LUZ ESPÍRITA
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 9:54 am

-Oh, creio em ti!... Creio em ti!... - observa, sério, o bispo. Era patente a grande preocupação a desenhar-se-lhe, de inopino, às feições. Cala-se, altamente chocado pela tragicidade da notícia, mas, depois de instantes, prossegue: - Por Anjinho, ponho a minha mão ao fogo!... Se: que ele é incapaz de cometer monstruosidade como essa!... Conheço-o, desde que era um garotinho!... Criou-se em nosso orfanato!...
-Pois é, Excelência!... - diz Bárbara, entrando na conversa. -Estivemos com ele, há pouco, na cadeia pública!... E conversamos, também, com o inspector-geral da milícia, o senhor Venâncio da Silveira, que nos garantiu pesar sobre Anjinho severas denúncias e fortes indícios de ser ele o assassino de Manuela!...
-Eu não o creio!... - exclama Dom Eusébio, levantando-se, preocupadíssimo, e se pondo a caminhar em círculos, com as mãos entrelaçadas às costas, como era seu costume: - Não posso acreditar em tais denúncias contra esse rapaz!... Tenho-o em alta conta e lhe conheço, a fundo, o carácter!... Não!... Ele, não!... Qualquer um outro deve ter cometido tal monstruosidade, mas Anjinho, não!... Além do mais, t juras que estiveste com ele, não é, menina?... Pois eu creio em ti!... Aí está a prova do que digo!... Alguém deseja é vê-lo em maus lençóis!... -isso!... - e se cala, por instantes, como se estivesse a rememorar coisa importantes.
De facto, Dom Eusébio lembrava-se do colóquio que mantiver tempos atrás, com João Miguel, quando lá estivera, com o intuito d demovê-lo das ideias preconceituosas que alimentava sobre o irmão desaparecido. Notara-lhe, nas entrelinhas da conversa, o incontido ódio que alimentava pelo irmão!... O rapaz tentara disfarçar alguma coisa mas o sentimento de aversão pelo outro era tão forte que lhe escapava ao controle. Por fim, declarara que considerava o irmão incapaz de ministrar toda a fortuna que herdaria e que o pai errara em fazê-lo, também seu herdeiro!... Dom Eusébio, agora, tinha quase a absoluta certeza que João Miguel engendrara toda aquela sujeira para afastar o irmão do seu caminho!... Notara-lhe, perfeitamente, a capacidade, sim, de praticar aquele tipo de coisas: rapaz nervoso, assaz soberbo, inquieto, sempre casmurro e mal-educado, além de ser muito violento no trato com a criadagem!... Sim, João Miguel arrebanhava para si todas as características para ser ele mesmo o autor daquele assassinato!... E, com que desfaçatez, lançava toda a culpa ao irmão!...
-Dizei-me, senhoras - diz o bispo, depois da profunda reflexão a que se submetera -, sabeis, acaso, quem fez a denúncia contra Anjinho?...
-Não nos relatou o senhor Venâncio da Silveira - apressa-se Bárbara em responder. - E não fazemos sequer a mínima ideia de quem tenha sido o talzinho a praticar tão infundada denúncia...
-Eu sei!... - diz a mocinha, contradizendo a mãe. - Foi o irmão dele, João Miguel!...
-E por que afirmas isso com tal veemência, senhorita?... - pergunta Dom Eusébio, fixando-a sério. As palavras de Teresa Cristina confirmavam-lhe o que já supunha que fosse.
-João Miguel odeia Anjinho!... Não lhe queria dar a parte da herança deixada pelo pai!... - diz a jovenzinha. E prossegue cheia de firmeza: - João Manuel contou-me tudo!... Acaso não estivemos ambos, aqui, dias atrás, a aconselhar-nos com Vossa Excelência?...
-Justo... - diz o bispo, a coçar o queixo, enquanto ponderava sobre a questão. - Justíssimo o que concluis, minha filha... Tens toda a razão!... Tudo leva a crer que foi João Miguel a fazer a denúncia!... Mas, daí a julgá-lo, de antemão, o executor de Manuela, não podemos ser levianos atai ponto!... Mas, irei investigar!... Sossegai, que irei visitar Anjinho na cadeia, ainda amanhã, bem cedinho!... E também falarei ao inspector-geral da milícia, o senhor Venâncio da Silveira.... Temos que nos mexer, senhoras!... E depressa!... Tais denúncias são graves e, se nada se fizer em favor de Anjinho, sabeis muito bem o que já lhe está reservado, não?...
- A forca... - murmura Teresa Cristina, com os olhos rasos de pranto.
- Exactamente, minha filha!... - diz o bispo, abraçando-a, ternamente. - Mas, sossega o teu coraçãozito, que tudo o que estiver ao nosso alcance será feito!...
Pouco depois, no carro, de volta para casa, Teresa Cristina ainda chorava, altamente desconsolada, com a cabeça apoiada ao ombro da mãe. A noite já caía friíssima, escura - triste noite de mais um triste inverno.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 9:55 am

-Acalma-te, meu bem!... - diz-lhe Bárbara, tentando consolá-la Não nos prometeu Dom Eusébio interceder por ele?... Os bispos têm muita influência!... Tu verás!...
-Não sei, mamãe!... - responde a mocinha, entre soluços. - Terríveis pressentimentos, às vezes, assolam o meu coração!... E, se eu o perder, o que será de mim?...
-Oh, tu não o perderás!... - diz Bárbara, apertando-a forte nos braços. - Tu não o perderás!... Confia na Divina Justiça!... Deus não permitirá que ele se vá, assim tão cedo!... - e, mesmo na desgraça, faz pilhéria, tentando levantar os ânimos da filha: - Que airoso rapagão, hein?... Cá, entre nós, seria um desperdício, não concordas?... Inda se ele fosse feio, careca e barrigudinho... Mas, ai, toda aquele formosura a balançar à ponta de uma horrorosa corda?... Não!... As mulheres de toda a Lisboa ficariam furiosas e, olha lá, se não linchassem o carrasco desta vez!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
-Ah, mamãe!... - diz ela, abrindo um sorriso no meio das lágrimas. - Tu não tens mesmo jeito, não é?
Bárbara olha, enternecidamente, para a cabeça da filha, a apoiar-se em seu colo. Como a amava!... Acaricia-lhe, então, os cabelos acobreados com as mãos, e Teresa Cristina emite fundo suspiro. Como lhe era penoso, muito penoso, mesmo, constatar que a sua menina já sofria tanto!... "Ah, as dores do coração!...", pensa Bárbara, enquanto beija, ternamente, os cabelos da filha. "Existirão dores mais acerbas que as dores do amor?..." Depois, levanta os olhos e espia lá fora, pela janela do carro. Reconhece as árvores do bosquete da entrada da sua quinta. Estavam chegando. A noite chegava depressa, gelada, escura, e uma chuva fininha principiava a cair monótona, tomando tudo ainda mais triste...

* * * * * * *
- Dizeis, então, senhor Venâncio da Silveira, que a situação do rapaz é deveras grave? - pergunta Dom Eusébio ao inspector-geral da milícia, enquanto ambos caminhavam pelos corredores da cadeia pública de Lisboa, indo em direcção das celas. O bispo mostrava-se altamente ansioso e, mal o dia amanhecera, já ali estava ele a visitar João Manuel.
-É o que vos asseguro, Excelência - responde o outro. - E pouco há o que se fazer pela vida do pobre!... Acha-se inculpado neste caso até o pescoço!...
-Sei... - observa o bispo, pensativo. - E já diligenciastes, obviamente, a investigar, apuradamente, se não há outro gajo metido nisso tudo?... Vede bem: se ainda não fizeste...
-Posso garantir-vos, senhor bispo, que tudo estamos a fazer, para que não se cometam injustiças!... - redargui o outro. - Ficai sossegado que também conheço o réu a fundo e, como vós, custa-me crer ser ele o culpado deste crime!... Mas, reconheço que não devo desprezar a evidência dos fatos!... Como chefe das investigações, não posso desprezar provas tão concludentes!...
-Contudo, não vos esqueçais, senhor Venâncio da Silveira, de que provas materiais podem ser facilmente semeadas, a mancheias, às pegadas de alguém que se queira incriminar!... - observa o bispo. - E acho que, se, de fato, estais a par de toda essa tramóia, deveis também, por certo, saber dos interesses outros do irmão do réu!... - e, baixando a voz, como se confidenciasse ao policial: - Este, sim, merecia ser bem investigado...
-Certamente que já o interrogamos, senhor bispo - responde o policial. - Mas, saibais que o irmão contra-argumentou muitíssimo bem a seu favor!... Saiu-se bem e, por certo, também assim será no tribunal!... Os juízes dar-lhe-ão crédito, sem dúvida alguma!... Este já escapou, Excelência!... Não há como o incriminar!... Além do mais, sabemos que o senhor Barão da Reboleira não saiu de casa naquela noite!... Seu cocheiro é-lhe testemunha!...
-Poderá ter saído à sorrelfa!... - diz o bispo. - Ou, ainda, sabeis muito bem o quanto os cocheiros costumam ser cúmplices dos seus patrões!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 9:55 am

-Palavras contra palavras, Excelência!... - observa o inspector da milícia. - E, nesta terra, se alguém tiver muito dinheiro e desejar mandar alguém à forca, isso não costuma ser tarefa muito difícil, não!... Vós o sabeis muito bem!...
-Se sei... - murmura o bispo, pensativo. Dinheiro era o que não faltava a João Miguel!... Poderia comprar até a consciência do ministro da justiça, se assim o desejasse!...
Neste comenos, avizinham-se da cela onde se achava preso João Manuel.
- Dom Eusébio.... - exclama o rapaz, contentíssimo, ao avistar Pessoa que lhe era tão cara. - Que surpresa agradável!...
-Oh, meu menino!... - diz o bispo, comovido.
-Franqueio-vos a entrada à cela, Excelência - fala o inspector da milícia, abrindo a porta da grade. - E, também, deixo-vos a sós, afim de que converseis à vontade!...
-Oh, meu menino!... - repete Dom Eusébio, abraçando-se, efusivamente, ao rapaz. - Que armadilha daquelas aprontaram-te, hein?...
-Pois não é que foi, senhor?... - diz o rapaz, enxugando os olhos lacrimejantes. - Entretanto, acho que sabeis quem é o autor disso tudo, pois não?
-Se sei... - diz o bispo. E, notando o outro jovem que a tudo acompanhava com muito interesse, observa: - E, vós, quem sois, cavalheiro?
-Oh, ele é meu amigo!... - apressa-se João Manuel em responder.
- É o Vítor!...
-Vítor Nascimento Torres, Excelência!... - diz o outro, fazendo longa reverência. E, aproximando-se, ajoelha-se: - Vossa bênção, senhor!...
-Nascimento Torres?... - pergunta Dom Eusébio. - Acaso sois parente do falecido Barão de Leiria, o velho Eurico Nascimento Torres?...
-Filho dele, Excelência!... - responde o rapaz.
- Oh, bem que as tuas feições lembravam-me alguém!... - diz o bispo, abraçando, efusivamente, o rapaz. - Fomos muito amigos, teu pai e eu!... Mas, o que aqui fazes?... Não me digas que também és réu de crime de morte?...
- Vítor mandou a faca no gajo que lhe queria roubar a noiva, senhor! ... - apressa-se em responder João Manuel.
- Oh, mataste-o, então!... - exclama Dom Eusébio, sobressaltando-se.
-Não, não!... - explica o rapaz. - Infelizmente, não o matei!... O pulha sobreviveu!...
-Oh, menino!... - admoesta-o o bispo, com severidade. - Deverias é alegrar-te por não o teres matado!... Ou, então, a estas horas, estarias em bem maus lençóis!... Vê a terrível situação em que se encontra Anjinho!...
-Pois assim é, Excelência!... - rebate o rapaz. - Mas, que o queria, de fato, ter matado, lá, isso eu queria mesmo!... Disso não me arrependo!...
-Essa juventude!... - exclama o bispo. E se voltando para João Manuel: - Diz-me, meu filhinho, olhando cá para dentro dos meus olhos!... Tira-me este peso, de vez, do meu coração!... Tu não a mataste, não é mesmo?...
-Não, senhor!... - apressa-se em responder João Manuel. Depois, enchendo-se de mágoa, baixa os olhos e, soprando as palavras molhadas pelo pranto, prossegue: - Vós sabeis que não, Dom Eusébio.... Vós sabeis que não!... Juro-vos, por Deus, por tudo o que desejardes, que não matei Manuela.... Vós o sabeis!...
-Se o sei... - murmura o bispo, baixando, tristemente, a cabeça. Tinha a certeza de que o seu menino não houvera feito tamanha barbaridade. Abraça-o, então, fortemente, e lhe diz: - Não te quis magoar, meu menino!... Perdoa este velho imbecil!... Não te quis magoar!... -e ambos choram, abraçados. - E, juro-te, que lutarei, incansavelmente, para livrar-te desta acusação absurda que lançaram sobre ti!... Juro-te, meu filho!... Sabes que te considero o filho da minha alma, não?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 9:55 am

Vítor Nascimento Torres, sentado em seu catre, olha para os dois homens e também se emociona. Por instantes, coloca-se no lugar de João Manuel e, pela primeira vez, um arrepio percorre-lhe a espinha de alto a baixo. Terrível pergunta vem-lhe, então, à mente: será que ele, uma vez culpado, teria pessoas assim tão empenhadas em lutar pela sua liberdade?... Cogitou por instantes e constatou, estarrecido, que, dificilmente, alguém lutaria por ele, com tanto empenho... No íntimo alegrou-se por não ter dado cabo daquele pulha. Ah, se tivesse matado o rival!... Ninguém teria lutado assim por ele, não!... Ninguém mesmo!...

* * * * * * *
Os dias passaram-se. As investigações acerca da morte de Manuela encerraram-se, e nenhum fato novo foi adicionado ao caso. João Manuel foi, assim, declarado o responsável pelo assassinato da Baronesa da Ajuda. Marcou-se, então, a data do julgamento. Nesses derradeiros dias, o pobre rapaz achava-se só em sua cela. O companheiro fora solto, dias atrás, mediante o pagamento de indenização à sua vítima. E, naquela tarde cinzenta e fria de meio de inverno, João Manuel, altamente melancólico, rememorava a despedida de ambos.
-Vou-me, mas prometo que lutarei por ti, meu amigo!... dissera-lhe 0 outro ao despedirem-se ambos, abraçando-se longamente.
-Sei que o farás!... Sei que o farás, meu amigo!... - falara-lhe João Manuel, altamente comovido pelo apoio que recebia do outro.
Entretanto, poucas pessoas, efectivamente, vinham visitá-lo, na prisão. Excepção da noiva e de Dom Eusébio, ninguém mais ali estivera. Porém, João Manuel sabia que as visitas não eram facilitadas a qualquer um. Talvez, mesmo que o desejasse, Vítor não houvera conseguido, até então, a permissão para rever o amigo. Nem Gerusa ali estivera para vê-lo!... Não sabia o real motivo, mas passara a lembrar-se insistentemente, da antiga companheira de desgraças!... De repente uma enorme saudade de Gerusa batia-lhe ao coração. Por onde andaria a amiga?... Desaparecera, misteriosamente. Nenhuma notícia mais dela tivera!... Será que Gerusa teria já tomado conhecimento da sua prisão?... Saberia ela da grave acusação que lhe haviam imputado sobre o assassinato de Manuela?... Se fosse condenado à morte, por certo, não mais a veria!... Pobre Gerusa!... Alimentara tantas esperanças em relação a ele!... Queria até forçá-lo a se casarem!... Gostava de Gerusa, mas não do jeito que ela queria que ele dela gostasse!... Prometera-lhe casamento, é bem verdade, porém, somente, no afã de arrancar dela o endereço da família!... Enganara-a!... Mas, também, a danadinha fizera chantagem!... Que direito tinha ela de exigir coisas?... Se, descaradamente, ela o chantageava, também ele tinha o direito de enganá-la!... E como ela ficara furiosa!... Ameaçara-o, e acabaram até inimigos!... Onde entra o interesse, as amizades costumam ruir!... E desabam fragorosamente!... Amizade e interesse - como a água e o óleo - não se misturam jamais!...
João Manuel, sempre solitário em sua cela, rememorava tais coisas do seu passado recente. Como tudo mudara em sua vida!... Tão depressa e tão vertiginosamente, agora, os rumos da sua existência ganhavam patamares tão distintos e tão dispares!... A obscura origem, o orfanato, a miséria absoluta pelas mas... Depois, a redescoberta da verdadeira identidade, o retomo ao seio da família e, consequentemente, a vivência em altíssimo luxo e conforto; depois, o encontro com o seu verdadeiro amor e, agora, o opróbrio extremo: a prisão e a infame acusação do assassinato de Manuela]... Era-lhe tremendamente desesperador tudo aquilo!... Melhor lhe fora, por certo, se nada houvesse redescoberto da sua vida; se tivesse permanecido na mais absoluta ignorância de tudo, para sempre!... Ter-lhe-ia sido, certamente, mais fácil, menos penoso aquele fardo...
Os dias passavam-se, cheios de angustiosa expectativa. Teresa Cristina visitava-o com regular frequência, e esses encontros revelavam-se replenos de dor e de sofrimento para ambos. Bárbara acompanhava a filha e, mesmo lhes dando apoio incondicional, entendia que a situação do rapaz era gravíssima. Houvera se deixado tocar pela terrível situação de João Manuel; afeiçoara-se, grandemente, a ele; passara a gostar daquele jovem gentil que, contrariando a lógica das coisas, tudo o que em sua terrível existência poderia ter sido - e que, felizmente, não fora! -, mostrava-se ele, outrossim, muito educado e cheio de particular doçura!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 9:56 am

Entendia ela, dessa forma, porque é que a filha apaixonara-se, tão perdidamente, pelo moço; Teresa Cristina, na realidade, enxergara naquele rapaz aparentemente rude e inculto os fortes lampejos da bonomia e da firmeza de carácter, indeléveis conquistas do espírito que, principiando a amadurecer, através do constante contacto com a dor, já passava a agregar a si algo das virtudes imanentes ao ser, apesar dos reveses da vida a que se vira submetido, desde a mais tenra infância, situação que não deveria justificar jamais, em ninguém, ensejo à descambação para as sendas do crime ou para a prática sistemática da violência!... E, decidida como era, Bárbara convencera o esposo a contratar dois advogados para defenderem João Manuel; o homem recusara-se, peremptoriamente, de início, a fazê-lo, mas quem é que escapava às instâncias de criatura como sua esposa?... E, para livrar-se de vez, dos constantes e insistentes rogos da mulher e da filha, aquiescera em atender-lhes o pedido. E, o que mais contribuíra, entretanto, para bem depressa aligeirar o convencimento de Jerónimo Dantas e Melo a atender ao pedido da esposa e da filha fora quando Bárbara, em momento de alta excitação, dentro do calor da discussão, apontara, ousadamente, um dedo às fuças do esposo e lhe atirara assunto que o marido julgava morto e sepultado: "Acho que a tua consciência deve ter muito a ver com este caso, meu caro!...", gritara ela. "Essa história do desaparecimento do filho de Manuel António e de Rosália andou a cheirar-me mui mal às narinas por estes anos todos!... Mormente, quando me referia a ti acerca deste assunto e, ao mirar-te as fuças, achava-te sempre meio assustadinho, com o rumo que as coisas andavam a tomar!... Lembras-te?... Nada me tira da cabeça que tu andas metido até as orelhas por trás dessa sujidade toda!...", prosseguira ela, irónica. "Foi logo, assim, de repente, quando tu foste derrotado no litígio das terras que andavas a demandar contra o pai do bebê raptado!... E tu chegaste em casa naquela ocasião, a bufares desmedidos impropérios e vinganças pelas ventas como um touro afrontado!... Vamos, vai lá, diz que me engano, que estou a dizer uma calúnia contra ti!... ias fazê-lo a olhares cá, para bem dentro dos meus olhos!...". Jerónimo Dantas, contrariamente ao que lhe era do feitio, baixara a cabeça e murmurara: "Tens razão!... Tens toda a razão!... E preciso que se dê um auxílio a esse pobre rapaz!...". E, no dia seguinte mesmo, o Marquês das Alfarrobeiras contratara dois bons advogados da capital. Entretanto, depois de, minuciosamente, estudarem o processo e de ouvirem as testemunhas, os advogados mostraram-se, também, cépticos em relação à possibilidade de João Manuel escapar da condenação à morte. Lutaram como doidos, é verdade, mas tudo lhes saía às avessas: as provas contra o rapaz eram por demais evidentes. A própria criadagem de Manuela, e se incluindo aí, mais acintosamente, o lamurioso e altamente expressivo depoimento de Inácia, a criada favorita da Baronesa da Ajuda, a relatar, nas mais bem delineadas minúcias, o escuso relacionamento que João Manuel mantivera com a vítima, durante muito tempo, mesmo desde quando ele não passava de um reles vagabundo das ruas do cais do porto. Teresa Cristina, por sua vez, depusera a favor do rapaz. Relatara, com veemência, todos os passos que João Manuel dera, por toda aquela fatídica noite em que Manuela fora assassinada; entretanto, eram palavras contra palavras... Até o cocheiro de João Miguel também fora ouvido como testemunha do possível envolvimento do seu patrão no crime; porém, o homem a tudo negara. Negara ter transportado o patrão para qualquer localidade naquele noite!... Melhor: dissera e jurara por tudo que lhe era mais sagrado que ele e o patrão não houveram, em hipótese alguma, deixado a quinta" naquela noite!... Como mentira o homem!... Não se sabe se por me do patrão ou se por dele receber alguns trocos... Sabe-se, apenas, que mentiu, desavergonhadamente, e sustentou sua sórdida mentira até as últimas consequências!... Dessa forma, o resultado do julgamento de João Manuel já era de pressupor-se: a condenação à morte!
O fatídico dia do julgamento de João Manuel chegou, finalmente. Vieram buscá-lo, logo de manhãzinha; deram-lhe água e sabão para lavar-se e permitiram que mudasse as roupas. Veio, também, um
barbeiro a acertar-lhe as pontas dos cabelos, a aparar-lhe os bigodes, a moldar-lhe a barba e as suíças. Transportaram-no, depois, numa carroça, até o tribunal. Poucas pessoas, na realidade, interessaram-se pelo julgamento; entretanto, presentes achavam-se Dom Eusébio, Bárbara, Jerónimo Dantas e Melo e Teresa Cristina, além dos irmãos de Manuela e do esposo que, encontrado pelas bandas de Holanda, e avisado sobre o assassinato da esposa, ali estava, a demonstrar alta consternação pela lamentável perda da esposa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 7:07 pm

O réu foi trazido ao recinto, e Teresa Cristina, ao vê-lo assomar à porta do salão de julgamento, teve ímpetos de correr até ele e de abraçá-lo fortemente. Por instantes, seus olhos cruzaram-se e, neles, somente dor e angústia notaram-se. Depois, fizeram com que ele se sentasse diante do juiz, ficando, dessa forma, de costas para a assistência. O magistrado, então, interrogou-o longa e meticulosamente. Em seguida, iniciou-se a leitura do processo. Depois, o interrogatório das testemunhas. As verdades, as mentiras... Em sequência, os discursos de acusação e os de defesa; os debates entre os que acusavam e os que defendiam... O dia avançava lento, a angústia do acusado e dos seus amigos aumentava. Anoiteceu e, finalmente, a sentença. O veredicto já era o esperado: condenação à morte, por enforcamento!... Um lancinante grito de dor ouviu-se. Era Teresa Cristina que desmaiava, fragorosamente, diante da crueza dos acontecimentos. De pé, o réu ouvira a sua sentença de morte, extremamente pálido. Seus lábios tremiam, ligeiramente; seus olhos enchiam-se de lágrimas. O grito da mulher amada arrancara-lhe as fibras do coração!... Era o início do seu calvário!... As verdadeiras agruras da sua vida iriam começar a partir daquele instante!... Nunca executavam os prisioneiros de imediato!... Eram cruéis até nisso!... Deixavam-nos sofrer o inferno na antecâmara da morte!...
Naquele momento, João Manuel teve ímpetos de correr até ela!... Desejava, ardentemente, tomá-la aos braços, murmurar-lhe palavras de coragem!... Mas, achava-se manietado e tinha fortes correntes atadas aos pés!... Impossível correr; era-lhe penoso mover os passos, obrigava-se a caminhar devagar!... Voltara-se, instintivamente, para trás, para olhá-la, quando ela emitira aquele terrível grito de dor!... E pudera, apenas, vê-la que tombava, apoiada pelos braços da mãe!... O juiz admoestara-o, severamente, a conter-se, a manter-se firme, em sua postura, para ouvir a leitura do restante da longa sentença que o condenava à morte...
Haveria dor mais excruciante para dois corações que se amavam perdidamente, que aquela separação cruel?... Certamente que não' Nem João Manuel suportou-a. Por mais forte que fosse, por mais terrível que a sua vida já houvera sido, aquilo lhe fora demais. Premido pela intensa emoção e pela dor extrema, sente as vistas escurecerem-lhe e suor gélido exsuda-se-lhe abundante pelo corpo todo; as pernas, então se lhe fraquejam, e também ele tomba, fragorosamente, sobre o piso de pedras...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 7:07 pm

Capítulo 24 - Na antecâmara da morte
Quando João Manuel recobrou os sentidos, achava-se em sua cela, deitado sobre o pobre catre. A princípio, as ideias apresentaram-se-lhe meio turvas, confusas. Devagar, levantou-se e se sentou no leito. Zonzo, olha em derredor. O estômago enjoava-se-lhe enormemente. Teve ânsias de vomitar. Depois de alguns ensaios, consegue, finalmente, levantar-se e se encaminha para tosca mesinha onde se achavam uma moringa de terracota com água e um caneco de latão. Com mãos trémulas, derrama um pouco de água no caneco e sorve o líquido devagar. A baba amarga e espessa que lhe tomava toda a boca, aos poucos se dissipa, e o estômago pareceu melhorar-lhe um tantinho mais. Tropegamente, retoma para o grabato e se deita. De repente, um tremor de frio percorre-lhe o corpo de alto a baixo. Começa, então, paulatinamente, a tiritar. Febre insistente acomete-o, e ele treme de frio intenso. As fortes emoções daqueles dias todos de profundo tormento acabavam por minar-lhe as forças. Grandemente abatido, geme, premido pelos pertinazes tremores da febre que lhe judiavam, enormemente, dos músculos todos, reduzindo-os a frangalhos. A noite caía, e o carcereiro passou com o carrinho, distribuindo a ração. Notou os insistentes gemidos de João Manuel e abriu a cela. Aproximou-se e se curvou sobre o rapaz, estudando-lhe a respiração difícil, entrecortada de estertores e de gemidos.
- E não é que o gajo está a arder em febre?... - murmura o homem, apondo-lhe, demoradamente, o dorso da mão à testa. E resmunga, altamente contrariado: - Mais essa agora!... Toca a chamar-lhe um médico!...
Algumas horas depois, o carcereiro retomava acompanhado de um médico. O facultativo examina João Manuel, cuidadosamente. Chama-o Pelo nome, insistentemente, mas só obtém alguns ininteligíveis grunhidos como resposta.
-E não é que se acha, deveras, mui mal o gajo?... - exclama médico ao carcereiro que a tudo acompanhava, com bastante interesse enquanto segurava um malcheiroso archote de breu a queimar acima da cabeça de ambos, com o propósito de alumiar o serviço do outro.
-E que se há de fazer, senhor doutor Eustáquio? - pergunta o carcereiro.
-Digo-te que me parece grave, Inocêncio!... - responde, preocupado, o médico. E prossegue, enquanto remexia nos instrumentos que trouxera na maleta preta de couro: - Afirmo-te que é necessário aplicar-lhe um clisma e um vomitório!... Está febril; seu pulso bate todo desordenado; a respiração é-lhe altamente entrecortada; está -suar, abundantemente, em bicas!... Coisa grave, meu caro!... É preciso, bem depressa, expulsar do homem os maus humores1 do mal que o acomete!...
-E a sangria?... - observa o carcereiro, avivando-se (o homem adorava ver sangrias!. - Não ides sangrá-lo, não?...
-Por ora, não, Inocêncio.... - responde o médico. - Somente se o gajo piorar... Agora, entretanto, vai: avia-te, depressa, a ajudar-me!... Providencia água fervente e um balde. Vamos limpar as tripas do homem!...
-Sim, senhor doutor Eustáquio - murmura, desenxabido, o homem -, para já!...
Hora e meia depois, o doutor Eustáquio Ferreira da Fonseca limpava as mãos, enquanto observava, atentamente, o rapaz que ainda se agitava, enormemente, atacado pela febre contumaz.
- Fica de olho nele, Inocêncio.... - recomenda o médico ao carcereiro, enquanto ajeitava seus petrechos na maleta preta. - Se a febre não baixar dentro de meia hora, dá-lhe mais água de alho, aos poucos, às colheradas, ouviste bem?...
_ Mas não lhe fizestes nenhuma sangria, senhor doutor Eustáquio!... exclama, desapontado, o homem. - Como é que a febre ir-se-á?... – e arriscando: - Não achas melhor tentardes, nem que seja umazinha só?... demos-lhe, já, tanta água de alho que o homem acha-se a exalar cheiro tão forte como um lombo de porco temperado, pronto a assar-se!
- Oh, exageras, Inocêncio!... - ri-se o médico. - Além do mais, as sangrias já andam um pouquito fora de moda!... Quase ninguém mais as faz!... - e, da porta da cela, despede-se: - Adeus!... E não o deixes a sós, hein?... Ai, se ele morre em tuas mãos!... O senhor Venâncio da Silveira arrancar-te-á a pele todinha!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 7:08 pm

O médico se vai, e o homem acocora-se ao lado do catre em que se achava o enfermo.
- Vai lá, infeliz!... - murmura, tremendamente desconsolado, o carcereiro. E, olhando, demoradamente, para João Manuel, que ora se debatia no meio de sono agitado, prossegue em tom de desabafo:
- Por culpa tua, estou eu aqui a fazer seroada, sabe-se lá até quando!... Certamente, a varar a noite, cá, metido nesta toca gelada!... E a minha pobre Leonor a tiritar de frio e a esperar-me, indefinidamente, sozinha, em nosso leito!... Que maçada!... Por mim, largava-te a morrer da peste que te acomete, desgraçado!... Acaso não estás já prometido ao demo?... Que diferença faria se morresses agora ou depois?... - e, meneando a cabeça, continua: - Contudo, se morres antes da hora, pago eu o pato por ti!... Doido é quem se mete a querer entender essas coisas!... Condenam o gajo à morte e, se ele adoece, chamam-lhe um médico a curá-lo!... Depois, tratam de pendurá-lo numa forca!... Vai lá se entender a cabeça dessa gente!...
Quando o dia amanhece, João Manuel melhora sensivelmente. Encontrava-se ainda bastante depauperado, mas já conseguia sentar-se à beira do catre. O carcereiro, aliviado, dá-lhe mais uma dose de remédio.
-Agora, vê lá se não cais em outra como esta, hein?... - diz o homem para João Manuel.
-Que se passou, realmente, comigo, senhor? - pergunta o rapaz ao carcereiro que o olhava carrancudo.
- Que se passou contigo?... - responde, ríspido, o outro. - Dois esbirros trouxeram-te cá, já sem sentidos, da corte de justiça, e te largaram aí!... Quando passei, de noitinha, a distribuir a ração, achei-te deitado em teu catre, a agonizar, cozido pela febre!... Tocou-me, então, chamar o senhor doutor Eustáquio Ferreira da Fonseca, que contigo, esteve, por bom tempo, a tratar-te!... Depois, recomendou-me o doutor que passasse eu a noite aqui, ao teu lado, a vigiar-te, para que não mo resses!... Imagina só, se te vais haver com o diabo antes da hora! Sobravam umas boas para mim, não é?...
-Esteve mais alguém aqui, além do médico? - pergunta, ansioso o rapaz.
-Somente o médico e eu aqui estivemos!... - responde o homem. -E me fizeste aqui passar a noite toda a vigiar-te!... Se morrias!... Ai de mim!... E, agora que desta te safaste, vê se em outra não cais tão cedo!... E com esta me vou, que estou como um trapo!... Mal tirei uns ralos cochilos pela noite afora!... Adeus!... Fica-te aí e é bom meteres juízo cachola, ou então!...
A sós, João Manuel rememora as últimas horas em que estivera lúcido: o julgamento, a sentença à morte, o grito de Teresa Cristina... Depois, tudo se escurecera, e de nada mais se lembrava... Um nó imenso, então, do tamanho do mundo entope-lhe a garganta. Forte desejo de chorar invade-o. Deus do céu!... Teria pouquíssimo tempo de vida!... Sequer completara dezoito anos!... Era tão jovem!... Por que é que tinha de morrer assim?... Não matara Manuela*.... Não matara ninguém!... Que monstruosa injustiça estavam a cometer com ele!... Levanta-se do catre, com muita dificuldade e apanha água da moringa de terracota. Sentia um intenso gosto amargo à boca. Sabia que houvera vomitado. Tinha os músculos todos doloridos pela tremenda descarga emocional recebida. Bebe a água devagar, posto que a garganta doía-lhe enormemente. Depois, volta a sentar-se à beira do catre. Olha em derredor: as grades, as grossas paredes de pedra; os enormes matacões de granito escuro, cortados com precisão incrível, encaixando-se, milimetricamente, uns aos outros; o tecto baixo, quase o forçando a curvar-se, quando se punha de pé. Tinha a sensação de que seria esmagado, a qualquer momento, pelas enormes pedras de granito, encaixadas justas, umas às outras, milimetricamente moldadas, numa geometria perfeita, a se sustentarem reciprocamente. Condenado à morte!... Parecia-lhe ainda ouvir, nitidamente, a voz cadenciada e metálica do juiz, lendo a sentença fatal.
- Visita para ti!... - ouve a voz do guarda, chamando-o, à beira da grade.
_ Dom Eusébio!... - escapa-lhe um grito da garganta. Vim a consolar-te, meu querido!... - diz o bispo. E, voltando-se para o guarda: - Tenho a permissão do inspector-geral!... Podes abrir a cela!-
_ oh, que surpresa fazeis-me, senhor!... - diz o rapaz, lançando-se aos braços do amigo.
-Não poderia deixar de estar contigo nestas horas de difícil provação para ti, Anjinho!... - exclama o bispo, abraçando-se, fortemente, ao rapaz que desatara a chorar convulsivamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 7:09 pm

- Sei que és inocente e que a Justiça Divina ainda intervirá a teu favor!... Tenho rezado tanto por ti!...
-Oh, senhor, não sabeis o inferno em que vive a minha alma!... - diz o rapaz, entre lágrimas de desespero. - Não sabeis o que é estar na iminência de perder a vida de forma tão absurda!...
-Oh, acho que te entendo, sim, meu querido!... - diz o bispo, consolando-o. - Entendo-te, perfeitamente. Mas, vem, sentemo-nos para conversar!...
Ambos se sentam no grabato, lado a lado, e o bispo toma as mãos do rapaz e as segura, firmemente, entre as suas.
-Que bom que viestes!... - diz o jovem, tomando as mãos do prelado e as beijando efusivamente. - Que bom que viestes!... Achava-me tão aflito!... Sabíeis que ontem passei mui mal?...
-Deveras?... - responde o bispo, olhando-o nos olhos. - Bem noto que estais com as feições abatidas!... Pobrezito!... - e o aconchega, paternalmente, ao peito. - Mas, olha!... - prossegue Dom Eusébio, tomando-lhe a cabeça às mãos e o olhando à face. - Aqui não vim somente a visitar-te!... Sabias que ainda há uma saída para ti?...
-Verdade?!... - anima-se o rapaz. Um brilho, de repente, faísca em seu olhar.
- Sim!... - prossegue Dom Eusébio. - Existe a possibilidade de apelar-se para a rainha!...2 Sua Majestade poderá conceder-te o perdão, livrando-te da forca e te comutar a pena ao degredo para uma das colónias de além-mar!... Se assim o desejar, a rainha poderá salvar-te, ao menos, a vida!...
-Oh, mas como chegaremos até a rainha?... — observa o rapaz Isso não vos parece um pouco inexequível?... O palácio de Queluz afigurou-se-me sempre como lugar indevassável, intransponível!... Como pensais chegar até lá?
-Oh, querido!... - exclama Dom Eusébio, rindo-se. - A Igreja tem um poder inestimável!... Além do mais, o arcebispo Dom Agostinho Lopes de Sá é meu amigo e também o foi do teu pai!... E é um príncipe da Igreja!... Tenho a absoluta certeza de que intercederá em teu favor e nos conseguirá uma audiência com Sua Majestade!... Tu verás!... A alta nobreza - a espiritual e a temporal - costuma entender-se muito bem entre si!...
-Se dizeis que assim é... - diz o rapaz, sem muito ânimo. No íntimo, sabia como eram esses da alta aristocracia: sem pressa, cheios de orgulho até as orelhas, excessivamente temperamentais...
-Vejo que não te animaste muito com essa possibilidade... - observa o bispo, estudando-lhe as reacções.
-Na verdade, senhor - expõe ele, levantando-se, ainda um pouco trôpego, e se encaminhando para o centro da cela -, na verdade, acho que a rainha pouco se importará comigo!... Que represento eu para ela?... Nada!... Não me conhece!... Jamais estive na sala do trono, a reverenciá-la ou a reiterar-lhe fidelidade eterna, nas cerimónias do beija-mão!... Em contrapartida, Manuela e João Miguel lá sempre estiveram; a rainha conhece-os!... Não achais que penderá para o outro lado?... Além do mais, comenta-se que Sua Majestade anda meio... - e faz um gesto significativo com o dedo indicador, girando-o em pequem círculo, ao redor do lado da cabeça.
- Oh, pecas por falta de caridade, Anjinho.... - admoesta-o Dom Eusébio. - Já acolitei missas na catedral às quais Sua Majestade esteve presente e vi nela uma criatura excessivamente pia!... Devera piedosa e sofrida!... Sabias que já lhe morreram o esposo e o príncipe herdeiro à coroa?... A dor não escolhe a quem visitar, não, meu caro!..-Nem os reis dela escapam!... Além do mais, acho que tens conheci mento do terrível fantasma que ronda as cabeças coroadas... Os rei franceses estão presos... Prisioneiros do povo!... E quem garante que não lhes sucederá o pior?... O povo enfurece-se e se deslumbra com hipótese de ser ele o detentor do poder absoluto!... A plebe quer ter sua vez, quer ter nas mãos, pela primeira vez, depois de muito tempo, as rédeas, o comando de tudo, para dirigir o próprio destino!... Acha-se a desafiar o poder de Deus, e grande parte da aristocracia francesa já perdeu a cabeça, brutalmente executada em praça pública, na guilhotina!-- E eu, particularmente, acho que é a derrocada final: o mundo revolta-se qual agigantado monstro que, por séculos, dormitou apaziguado em seu covil, mas que ora desperta e se agita e, em seu violento bulício, muita coisa convelirá, e profundas modificações estão por advir!... por isso é que não culpo Sua Majestade, não!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 7:09 pm

Se a rainha acha-se altamente preocupada com os rumos que tomam as monarquias do mundo, tem ela lá as suas boas razões!... Mas, peço-te que confies!... Repito-te: ela é uma criatura piíssima e muito devota!... Confia, pois!...
-Tentarei confiar, senhor!... - diz o rapaz, percebendo que o velho amigo lutava por ele. E, voltando a aproximar-se, ajoelha-se diante do outro e prossegue, com os olhos rasos de lágrimas: - E tentarei, também, rezar...
-Justo, filho!... - diz o bispo, atraindo-o a si, paternalmente. - Justo que assim penses!... Primeiro, nossa apelação deverá ser dirigida ao Poder Maior!... Vem que me junto a ti!... Postemo-nos de joelhos e peçamos clemência por ti ao Pai Misericordioso Que a ninguém desampara!...
E, tomando o rosário que sempre carregava ao bolso do seu hábito, Dom Eusébio beija, respeitosamente, a cruz do terço, persigna-se e murmura, cheio de fé:
"Pater noster qui es in caelis,
Santificetur nomen tuum.
Adveniat regnum tuum,
Fiat voluntas tua
Sicut in caelo et in terra.
Panem nostrum cotidianus da nobis hodie.
Et dimitte nobis debita nostra
Sicut et nos dimittimus debitoribus nostris
Et ne nos inducas in tentationem
Sed libera nos a malo.
Amen. "3

E, com a voz embargada pelo pranto, o rapaz segue-lhe as palavras Aprendera a orar com as freiras, no orfanato. E, enquanto as vozes de ambos irmanavam-se na pungente oração legada pelo insigne Mestre Jesus, o Senhor da Vida, o coração do jovem foi serenando-se devagar aos poucos. E, enquanto mudava nos dedos as contas do rosário, Don Eusébio olhava-o, amiúde, com o canto dos olhos e se animava a pros seguir a reza. João Manuel ganhava um pouco de tranquilidade e, quando seus olhares cruzavam-se, ambos sorriam-se, amigos, solidários, naquele transe doloroso. O dia avançava e, pela cela húmida e semi-obscurecida pela pouca claridade, as vozes dos dois prosseguiam em seu fervoroso apelo às Forças do Alto:
"Ave, Maria, gratia plena,
Dominus tecum,
benedicta tu in mulieribus et benedictus
fructus ventris tui, Jesus.
Sancta Maria, Mater Dei,
ora pro nobis, peccatoribus,
nunc et in hora mortis nostrai.
Amen. "4

Pouco depois, terminando de rezar o terço todo, voltavam a sentar-se à beira do catre. O rapaz achava-se um pouco mais tranquilo.
-Não me faríeis um especial favor, senhor?... - pergunta o rapaz, quebrando o pequeno silêncio que se estabelecera entre eles.
-Oh, claro! - responde Dom Eusébio, a abrir-se num sorriso quase maroto. Já imaginava o que o outro lhe ia solicitar.
- Não levaríeis um recado meu à Marquesinha das Alfarrobeiras!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 7:09 pm

-Oh, já imaginava que só poderia ser isso!... - exclama, rindo-se, o bispo. E, prossegue, tomando-se sério: - Acaso ela não te tem visitado?-
-Umas poucas vezes! - responde, desolado, o rapaz. - E sempre acompanhada da mãe!... Nunca veio a sós!...
-Oh, imagino que os pais não na deixem vir sozinha!... - observa o bispo. - E, por mais arrojada que penso ser a Marquesinha das Alfarrobeiras, ainda não o é o suficiente para vir a este local sozinha, pressuponho!...
-Aí é que vos enganais, senhor!... - exclama o rapaz, rindo-se, pela frieira vez, até então. - Aí é que vos enganais redondamente!... Ela só aqui não vem, porque não lho permitem os pais!... Não fora isso, e eu vos juro que já se teria mudado para aqui há tempos!...
_ Ai, e é?!... - exclama o prelado, altamente admirado. - E em que te baseias para isso tudo afirmares com tal veemência?...
_ Por certo ainda não conheceis a fundo aquela danadinha, senhor Dom Eusébio!... - diz João Manuel, rindo-se. - A marota é capaz de coisas de que até Deus duvida!...
-Se assim é, acabas de dar-me excelente ideia!... - diz Dom Eusébio,
levantando-se, cheio de determinação. - Juntar-me-ei, então, aos Marqueses das Alfarrobeiras, para mais ainda apressar nossa audiência com Sua Majestade!...
-E desejais juntar a essa mais força ainda?... - observa o rapaz, ganhando ânimo. - Ide, também, ter com Vítor Nascimento Torres, o Barão de Leiria, que aqui conhecestes preso, dias atrás, estais lembrado?
-Por certo que sim!... - responde o bispo. - Bem lembrado!... Penso que ele também desejará ajudar-te!...
-Foi o que me prometeu ao sair daqui!... - diz o rapaz. - Acho que também poderá dar-nos boa ajuda!...
-Tens toda a razão!... Iremos, assim, todos em comissão falar com Sua Eminência, o arcebispo!... - diz o prelado, abraçando-se ao amigo. - E, para tanto, então, toca a apressar-me!... Agora, deixo-te com Deus, meu filho!... E olha lá, hein!... Reza muito e confia em Deus!... Estaremos todos a lutar por ti!...
O bispo vai-se, e João Manuel permanece a sós em sua cela. O peso do silêncio e da amargura volta a desabar sobre ele; entretanto, o desespero intenso, cruel, amainara-se um tantinho mais: havia agora uma nesga de esperança a nascer-lhe ao coração. Pequeníssima chance, mas ainda lhe restava uma. Era preciso, portanto, apegar-se a ela, com fé!...

* * * * * * *
Naquele exacto momento, em sua mansão, João Miguel exultava. No dia seguinte mesmo, através de amigo advogado de Lisboa, que estivera presente ao julgamento, ficara sabendo do veredicto imputado ao irmão. Estava contente porque sabia que, agora, seria questão de tempo: apenas alguns dias mais até que tudo se consumasse!... Final mente, seria ele o único herdeiro da fabulosa fortuna dos Barões da Reboleira!... Um património tão grande que lhe dava o direito de pertencer ao corpo de conselheiros da coroa!... E lá estaria, por certo a defender seus interesses!... Não era para isso que o conselho existira até então?... João Miguel, sentado confortavelmente numa poltrona em seu quarto, ao lado do fogo aceso na lareira, bebericava de uma taça de vinho tinto. Ia a meio o mês de dezembro, e, lá fora, a paisagem perdia-se toda na bruma pesada; o inverno gelava tudo, o mundo parecia fundir-se numa massa descolorida. João Miguel sorve um gole do vinho, estala a língua, satisfeitíssimo. Pelos seus cálculos, o irmão seria executado em meados de janeiro. Mais um mês!... Um mês e mais um pouquinho, talvez, e tudo estaria acabado para o maldito bastardo!... Abre um sorriso de pleno deleite. Ah, o miserável!... O imbecil subestimara-o e se arrebentara todinho!... "Toma, desgraçado!... Vieste colher onde não plantaste!...", pensa ele. E meneia a cabeça, enquanto se ri. Estava quase a explodir de tanta felicidade! "Terás o que aqui vieste buscar: a forca!... Essa, sim, a herança que tu mereces, idiota!..."
A um canto, duas sombras espionavam-no, cheias de sarcasmo. Era os espectros de Madalena e de Manuela.
-O infame locupleta-se com a desgraça que ele mesmo provoco ao irmão!... - cochicha Manuela, cheia de ódio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 7:09 pm

-Sim!... - concorda a outra, altamente indignada. - Mas também ele terá o que merece!...
-Oh, se terá!... - assente Manuela, com um esgar de ódio à face. - Cuidaremos para que seu tormento intensifique-se mais e mais!...
-O ordinário andou a conseguir acalmar-se um pouquinho, com a tal droga que lhe ministrou o médico, e pensa já se achar curado do que acreditava terem sido simples pesadelos a acometê-lo!... - observa Madalena cheia de ironia. - Mas, como se engana o imbecil!...
- Sim - concorda, satisfeita, a outra -, e agora já sabemos com minar-lhe mais as forças, apesar do remédio!... É só insuflar-lhe a sede para o vinho!... O álcool neutralizar-lhe-á os efeitos da droga!... E breve, não haurirá mais nenhum benefício dela e então!... poderá ingerir barris e barris de ládano,5 que mais não lhe fará efeito nenhum!... - ajunta, rindo-se, satisfeita, a antiga prostituta do cais do porto.
-E aí então, toca a deixá-lo louco!... - diz Manuela, aproximando-se do rapaz e, postando-se diante dele, grita-lhe a plenos pulmões: - Odeio-te, maldito, e tudo farei para destruir-te!...
-Quero que sintas todo o meu ódio, desgraçado!... - exclama Madalena, aproximando-se por trás do rapaz e, enlaçando-o em arrochado abraço, gruda-se-lhe, firmemente, ao longo dos centros de força,6 e passa a injectar-lhe denso e pegajoso fluido, carregado de miasmas pestilenciais, a exalarem cheiro de carne em putrefacção, além de conterem miríades de microscópicos seres astrais a pulularem como vermes em uma bicheira.
Ao sentir o contacto do asqueroso abraço que lhe dava o espírito obsessor, João Miguel passa a sentir-se mal; era como se incómodo peso, repentinamente, fosse-lhe atado, firmemente, sobre os ombros. Remexe-se na poltrona, procurando uma posição melhor. Entretanto, o desconforto persiste, tirando-lhe a tranquilidade. De um só gole, ingere todo o conteúdo da taça. Imediatamente, volta a repletá-la com mais vinho.
- Muito bem, demónio!... - exclama, satisfeita, Manuela, de diante dele. - Bebe bastante vinho!... Desejo-te embriagado!... - e postando a destra ao plexo frontal do rapaz, provoca-lhe tremendo descontrole, entupindo-o com espesso e negro fluido que, a escapar-lhe pelas extremidades dos dedos, escorre em profusão para dentro do cérebro do rapaz. E o centro de força de João Miguel que, como ágil cata-vento que, antes, girava intensamente a emitir luminescência azul-violeta, vai tornando-se, paulatinamente, obnubilado pela densa lama putrescente e fétida que fluía dos dedos de Manuela e passa, então, a girar lento, e a ténue luminescência, que antes lhe era peculiar, enfraquece-se sobremaneira, quase a se apagar totalmente. E, vendo que o rapaz deixava-se, facilmente, dominar, murmura-lhe o espírito obsessor, insistentemente, aos ouvidos: - Desejo-te louco!... Quero-te cheio de sombras, de medos e de remorsos à cabeça!...
- Esplêndido, senhora!... - brada Madalena, altamente satisfeita com a perfeição da obra que executava a sua companheira.
O rapaz passa a agitar-se, enormemente, ao contacto da mão de Manuela. Sente-se mal. A cabeça pareceu pesar-lhe, imensamente, e as têmporas principiam a latejar-lhe. Depõe a taça de vinho numa mesinha e segura a cabeça com ambas as mãos. De repente, o pensamento apresentava-se-lhe confuso. As ideias tornavam-se-lhe altamente desconexas. Insistentes lembranças de Manuela e de Madalena advêm-lhe à mente.
- Estão ambas mortas!... - murmura para si. E prossegue, a justificar-se: - Matei-as porque foi preciso!... Eu até que gostava de Manuela...
Em seguida, levanta-se e se encaminha, meio trôpego, para um aparador. Abre uma das gavetas do móvel e dela retira pequeno frasco de alabastro. Do minúsculo recipiente translúcido, deixa cair algumas gotas dentro de uma taça, e a completa com água. Depois, sorve-lhe o conteúdo todo de uma só vez.
- Perfeito!... - exclama Manuela, satisfeitíssima, a bater palmas. Encharca-te de álcool, primeiro, e depois, bebe do remédio que te receitou o médico!... A combinação ideal para que te tornes um alucinado!.. Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
- Bravo, senhora!... - exclama, contente, Madalena. - Trabalhastes muito bem!... O demónio começa a fraquejar!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 7:10 pm

Já se encontra em nossas mãos!...
João Miguel volta a sentar-se na poltrona, ao lado do fogo, altamente acabrunhado. Sentia-se muito mal; a cabeça latejava-lhe, fortemente; tinha as ideias confusas; forte sensação de remorso pelo que fizera atormentava-o, e intensa tristeza dominava-o. De repente, a vida se lhe afigurava insossa, sem quaisquer atractivos. O veneno que lhe haviam injectado os espíritos obsessores fazia o efeito desejado.
- Por ora, deixemos o remorso a roê-lo!... - diz Manuela, contentíssima, afastando-se a um canto e convidando a companheira a segui-la. - Vem, sentemo-nos aqui e conversemos!...
- Sim, senhora!... - concorda a outra, seguindo-a. - Por ora já lhe demos o suficiente!... Agora é só ter paciência...
- Paciência é o que não nos falta, não é mesmo?... - diz a outra, rindo-se e se sentando em confortável divã, que propiciava larga visão para fora do ambiente, através da ampla janela. E, altamente gentil, convida a amiga: - Vem, senta-te aqui comigo!...
Os dois espíritos ficam, por alguns instantes, em silêncio, observando a turva e fria paisagem que se descortinava lá fora através da vidraça.
-Que tempo horrível!... - exclama Manuela, quebrando o silêncio, enquanto observava a chuva fina que caía insistente, respingando e toldando a transparência do vidro da janela. - Quando estava viva, por esta época horrorosa, não gostava de sair de casa!... Ficava o tempo todo, ao lado da lareira, a ler ou a conversar comos amigos!... Agora, entretanto...
-Continuais viva, senhora!... - observa a jovem prostituta. - Só que em outra situação!...
-E que situação!... - diz a outra, olhando, fixamente, através da vidraça embaçada pelos respingos da chuva. - Como poderia supor que nós, efectivamente, não morremos?
-Pois assim é, senhora!... - concorda a antiga meretriz. - Quando estamos do lado de lá, sequer cogitamos acerca da vida após a morte!... E, ao chegar a nossa vez, somos todos pegos de surpresa!...
-Bela surpresa!... - observa, irónica, Manuela. - Vê bem o que nos sucedeu: tu e eu nos transformamos em dois monstros horripilantes!... Estamos vestidas de andrajos, de trapos!... Estamos sujas, cobertas de chagas abertas, e os vermes devoram-nos vivas!... Sinto dores horríveis, e o sangue continua a escorrer-me pelo ferimento que o demónio, covardemente, abriu-me ao peito, com seu punhal assassino!...
E como fedemos!... Deus do céu!... Este cheiro de carniça enjoa-me! O cheiro de sangue ainda entope-me as narinas!... Dá-me náuseas incessantes!... E esta lama pútrida que me cobre o corpo todo? Às vezes, penso que serei eu, primeiro, a enlouquecer!...7 -Oh, senhora!... - exclama a mocinha, tomando as mãos da amiga e as beijando ternamente. - Entendo-vos o martírio, porque sinto e sofro o mesmo que vós!... Que terrível maldição aquele demónio desencadeou sobre nós!... Éramos duas mulheres bonitas e ainda jovens, cheias de vida e de sonhos!... E o maldito a tudo interrompeu!... E acho que só me aliviarei quando o vir passar pelo mesmo que estamos nós duas a passar'
-Tens razão, criança!... - concorda a antiga Baronesa da Ajuda abraçando-se à amiguinha. - Tenho de ser forte!... Tenho de vingar-me do maldito!... Só assim, creio, terei paz!...
-E Anjinho, senhora? - pergunta a mocinha. - Ora sei que forno amigas comuns dele. Achas mesmo que acabará na forca?
-Ainda tens alguma dúvida, querida? - responde a matrona. Anjinho desta não escapa!... O maldito que nos enviou para cá está tratando de despachá-lo, também, para dele se livrar e, assim, pode rapar sozinho toda a fabulosa herança da família!...
-Pobre Anjinho!... - exclama, condoída, a mocinha. - Se soubesse o que o aguarda por aqui!...
-É. - concorda a outra. - E nada há que possamos fazer par tirá-lo desta enrascada!... O infame do irmão semeou-lhe tantas e tão bem forjadas provas ao caminho que deu no que deu!... Acabou conde nado à morte!...
- Mas que sujeitinho malvado esse João Miguel, não achais, senhora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 7:10 pm

- Se é!... Um legítimo demónio!... - concorda a outra. E, cheia de auto-censura, prossegue: - E a pensar que eu o recebi tantas vezes em minha casa!... Sabe, queridinha, acho que a ti posso confidenciar tais coisas, pois foste do ramo... Sabias que até tive um caso com ele?.. Achava-o, de início, bastante atraente!... Um airoso cavalheiro!...
- Verdade, senhora? - finge a mocinha nada saber. E pergunta aproveitando-se da brecha que a outra lhe abrira: - E com Anjinho?. Também com ele andastes a relacionar-vos?...
_ Curiosa!... - responde Manuela, rindo-se e, tocando a pontinha do nariz da outra com o dedo indicador, prossegue: - Mas, já que te contei de um, conto-te do outro!... - e, tomando-se séria, continua: - Sim, também com este!... Também com Anjinho relacionei-me!... Oh, mantivemos até longo relacionamento!... Mas, quando ele ainda era pobre -uni malandro do cais do porto -, pois te afirmo que - e abre um sorriso maroto - os do cais do porto são os melhores que há!... - e, revirando, consistentemente, os olhos, arremata: - Hum!... Os danadinhos sabem, como ninguém, mandar as mulheres às estrelas, não concordas?
- Sim, senhora!... - responde a outra, rindo-se. - Assim são eles, realmente!... Eu que o diga!...
E, a estrondosa risada de ambas espalha-se pelo ambiente. Pobres criaturas!... Mesmo premidas pela mais negra provação, achavam um momento de descontracção e, temporariamente, esqueciam-se do seu terrível tormento!... Entrementes, mais afastado, ao lado da lareira, João Miguel daquilo nada percebia. Mantinha-se sentado na poltrona, a bebericar vinho. Tinha o cenho carregado, as feições altamente taciturnas. A vida principiava a mostrar-se-lhe enfadonha e insossa. De repente e inexplicavelmente, começava a perder a vontade de viver...
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1. De acordo com a História Natural, cada um dos quatro tipos de matéria líquida semilíquida que existiriam no organismo humano e que, no indivíduo sadio, se encontrariam em equilíbrio e lhe caracterizariam o temperamento; a ruptura de tal equilíbrio determinaria o aparecimento das doenças. Eram eles: o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra-Eram muito incipientes, ainda, as práticas médicas dessa época, final do século XVIII, muitos profissionais dessa área seguiam os princípios da Medicina de Galeno e de Hipócrates. Contudo, no século XVII, William Harvey fez uma nova descoberta: o sistema circulatório do sangue. A partir daí e, paulatinamente, os homens passaram a compreende melhor a anatomia e a fisiologia, mudando os rumos da prática da medicina.
2. Referência à rainha Dona Maria I, soberana de Portugal entre 1777 e 1816
3. A oração do Pai-Nosso, em latim.
4. A oração da Ave-Maria, em latim.
5. Planta da família das cistáceas (Cistus ladaniferus), arbusto de folhas grandes, flores também grandes, brancas, terminais, geralmente solitárias, e fruto capsular tomentoso. Segrega resina aromática utilizada em farmácia por suas propriedades sedativas.
6. Sobre o assunto, discorre, magnificamente, o insigne professor Carlos Juliano Torres Pastorino, em sua obra Técnica da Mediunidade. "Correspondendo aos locais dos plexos, no físico, o corpo astral possui "turbilhões" ou "motos vorticosos", que servem de ligação e captação das vibrações e dos elementos fluídicos do plano astral - que nos envolve externamente, passando tudo à parte astral solidificada em nosso corpo - os nervos. O conglomerado dos nervos no físico produz os plexos que activam e sustentam esses vórtices com mais intensidade, ao passo que no resto do corpo, onde os nervos morrem sem formar esses nós, aparece apenas no astral a aura simples. Essa aura, ao chegar à altura dos plexos nervosos, gira com intensidade, estabelecendo verdadeiros canais de sucção ou de expulsão (redemoinhos).
Tal como exaustores ou ventiladores, que giram quando passa por eles o ar, ou que giram por efeito de um motor, movimentando o ar, assim essas "rodas" (chakras em sanscrito) giram ao dar passagem à matéria astral, de dentro para fora ou de fora para dentro. São chamados rodas porque têm a aparência de pequeno exaustor ou ventilador, com suas pás (denominadas "pétalas"), que giram incessantemente quase, já que é constante a "corrente de ar" que por elas passa."(conf.. 2ª ed. Rio de Janeiro, Sabedoria, Pág. 154) 7. Esses espíritos, por terem desencarnado de forma violenta e por manterem-se ligados ao seu algoz pelos liames do ódio e da vingança, não conseguem despertar para a verdadeira natureza do mundo extracorpóreo e, comumente, têm de suportar, como consequência disso, o vínculo com o cadáver e lhe sentir todas as fases do processo de decomposição.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui maio 02, 2024 7:10 pm

Capítulo 25 - Diante da rainha...
A sóbria carruagem negra, a ostentar o brasão da diocese estampada na porta, estaciona diante da escadaria de granito escuro. O bispo Dom Eusébio Sintra salta do carro e, por alguns instantes, admira a sólida construção em estilo clássico. Era a primeira vez que visitava os Marqueses das Alfarrobeiras. Avisados pelos criados da chegada de visita tão ilustre, os donos da casa acorreram, céleres, à porta de entrada, a receberem o importante visitante.
-Excelência!... - exclama Bárbara Dantas e Melo, genuflectindo diante do bispo. E, depois de beijar, respeitosamente, o anel da mão que ele lhe estendera, prossegue, altamente emocionada: - Quanta honra receber-vos em nosso humilde lar!...
-Senhor!... - diz Jerónimo, a seguir, repetindo os mesmos gestos da mulher. - Sede bem-vindo!...
-Minha visita será breve, senhores - diz Dom Eusébio, enquanto galgava, junto dos anfitriões, os degraus da longa escadaria que conduzia à porta de entrada. - Apenas o necessário para expor-vos assunto urgente!
Em pouco, achavam-se os três acomodados em confortáveis divãs no amplo salão de visitas.
-Pois, então, Excelência!... - fala Bárbara, enquanto oferecia a bispo pequeno cálice de licor de amêndoas. - Dizei-nos o que de nó desejais!... E, de antemão, adianto-vos que faremos tudo o que se acho ao nosso alcance!... Será sempre uma honra receber-vos em nossa casa!..
-Muitíssimo obrigado, senhora Marquesa das Alfarrobeiras! - diz o bispo, após bebericar, ligeiramente, do seu cálice de licor. - E o que aqui me traz é assunto deveras grave!... Trata-se do nosso querido Anjinho ou, se preferis, do jovem Barão da Reboleira que, como devei saber, acha-se na antecâmara do patíbulo!...
_ Sim, sim!... - exclama Jerónimo Dantas e Melo, trocando ligeiríssimo olhar com a esposa. - Estamos a par de tudo, sim, excelentíssimo senhor bispo!... - e se apressa em ajuntar, depois de certificar-se, muitíssimo bem, do que é que a esposa lhe dissera através dos olhos ("Faze tudo direitinho, hein, ou comigo te haverás, depois!..."): - Já nos predispusemos a ajudar o gajo, mas, como deveis saber, ele já se acha julgado e condenado à morte!... Acaso desejais entrar com algum recurso ao tribunal?... Se isso for, poderemos providenciar bons advogados de Lisboa...
-Não!... Não!... - diz o bispo, fazendo significativo gesto com a mão. - Disso já cuidei eu; há dias contratei uma junta de excelentes advogados, às minhas próprias expensas, mas todos os recursos por eles impetrados à Corte de Justiça foram sistematicamente rejeitados!... Nesta alçada, nada mais há a fazer!... Resta-nos, entretanto, apenas uma única e derradeira oportunidade: o perdão real!...
-É verdade!... - exclama Bárbara, demonstrando profundo interesse pelo inopinado ensejo que ora surgia. E prossegue, altamente animada: - Pois não é mesmo que me encontrava eu tão desalentada com o terrível destino que anda a aguardar o pobrezito do rapaz, que me esquecia, completamente, da perspectiva de obter-se esta derradeira vantagem a propiciar-lhe a lei de condenação à pena capital!...
-E mesmo!... - exclama o Marquês das Alfarrobeiras. - Também eu me esquecia desta possibilidade de obter-se o perdão de Sua Majestade!...
-O perdão integral, propriamente, não creio que possamos conseguir, não, senhores!... - atalha, delicadamente, o bispo, com a intenção de não lhes tolher o entusiasmo, já no nascedouro. E prossegue, expondo-lhes, racionalmente, o real sentido das coisas: - Não nos esqueçamos de que o verdadeiro culpado por este nefando crime ainda não apareceu e, além do mais, a Baronesa da Ajuda era pessoa proeminentíssima na corte!... Sua Majestade conhecia-a, pessoalmente, e não creio que irá decidir-se por agraciar o nosso menino com o perdão irrestrito!... Disseram-me que a rainha sentiu muitíssimo a morte da senhora dona Manuela!... Inda mais, a juntar-se a isso o fato de que o transe deu-se de forma tão violenta!... E, como sabeis muito bem, as autoridades costumam considerar imperdoáveis tais monstruosidades!... Entretanto, se tivermos a oportunidade de obter uma audiência com a rainha, poderemos narrar-lhe, pessoalmente, os fatos, como realmente aconteceram, e ela terá, assim, subsídios para julgar por si e, quem sabe, não poderá, num ato de extrema benevolência, comutar a pena para degredo perpétuo para uma das colónias de além-mar, ao invés da cruel execução à forca!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 11:17 am

E o que penso e o que venho propor-vos: ajuda para chegarmos até Sua Majestade e, o mais rapidamente possível, antes que se decidam por darem serviço ao carrasco, sem nem mesmo que consigamos, ao menos tentar realizar o nosso intento!... É disso que necessito, senhores!... Da união de todos nós, para obtermos, o mais brevemente possível, a audiência com Sua Majestade!...
- Tê-la-eis de nós, Excelência!... - brada Bárbara, efusivamente, como lhe era do feitio. -Tê-la-eis de todos nós!... Oh, não sabeis, senhor, a quantas anda a nossa filhinha, depois da condenação do seu amado!... Desde o dia do julgamento, a pobrezinha definha a olhos vistos!... Por nada mais se interessa; quase não come!... Vive trancada em seus aposentos, a chorar!... Não imaginais o quanto de conselhos já lhe demos, o pai e eu!... Mas quê!... Só tem o pensamento voltado àquele um que se acha encarcerado, à espera da amaldiçoada forca!... Ai, Jesus!... Que situação!... Quando o gajo morrer, penso que morrerá de dor, também, a nossa menina!... Já vistes paixão semelhante, senhor Dom Eusébio?... Eu ainda não!... Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!... Se Sua Majestade acolher a nossa súplica e decidir sobre a comutação da pena, encomendarei uma centena de missas à vossa prelazia!...
O marido olha-a com o rabo dos olhos. Sempre achara a mulher meio exagerada. E, mentalmente, faz as contas: quanto lhe custaria aquele despautério?...
-Mulher!... - cochicha-lhe ele. - Vê lá o que andas a prometer a Deus, hein?...
-Canguinhas da peste!... - cochicha-lhe ela de volta. - Até para com Deus andas a regatear, homem?... - e, alteando a voz, prossegue: - Pensando bem, a saúde e a felicidade da minha adorada filhinha vale bem mais!... Talvez mil missas, não concordais, senhor Dom Eusébio!-
-Pois não é que sim, senhora Marquesa!... - responde-lhe o bispo, rindo-se dos excessos da Marquesa e da postura patética que ora passava a exibir o esposo, diante das esdrúxulas afirmações da sua esposa.
"Essa mulher é doida!...", pensa, altamente desconsolado, Jerónimo Dantas e Melo. "Muitíssimo mais doida do que imaginava eu!..."
-Agora que estamos devidamente ajustados, senhores, vou-me!... -diz o bispo, levantando-se, resoluto. E, então, de repente lembrando-se de uma promessa que fizera, pouco antes, diante de um par de olhos pidões de um desconsoladíssimo rapaz que se achava preso e condenado à morte, faz o pedido: - Mas, antes, gostaria de ter um dedito de prosa com a vossa filhinha... Posso?...
- Oh, certamente!... - apressa-se em responder Bárbara. - Será até bom que a vejais, Excelência!... Quem sabe se não acabareis por dar-lhe uns bons pares de conselhos... Por favor, fazei a gentileza de seguir-me!...
Bárbara vai à frente, a indicar o caminho e, enquanto venciam os degraus da escada que dava ao andar superior, falava, insistentemente, sobre o comportamento da filha. O marido vinha-lhes atrás, quieto, cismarento. O bispo apenas ouvia-a taramelar, sem tréguas, e se resumia a assentir, pacientemente, com a cabeça. Vencido um trecho do corredor, acham-se diante da porta dos aposentos de Teresa Cristina.
- Dom Eusébio!... - brada a mocinha, de repente iluminando-se de expectativa, enquanto levantava a cabeça que mantinha largada sobre o travesseiro, ao ver o prelado que assomava à porta do quarto, seguido pela mãe.
O pai entra em seguida e, apanhando pesada cadeira, arrasta-a para próximo do leito.
-Fazei a gentileza de sentar-vos, Excelência!... - convida ele, indicando a cadeira ao bispo.
-Vamo-nos!... - diz Bárbara ao marido. - Deixemo-los que conversem a sós!...
-Minha menina!... - exclama o religioso, após se certificar de que se achavam a sós, ele e Teresa Cristina. - Vim cá ver-te a mando de Anjinho!...
-Verdade, Dom Eusébio?... - diz ela, arrojando-se aos braços do bispo. - Não estais dizendo isto apenas para alegrar-me, não é?
-Acaso sou eu lá homem de mentiras, menina?... - diz o prelado, fingindo alta indignação. Depois sorri e, afagando-lhe, amorosamente, os despenteados cabelos cor de mel, prossegue: - Pediu-me ele para vir ver como estavas!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 11:17 am

E vejo que andas abatida!... Estás magra e pálida!... Por que ages assim?... Fazes sofrer os teus pais que tanto te amam!...
-Eu sei, Dom Eusébio!... - diz a mocinha, com os olhos, de repente, a inundarem-se de sentidas lágrimas. - Mas, é mais forte que eu!... Se
Anjinho se for, vou-me com ele!... Que será da minha vida sem o meu amor?... Penso que não sabeis como é, senhor!...
-Sei, sim!... - diz o bispo, afagando-lhe, ternamente, os cabelos Acho que posso, sim, imaginar o quanto sofres, queridinha!... Mas, olha' - continua ele, sempre afável, buscando olhá-la nos olhos, como era do seu feitio: - Trago-te novidades!... Penso que resta ainda uma última tentativa para salvar o teu amor da morte!...
-Verdade, Dom Eusébio?... - exclama a mocinha, de repente avivando-se e se enchendo de expectativa.
- Sim!... E, para tanto, preciso da tua ajuda!... Teresa Cristina senta-se, então, à beira da cama, e Dom Eusébio
passa a narrar-lhe, pacientemente, tudo o que já houvera planejado acerca da audiência com a rainha.
-Oh, Dom Eusébio*.... - exclama a mocinha. - Rezarei, todos os dias, para que Deus ilumine nossa querida soberana e insufle bons propósitos durante a audiência!... Conheço Sua Majestade pessoalmente!... Quando completei doze anos, papai levou-me consigo à cerimónia do beija-mão!... A rainha quis conhecer-me!... Oh, Dom Eusébio, acaso vós já estivestes com ela?... É uma dama tão delicada e tão gentil!... À época, senti-a tão sofrida, entretanto!...
-Tens razão, senhorita!... - observa o bispo. - Sua Majestade é deveras criatura muito sofrida!... Já recebeu ela uma porção de sérios e duros embates do destino!... Já enviuvou, já perdeu a maioria dos filhos todos eles mortos ainda em plena juventude!...1 Além, naturalmente, d golpe que talvez lhe tenha sido o mais cruel de todos: a morte do Príncipe da Beira, conforme já sabes... Por isso é que a notaste tão triste!...
Por um pouco mais, Dom Eusébio permaneceu com Teresa Cristina Aconselhou-a, insistentemente, a ter fé, a orar muito em favor do se amado e, principalmente, para que Deus iluminasse a rainha. Doravante estaria nas mãos de Deus e na benevolência da soberana de Portugal destino que teria a vida e o amor dos dois jovens.
Quinze dias depois, no imenso salão da antecâmara da sala de auditas do sumptuoso Palácio de Queluz, três pessoas, apenas - Dom Eusébio, Teresa Cristina e Bárbara -, haviam obtido a permissão de manterem curtíssima audiência com a soberana de Portugal - dez minutos somente -, posto que a rainha achava-se altamente enferma. Como lhes custara conseguir aquela audiência!... A rainha a ninguém queria mais receber; tinha, amiúde, acessos de fúria e era necessário ser contida à força; doutras vezes, mantinha-se presa de alta melancolia, trancando-se em seus aposentos particulares, o tempo todo, ou, então, desatava a mandar rezar e, consequentemente, a assistir, na capela do palácio, a uma interminável sucessão de missas em intenção da alma do pai2 que, conforme acreditava ela, encontrar-se-ia irremediavelmente condenado aos infernos, pela conduta anti-religiosa que o rei tomara, incitado pelo governo quase autocrata que permitira que seu todo-poderoso ministro, o detestável Marquês de Pombal, tomasse, arbitrariamente, às mãos, dando-lhe o soberano português amplos e quase irrestritos poderes para tomar decisões tidas como importantíssimas pela soberana, qual o foi a da expulsão dos padres Jesuítas de Portugal e, consequentemente, estendendo tal procedimento também para todos os domínios lusitanos de além-mar. Maria jamais perdoara ao pai por ele ter permitido - e também que com isso fosse conivente! - que Pombal houvesse cometido o que ela considerava abominável sacrilégio!... Era notório que Maria de Bragança detinha temperamento frágil e altamente impressionável, fato de que se valiam os interesseiros que lhe estavam bem próximos e que disso se aproveitavam para tirar vantagens pessoais, facilmente manipulando a débil força de vontade da rainha bem como seu excesso de credulidade! E, como consequência de uma sucessão de infaustos acontecimentos que a haviam atingido, directamente, pelos últimos anos, a soberana portuguesa vinha apresentando graduais sintomas de demência, terrível doença, que lhe tirava a razão, incapacitando-a para gerir e administrar, eficazmente, o poderoso e rico império que, à época, era Portugal.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 11:18 am

A rainha enlouquecia e, no mais das vezes, o filho João3, o único que lhe restara vivo, é quem, paulatinamente, ia substituindo-a, à frente das questões de estado, e, aos poucos tomava as rédeas do governo, como regente. Não que o príncipe João se achasse plenamente preparado para assumir o governo; nem se encontrava apto para absorver tamanha responsabilidade e nem no fundo a desejava!... Entretanto, a necessidade obrigara-o a isso; sempre fora considerado o segundo na linha de sucessão; porém, a fatalidade tolhera-lhe o irmão mais velho - o verdadeiro que fora preparado, desde a infância, para exercer tal mister -, mas que fora morto, ainda jovem acometido de varíola. Essa era a dura realidade por que passava o Estado Português à época.
Excepcionalmente, naquele dia, a soberana portuguesa deixaria seus aposentos, às instâncias do seu médico4, que lhe ministrava tratamento constante,5 tentando auxiliá-la a vencer a terrível moléstia. O secretário de estado mais uma ou duas pessoas, apenas, achavam-se no luxuoso saguão. Naquela fria tarde de inverno, não havia a costumeira agitação na antecâmara de audiências, onde comummente, algumas centenas de pessoas comprimiam-se, fazendo constante e incessante vigília, com o único propósito de se acharem próximas do poder maior!... Eram os habituais louvaminheiros, sempre à espreita, para serem os primeiros a abocanhar as migalhas quê sobejavam da farta mesa dos poderosos!... A espera, no salão, os três que seriam ouvidos pela soberana achavam-se altamente ansiosos.
_ Que pensais, senhor Dom Eusébio! - pergunta Bárbara quase a
desfalecer de apreensão. - Credes, firmemente, que a rainha conceder-lhe-á o perdão?
Não sei, senhora marquesa - responde o prelado.
- Mas, tenhamos fé!... Sou um homem de muita fé!... Primeiramente, confiemos em Deus e em Sua infinita misericórdia!...
- Tendes razão!... - concorda a mulher. E se voltando para a filha que se mantinha calada, cismarenta: - E tu, meu tesouro?... Nada disseste até agora!... Vieste caladinha pelo trajecto todo e calada manténs-te até agora!...
A mocinha limita-se a abrir um sorriso triste para a mãe. Tinha as feições descoradas, os lábios brancos, os olhos infinitamente tristes. Neste comemos, o secretário de estado, após confabular, ligeiramente, com uma das damas de companhia da rainha, aproxima-se do pequeno grupo.
- Sua Majestade já se encontra na sala de audiências!... - comunica-lhes o homem. - Entretanto, dado ao estado de saúde da rainha, suplico-vos: sede brevíssimos!... Nada de insolências!... Não se tolerará o mínimo de abuso!... Somente o indispensável!... Deixai que Sua Majestade fale primeiro, que fale o que desejar e, principalmente, não na interrompais e em nada insistais, sob hipótese alguma!...
- Perfeitamente, senhor Conde d'Argolos!... - responde Dom Eusébio, fazendo ligeira reverência. - Ficai sossegado, que assim faremos!...
O secretário de estado faz um significativo sinal com a cabeça, e dois valetes abrem a imponente porta que separava os dois salões.
- Fazei o favor de seguir-nos - convida o secretário de estado. No amplo e requintadíssimo salão de audiências, pequeno séquito
fazia companhia à rainha. Sentada em pesadíssimo cadeirão de madeira escura, altamente trabalhado em alto-relevo e estofado em veludo verde-musgo, Maria de Bragança mantinha conversação, em voz baixa, com uma de suas damas de honor. Aparentemente, a rainha ignorava a presença dos três, que se sentiram, momentaneamente, intimidar. Alguns segundos mais de tensa espera, e a soberana volta-se Para os três e lhes faz significativo gesto com a mão, incitando-os a aproximarem-se.
Dom Eusébio adianta-se e, fazendo longa e respeitosa reverência, Põe-se de joelhos e beija a mão que a rainha estende-lhe. E, fato contíguo, Por ser extremamente religiosa, a rainha também faz ligeira reverência e, tomando a mão do bispo, beija-lhe o anel. Em seguida, aproximam-se as duas mulheres e, uma por vez, fazendo longa mesura, beijam a mão que a rainha estende-lhe.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 11:18 am

- O que desejais de Nossa Graça? - pergunta, a seguir, a soberana de Portugal.
Todas as pessoas ali presentes acompanhavam, com profundo interesse, a súplica que se faria à rainha.
- Clemência, senhora - diz Dom Eusébio, sem olhar para o rosto da rainha, como era do protocolo. - Temos a suplicar a Vossa Majestade clemência para um condenado à morte!...
- A quem se destina tal pedido de clemência que faz Vossa Excelência?... - pergunta a rainha.
- Ao jovem Barão da Reboleira, Majestade!... - diz Dom Eusébio. - E réu condenado de morte pelo crime de pretenso assassinato da senhora Baronesa da Ajuda, dona Manuela Albuquerque e Meneses!...
Um quase abafado rumorejo geral percorre o pequeno séquito da rainha. Depois, frio e duro silêncio estabelece-se, enquanto a soberana pareceu cogitar por instantes.
- E por que entendeis, Excelência, que devamos conceder o nosso perdão a este homem? - diz, depois, a rainha, com a voz gelada e cortante como uma navalha. - Acaso não se trata de abominável assassino que, assaz covardemente, tirou a vida a tão gentil e graciosa dama de nossa relação como o era a excelente senhora dona Baronesa da Ajudai...
- Perdão, Majestade, por nossa ousadia - observa Dom Eusébio, súplice -, mas, se mo permitis Vossa Graça, o réu era nosso protegido, criado mesmo, em apropriada estância da diocese e não no cremos o autor de tão monstruosa tragédia!... Por certo, outro deverá ser o falaz assassino!...
Depois de ouvir o lacónico relato, Maria de Bragança fixa o vazio. Era patente a palidez que ostentava às feições: profundas e negras olheiras circundavam-lhe os olhos encovados, quase vidrados, mortiços e aparentemente inexpressivos. Trazia o rosto duro, frio como uma pedra. Entretanto, ela nada disse de imediato; permaneceu algum tempo em silêncio absoluto, como se meditasse profundamente. Era intensa a perspectiva de todos, ali, pelas palavras que ela proferiria em seguida; delas dependeria, exclusivamente, a vida ou a morte de um homem. A rainha, porém, premeu, ainda mais fortemente, os lábios que já trazia finos, descoloridos e apertados, como dois riscos quase retos, a marcarem-lhe o profundo desalento que lhe ia à alma. Seus olhos, de repente, acendem-se num estranho brilho. E, então, de súbito, levanta-se, toma com a mão o riquíssimo xale negro que lhe cobria, desde a nuca e que, descendo, envolvia-lhe os ombros, e, com um gesto brusco, arranca-o de si e o atira, violentamente, ao chão!... Depois, crispa as mãos e as contorce, num tremendo espasmo nervoso.
- Maldito, desgraçado!... - grita a rainha. - Aí estás de novo!... Príncipe das trevas!... Demónio!... Arreda-te daqui!... Deixa-nos, esconjuramos-te!... Sai, ordenamos-te!... A forca!... A forca com o demónio!... Assassino!... À forca os assassinos todos!...
- Majestade, não!... - grita Bárbara, que até então se mantinha, respeitosamente, a certa distância, ao lado da filha e, num ato de extrema coragem, atiçada pelo desespero, quebra o rígido protocolo imposto e, lançando-se aos pés da soberana que se contorcia toda, presa de terrível ataque de histeria, prossegue: - Por Deus do céu, não!... Ele é inocente!...
- Ai, que ele queima nas profundas do inferno!... - continuava a rainha aos berros. - Ai, que ele é um monte de cinzas!...6 Ao inferno!... Ao inferno, os assassinos!...
- Não, por Deus!... Não!... - grita Teresa Cristina, sentindo-se desfalecer.
Dom Eusébio apara-a no exacto momento em que iria desmaiar. Bárbara continua a sua súplica, de joelhos, diante da rainha, mas os valetes, a um sinal do secretário de estado, fazem-na levantar-se e, literalmente, arrastam-na para fora da sala de audiências. A rainha, tomada de intensa crise de histeria, é socorrida pelo médico e pelas suas damas de companhia que conseguem, a custo, fazê-la retomar aos seus aposentos.
-À forca!... À forca!... - ouviam-se os insistentes gritos da soberana de Portugal, ecoando pelos corredores do palácio, enquanto a conduziam, dificultosamente, de volta aos seus aposentos.
Dom Eusébio olha, desolado, em redor. O salão de audiências, de repente, esvaziara-se. Ainda sustentava Teresa Cristina aos braços. A mocinha tremia e emitida fracos gemidos. Era patente, também, a sua falência. Tudo acontecera tão depressa!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 11:18 am

- Pobre senhora!... - murmura o bispo, baixinho, enquanto os gritos da rainha perdiam-se a distância. Depois, literalmente a carregar a mocinha aos braços, prossegue: - Que Deus se apiede da sua alma!...
Pouco depois, de volta para casa, no carro, Dom Eusébio achava-se desgostoso. E, altamente triste, passeia os olhos pelas duas mulheres que com ele viajavam. Custara-lhe convencer Bárbara e a filha a não retornarem, imediatamente, para Sintra, mas que, antes, recobrassem a tranquilidade, passando pela mansão episcopal. Teresa Cristina abraçava-se à mãe e soluçava inconsolavelmente. Dom Eusébio emite fundo suspiro. Fora, de facto, um duro golpe para todos!... A derradeira esperança para João Manuel perdera-se; desvanecera-se, completamente, no ar, com a loucura da rainha!... Que destino cruel, Deus do céu, estava reservado ao rapaz!... Ainda na flor dos anos e, o que era pior: morreria inocente!... Tinha a plena certeza de que o seu menino trazia as mãos limpas do sangue de Manuela!... Sabia que, depois que ele deixara a protecção do orfanato, vivera pelas ruas; mas se achava crescido, saberia como se arranjar pela vida afora!... E, o mais importante: João Manuel recebera educação religiosa; as freiras do orfanato, certamente, haviam lhe ensinado sobre Jesus, sobre o Evangelho!... Sim, era praxe criarem-se os órfãos, ministrando-lhes, sistematicamente, o catecismo!... E sabia, também, se bem conduzidos, o quanto os fundamentos religiosos podem arraigar-se pela personalidade em construção, a moldar-lhe, indelevelmente, o carácter para sempre!... Anjinho tinha Deus no coração, sentia-o!... Dom Eusébio preme, fortemente, a fronte com os dedos. As têmporas principiavam a martelar-lhe. Certamente, consequência do alto estado de ansiedade a que se submetera, pouco antes!... Tudo saíra errado!... Entretanto, jamais poderia supor o quanto a rainha achava-se doente!... Bem que não lhes queriam conceder a audiência!... Mas, tinham insistido tanto; haviam colectado tantas assinaturas de pessoas tão eminentes no reino, que o Palácio de Queluz resolvera acatar-lhes as súplicas para uma audiência com a soberana!... Bem que lhes a' saram que a rainha não se achava bem!... Mas, que fazer?... Tinham tentar!... Era a derradeira esperança que lhes restava!...
A carruagem corria célere pelas mas de Lisboa. O bispo olha pela janela do coche. Chuva fininha e insistente caía, molhando tudo, enregelando todos os que se atreviam enfrentá-la. Bárbara mantinha os olhos baixos; percebia-se que chorava; a filha, altamente pálida, abraçava-se à mãe. A curtos intervalos, os soluços sacudiam-na violentamente. Dom Eusébio emite novo e profundo suspiro. A ele caberia levar o triste resultado da malfadada audiência a João Manuel!... A derradeira esperança esvaíra-se como fumaça ao vento!... Deus do céu!... Que triste incumbência seria aquela!... Talvez a pior que recebera em toda a sua existência até então!... Silente prece pelo rapaz advém-lhe, então, à mente: "Senhor, tende misericórdia, apiedai-Vos desta pobre criatura!..."
Ligeiro solavanco indica que a viagem chegara a termo. Em pouco, solícito, o cocheiro já lhes abria a porta do carro.
- Fazei a gentileza, senhora Marquesa das Alfarrobeiras!... - diz Dom Eusébio gentil. - Uma taça de vinho dar-nos-á um pouco de ânimo!...
- E Anjinho, senhor Dom Eusébio!... - pergunta Bárbara, pouco depois, já acomodados os três em ampla sala de estar da mansão episcopal. O padre-mordomo servira-lhes, pouco antes, taças de capitoso vinho tinto. - Como lhe daremos as malfadadas notícias?...
- Disso cuidarei eu mais tarde, senhora marquesa - responde o bispo. - Para tal, haverá que se tomar muito cuidado!...
- Sim, senhor Dom Eusébio - concorda a mulher -, tendes toda a razão!... Ninguém, neste mundo, melhor que Vossa Excelência a levar a termo tal difícil empreitada!... - e, depondo a taça de vinho que segurava e da qual mal sorvera diminuto gole, retoma o intenso choro, a fazer coro, juntamente com a filha que, desde o palácio, não parara de chorar. E, lamentando-se, grandemente, prossegue: - Ai, coitadinho!... Que será dele?... Ai, Jesus Cristo!... Não aguentarei vê-lo enforcado!... Ai, que tristeza!...
Dom Eusébio olha para as duas mulheres, altamente desconsolado. Também ele se achava muito triste, mas que fazer?... Agora tudo lhe fugia ao controle. No íntimo, desconfiava de que João Miguel poderia ter planeado tudo aquilo!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 11:18 am

Mas, daí a fazê-lo confessar a autoria de tal monstruosidade seria totalmente impossível: seria exigir-lhe que se condenasse à morte, livrando o irmão!... "Ah, João Miguel!...", pensa o bispo. "Se, realmente, foste tu a engendrar tal monstruosidade para com o teu irmão, muito caro pagarás por isso!..."
A noite já se avizinhava, e as duas mulheres partiram, finalmente, de volta para casa. A sós em seu gabinete, Dom Eusébio rezava e se preparava para levar a triste notícia ao rapaz. De joelhos em seu oratório, o bispo murmurava sentida prece: "És um dos meus filhos do coração!..." diz ele, baixinho. "Quis Deus que nesta minha vida, fosse eu o pai de uma infinidade de meninozinhos perdidos e enjeitados!... E tu, por um bom tempo, também foste o meu menino!... Pena que muito pouco reparei em ti, senão teria descoberto quem, na realidade, eras!... Mas, quem de nós poderá, acaso, entender os desígnios de Deus?... Que devias tu para a Vida, para que ela de ti cobrasse tanto assim?... Oh, Jesus, dai-me a força suficiente para levar àquele pobrezito a terrível notícia!... "
Depois de se entregar, profundamente, à oração, Dom Eusébio levanta-se e, resoluto, deixa o oratório. Precisava executar tão difícil e tão terrível tarefa ainda naquela noite...
______________________________________________________________________________________________
1. Referência à morte de seu marido, D. Pedro III (1786), rei consorte de Portugal; de s filho, o príncipe herdeiro José, Príncipe da Beira, morto aos 26 anos (1788), vítima de varíola, e da sucessão de mortes dos demais filhos, em plena juventude: João (1763), Mana Clementina (1776), Maria Isabel (1777) e Mariana Vitória (1788).
2- Referência a D. José I (6 de junho de 1714 - 24 de fevereiro de 1777), de nome completo José Francisco António Inácio Norberto Agostinho de Bragança, cognominado O Reformador, devido às reformas que empreendeu durante o seu reinado, juntamente com seu ministro, o Marquês de Pombal. Foi Rei de Portugal da Dinastia de Bragança, desde 1750 até à sua morte.
3. Referência a D. João Vi (1767 - 1826), baptizado João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís António Domingos Rafael de Bragança, cognominado O Clemente, foi Rei de Portugal entre 1816 e a sua morte. Segundo dos filhos de D. Maria I de Portugal e de seu tio Pedro III, tornou-se herdeiro da coroa como Príncipe do Brasil e 21a Duque de Bragança, após a morte do irmão mais velho, José, o sucessor natural ao trono português, em 11 de setembro de 1788, vitimado pela varíola.
4. Referência a certo Dr. Willis, também médico do rei George III, de Inglaterra, que especialmente viera de Londres, com a finalidade de tratar Maria de Bragança, mas que nenhum sucesso obtivera junto à soberana portuguesa, devido às circunstâncias de absoluta insipiência ainda se constituir a psiquiatria dessa época.
5. Como a medicina e a farmacopeia do final do século XVIII eram ainda muito incipientes, a rainha Dona Maria I recebia do famoso médico inglês tratamento singular - os remédios evacuantes -, a lhe provocarem constantes diarreias, crendo assim, que tais medicamentos, pretensamente, limpar-lhe-iam os "maus humores" da doença, através da evacuação!... Ressalte-se que o próprio doutor Willis, famoso médico do rei George Inglaterra, também enlouqueceu, a partir de 1788...
6. Acreditava a rainha que o pai, o soberano português D. José I, por ter expulsado os Jesuítas do reino, fora castigado e que, consequentemente, queimaria nos infernos e, nos ataques de histeria que ela manifestava, pretensamente via-o calcinando numa imensa fogueira e se tornando um monte de carvão e de cinzas; certamente tudo isso sendo fruto a crença ortodoxa que a soberana portuguesa mantinha no catolicismo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 11:19 am

Capítulo 26 - Executa-se um condenado
A densa escuridão da noite já tomava, completamente, os tétricos corredores da cadeia pública de Lisboa, quando Dom Eusébio pára diante das grades da cela de João Manuel.
- Tens visita, prisioneiro!... - grita o carcereiro.
O rapaz achava-se recolhido em seu pobre leito, encolhido sob ralo cobertor a defender-se da alta umidade reinante no ambiente, totalmente falto de calefacção e sujeito à plena acção do frio intenso. Naquele exacto momento, João Manuel cochilava e, desperto pela voz do carcereiro, agita-se, movendo, vagarosamente, os membros para desentorpecê-los do enregelamento em que se encontravam. Depois, senta-se no catre e aperta os olhos para acomodá-los à forte penumbra reinante. Em seguida, estremunhado e trôpego, encaminha-se para as grades.
- Sou eu, Anjinho!... - anuncia-se o bispo. - Preciso falar-te!...
- Dom Eusébio!... - exclama o rapaz, tomando-se de intensa ansiedade.
E, aproximando-se mais da grade, sonda o rosto do querido amigo. A fraca luz da lanterna que o carcereiro trazia à mão não era suficiente para clarear as feições do prelado que não passavam de pálido borrão; impossível, portanto, sondar-lhe, de pronto, a fisionomia. E, num ato de profundo desespero, o rapaz toma as mãos do bispo e as aperta forte.
- Oh, querido!... - murmura o religioso, com a voz embargada pela alta emoção e lhe apertando, também fortemente, a mão.
- Por Deus, senhor!... - brada João Manuel, trémulo pela enorme excitação que lhe consumia a alma. - Que notícia trazeis-me?
Dom Eusébio, por sua vez, aperta-lhe a mão mais fortemente ainda. E, voltando-se, ordena, com a voz firme, para o carcereiro que se mantinha impassível, ali ao lado, segurando a lanterna:
- Abri a porta da cela, por gentileza!... Tenho muito a conversar c o prisioneiro!...
- Por Deus, senhor!... - implora o rapaz, atirando-se aos braço» amigo. - Não suporto mais!... Dizei-mo, por piedade!...
- Tem paciência, meu filho!... - diz o bispo, fazendo-o sentar-se aa seu lado no catre. O carcereiro retirara-se e houvera deixado a lanterna às mãos de Dom Eusébio que a depositara ao chão, bem próximo de ambos. A fraca luz amarelada dançava, projectando formas grotescas às paredes de pedras da cela. - Tem paciência, meu querido!... - pros. segue ele, abraçando-se forte ao rapaz.
- Já sei, senhor!... - diz o jovem, de repente, agitando-se, enormemente, e, desvencilhando-se, bruscamente, dos braços do amigo, levanta-se e se põe de pé diante dele: - Estais a fazer rodeios, porque a rainha não me concedeu o perdão, não é?... Ah, eu sabia!... - prossegue ele, tomando-se de extremo desespero. - Ah, eu pressentia tal desdita, pela vossa demora em voltar!... Tanto que me cansava e já dormia!... Oh, Deus do céu!...
- Mantém-te calmo, Anjinho!... - diz Dom Eusébio, levantando-se e tentando tomá-lo pelas mãos. - Sei o quanto tudo isto te é cruel!... Mas é a vontade de Deus!... Tens de aceitá-la!... Sabes, perfeitamente, que fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para livrar-te de tão abjecto fim!... Contudo, sobreveio-te, unicamente, a fatalidade!... Sei que não o mereces!... Mas a rainha acha-se mal!... Não se encontra em condição de nada julgar!... Sinto dizer-te isto: mas a soberana de Portugal encontra-se demente!... Que fazer?... Se estivesse em seu juízo perfeito, sei que nos teria ouvido as argumentações que tínhamos a teu favor!... Entretanto, sequer nos quis escutar!... Lançou-te, sim, mais anátemas à cabeça, misturando o teu caso com outras fantasias que lhe dançam aos miolos!... Que se há de fazer?... Confiar em Deus e rezar!...
- Deus?!... - grita o rapaz, com alta dose de escárnio à voz. E, explodindo em choro intenso, prossegue, com as palavras molhadas pelas lágrimas de desespero: - Deus, senhor Dom Eusébio!... Onde é que se acha Ele neste momento?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 11:19 am

Ocupado demais, talvez, para ouvir as suplicas que Lhe venho fazendo todo esse tempo!... - e, abrindo um riso nervoso: - Ou andará Ele a proteger as rainhas loucas e os bandidos como João Miguel a quem nada de mal acontece?... Ao diabo, com todas essas asneiras!...
- Oh, não peques pelo sacrilégio, Anjinho!... - exclama o bispo, tomando-o pelos ombros. E, com os olhos a inundarem-se de lágrimas, prossegue, cheio de tristeza: - Não desejaria jamais ter ouvido a profanação do Nome Divino pelos teus lábios!... Não por ti!... Ah, não sabes o quanto magoas este meu velho coração, ao dizeres tais coisas abomináveis!...
- Que desejaríeis que eu dissesse, então, senhor?... - grita o rapaz, de repente, tomando-se de raiva extrema. - Que Deus sempre olhou por mim?... Que Ele me foi sempre magnânimo e justo como sempre me ensinastes e também as freiras que me educaram em vosso orfanato?... Oh, não, Dom Eusébio, sinto muito, mas agora me cansei!... Deus nunca foi bom para mim!... Nunca me foi justo!... Ao contrário!... Castigou-me, mesmo quando ainda era um bebezinho de colo, a lançar-me à orfandade forçada!... Que culpa tinha eu?... Vamos lá!... Dizei-me do alto da vossa sabedoria!... Que culpa carregava eu, se ainda era um inocente de toda a sordidez deste mundo?... Que espécie de justiça é essa que castiga criancinhas recém-nascidas?... Vamos, respondei-me, senhor!... Que havia eu, já, em tão tenra idade, feito de mal?...
- Oh, entendo-te, perfeitamente, a dor e até mesmo a revolta, a carcomer-te, fundo, a alma, meu filho, mas não o sacrilégio!... - diz Dom Eusébio, altamente entristecido com a reacção do rapaz. - Entender-te-ia tudo, menos o culpares Deus pela tua desdita!... Quem somos nós a julgá-Lo?... Não, querido!... A tua dor, neste momento, é também a minha dor!... Sem mais nem menos!... Estou a sofrer por ti o quanto tu estás a sofrer por ti mesmo!... Em igual intensidade, porque te amo como ao filho que não tive!... Por isso é que - como a todos os demais a quem ajudei a criar -, elegi-te, também, como filho adorado do meu coração!... Que pai não estaria, neste momento, a ter as fibras do peito arrancadas, uma a uma, sabendo o filho condenado à morte, ainda em tão tenra idade?... Oh, sim!... Sofro igualmente como tu!... Sofro, sim, como tu, Anjinho, e estendo este meu sofrimento ao Criador!... Acaso não é Ele o teu Pai Maior?... Como é que pensas sentir-Se Deus neste momento?... Feliz, sabendo ter um filho condenado à morte?...
- Mas, nada faz Ele para livrar-me da forca!... - responde o rapaz, cheio de revolta.
-Oh, meu querido!... - diz Dom Eusébio, tomando-o aos braços. -Acaso achas ser Deus o responsável pela tua condenação?... Oh, como te enganas!... Digo-te com toda a certeza deste mundo- conde naram-te à morte os homens!... A maldade dos homens condenou-te' Não Deus!...
João Manuel nada responde, diante dos argumentos do outro. Apenas, deixa-se envolver mais e mais pela intensa dor. Dor extrema inominável, que mais doía pela injustiça, pela impotência de nada poder fazer para defender-se, para provar a todos que era inocente daquele crime!... Soluços intensos, profundos, a brotarem-lhe lá do mais recôndito do peito, sacodem-no, violentamente, e ele, então, sente as pernas tremerem, incontrolavelmente, que, fraquejando, não mais lhe conseguem suster o corpo; seus joelhos dobram-se, e ele tomba, fragorosamente, sobre o frio piso de pedras da cela. Dom Eusébio tenta, inutilmente, ampará-lo com as mãos, mas não consegue. O rapaz, então, tomado de intensa crise nervosa, agita-se e rola ao chão e, arrebatado pelo desespero extremo, lanha-se todo com as unhas.
- Oh, Deus do céu!... - exclama o bispo, ajoelhando-se ao lado do rapaz, procurando socorrê-lo. - Anjinho!... Não entres, assim, em desespero, meu filho!... Sei que te é penosa por demais esta terrível provação, mas que te resta, senão enfrentá-la?... É o teu destino!... Tanto lutamos para mudá-lo, entretanto o que pudemos, de fato, fazer?... Acaso conseguimos demover um só ponto de tudo o que certamente te reservou a suprema sabedoria do Criador?...
-Ah, maldita vida!... Maldita vida!... - gritava o rapaz, contorcendo-se todo em patente estado de histeria. - Por que tive eu de correr atrás dos desgraçados?... Que se danassem com a sua riqueza!... Bem que eu não os queria conhecer!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 11:19 am

Ao diabo com todos eles!... Melhor fora a rua, a miséria extrema!... Nada tinha de meu, mas eu era feliz!... Era livre!... Era dono da minha vida!... Não tinha desumanos assassinos a culparem-me por seus actos ignóbeis!... Oh, desdita cruel!... Maldito o dia em que pus meus pés naquela casa!... Malditos todos eles!... Odeio-os!... Oh, como os odeio!... Odeio-te, João Miguel!... Foste tu que me lançaste à forca, sem o mínimo de comiseração!... A mim, que sou o teu irmão!... Monstro!... Demónio!... Oh, odeio-te!... Odeio-te, com toda a força da minha alma!...
E, uma sucessão de gritos pungentes ouviu-se, ferindo, tristemente, o pesado silêncio que, costumeiramente, abatia-se sobre as celas da cadeia pública de Lisboa. Extremamente condoído, Dom Eusébio ajoelhara-se ao lado do rapaz, atraindo-o aos braços. Era preciso ampará-lo durante as intermináveis horas daquele terrível transe que ia à Ama do pobrezinho!...
_ Chora, querido!... - diz o bispo, aconchegando o rosto do rapaz ao eito. - Chora até não mais poderes!... Bota fora todo este inferno que te calcina a alma!... Urra!... Grita!... Tens o direito de vomitar toda a rua revolta e, se o mundo não te ouvir, ouvir-te-ei eu!... Chora, criança!... Esvazia o teu peito desta dor descomunal!... Oh, como te entendo esta dor!.-- Como te entendo!... E não te deixarei só; contigo estarei por todas as horas deste terrível tempo que ainda te resta sobre este mundo pejado da insana maldade de homens de corações duros como pedra e mais cruéis que os mais sarcásticos dos demónios!... Entretanto, contigo estarei, não te abandonarei jamais!... Olha, que choro e sofro contigo!... Misturo minhas lágrimas às tuas, porque me és o filho do coração!...
O bispo, a seguir, eleva seu pensamento ao Criador e principia a murmurar sentida prece. O rapaz, então, passado o furor da altíssima descarga emocional, sente-se amolecer - consequência dos pesados estímulos nervosos a que se submetera com a explosão das emoções, a custo, contidas refreadas no imo da sua alma. Dera, por fim, evasão a tudo que lhe entupia o peito. Depois da fremente explosão de intensa revolta, sua voz enrouquecera; tinha os músculos trémulos e flácidos, e apenas fraco soluçar sacudia-o amiúde.
- Vem, Anjinho - convida-o, amorosamente, Dom Eusébio. - Está muito frio o chão. Toca a deitar-te que te será melhor!... Vem, que te ajudo!...
Em seguida, através de pesado esforço, o bispo consegue auxiliar o rapaz a acomodar-se ao leito. João Manuel tremia, mais pelo descontrole emocional que, propriamente, pela inclemência do ar cortante e gelado da masmorra. O prelado ajeita-lhe a rala coberta ao corpo e se me senta ao lado, tomando-lhe as mãos.
-Agora, procura dormir - diz-lhe o bispo, paternalmente. - Dorme, que velarei por ti!... Prometo-te que não arredarei pé daqui!...
Aos poucos, o sono assenhoreia-se de João Manuel. As terríveis descargas emocionais quebravam-lhe as resistências e ele, finalmente, dormiu. Dom Eusébio, ainda lhe segurando as mãos, murmura sentida Prece, enquanto lhe olhava o rosto. Rosto que, embora jovem e mesmo a dormir, achava-se contraído em fundo e expressivo esgar; eram contracções de dor a patentear-lhe o intenso desencanto que lhe devorava impiedosamente, a alma. João Manuel finalmente dormia... Dormia e se agitava, e se mexia, e emitia fundos e lúgubres gemidos...
Dom Eusébio vigiava-lhe o agitado sono. Velava, pacientemente, pela noite fria e rezava... Em derredor, apenas a densa penumbra. A mortiça luz da lanterna, já quase a apagar-se, projectava uma porção de dançantes sombras fantasmagóricas às grossas paredes de granito escuro.

* * * * * * *
Três dias depois, no pátio interno da cadeia pública de Lisboa, um patíbulo erguia-se. O céu achava-se plúmbeo, carregado de nuvens baixas e escuras. Um ventinho gelado soprava insistente. Marcaram a execução de João Manuel para as primeiras horas da manhã daquele dia. Reduzido grupo de pessoas achava-se acomodado em cadeiras, a formar singela plateia, convidada a assistir à tétrica aplicação da pena capital ao pretenso assassino de Manuela Albuquerque e Meneses. E, ostensivamente plantado, bem no centro do agigantado estrado achava-se o poste da forca, com seu lúgubre braço horizontal, a segurar o laço pendente que, sinistramente, balançava-se, impulsionado pelo vento cortante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 03, 2024 11:19 am

As pessoas aguardavam em pesado silêncio. O contacto com as coisas da morte costuma assustar até os que se consideram mais fortes e mais corajosos. Na primeira fila, entre outros, sentados achavam-se os Marqueses das Alfarrobeiras, Jerónimo e Bárbara; também Vito Nascimento Torres, o Barão de Leiria, o mais novo amigo do condenado, que ali estava, pensativo e grave. Havia pouco, escapara ele de condenação semelhante e, por isso mesmo é que se empenhara tanto, juntamente com outros, para tentar livrar o novo amigo daquela infame condenação que, mesmo em nada resultando tanto empenho empregado, desejava, ao menos, dar ao outro o apoio moral até seus derradeiros momentos neste mundo. Vítor gostara de João Manuel, desde os primeiros contactos que tiveram, quando se acharam presos juntos, numa das celas da cadeia pública; sentira, no novo amigo, pessoa de bons propósitos e, imediatamente, decidira-se por lutar por sua liberdade. Luta inglória, batalha perdida, mas lutaram!...Das antigas amizades de João, entretanto, apenas Mestre Branquinho ali estava; os demais por medo ou até mesmo por receio de se acharem tão próximos das autoridades, preferiram não arriscar e permaneceram longe, apesar de se acharem tristes pelo malfadado destino que se reservava ao antigo companheiro dos tempos das ruas do cais do porto. Poucos eram os amigos do condenado, na verdade. Também presentes à execução estavam o marido, os irmãos e muitos dos antigos amigos da assassinada.
E, enquanto se aguardava o tétrico espectáculo, ali próximo, na cela, preparavam o condenado para a execução: um barbeiro houvera-lhe, de antemão, raspado os cabelos e a barba, deixando-lhe a cabeça totalmente pelada. Depois, o carcereiro, ordenando que se despisse das roupas e que também se descalçasse das botas, fê-lo envergar longa túnica de serguilha. Em seguida, saiu e o deixou a sós com Dom Eusébio que, durante a maior parte do tempo, ali estivera a consolá-lo, por aqueles dias todos que antecederam o da execução. O rapaz, inexplicavelmente àquela manhã, achava-se um pouco mais sereno. Encontrava-se extremamente pálido; os lábios, altamente descorados, pareciam fundir-se ao restante da sua fisionomia. Era deveras patético vê-lo a envergar a descomunal e grosseira túnica a cobrir-lhe o corpo todo, desde o pescoço até os tornozelos, além da inusitada brancura da cabeça que lhe revelara a tosa absoluta dos cabelos, dos bigodes, e das formosas e bem cuidadas suíças que passara a envergar pelos últimos tempos. Pobre João Manuel!... Que terrível golpe lhe aplicava a vida!...
Dom Eusébio olha-o, altamente condoído e lhe sorri, tristemente. Mal conseguia sofrear as lágrimas que lhe queimavam o peito, loucas para explodirem em desenfreada catadupa... Entretanto, devia mostrar-se forte, para dar o exemplo. Trouxera os paramentos para ouvir o seu querido menino em confissão e, também, para ministrar-lhe a extrema unção!... Que triste tarefa!... Mas, não abrira mão de ele mesmo fazer isso!...
- Senta-te aqui ao meu lado... - convida, gentil, o bispo ao rapaz que se mantinha de pé, diante dele. - Vamos conversar. Não te queres confessar?...
- Sim, senhor - responde o rapaz.
João Manuel emitira as palavras, mecanicamente, sem qualquer animo. E, arrastando os pés, trôpego, acomoda-se ao lado do bispo. Sentia-se muito fraco e tinha os músculos todos altamente doloridos Pela comoção nervosa que sofrera por aqueles dias todos. Sentia-se mal, muito mal. Tinha náuseas, e forte vontade de vomitar advém-lhe.
- Soube que recusaste a boa comida e, também, a mulher que costumam oferecer aos condenados na derradeira noite que lhes precede execução... - observa o bispo, tomando-lhe as mãos entre as suas
- A única mulher que desejava ter não me quis ver... - murmura ele abrindo triste sorriso.
- Oh, querido!... - exclama Dom Eusébio, apertando-lhe forte a mão. - Não sabes, de fato, o que estás a dizer!... Tua menina acha-se tão mal, tão enfraquecida que não se sustém mais sobre as pernas' Como poderia, então, vir até ti?... Morre de dor, a pobrezita!...
João Manuel nada responde. Seus olhos repletam-se de lágrimas E, mudo, deixa o pranto tomar conta de si; pranto sofrido, cheio de dor profunda.
- Oh, criança!... - diz o bispo, abraçando-o, paternal. - Pressinto mais desgraças advindo de tudo isto: afirmo-te que Teresa Cristina não suportará a tua perda!... Em seguida, seguir-te-á ela, com toda a certeza!... Tragédias e mais tragédias é o que pressinto que teremos doravante!...
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