contra a nossa gente!...
Sabes como é, os fiéis crêem, piamente, na velha história de que somos os assassinos de Cristo!... E, em consequência disso, nada mais representamos, no mundo, senão carregar a pecha milenar de que somos os algozes do Filho do Carpinteiro de Nazaré!
− Se não temos nenhuma representatividade mais, que faremos, então? – pergunta a esposa de Yaacov Shlomo, cheia de desencantamento.
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As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 7 Empty Re: As folhas mortas do verão: Episódios da Inquisição Espanhola - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 07, 2024 8:17 pm

− Acho que devemos nos preparar para o pior! – diz Mordechai Hagiz. E diante da grande desolação que Sara estampava às feições, apieda-se dela, toma-lhe as mãos e prossegue: − Perdoa-me, minha querida, por essas palavras: não era exactamente isso que intentava dizer, mas não posso iludir-te com falsas esperanças!... É preciso ser forte!...
− Eu já pressentia que dias cinzentos para nós, judeus, adviriam, cedo ou tarde, Senhor Hagiz! – diz Sara, firme e pausadamente. E se levantando, prossegue, agora com a voz forte: − Agradeço-te, de coração, pela ajuda que nos deste! – e a enxugar, com gestos decididos, as lágrimas que ainda lhe escorriam face abaixo, exclama resoluta: − Mas não desistirei nem me deixarei abater ante as dificuldades!... Um judeu nunca pereceu por acovardar-se diante de árduas labutas, conforme muito bem o sabes!... E se nenhum advogado de Toledo quiser tomar a causa dos meus queridos, irei, eu mesma, bater às portas do Tribunal e não sossegarei, enquanto não os livrar daquele cárcere imundo!
− E posso garantir que não estarás só nesta tua empreitada! – exclama o rabino, levantando-se e se abraçando, respeitosamente, à Sara. – Eu estarei contigo, aonde tu fores!
Neste comenos, em ampla sala do Tribunal da Inquisição, D. Tomás de Torquemada reunia-se com os três notários do Tribunal204.
− Senhores, as correcções da demanda e da acusação sobre o caso de D. Aníbal Velásquez contra a marrana que o tentou assassinar já se encontram prontas? – pergunta o chefe da Inquisição. − É preciso, pois, darmos rápido encaminhamento a esse processo!
− As rectificações ainda não foram feitas, Senhor, pois o caso ocorreu bem recentemente! – diz o notário Martín Pérez. – Para tanto, há que se fazer novo interrogatório205 da ré!− Então, que se convoque a D. Sánchez206, a redireccionar essa acção – diz D. Torquemada. – Temos pressa a dar andamento a esse processo! – e ordena: − Passai-me cá o que temos em mãos do que já foi arrancado da ré em confissão!
− Cá o tendes, Senhor!... – diz o notário, depois de rápida busca nos arquivos. − Demandante: D. Aníbal Velásquez contra a marrana Maria de los Milagros Shlomo!
− Ah, bem peculiar este caso! – exclama D. Torquemada, bastante satisfeito, já com os documentos em mãos. – Trata-se do secretário do arcebispo!... Aqui esteve ele, dias atrás, a sondar os andamentos do processo! Conheço bem, de antemão, os teores desta acção: a ré intentou assassinar a D. Velásquez!... – e, a folhear o volume do processo, põe-se a ler, com atenção. E, depois de alguns minutos de leitura, diz: − A partir de agora, o processo deverá ganhar novos rumos, pois os pais da assassina e do seu noivo – que é cúmplice no caso − também foram presos por tentativa de corrupção! – e se voltando para o notário, prossegue: − Há que se fazer cá um adendo, a acrescentar esses novos fatos!
− Sim, mas sob as novas anotações do fiscal! – observa o notário.
− Certamente, D. Martín! – exclama D. Torquemada. E impacientando-se: − Já mandastes chamar a D. Sánchez?
− Sim, Senhor, e, para ganharmos tempo, também fiz cá trazerem a ré.
Pouco depois, Maria de los Milagros achava-se diante dos inquisidores. D. Tomás de Torquemada ainda não a conhecia, pessoalmente, e a estudou, meticulosamente, da cabeça aos pés; a jovem judia encontrava-se um tanto desgrenhada pelo longo tempo em que se achava encarcerada: tinha os cabelos totalmente desalinhados por falta de trato; as roupas estavam sujas e rotas pelo uso contínuo; os sapatos, totalmente puídos, davam mostras de romperem-se, a qualquer momento, perigando deixá-la completamente descalça; a cútis, por falta de cuidados e de descanso adequado, mostrava-se grandemente abatida e suja. A moça achava-se em estado deplorável e pouco lembrava a graciosa e adorável moçoila de tempos atrás. O chefe da Inquisição, depois desse rápido exame, dirige-se ao fiscal, que acabara de chegar, e lhe ordena começar o interrogatório.
− Qual é o teu nome? – pergunta Gabriel Sánchez, o fiscal, em tom ríspido.
− Maria de los Milagros Shlomo – responde ela, firme, sem baixar os olhos.
− Confessas-te judia?
− Tenho um nome cristão, não? – responde ela, altiva.
− Ter um nome cristão, tão-somente, não é condição para não se declarar judeu! – rebate o fiscal, altamente agastado com a insolência da moça. – Quero saber se és judia ou não!
− Tenho sangue judeu, sim, como bem o podes afiançar pelo nome que carrego! Mas sou conversa! Fui baptizada na Santa Igreja Católica!
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