LUZ ESPÍRITA
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 2 Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 7:19 pm

Quantas vezes não lancei os olhos àquela porta, desejando, com toda a força de minh'alma, que tu o trouxesses contigo!... Entretanto, sei que não mereci essa graça e estou pronta a morrer!... Não mais lutarei, não mais olharei, insistentemente, para a porta, imaginando vê-lo entrar, o meu filhinho adorado!... - e as lágrimas pungente, pejadas de dor extrema, sufocam-lhe as palavras.
João Miguel olha para a mãe, condoído. O pai, sentado ao lado do leito, acariciava-lhe os cabelos revoltos, espalhados sobre o travesseiro de cambraia branca, e os três juntam-se em pranto doloroso, amargo. A apneia de Rosália aumenta, seus estertores exacerbam-se, enormemente.
- É preciso que se busque o senhor doutor Boaventura]... - diz Manuel António para Amélia que, de pé, num dos cantos do aposento, tudo observava, em silenciosa prece pela ama que tanto sofria.
- Sem demoras, senhor barão!... - responde a governanta, deixando, apressada, o quarto.
Quando o doutor Eustáquio Boaventura chegou, uma hora depois, Rosália agonizava, entre terríveis estertores de apneia e de insuficiência coronariana. O médico limitou-se a lhe ministrar ineficaz remédio, pois o mal da Baronesa da Reboleira apresentava-se incurável para a época, que se privava de recursos outros, além de incipientes tratamentos que em nada minoravam as dores dos pacientes. No final da tarde daquele dia, Rosália expirou. Manuel António desesperou-se ao vê-la morta, pois, finalmente, entendera que havia vivido uma vida toda, fechado na própria dor, e se distanciara tanto da mulher que acabara por perdê-la de vista. Quando se reencontraram, afinal, já era tarde!... Rosália estava morrendo, e nada podia fazer para salvá-la... Agora, restava-lhe apenas a dor da solidão, nada mais...
João Miguel fitava a mãe, posta em câmara ardente, no salão principal da mansão. O rapaz trazia os olhos vermelhos pelo choro e, amiúde, o pai vinha abraçá-lo, consolando-se, mutuamente. Durante toda a noite, até quase madrugada alta, os amigos desfilaram diante do esquife de Rosália e, na tarde do dia subsequente ao seu decesso, sepultaram-na no jazigo da família, após ouvirem uma longa missa de corpo presente, rezada na Igreja de Santa Maria.
Seguiram-se terríveis dias de solidão para Manuel António. O filho, raramente, fazia-lhe companhia; o rapaz sumia de casa, só regressando dois ou três dias depois, magro e altamente depauperado, e se metia na cama, a dormir por horas intermináveis, e, em se levantando, sem, entretanto, avistar-se com o pai, uma única vez, preparava-se para, daí a pouco, novamente sair, em busca das inúmeras aventuras que a cidade oferecia, em exuberantes noitadas. O Barão da Reboleira não tinha coragem de enfrentar o filho, de fazê-lo mudar de vida, pois temia perdê-lo, como acontecera com a esposa. Sabia que João Miguel poderia dar-se mal, frequentando, assiduamente, as casas de tolerância de alto luxo, que enxameavam por toda a Lisboa, a oferecerem noitadas inesquecíveis aos tais rapazotes, sendo a grande maioria deles ainda imberbes, e que se deslumbravam ao descobrirem os prazeres libidinosos que a vida mundana podia, ardilosamente, oferecer-lhes. E dessa forma que muitas almas despencam pelos escuros báratros da decadência moral, chafurdando no lamaçal do vício e da libertinagem. João Miguel era jovem, bonito e rico, constituindo-se, assim, presa fácil e desejada pelas mentes mais vis e mais abjectas da cidade. E, além das inúmeras conquistas amorosas e dos prazeres altamente inebriantes que o dinheiro podia comprar, o rapaz ainda se ardia de desejos pela jovenzinha que lhe morava ao lado: a Marquesinha Teresa Cristina Dantas e Melo, filha do detestável rival de seu pai!... Sonhava tê-la para si, embora, de antemão, soubesse que a união de ambos afigurava-se quase impossível, dada à imensa inimizade que, havia décadas, existia entre as duas famílias. Entretanto, os dois jovens apaixonados vinham encontrando-se, às escondidas, pela grande facilidade que achavam, por serem vizinhos de quinta, e pela enormidade de lugares indevassáveis que tinham à disposição, fosse entre os arbustos dos inúmeros bosquetes e das sebes que limitavam os terrenos onde se cultivavam o trigo e o centeio, ou, ainda, no meio dos imensos olivais, dos pomares de maçãs e de figos, além das grotinhas escuras e dos desvãos que havia por toda a parte. Lugares discretos é que não lhes faltavam. Era dessa forma que podiam encontrar-se, sempre que quisessem, sem serem surpreendidos, a menos que não tomassem as precauções necessárias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 7:19 pm

Escreviam-se, colocando os bilhetes em lugares adrede combinados e, dificilmente seriam descobertos, pois se cercavam de medidas preventivas para jamais serem surpreendidos pelos pais, que não admitiriam, de modo algum, o romance entre ambos.
Dias depois da morte da Baronesa Rosália, João Miguel e Teresa Cristina encontravam-se, acobertados por tufos de arbusto alto, no meio de alegre bosquete que se erguia na divisa das quintas em que moravam. Sentados sobre exuberante relva primaveril, ambos conversavam, após longa e apaixonada sucessão de abraços arrochados e de voluptuosos beijos ardentes de paixão.
- Sinto muito a morte da tua mãe... - diz ela, com a voz cheia de pesar. - Acho isso à pior coisa que nos acontece na vida!...
- De fato, a perda da genitora é-nos uma provação extremamente dolorosa, querida!... - observa ele, fitando-a com os olhos cheios de tristeza. - Embora eu e minha mãe não tivéssemos tido uma proximidade marcante, mesmo assim, a sua morte foi algo que me deixou deveras entristecido!
- Por pouco ela não se vai, surpreendendo-te a viajares por este mundo!... - observa a jovem. - Vivo a cogitar por que é que tu viajas tanto!
- Negócios, querida, negócios! - responde ele. - Papai tem inúmeros compromissos pelo país e até pelo exterior, nas colónias de ultramar, e é a mim, seu único herdeiro, que compete zelar pelos nossos bens.
- Não tiveste nunca irmãos? - pergunta a mocinha. - Eu sou a caçula, mas tenho mais dois irmãos, Pedro e Romão, que já se casaram, e vivem na cidade, com as famílias deles. Tenho quatro sobrinhos: Gabriela, Joaninha, Joaquim José e João Evangelista, filhos de meus irmãos!... - exclama ela, sorridente. Tu, entretanto, não poderás ter sobrinhos, pois és filho único!
- Que lástima!... - exclama ele, fingindo alta decepção. - Jamais sentirei o tão inominado prazer de estreitar sequer um só sobrinho aos braços!... Oh, como me acho infeliz!... - e explode em estrondosa gargalhada: - Ha!... Ha!... Ha!... Ha!...
- Ah, zombas de mim, é?... - diz ela, beliscando-lhe o flanco. -Caçoas de mim, mas, por castigo de teu desmedido egoísmo, quando envelheceres, tomar-te-ás um misantropo solitário e amargo, por não teres nenhum parente a cuidar de teus lumbagos e de teus achaques de varão provecto!
- Oh, garanto-te que não ficarei solitário!... - responde ele, olhando-a com ares de galhofa. - Como ficarei solitário, tendo uma fada como tu, sempre a meu lado?... E nossos filhos?... Pretendo ter uma dúzia deles!
- Nossa!... - observa ela, fingindo alta admiração. - Pelo visto, pretendes repovoar todo o reino, que se esvazia a cada ano, com as levas de emigrantes que se vão, a ganharem as novas terras!
- Garanto-te que Portugal não ficará desabitado, minha cara! - diz ele a rir-se. - Eu e tu teremos muito trabalho a fazer, para que isso não aconteça!
- João Miguel - diz ela, de repente tomando-se séria -, tenho algo grave a contar-te!
- Vai lá, diz-lo!... - exclama ele, encorajando-a.
- Papai anunciou meu noivado com Vasco, no baile de meu aniversário... - diz ela, sem encará-lo.
- O quê?!... - exclama ele, levantando-se, como se uma víbora o tivesse picado. - Acaso, enlouqueceu o teu pai?!...
-Sim!... — exclama a jovenzinha, torcendo, nervosamente, as mãos. E prossegue, agora, fitando-o nos olhos: — E, sem que eu, previamente, soubesse, anunciou para todos que pretende casar-me com meu primo!... Sequer mamãe sabia dessa intenção absurda!
- Oh, eu mato o teu pai!... - explode João Miguel, altamente enraivecido. - E, em seguida, dou cabo daquele manquitó imbecil!... Quem ele pensa que é, para tomar-te de mim?
- Acalma-te, querido! - diz Teresa Cristina, fazendo-o sentar-se, novamente, sobre a relva. - Queres que nos descubram aqui?... Acalma-te, que eu ainda não me casei com Vasco!... Apenas anunciaram o nosso noivado!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 7:19 pm

- Mas isso é terrível!... - observa ele, transtornado, enquanto voltava a se sentar sobre a relva macia. - Anunciam o teu noivado com aquele careca idiota, e tu dizes que não é nada?!... Estou a perder-te, fadinha!... Que será de mim?... - e se abraça a ela, altamente consternado.
-Acalma-te, meu amor!... - diz ela, afagando-lhe os cabelos revoltos. - Daremos um jeito neste noivado imbecil!... Olha, porque não fugimos para bem longe, para a África ou para o Brasil?... São lugares bem distantes e, como dizem os relatos que já li, tratam-se de territórios tão extensos, que ninguém jamais nos encontrará!
- Não!... - responde o rapaz, categórico. - A África ou o Brasil são terras inóspitas, cheias de doenças tropicais e de selvagens ferozes!... Imagina que, no Brasil, há os tais que devoram humanos!... Acaso não ouviste nunca os relatos que de lá trazem os viajantes?... Esses bugres vivem a matar e se acham a engordar e a refestelar-se, enormemente, com as carnes dos pobres colonos aos quais dão caça sem dó!...
- Sim, eu sei... - diz ela, pensativa. - Os antropófagos...
- E então? - pergunta ele. - Terias coragem de viver em lugar, assim, tão assustador?
- Para não me casar com Vasco, correria até esse risco, sim, João Miguel! - diz ela, olhando-o nos olhos. - E, se conheço bem a teimosia de papai, não nos será fácil demovê-lo de tal ideia absurda, não!
- Matarei a ambos, minha cara!... - diz ele, furibundo, com as abas do nariz grandemente dilatadas.
- E que vida terrível levaríamos, a fugir, sempre, da milícia e, ainda, a carregar tal peso à nossa consciência! - exclama ela, pela primeira vez, demonstrando uma ponta de preocupação. Seu amado apresentava uma faceta que ela desconhecia. Falava em matar o pai e o noivo com tal veemência que quase a convencia de seu real intento. Seria ele mesmo capaz de matar por ela?... Isso a fez encher-se de preocupação. Arrisca-se, então, a perguntar: - Terias mesmo coragem de matar a ambos?
- Que teu pai experimente casar-te com aquele lentiginoso asqueroso e verá, então, o peso do meu punhal!... - responde o rapaz, sem titubear.
Terrível calafrio sacode, ostensivamente, o corpo da jovem, fazendo-a tremer. Limita-se, então, a olhá-lo com os olhos cheios de espanto. O rosto do rapaz, embora belo e fascinante, emoldurado por bigode e cavanhaque negros e bem aparados, mostrava-se carregado de estranho ricto de ferocidade animal que a assustou.
- E teu pai, como se encontra? - pergunta Teresa Cristina, mudando o rumo da conversa.
- Meu pai está triste e acabado - responde ele, ríspido. - Viveu a magoar e a martirizar a minha mãe, pela vida inteira, e agora que ela se foi de tanto desgosto, o remorso rói-lhe a alma!
- E por que o teu pai magoava a tua mãe? - pergunta a Marquesinha das Alfarrobeiras.
- Por quê?... - diz ele, de repente percebendo que, por impulso, abrira seu passado à namorada, coisa que, decididamente, não desejara fazer. - Porque não se entendiam direito... - mente.
- Mas, por não se entenderem direito, conforme dizes, é preciso que haja algum motivo grave - insiste ela, pois percebera a mentira nos lábios dele.
- Não sei!... Coisas deles!... - responde, grosseiro, o rapaz. Não poderia, de forma alguma, lançar sobre ela a suspeita de que tivera um irmão, mais novo que ele, que misteriosamente desaparecera, e que o provável culpado pela tragédia não era outro senão o próprio pai dela.
- Por que mentes para mim, João Miguel!... - pergunta ela, tocando de leve na mão dele.
- Como podes dizer que estou a mentir-te? - observa ele, expressando alta indignação. - Ofendes-me a honra, se me chamas de mentiroso!... Queres tu, também, indispor-te comigo?
- Oh, não, longe de mim, o desejo de me indispor contigo, meu amor!... - diz ela, tomando-lhe a mão e a beijando, afectuosamente. E, olhando-o, firme, nos olhos, prossegue: - Teu passado não é nenhum segredo para mim, João Miguel!... Cresci ouvindo coisas a respeito da tua família...
- Que ouviste sobre a minha família? - pergunta ele, altamente indignado. - Certamente, não passam de intrigas do teu pai!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 7:20 pm

- Oh, não acho que sejam intrigas, não, meu caro!... - diz ela, encarando-o. - Ouvi muito bem, por diversas vezes, o relato que faziam sobre o litígio de terras, a demanda que favoreceu o teu pai, e o incontido ódio motivado pela humilhação da derrota sofrida nos tribunais... Foram tantas coisas!... Tantas críticas lançadas à tua família!...
- Que mais sabes sobre o caso?... - pergunta ele, agora altamente interessado nas palavras da moça. - Além do litígio, que mais sabes?...
- Nada mais que isso!... - responde ela. - Mas, por que estás tão aflito em saber se conheço alguma outra parte dessa briga?...
- Não, não há outro pedaço nisso tudo, não... - responde ele, baixando os olhos.
- Pelo teu jeito, acho que há, sim, meu caro!... - diz ela. - E é uma parte que eu desconheço plenamente!...
- Enganas-te, ao achares que existe algo mais nessa sórdida briga, querida!... - observa ele, mal sofreando um suspiro de alívio, pois percebera que ela desconhecia a existência do irmão desaparecido. - Posso jurar-te que nada mais existe!
Teresa Cristina limita-se a olhá-lo, firme, nos olhos. Sabia que ele estava mentindo. Agora tinha quase a absoluta certeza de que havia algo mais podre ainda, na história. E ela iria descobrir. Ah, se iria...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 24, 2024 7:20 pm

Capítulo 4 - Estranha aparição
Fazia, já, seis meses, que a pobre Madalena fora vilmente assassinada, num escuro beco, numa frígida e cinzenta tarde de final de inverno. Gerusa continuava a ocupar o miserável quartinho, no decadente sobrado da rua do cais, e a saudade da companheira de profissão e de infortúnio apertava-lhe, grandemente, o amargurado peito.
- Pobre Madá!... - murmura a jovem, largada sobre o leito. O pranto desce-lhe quente, molhando o travesseiro de fronha encardida pelo excesso de uso. - Foste morar no céu e me deixaste aqui, sozinha, neste mundo cheio de desgraças!... Que falta sinto de ti, minha amiga!... Éramos como irmãs, tu e eu; entretanto, agora, só a solidão me resta!... Oh, Deus!... Como é difícil encarar a vida, sem ter alguém com quem conversar, desafogar as dores da alma!... - e o pranto sacode-a, violentamente.
Era madrugada alta, e Gerusa tinha o corpo moído de tanto andar pelas ruas do porto - o eterno ir e vir -, pelos pontos mais concorridos entre as mulheres da vida. Tinha de disputar os fregueses com as companheiras, numa luta ferrenha, ou nada ganharia para saciar a fome, para comprar algumas roupas novas e, ainda, para pagar o aluguel do quartinho!... Quantas vezes não sacrificara o pão, em detrimento das roupas e dos calçados?... Tinha de vestir-se bem ou nem lhe notariam a presença... Tinha de comprar maquiagem e perucas novas; tinha de fazer frente às demais mulheres ou acabaria na sarjeta, sem nenhum lugar para morar. Quantas vezes não tivera de forjar um lânguido sorriso aos lábios, fingindo desejos e voluptuosidade, enquanto o estômago judiava-a, enormemente, reclamando alimento?... Não há pior martírio que a fome...
Naquela madrugada, Gerusa encontrava-se, particularmente, muito triste e cheia de quebranto. Depois da morte da amiga, a jovem prostituta vinha, amiúde, pensando sobre a fragilidade da vida que levava, no meio de toda aquela violência que tinha de enfrentar, todas as noites, para sobreviver. Com imenso pesar, lembra as surras brutais que já houvera levado de homens embriagados!... Quantas vezes não fora socorrida por Madalena que, encontrando-a caída pelas ruas, grandemente ferida por sovas bestiais que levara, a valorosa companheira, arrebanhando forças, sabe-se lá onde, literalmente, arrastara-a para o quartinho de ambas e lhe pensara os horripilantes talhos abertos nos lábios e os medonhos hematomas a lhe desfigurarem, enormemente, a face?... E, ela, Gerusa, tantas vezes, não fizera o mesmo à amiga que, commumente, sofria os mesmos tipos de agressões?... Acaso não sofriam todas elas?... Todas as mulheres que mercadejavam o corpo pelas ruas do porto não apanhavam, não eram mutiladas, não eram bárbara e friamente assassinadas pelos seus fregueses?... E a justiça?... Quem é que as defendia desses covardes ataques?... Ninguém. Indesejáveis criaturas, sim, eram, e o que todas as pessoas, invariavelmente, consideravam-nas - o opróbrio extremo, o lixo nefando, a escória da sociedade!... Algumas das meretrizes mais bem sucedidas tinham a protecção de um ou de outro cáften, que agiam mais por interesse de explorar-lhes o serviço que, propriamente, pelo senso humanitário de guardar-lhes a vida. Gerusa emite uma sucessão de longos e profundos suspiros, suspiros de mágoa, de tristeza, de desamparo e de solidão... Sentia-se cansada do mundo. Valeria a pena viver assim?... De repente, sente inveja de Madalena.
- Deves estar feliz, aí em cima, ao lado de Nosso Senhor!... - murmura a jovem, altamente consternada. - E eu... - tartamudeia, enquanto as lágrimas voltam a brotar-lhe aos olhos, em profusão. - Ao passo que eu... - e os soluços sacodem-na, violentamente.
Por longo tempo, Gerusa chorou. Mas, finalmente vencida pela exaustão e pela grande prostração que dela se assenhoreara, acaba por adormecer.
Quase amanhecia, quando Gerusa desperta, tocada por estranha luminescência a formar-se no exíguo espaço do quartinho que habitava. A princípio, a forte sonolência fê-la piscar os olhos para acomodá-los à pouca luz reinante. E, depois de premer, fortemente, as pálpebras, por algumas vezes, toma-se de intenso sobressalto. Quis gritar, quis deixar a cama e correr, mas se sentiu paralisada de tanto terror: ali, diante dela, como de névoa translúcida, estava ela, a antiga companheira de quarto!
- Ma... dá!... - tartamudeia Gerusa, entre atónita e estarrecida pelo que via.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 9:16 am

O espectro olhava, fixamente, para a jovem meretriz que, diante do inusitado acontecimento, não sabia se estava acordada ou se ainda dormia. Oh, era demais e muito estranho aquilo!... Por certo, ainda sonhava!... Aterrada, Gerusa quis gritar, pedir socorro, mas o Espírito olhava-a com tal intensidade, havia tanta súplica em seu olhar, que a mocinha, mesmo apavorada ao extremo, deixou-se levar pela curiosidade: era Madalena, sua amiga!... Sim, reconhecia-a, apesar da fluidez de sua imagem. Deus do céu!... Que mistério assombroso seria aquele?...Aos poucos, entretanto, o terror inicial foi dissipando-se, e a intensa alegria de rever a amiga tornou-se maior que o medo.
- Madá?... - arrisca uma pergunta tímida. - És tu, realmente?... O Espírito aproxima-se um pouco mais, e Gerusa pôde notar-lhe,
vividamente, as feições. Madalena exibia o medonho rasgão ao peito, ainda tetricamente aberto e a vazar sangue; as roupas, trazia-as totalmente esfarrapadas, ensanguentadas e sujas de lama, e tinha o rosto transfigurado, altamente desgrenhado, transido de intensa dor; dir-se-ia que a antiga prostituta achava-se, mesmo, perdida, sem ter noção da real condição em que se encontrava.1 Permanecia com os olhos fixos na antiga companheira, e a sua face deixava transparecer intenso desespero, quase às raias da loucura. Tentou falar, mas, apesar do excessivo esforço, as palavras não lhe saíam.
- Que te fizeram, Madá?!... - murmura Gerusa, de repente, com os olhos borbulhando de lágrimas. - Oh, meu Deus!... Em que lastimável estado te encontras!...
O espectro adianta-se um pouco mais em direcção de Gerusa, que lhe estende os braços, como a desejar abraçar a velha companheira de infortúnios. Entretanto, o gesto de carinho que demonstrava a amiga, pareceu exacerbar, ainda mais, o desespero de Madalena. Grossas lágrimas brotam-lhe, também, dos olhos altamente estatelados pelo espanto e pelo terror.
- Meu Deus!... - exclama Gerusa, olhando, fixamente, para os olhos da amiga. - Coragem!... Sei que desejas dizer-me algo!... Vai lá, meu bem, diz-lo!... Quem te fez tal maldade?...
O Espírito, então, aproxima-se e, quase colando seu níveo rosto espectral ao da adorada companheira, murmura, com dificuldade extrema; era, mesmo, um sopro mínimo:
- Anjinho...
- Que dizes, Madá?!.... - espanta-se a outra. - Não é possível!... No dia em que te mataram, João Manuel encontrava-se comigo, durante todo o tempo em que estiveste fora!... Não, Madá\... Não pode ter sido ele!... Tu te enganas!...
O fantasma ia prosseguir, mas desvanece no ar, como uma nuvem de fumaça.
- Oh, não te vás, ainda, Madá!... - grita Gerusa, tentando abraçar-se ao Espírito.
Desolada, a jovem meretriz percebe que nada mais havia na escuridão que voltava a reinar no quarto. Ainda grandemente chocada com o que acabava de vivenciar, tacteia a minúscula mesinha de cabeceira e consegue encontrar a lixa e a pederneira e, petiscando a pedra, consegue acender um toco de vela que se prendia ao gargalo de uma botelha vazia. Fraca luminosidade instaura-se no misérrimo quarto. Gerusa olha em redor, ainda carregada de espanto. Meu Deus!... Como seria possível aquilo?... Madalena havia morrido, sim, com toda a certeza!... Não a tinha encontrado toda ensanguentada, caída no meio de uma poça de sangue e de lama?... Não houvera, até mesmo, presenciado recolherem-lhe o corpo hirto e gelado, para sepultarem-no na vala comum?... E, no entanto, vira-a, ali, instantes antes, e não lhe parecera estar nada morta!... De repente, lembra-se do que tentara dizer-lhe a amiga. Anjinho... Não, decididamente, o rapaz nada tivera a ver com o assassinato de Madalena. Entretanto, o que lhe desejaria dizer a morta?... Será que João Manuel, mesmo indirectamente, tinha algo a ver com aquele assassinato?... Sentada sobre a cama e com o queixo apoiado sobre os joelhos recolhidos, Gerusa matutava e não conseguia atinar com o que lhe quisera dizer a amiga assassinada que, mesmo estando no outro lado da vida, viera vê-la. Deus do céu!... Como seria possível aquilo?!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 9:16 am

A jovem prostituta ainda se encontrava grandemente chocada com o inusitado acontecimento. Insistentemente, olhava para a pequena janela, em busca dos sinais da claridade do dia que, em breve, por certo, estaria nascendo. E ficou ali, recostada no leito, pensando, enquanto aguardava o amanhecer, pois não conseguiria, estando em tal estado de excitação, voltar a conciliar o sono. Por fim, constata que amanhecia, quando fraca luminosidade, paulatinamente, foi coalhando-se pelos interstícios da pequena janela. De um salto, Gerusa deixa o leito e, apanhando velha e enferrujada jarra de latão, despeja água numa bacia que se encontrava em não melhor estado que a jarra e, mergulhando as mãos no líquido gelado, lava, insistentemente, o rosto, altamente emurchecido pelas longas horas de vigília. Depois, olha-se num pequenino espelho oval, que sempre carregava consigo, na surrada bolsinha vermelha de croché, para retocar a maquiagem.
- Estou um horror!... - murmura para si, enquanto estudava, minuciosamente, sua descorada imagem reflectida no velhusco espelhinho já embaçado e com o aço largamente carcomido nas extremidades.
Não se demora muito, olhando-se ao espelho e, decidida, põe-se a se vestir. E, em pouquíssimo tempo, fechava a porta do quartinho, atrás de si. Estava com pressa. Ia correr as ruas, para ver se achava João Manuel. Sabia que não lhe seria difícil encontrar o rapaz que, certamente, estaria nalguma das inúmeras bodegas do porto, sentado ao lado de uma mesa, espoliando, nos dados, o suado dinheirinho dalgum marinheiro imbecil e embriagado...
Gerusa ganha a rua, e poucos transeuntes caminhavam pela manhã ainda sonolenta. E, depois de olhar, ligeiramente, para ambas as direcções, a moça decide-se e se põe a andar apressada. Eram muitos os lugares aonde teria de ir. Ser-lhe-ia necessário caminhar bastante, porém precisava, urgentemente, contar aquela extraordinária novidade a João Manuel.
Entretanto, a pobre Gerusa nem poderia supor que, dificilmente, encontraria o rapaz, pois, naquele exacto momento, ele se acordava e acabava de abrir um par de olhos sonolentos que sondavam um ambiente mergulhado em leve penumbra. João Manuel corria os olhos e estudava o local. Como costumava dormir em lugares variados, tinha de descobrir, a cada manhã, onde é que passara a noite. Reconhece aquele, de imediato. Tratava-se de dormitório bem amplo, com alta janela, guardada por riquíssimo cortinado de rendas finas e com os caixilhos bem ajustados, pois deixavam coar pouquíssima luz da manhã nascente. O tecto, forrado de gesso branco; o rico lustre de pingentes de cristal; as paredes revestidas de seda azul-clara; os quadros a óleo, com as largas molduras douradas; duas poltronas de veludo vermelho; os fofos tapetes do Oriente; o mobiliário de madeira de lei, ricamente lavrada... Desmedidos luxo e requinte que contrastavam, enormemente, com suas humildes roupas a espalharem-se todas, negligentemente, pelo chão de rutilante mármore travertino. Depois de, minuciosamente, estudar e reconhecer o ambiente onde se encontrava, o jovem volve a cabeça e divisa a nuca da mulher que lhe dormia ao lado, no amplo leito; seus cabelos pretos e lisos desmanchavam-se e se espalhavam como pequena túnica de rutilante veludo negro a lhe cobrir as costas nuas. João Manuel fita, demoradamente, a profusão de cabelos sedosos e levanta a mão para acariciá-los, mas se detém: ela ressonava tão profundamente que seria um sacrilégio despertá-la. Então, muito devagar, sem pressa, e sem fazer o mínimo ruído, para não acordá-la, ele deixa o leito e se encaminha para a janela. Afasta as cortinas de renda, corre o ferrolho e abre a janela. Uma catadupa de luz dourada invade o quarto. A mulher, fustigada pela intensa claridade do sol nascente, emite ligeiro gemido de contrariedade e, abrindo os olhos, pisca-os, por instantes e, depois de acomodá-los à forte luminosidade, ergue a cabeça e sorri.
- Oh, estás aí, meu Adónis?... - diz ela, deslumbrando-se com a beleza do jovem que, nimbado pela resplendente luz matinal, sorria-lhe, totalmente nu, com as mãos espalmadas aos flancos bem torneados e luzidios. - Vem... - convida-o, abrindo os braços.
O rapaz encaminha-se para o leito e se senta ao lado da mulher. Toma-a nos fortíssimos braços e a beija, a princípio, languidamente, mas, depois, semelhantemente ao fogo que se ateia ao combustível, explodem ambos em louca paixão, e se esmagam os lábios, com fúria bestial, enquanto se arranham os dorsos nus com as unhas.
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 2 Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 9:16 am

- Oh, sufocas-me, Anjinho!... - exclama ela, por fim, sem ar. - Tu és, sem dúvida, um furacão!...
- Vais dizer-me que não gostas? - observa ele, brincalhão.
- E como gosto! - exclama ela, com as faces enrubescidas pela excessiva paixão. E prossegue, atraindo-o para si, no leito: - Não existe homem, em toda a Lisboa, como tu, meu tesoiro!... Não queres repetir a dose da noite passada?...
O rapaz olha-a com olhos zombeteiros e se põe a beijá-la, freneticamente. Algum tempo depois, conversavam, deitados lado a lado.
- Por onde anda o teu marido, Manuela? - pergunta o rapaz, com laivos de cinismo à voz.
- Oh, por aí!... - responde ela, contrariada. - Por que é que sempre tens de perguntar por ele?... Queres me deixar com culpas à consciência, é?
- Não, não é este o caso - responde ele, tomando-lhe a mão e a beijando por diversas vezes. E prossegue, abrindo ligeiro sorriso, cheio de marotagem, como lhe era peculiar: - Não te quis magoar ou ofender!... Apenas, acautelo-me, minha cara!...
- E, para que tanta precaução? - pergunta ela, olhando-o de soslaio, com um par de imensos e brilhantes olhos negros, ligeiramente amendoados.
- Sabes como é, minha cara - responde ele -, nunca se sabe qual será a reacção de um marido traído!...
- Afonso matar-te-á, impiedosamente, como a um cão hidrófobo, se, um dia, pilhar-te, assim refestelado em seu leito, como agora te encontras, meu querido!... E, ainda mais, a lhe furtares, ousadamente, os amores da esposa!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... - explode a jovem mulher, numa despudorada gargalhada.
- Não te entendo, Manuela - diz o rapaz, de repente, olhando-a, sério. - És uma mulher jovem, belíssima e rica; levas uma vida de princesa; tens um marido, também jovem, rico e bonito!... Entretanto, vives a traí-lo, até mesmo, com todos os estivadores do cais do porto!... Por que fazes isso?...
- Traio Afonso, sim!... - explode ela, levantando-se, abruptamente, da cama e, caminhando totalmente nua pelo quarto, prossegue, enchendo-se de raiva: - Traio-o, sim, e, com bastante vontade e prazer, porque ele só pensa em dinheiro!
- Mas, não é para a tua comodidade e conforto que teu marido vive a trabalhar como um mouro?... - pergunta o rapaz, enquanto se admirava de quanto Manuela era exuberantemente bela, assim, expondo-lhe sua nudez plena e sem demonstrar pejo algum.
- Para minha comodidade e conforto?... - diz ela, abrindo um sorriso de mofa. - Ao passar desses poucos anos de casados, meu marido revela-se, cada vez mais, um desmedido ambicioso, isso sim!... Sempre fomos ricos, ele e eu!... Herdei descomunal fortuna de meu pai; imenso cabedal que aquele desmedido ambicioso, bem depressa, tratou de juntar ao seu, tornando-o, dessa forma, incalculável!... Temos tanto ouro que, se passássemos o resto das nossas vidas, somente a gastá-lo, teríamos de viver por mil anos!... Se Afonso realmente me amasse - prossegue ela, sentando-se numa das poltronas de veludo vermelho -, não viveria a viajar pelo mundo, a fazer mirabolantes negócios, deixando-me aqui, sozinha, a arder-me de desejos!... Vê, meu querido, tu te preocupas em saber onde é que ele está, se nem mesmo eu o sei!... Deixou-me, faz já quarenta dias, a dizer-me que ia à Holanda e até agora não regressou!... Não sei se, efectivamente, encontra-se vivo ou morto!...
- Se ele age assim, a deixar-te só, e não sabes aonde realmente foi e nem quando regressará, pior ainda se tomam as coisas! - exclama o rapaz. - E, se retornar de noite, a pilhar-te nos braços de outro homem?
- Que desejas que eu faça, Anjinho! - responde ela, agora se levantando e, encaminhando-se para rico aparador, apanha uma botelha e enche duas taças de excelente vinho tinto. Depois, voltando, convida o rapaz: - Anda, preguiçoso, levanta-te daí e vem beber comigo!...
- Não temes, realmente, ser surpreendida por teu marido em flagrante adultério?... - insiste o rapaz, ainda cheio de preocupações. -Sabes que, pela lei, ele poderá matar-te e ao infeliz que pilhar contigo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 9:17 am

- Quero ver se terá coragem, Anjinho!... - responde ela, encarando-o com o rosto altivo. - Se me matar, terá todo o clã dos Flores e Martins atrás de si, a vingar-me a morte!... Ele que se atreva!...
João Manuel resume-se a olhá-la, espantadíssimo. Manuela era realmente uma mulher forte. Forte e fascinante.
- E isso, naturalmente, estende-se a ti e a qualquer um outro que ousar levantar a mão contra mim, meu caro... - diz ela, cutucando-o, desafiadoramente, com a ponta do pé.
- Oh, nem de longe faria qualquer coisa a ti, minha querida!... -exclama o rapaz, beijando-lhe, apaixonadamente, o peito do pé branco e delicado.
- Entretanto, outro dia, tu e Frederico Melgaço andastes a fazer escândalos pelas ruas!... - diz ela, agora, olhando-o firme nos olhos. - Não gostei nada do que fizestes!... Não desejo ver meu nome na boca dos cães da rua!... Por que é que brigastes, tu e ele?
- Oh, brigávamos por tua causa, minha deusa!... - exclama João Manuel, arrojando-se aos pés de Manuela. - Na taverna de Leôncio Vieira, bêbado e diante de uma plateia pejada de idiotas como ele mesmo, o infame Frederico tripudiava sobre ti, gabando-se ser ele o teu preferido!
- Ah, o miserável anda a lançar meu nome na lama, é? - indigna-se a mulher. - Ele que me aguarde!...
- Frederico não vale nada, Manuela!... - prossegue o rapaz, fitando-a no rosto. - Não consigo atinar por que é que tu ainda te relacionas com ele!...
- Frederico é um belo exemplar de macho, como tu!... - diz ela, cínica, para fazer-lhe ciúme. - Nada mais que isso!... E eu posso comprar tantos quantos belos rapagões eu desejar!...
- Mas, Frederico é rico!... - diz o rapaz. - Não entendo por que, então, vende-se a ti!...
- Rico é o pai dele!... Ha!... Ha!... Ha!... Ha!... - responde a mulher, rindo-se. E prossegue, cheia de escárnio: - E o velho açougueiro é o pior sovina que já conheci em toda a minha vida!... O filho vive a mendigar por aí, sempre sem um vintém à mão!... Na realidade, Frederico não é muito diferente de ti, que és pobre de fazer dó!...
- Defendi-te dele!... - exclama João Manuel, altamente ofendido.
- E é assim que reconheces?
- Ora essa!... - diz ela, erguendo-se da poltrona e caminhando até a janela aberta. E, depois de espiar, atentamente, lá fora, volta-se e prossegue: - Não pedi para que me defendesses!... Além do mais, não quero ver meu nome na boca de... de... - e se cala, pois o que pretendia dizer ofenderia, grandemente, o rapaz.
- Na boca de quê, Manuela!... - insiste ele.
- Nada, não, Anjinho!... - responde, ríspida, ela e, apanhando um riquíssimo roupão de seda, cobre-se, e se põe a mirar-se em imenso espelho de elegante toucador, repleto de uma enormidade de potinhos de cerâmica de cores diversas e de frascos de ouro, de prata, de latão polido e de alabastro, que brilhavam, contendo líquidos de variadas colorações. E, mudando, drasticamente, de humor, prossegue grosseira:
- Agora, veste-te e dá o fora daqui!...
O rapaz, altamente magoado, principia a apanhar suas roupas que se achavam todas espalhadas, desleixadamente, pelo aposento e, depois de vestir-se, aproxima-se para beijá-la, por trás, no alto da cabeça. Manuela, sem tirar os olhos do minucioso exame que fazia do próprio rosto, reflectido no descomunal espelho, resume-se a levantar os olhos e a olhar para a imagem dele, que se lhe projectava atrás.
- Apanha o teu dinheiro que está no lugar de sempre - diz ela, secamente.
Após recolher o seu pagamento da gaveta de pequeno móvel e de guardá-lo no bolso do surrado casaco, João Manuel permanece parado a dois passos, atrás dela. Manuela, agora, com a ponta dos dedos, fazia fortes e rápidos movimentos circulares ao rosto untado de creme, o qual ia desaparecendo, à medida que a pele branca absorvia-o.
- Ainda estás aí? - pergunta a mulher, de repente levantando os olhos e o percebendo, estático, atrás de si. E prossegue, demonstrando enfado: - Já não te disse para sumires daqui?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 9:17 am

- Já me vou... - diz ele, baixando os olhos. - E, quando me queres de volta?
- Quando precisar de ti, mando Inácia em teu encalço!... - responde ela, altamente irritada. - Não tem sido sempre assim?... E, por favor, peço-te!... Sai pela janela e desce pela parede, agarrando-te à hera!... Não te quero ver andando pela casa, para bisbilhotice da criadagem!...
- Não te preocupas, se me despencar lá embaixo e quebrar o pescoço?... - pergunta ele, tentando fazê-la mudar o humor ácido.
- Nem um pouco!... - responde ela, sem tirar os olhos do espelho. -Quando aqui vieste, pela primeira vez, à cata de meus favores, não escalaste as paredes, agarrando-te às pedras e à hera, como um camaleão, sem a mínima preocupação se ias ou não cair?... Tu escolheste a tua trilha!... Agora, volta por ela e não me apoquentes mais os miolos!...
O rapaz sai, altamente magoado com as palavras da amante, e, de um salto, pendura-se, perigosamente, ao peitoril da janela. Manuela segue-o, com o canto dos olhos, e, vendo-o desaparecer na arriscada descida, ri-se, meneando a cabeça. "Que gente, meu Deus!... ", pensa, com um sorriso aos lábios. "Que deliciosa gente..." e prossegue a meticulosa toalete, tentando ajeitar uma teimosa mecha de cabelo que lhe caía, desgraciosamente, à testa.
Na tépida tarde de primavera, acobertados pelos ramos de frondoso salgueiro, Teresa Cristina e João Miguel achavam-se sentados sobre a relva verdejante do campo. Ao lado, cantante riacho de águas frescas e cristalinas corria célere, coleando sobre seu limoso leito de pedras.
- Vamos, muda essa tristeza que te embota o olhar, queridinha!... -exclama o rapaz, tomando, delicadamente, o queixo da mocinha com a ponta dos dedos. - Não ficas nada bem, assim!...
- Oh, como posso ficar feliz, se papai trama a minha desdita? -responde ela, com os olhos carregados de dor.
- Muito antes de te casares com o asqueroso Vasco, eu o matarei, minha querida! - exclama ele, com estranha expressão ao rosto. - Prometo-te e, se preciso for, mato, também, o teu pai e qualquer um que se interpuser entre nós!
- Tenho medo de ti, quando dizes tais coisas, João Miguel!... -exclama a mocinha, aninhando-se nos braços do rapaz. - Serias mesmo capaz de matar Vasco e papai?
- Se, de facto, conhecesses-me, saberias que não costumo lançar minhas palavras ao vento!... - diz ele, afastando-a de si e a olhando firme nos olhos. - Que se atrevam e verão do que sou capaz!...
- Mas, não estou habituada a tais procedimentos!... - diz ela, altamente preocupada com as reacções do rapaz. - Se matares ambos, por certo, a justiça caçar-te-á aonde quer que fores!... Não pensaste nisso?... Acaso esqueces que papai é membro do Conselho de Estado e que Vasco é um dos cidadãos mais proeminentes de Lisboa?... Além do mais, não quero que mates papai!... Apesar de tudo, amo-o, ouviste bem?
- Não me importo nem um pouco com o que sejam!... Matá-los-ia, mesmo que um fosse o rei, e o outro, o primeiro-ministro! - responde o rapaz, altamente irritado. - E, se amas mais a teu pai que a mim, não és digna do meu amor!...
- Ah, João Miguel!... - responde ela, censurando-o. - Não entendes que amor filial é diferente?... Acaso não amas teu pai?
O rapaz ia dizer que não sentia nada pelo pai, que o pai sempre lhe estivera ausente, fechado em si mesmo, mas se contém.
- Sei, sim, que o amor filial é diferente - responde ele, fitando o nada. - Mas, esqueces-te que tentam separar-nos!... E quem tenta fazer isso?... Exactamente o teu pai!...
- Foge comigo, João Manuel!... Fujamos para o Brasil!... - suplica ela, tomando-lhe a mão e a apertando forte. - Fujamos, antes que se faça tarde!
- Já te disse que não tenho nenhuma vocação para lugares exóticos e distantes, como o são as colónias de ultramar! - responde ele, secamente. - Gosto do luxo e do requinte da corte!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 9:17 am

Que me adianta ser jovem, rico, ter muito dinheiro e ter de viver no meio de cobras e de antropófagos?... Não, minha cara, isso, decididamente, não faz o meu género!...
- Se não queres ir para tão longe, poderemos fugir para a França ou para a Inglaterra!... - sugere ela. - A Europa é grande, e ninguém nos encontrará!
- Sou português e desejo morar em meu país!... - diz ele, categórico.
- Jamais moldarei meu carácter segundo as vontades de outrem!... Sempre farei o que eu desejar!... Ninguém se oporá aos meus desígnios, sob pena de pagar com a própria vida!... Sequer meu pai dá-me ordens, quanto mais tu ou qualquer um outro! - arremata ele, furioso, levantando-se.
- Vem, senta-te aqui!... - diz ela, abraçando-se às pernas dele. -Vamos conversar!...
- Por que não enfrentas o teu pai, Tininha!... - pergunta ele, firme, ajoelhando-se ao lado dela. - Lança-lhe ao rosto que não és nenhum fardo de peixe salgado, para que ele te negocie assim!... E a tua vontade nada conta?...
- Mamãe prometeu ajudar-nos, querido! - responde ela, baixando os olhos. - Tenhamos paciência!
- Que poderá fazer sozinha a tua mãe, contra a vontade do teu pai? - diz ele, com a voz carregada de ironia. - Apesar de imbuída de bons propósitos, não vejo como ela poderá ajudar-nos, além de somente conseguir indispor-se com o idiota do teu pai!... - e completa, resoluto:
- Sinto muito, queridinha, mas a solução será que enfrentemos o teu pai, eu e tu, juntos!
- Se conhecesses papai... - diz ela, com os olhos rasos de pranto. O rapaz olha para a jovem namorada e se enternece.
- Oh, não chores, querida! - diz ele, enxugando-lhe as lágrimas com a ponta dos dedos. - Prometo-te que arranjaremos uma solução!... Que não te casarás com aquele mostrengo do teu primo, eu te garanto!... Confia em mim!...
Teresa Cristina emite longo e profundo suspiro e se aninha nos braços do rapaz. Carinhosamente, ele lhe beija o alto da cabeça e lhe sente o suave perfume dos cabelos castanho-claros, caprichosamente arranjados em duas grossas tranças, a perpassarem-lhe, graciosamente, a nuca, presas com dois grandes grampos de ouro maciço.
- João Miguel... - murmura ela, fortemente enlaçada pelos braços dele.
- O que é?...
- Promete-me que não matarás papai...
Ele se resume a afastá-la de si e a encará-la com olhos estranhos, nos quais a esclerótica muito branca contrastava, enormemente, com a íris negra como o azeviche. Expressão estranha e brilho estranho estampavam-se nos olhos de João Miguel. Ele nada disse. Apenas fitou-a, firme, nos olhos, e, então, um intenso calafrio percorreu o corpo da jovenzinha, de alto a baixo, e ela sentiu um grande medo dele.
Neste ínterim, eles nada perceberam, mas, a poucos passos de onde ambos se encontravam, um tufo de capim mexeu-se, quase que imperceptivelmente, e um par de olhos bisbilhoteiros passou a estudar, minuciosamente, o casalzinho que, agora, beijava-se, apaixonadamente, aos lábios.
- Sua Excelência precisa saber disso!... - murmura o homem que se acocorava atrás do tufo de capim. - Ah, se precisa!...
E, com expressiva satisfação estampada ao rosto, o homem continua, por um pouco mais, sondando o que faziam João Miguel e Teresa Cristina, parcialmente encobertos pelo cortinado dos balançantes ramos verde-escuros do salgueiro. Depois, pé ante pé, o coscuvilheiro levanta-se e sai apressado. Tinha importantes revelações a fazer para seu patrão, o Marquês das Alfarrobeiras...
______________________________________________________________________________________________
1. Comummente, espíritos que desencarnam por meio de processos violentos, como assassinato, acidente ou suicídio, acham-se, temporariamente, perdidos e costumam vagar pelos arredores do local onde foram mortos - consequência de ainda não terem tomado consciência da nova situação em que se encontram.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 9:17 am

Capítulo 5 - Uma estada em Lisboa
Depois que deixara a casa de Manuela, João Manuel caminhava sem pressa, pela alameda sombreada de alfarrobeiras que floresciam em estonteante profusão de pencas amarelo-ouro, a penderem dos esgalhos novos, que brotavam com todo o vigor da primavera nascente. Tinha o coração um pouco amarrotado pela indelicadeza da amante, despedindo-o daquela forma. Embora de natureza humilde e analfabeto, era um rapaz romântico e, no fundo, bastante sensível. Manuela sempre o maltratava e o mandava embora, cheia de grosserias. As vezes, ele tinha vontade de mandá-la às favas, de não mais aceder aos seus convites libidinosos, porém o dinheiro que ela lhe dava era bem-vindo e necessário à sua subsistência. O pouco que, habitualmente, conseguia arrancar dos ingénuos marinheiros, nos jogos de cartas e de dados, nem de longe, suprir-lhe-ia as necessidades mais prementes. Na realidade, sequer um cantinho só dele, João Manuel possuía; desde que crescera e o expulsaram do orfanato, vivia nas ruas. Quando possível, dormia com as mulheres da vida; quando não, ajeitava-se num canto qualquer, à mercê das intempéries. Sua vida tinha sido assim, livre, sem qualquer compromisso com o trabalho sério, a vadiar pelas ruas e a beber nas tavernas do porto. Não havia caminhado muito, descendo a ladeira em direcção do cais, e já se havia esquecido de Manuela e das palavras azedas que ela lhe dirigira. Linda manhã de primavera surgia, no meio das flores e do trinado dos pássaros, e ele estava vivo!... Para que ficar pensando em Manuela e nas grosserias que ela lhe havia falado?... Ela que se danasse!... Não o queria somente quando se sentia só?... Então, para que ficar pensando nela?... O estômago começou a roncar, exigindo alimento, e João Manuel acariciou o dobrão de ouro no bolso do casaco surrado. "Toca ao Velho Timoneiro!...", pensa, com um sorriso aos lábios. "A esta hora, o cozido de Mestre Branquinho já deve estar quase pronto!..., e apressa os passos, quase a correr, como um moleque...
Pouco depois, encontrava-se sentado ao lado de tosca mesa de madeira, que exalava um odor azedo de vinho e de cerveja ali constantemente derramados, além de encontrar-se grandemente escurecida pelo acúmulo de sujidade. O estalajadeiro acabava de depor, diante dele, uma caldeireta de chope, a vazar borbulhante espuma pelas bordas, mais o prato de fumegante guisado de miúdos de porco e metade de um pão preto.
- Bom proveito, Anjinho!... - exclama o velho bodegueiro, limpando as mãos no avental encardido e abrindo largo sorriso de alguns poucos dentes enegrecidos e carcomidos pela cárie.
O rapaz aspira o perfume da comida que vaporava e, apanhando o grande copo de estanho, sorve longo trago da bebida espumante. Ia principiar a comer quando, de soslaio, divisa Gerusa que, descobrindo-o sentado na bodega, adentra, rapidamente, e se põe diante dele.
- Oh, finalmente te encontro!... - exclama ela, esbaforida. - Procurei-te por toda a manhã!... Onde é que te meteste, Anjinho!
- Por aí - responde ele, sem muita vontade de dizer à amiga onde é que realmente estivera pelas últimas horas. E, prossegue, mostrando-se altamente gentil, como era de seu feitio: - Mas, senta-te e come comigo!... Pálida como estás, deve fazer, no mínimo, um mês, que não te alimentas direito, não é?
- Pelo que estás a comer, deves encontrar-te montado no ouro!... -exclama ela, satisfeita, olhando para o prato do rapaz. Depois, sem demonstrar qualquer cerimónia, senta-se à mesa.
- Ora! - responde ele. E mente: - Ganhei uns trocados a mais nos dados, esta noite!... Nada, além disso!
Solicitado, Mestre Branquinho traz outro prato igualzinho ao que João Manuel comia e o depõe diante de Gerusa.
- Anjinho - diz a jovem prostituta, enquanto ambos comiam com apetite voraz -, tenho algo muito estranho a dizer-te.
O rapaz limita-se apenas a levantar os olhos do prato e a fitá-la, cheio de interesse. Gerusa olha para os lados e diz baixinho, quase num sussurro:
- Esta noite Madalena veio ver-me!
- O quê?!... - exclama o rapaz, engasgando-se com um pedaço de porco que mastigava, enquanto ouvia a amiga. - Deves ter perdido o juízo!... - diz ele, lutando para livrar-se do acesso de tosse o acometera.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 9:18 am

- Esqueces que Madalena foi assassinada?... Tu mesma lhe descobriste o corpo!... Bebeste, logo de manhã, ou estás a caducar antes da hora?...
- Não!... - diz ela e, fazendo gestos com a mão, incita-o a baixar a voz. - Ouve-me, primeiro!... - e passa a narrar-lhe o inusitado encontro com a antiga companheira assassinada.
- Que coisa estás a dizer-me, Gerusa!... - exclama o rapaz, altamente impressionado. - e, empurrando o prato, prossegue: - Fizeste-me perder o apetite!... Mas, com que propósito Madá citou-te o meu nome?... Tu mesma és testemunha de que eu estive o tempo todo contigo, naquela manhã!...
- Sim!... - responde Gerusa. - Eu o disse a ela!... Entretanto, desvaneceu-se no ar como fumaça, sem que eu pudesse saber mais!...
- Que terei eu a ver com isso, Gerusa! - pergunta o rapaz, altamente impressionado com o fato. - E, por outro lado, para que o fantasma de Madalena tenha vindo do outro lado da morte para ver-te e falar de mim, deve haver algum motivo muito sério embutido nisso tudo, não achas?
- É o que penso, Anjinho... - responde a moça, olhando-o nos olhos. - Que achas que devamos fazer?
- Não sei, Gerusa!... - diz ele, entre pensativo e ainda chocado com a notícia. E, depois de meditar, por instantes, em silêncio, prossegue: - E se perguntássemos a Dom Eusébio!
- Não sei... Achas que nos receberá? - pergunta Gerusa, receosa.
- Ele é tão ocupado!...
- A mim, ele receberá, com toda a certeza!... - responde o rapaz, animando-se. E, como lembrar da pessoa que lhe fora tão importante, um dia, trouxesse-lhe, também, gratas recordações, continua, com intenso brilho no olhar: - Dom Eusébio vinha visitar-nos, sempre, quando eu estava no orfanato!... E, pelo Natal, trazia-nos nozes e caramelos!... E nos punha, um a um, sobre os joelhos e sempre nos contava a história do nascimento do Menino Jesus!...
Algum tempo depois, João Manuel e Gerusa detinham-se diante do alto e robusto gradil de ferro escuro do portão da mansão episcopal e sondavam com olhos apreensivos a imponente e venerável construção medieval.
- Achas, mesmo, que Dom Eusébio lembrar-se-á de ti, Anjinho!... _ pergunta a jovem prostituta, temerosa. - E, quanto a mim, não será melhor que te aguarde por aqui?... Bem sabes que os padres não costumam tolerar pessoas como eu...
_ Dom Eusébio não dá importância a essas coisas, não!... - exclama o rapaz, puxando-a pela mão. - Vem!... Quero que o conheças de perto!...
Resoluto, João Manuel puxa o cordel da sineta e, enquanto aguardavam, Gerusa cochicha-lhe:
- És mesmo um doudo!... Quanto tempo faz que não vês Dom Eusébio!...
- Não nos vemos desde quando deixei o orfanato - responde o rapaz.
- E quando foi isso?... - pergunta ela, notadamente preocupada.
- Acho que faz uns cinco anos - responde ele, tomado de intensa ansiedade.
- Verás: seremos escorraçados daqui como cães hidrófobos!... - diz ela, nervosa. - Depois não venhas dizer-me que não te avisei!... Melhor é irmo-nos daqui antes que seja tarde!...
- Não sejas tonta, Gerusa!... - exclama ele. E, pondo o indicador aos lábios, diz: - Ssssh!... Cala-te que alguém se aproxima!
De facto, um padre gigantesco, arrastando, pesadamente, os pés, aproxima-se do alto gradil e pergunta:
- Que desejais?
- Queremos falar a Dom Eusébio - diz João Manuel.
- A quem devo anunciar? - pergunta o religioso, olhando os dois jovens, demoradamente, de alto a baixo, inexpressivamente, com um par de olhos baços, que pareciam, a muito custo, sustentar abertas as flácidas bolsas oculares que teimavam em fechar-se, involuntariamente, presas de insistente sonolência.
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 2 Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 9:18 am

Feita a identificação, o padre volta-se para dentro e, depois de uns bons vinte minutos, retorna vagaroso, sem pressa, empunhando grande chave de ferro à mão.
- Fazei o favor de entrar - diz ele, com voz canónica, após abrir, sem indício de ter despendido qualquer esforço, o pesadíssimo portão de ferro maciço. - Sua Excelência aguarda-vos na biblioteca.
João Manuel e Gerusa seguem o religioso, que lhes ia à frente, gigantesco, balançando-se, ligeiramente, enquanto mudava seus pesados passos elefantinos, através de infinitos corredores, até estacarem diante de robusta porta de carvalho escuro. O padre corpulento bate com os punhos e, após aguardar uns poucos segundos, abre a porta.
- Fazei a gentileza - convida ele, sempre inexpressivo, franqueando-lhes a entrada.
O padre sai e fecha, com um pequeno estalido, a pesada porta, atrás de si. A biblioteca era imensa e, num dos cantos, bem próximo de uma das amplas janelas, atrás de uma escrivaninha, sentava-se o bispo. Trajava hábito negro e mantinha a cabeça baixa, enquanto escrevia. No alto do cocuruto, o solidéu, também escuro e forrado de seda vermelha, encaixava-lhe, perfeitamente, sobre a tonsura rósea e brilhante. Depois de instantes, ergue os olhos e, ao fitar as visitas, seu rosto ilumina-se e se abre num amplo sorriso.
- Anjinho!... - exclama o bispo, levantando-se e rodeando a escrivaninha.
O rapaz aproxima-se e, dobrando o joelho, beija, respeitosamente, o anel que o prelado estende-lhe. Gerusa adianta-se e faz o mesmo. Dom Eusébio, em seguida, abraça, longa e demoradamente, o rapaz.
- Quanto tempo, Anjinho!... - exclama o bispo. Depois, afastando, delicadamente, o rapaz e, passando a olhá-lo, insistentemente, admira-se:
- Tu te transformaste num rapagão, hein?... Quem diria!... Tão mirradinho que eras no orfanato!... - e, indicando com a mão as poltronas de veludo marrom, faz com que o rapaz e Gerusa se sentassem. E, depois de ele também voltar a se ajeitar atrás da escrivaninha, prossegue:
- Mas, diz-me por onde andaste?... Desapareceste de repente...
- Andei por aí, Dom Eusébio - responde o rapaz, baixando os olhos e se encolhendo, ligeiramente, na poltrona, como a temer que o bispo descobrisse o que realmente andara fazendo desde então.
O prelado permanece em silêncio, por alguns segundos, passeando os olhos do rapaz para a moça, da moça para o rapaz. Era patente que sabia qual a condição da rapariga, pois lhe estudara, minudentemente, as roupas altamente escandalosas para a época, a peruca ruiva, a maquilhagem exagerada... Entretanto, limitara a sorrir-lhe, com a bonomia que lhe era peculiar. E, Gerusa, que até então, afundava-se na poltrona, cheia de terror, toda vez que os olhos do bispo varriam-na, literalmente, de alto a baixo, principiava a relaxar. Dom Eusébio tinha os olhos carregados de bondade; certamente, não a destrataria, expulsando-a dali, como se faz a um bicho abjecto, nem mesmo, depois que soubesse quem, de fato, ela era.
- Muito bem, meus queridos!... - diz o bispo, com um sorriso aos lábios. - Que posso fazer por vós?
- Temos algo estranho a relatar-vos, senhor - diz o rapaz, olhando, sério, para o religioso. - E, também, pedir-vos um conselho.
João Manuel passa, então, a narrar, minuciosamente, ao bispo, a estranha aparição que Gerusa presenciara na noite anterior e o colóquio incompleto, que mais dúvidas suscitaram na cabeça de ambos. E, enquanto o rapaz falava, Dom Eusébio sondava-lhe as feições, agora, já de um homem feito. Lembrava-se muito bem daquele menino, de tempos atrás, quando ele se achava internado no orfanato mantido pela diocese; não sabia por que, mas sempre se intrigara com aquele garotinho que, embora franzino e tímido, era possuidor de aspectos nobres, e cujos traços faciais sempre lhe lembravam alguém, mas por muito que se esforçasse, não conseguia lembrar-se. Agora, entretanto, que o menino havia crescido, tinha o rosto bem-feito, era dono de um olhar tocante e profundo, aquelas estranhas lembranças voltavam a atormentá-lo. Quem aquele rosto lembrava?... Não só o rosto, mas os gestos, o olhar, a voz... O rapaz falava, narrando estranhos acontecimentos que acontecera à mocinha que lhe sentava ao lado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 9:18 am

"Estranhos factos... Estranhíssimos factos!...", pensa Dom Eusébio. Quando João Manuel termina sua narrativa, o bispo mostrava-se altamente sério. Nada disse a princípio. Levantou-se e, pondo as mãos às costas, principiou a caminhar em círculos pelo espaçoso e rico ambiente da biblioteca, pejado de raríssimas obras de arte e livros, muitos livros, primorosamente encadernados, a exibirem lombadas com caracteres dourados, enfileirados numa profusão de prateleiras de madeira lavrada, a estenderem-se até o tecto, recoberto de gesso alvíssimo.
- Moras sozinha, menina? - pergunta Dom Eusébio, voltando-se para Gerusa, que o seguia com os olhos altamente expectantes.
- Sim, senhor - responde ela, baixando, timidamente, os olhos.
- E não costumas receber ninguém em tua casa, principalmente, à noite? - continua o bispo.
- Às vezes, senhor - diz a jovem prostituta, agora com o rosto em fogo. Estava morrendo de medo de que o bispo a expulsasse dali.
- Não estou a criticar o que fazes, menina! - diz Dom Eusébio, parando diante de Gerusa e, delicadamente, tomando-lhe o queixo com a ponta dos dedos, força-a a encará-lo. - Teu destino, deu-to Nosso Senhor, e não compete a mim dizer-te se é certo ou errado!... Aqui não vieste para pedir-me conselhos sobre a tua conduta, mas sobre algo extremamente inusitado que te aconteceu!... E, para que eu te aconselhe sobre isso, primeiro, é necessário que conheça bem as circunstâncias em que o fato aconteceu. E, se afirmas que estavas só e que te apareceu o fantasma da tua antiga companheira, drasticamente assassinada dias atrás, é porque, realmente, ela tem algo a dizer-te, meu bem!... - diz o bispo, agora, voltando a sentar-se à escrivaninha.
- Dizes então ser isso possível, Dom Eusébio! - pergunta João Manuel.
- Embora a Igreja que represento costume ensinar o contrário, eu o creio, Anjinho!... - diz o prelado. - Digo que creio, porque vejo a minha mãe - morta há muitos anos! - que vem, amiúde, conversar comigo!... Por que haveria eu, então, de negar que os mortos podem, eventualmente, retornar das sombras e se avistar connosco?... Que todos neguem tal possibilidade, até mesmo o papa, mas eu não!... Eu os vejo!... Como poderia negar fato assim, que me é tão patente, tão real?
João Manuel e Gerusa entreolham-se. Animando-se, convencem-se, com aquela significativa troca de olhar, de que haviam procurado a pessoa certa.
- E, da forma como me discorrestes sobre o acontecimento - prossegue Dom Eusébio -, posso afiançar e atestar, com toda a certeza, que é exactamente assim mesmo que ocorrem essas coisas!... Os mortos vêm, sim, meus queridos - mesmo à revelia de muitos que não desejam que isso jamais aconteça! -, para nos mostrarem, principalmente, que continuam vivos e ainda nos contarem, com riqueza de detalhes até, como é o lado de lá!... - e, voltando-se para a jovem prostituta, continua: - E, se tua amiga apareceu-te, é porque tem algo muito importante a dizer-te!
- Mas, por que terá dito apenas uma palavra: Anjinho! - pergunta Gerusa, armando-se de coragem, para encarar Dom Eusébio.
- Disse esse nome, querida - responde o bispo, com sua natural afabilidade, e muito contente por perceber que a jovem prostituta, finalmente, abria-se a ele -, por uma série de motivos e caberá a nós descobrir qual deles é o que nos interessa!... Terá citado Anjinho por ter sido sua amiga?... Por encontrar-se em extremo desespero e se lembrar de quem, eventualmente, poderia socorrê-la?... Por ter descoberto algo sobre o amigo, e que a fez, em consequência disso, perder a vida?... Ou, ainda, que Anjinho conheça o frio assassino que tão barbaramente lhe tirou a vida?... São tantas as hipóteses...
- Que faremos, então, Dom Eusébio? - pergunta João Manuel.
- Esperar, querido, esperar... - responde o bispo. - Se o que Madalena tem a dizer-nos é realmente importante, voltará a aparecer a ti, Gerusa. E, quando isso acontecer, mostra-te sem medo, atropelos ou nervosismos: deixa-a à vontade e ela falará!... Ah, se falará!... - encerra Dom Eusébio com um sorriso enigmático.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 7:44 pm

Já na rua, os jovens confabulavam, mais animados.
- Não te disse que Dom Eusébio teria as repostas? - diz João Manuel cheio de orgulho.
- Que pessoa extraordinária!... - exclama Gerusa. - Foi o primeiro padre que não me lançou qualquer anátema às fuças!
- Dom Eusébio não é padre, sua boba!... - exclama o rapaz, rindo-se da ignorância da amiga. - Ele é bispo!... Não viste como suas roupas são diferentes das dos demais padres e como é linda a casa onde mora?
O sol da tarde iluminava a cidade que se esparramava ladeira abaixo, em direcção do porto. Mais além das docas, o Tejo estava sereno, azul profundo. João Manuel e Gerusa, de mãos dadas, caminhavam, sem pressa, descendo a aleia de árvores pejadas de flores. Voltavam para a baixada do porto, para o seu reduto, a continuarem a eterna briga pela sobrevivência, posto que faziam parte dos que, vivendo num mundo desumano e cruel onde, para obterem um simples pedaço de pão, tinham de sujeitar-se ao pesadíssimo labor de inúmeras e seguidas horas de extenuantes sacrifícios...

* * * * * * *
No topo da escadaria de granito cinza que dava entrada à sua primorosa vivenda, Jerónimo Dantas e Melo ouvia, atentamente, o que seu capataz relatava-lhe, baixinho. As feições do Marquês das
Alfarrobeiras iam, à medida que o outro lhe falava, tomando-se fechadas, duras, petrificando-se.
- Fizeste muito bem em trazeres-me tal fato ao conhecimento, Jacinto] - exclama Jerónimo Dantas e Melo, com o rosto altamente congesto pela raiva. E, tirando do bolso do casaco um dobrão de ouro, dá-o ao cobiçoso servidor que, altamente agradecido, põe-se de joelhos e beija a mão do patrão. - Agora, toca a cuidares das tuas obrigações! - ordena ele, rispidamente, ao homem que sai, quase a correr.
- Maldita!... Desgraçada!... - murmura Jerónimo, entre dentes, enquanto se dirige para o interior da casa, a passos largos. - Tu me pagarás caro pela afronta, desaforada!...
E, como um possesso, passa a procurar pela filha, entrando, intempestivamente, no quarto da mocinha, que se assusta ao vê-lo entrar, sem bater, e com as feições transtornadas pelo ódio.
- Papai!... - exclama ela. - Que tens?...
- Desgraçada!... - grita Jerónimo, agarrando a filha, brutalmente, pelo braço. - Então andas a te esfregares com o miserável do filho do Manuel António, é?... Leviana!... Desavergonhada!... - e lhe desfere violenta bofetada ao rosto.
Teresa Cristina, diante da estúpida agressão recebida, cai, desajeitadamente, ao chão, enquanto as lágrimas brotam-lhe aos olhos.
- Não, papai!... - grita ela, desesperada. - É mentira!...
- Rameira!... - grita Jerónimo, enfurecido. - Quem me contou não tinha porque mentir!... És, de facto, uma desgraçada!... - e, desferindo violento safanão, arroja a filha ao chão.
- Não, papai, por piedade!... - implora a mocinha, pondo-se de joelhos, diante do progenitor, que se encontrava altamente transtornado pelo ódio.
- Desobedeceste-me, não é, miserável? - diz Jerónimo, arrostando a filha, enquanto a segurava, violentamente, pelos cabelos. - Tu te casarás com teu primo Vasco, quer queiras ou não!... Tu me obedecerás ou te internarei no Convento do Carmelo!... Lá viverás em plena clausura e sequer verás a luz do sol, desgraçada!... Ousa desobedecer-me e terás, bem depressa, o resultado!... - brada ele, furioso.
Alertada pelos estentóreos gritos do marido, Bárbara, a esposa, adentra, altamente alarmada, o quarto e se depara com a cena carregada de violência e de agressão.
_ Pelo amor de Deus, homem!... - grita a Marquesa das Alfarrobeiras, puxando o marido pela barra da casaca que, naquele momento, principiava a surrar a filha com o cinto que tirara das próprias calças. -Estás a matar nossa filha de pancadas!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 7:44 pm

_ Mato esta infeliz, ainda hoje!... - exclama Jerónimo, espumando ódio pelos cantos da boca. - Ou me obedece ou a mando aos quintos dos infernos!
- Por Deus, homem!... - grita a esposa, enfrentando-o, feroz. E, interpondo-se, ousadamente, entre o esposo e a filha, prossegue, desafiando-o: - Se vais matar alguém por aqui, hoje, é por mim que deves começar, seu brutamontes!...
Teresa Cristina mantinha-se de joelhos, diante do pai, e, com o rosto altamente lanhado, soluçava baixinho. O Marquês das Alfarrobeiras, enfrentado pela esposa que, num rompante, tomara-lhe o cinto das mãos, permanecia ainda altamente enfurecido e tremia muito, visivelmente transtornado pela ira extrema. Passeava os olhos da mulher para a filha, e da filha para a mulher, enquanto fremia de raiva.
- És um bruto, homem! - grita-lhe Bárbara à face. - É a tua única filha e tu a tratas assim?... Não percebes que ainda é uma criança?...
- Criança!... - exclama Jerónimo com desdém. - É tão criança que vive a esfregar-se, às escondidas, com o odiento filho do execrável Manuel António!...
Bárbara nada diz. No princípio, limita-se a aproximar-se da filha e a soerguê-la, cheia de carinhos. A jovenzinha tremia e soluçava baixinho.
- Acalma-te, meu bem!... Acalma-te!... - diz a Marquesa das Alfarrobeiras, abraçando-se à filha e lhe acarinhando, ternamente, os cabelos, com as mãos. E, virando-se para o marido, diz-lhe, ameaçadoramente: - Vai-te daqui, Jerónimo!... Anda!... Avia-te a esfriares os miolos, bem longe de nós, que resolvo tudo com Tininha!...
Jerónimo Dantas e Melo lança um olhar furibundo à mulher e sai, pisando duro, deixando as duas a sós.
- Vem, queridinha, senta-te aqui!... - convida Bárbara, amorosamente, à filha, incitando-a a sentar-se sobre o leito. -Vamos conversar... E não é que andaste, mesmo, a te jogares para os braços de João Miguel?!... _ exclama a mãe, lançando à filha um olhar altamente maroto. – Ai que o gajo é uma gracinha!... Saíste-me mais esperta que a encomenda que de ti fiz a Deus!...
- Mamãe!... - admoesta-a a jovenzinha, agora abrindo um sorriso no meio daquele rosto banhado de lágrimas. - Se papai pilha-te a dizer tais coisas!...
- Ai, e é?... - exclama a Marquesa das Alfarrobeiras, com a voz carregada de risota. E, dando de ombros, prossegue, cheia de desdém: - Olha, que ando a arder-me de medo do teu pai!...
- Mas, papai ameaçou internar-me no convento das Carmelitas Descalças!... - diz a mocinha, cheia de apreensão.
- Que horror!... - responde a marquesa, abrindo expressiva grimaça de aversão. - Logo nas Descalças?... Não haveria, pois, um outro convento?
- Mamãe!... - censura-a a filha. - Nunca sei quando falas sério!
- Falo seríssimo, querida!... - responde Bárbara, olhando a filha, fixamente, nos olhos. - Se ele realmente pretende pôr-te num convento, que te escolha um, cujo hábito seja mais decente, e que possas, vez ou outra, meter as tuas fuças na rua!... As Carmelitas são literalmente enterradas vivas e andam cobertas de andrajos, feito mendigas, alimentando-se, exclusivamente, de água, de caldo de legumes e de pão dormido!... Que horror!... Tremo-me, inteirinha, só ao pensar em tais despautérios!... Imagina!... Andares por aí sem sapatos!... Como ficarão teus ricos pezinhos?... Ideias de jericos, essas do teu pai!... - e, elevando ambos os braços ao alto, prossegue, altamente inflamada: - Que homem desalmado, meu Deus!... Porém, fica sossegada, queridinha!... Para ele te internar no convento das Carmelitas Descalças, terá de passar, primeiro, sobre o meu cadáver!...
- E achas que o convencerás do contrário? - pergunta a mocinha, grandemente preocupada.
- Deixa comigo, minha cara!... - exclama a Marquesa das Alfarrobeiras, piscando, marotamente, um olho. - Até parece que ainda não me conheces!... Além de livrar-te do convento, propiciar-te-ei bela estada em Lisboa!...
- Em Lisboa?!... - espanta-se a jovem. - Crês, piamente, que papai deixar-me-á ir sozinha à corte?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 7:44 pm

- Se não vai!... - responde a mãe. - Tu passarás uma boa temporada com a prima Manuela!.... Dá-me apenas o prazo necessário para que eu convença o cabeçudo do teu pai, de que será muito melhor para ti mudares de cidade, por uns tempos, que sepultar-te viva, no convento das Carmelitas Descalças!... Aguarda um tantinho só, que tu verás!...
_ Oh, mamãe!... - exclama a mocinha, abrindo um sorriso. - Não sei o que seria de mim, sem ti!...
_ Acaso não és a minha pombinha?... - diz Bárbara, abraçando-se, ternamente, à filha. E, beijando-a, profusamente, às faces, prossegue: - E, para ver-te, assim, a sorrir, moverei sempre céus e terras, minha cachopita linda!... Nunca duvides disso!... Nunca, mesmo!... Por tua felicidade, enfrentarei qualquer um neste mundo!
- Obrigada, mãezita do meu coração!... - exclama, feliz, a jovenzinha, beijando, efusivamente, as mãos da genitora. A seguir, prossegue, já bastante animada: - E, lá, na corte, poderei encontrar-me com o meu amor, não é mesmo?
-Com toda a certeza!... - diz a mãe, rindo-se. - Mas, juízo, hein?... Não te vás meter a fazer asnices!... Afirmo-te que os homens são todos uns idiotas, mas jamais te esqueças de que, para mantê-los sempre firmemente presos sob o nosso sovaco, muita perspicácia e muita cautela serão sempre necessárias!...
Naquela mesma tarde, o pai procurou por Teresa Cristina. Encontrava-se cabisbaixo, e não olhou uma só vez nos olhos da filha, enquanto lhe falava.
- Tua mãe acaba de convencer-me de que será melhor para ti uma estada na corte, em casa de nosso primo Afonso Albuquerque e Meneses. Tua prima Manuela, mulher casada e de bons costumes, certamente, dar-te-á conselhos úteis e, principalmente, exemplos de boa conduta, o que, decididamente, tu não tens demonstrado o suficiente, ultimamente!... Toca a arrumar as tuas malas que, amanhã mesmo, eu próprio te conduzirei até lá!
O pai faz meia-volta e sai, sem encará-la, nos olhos, uma única vez. Ficando só, no quarto, Teresa Cristina lança-se sobre o leito e se põe a rir. Deus do céu!... A mãe conseguira!... Mal acreditava: passaria uns tempos sozinha, pela primeira vez na vida!... E, longe dos olhos sempre perscrutáveis do pai, poderia ver João Miguel, todos os dias, se assim o desejasse!... A prima Manuela, certamente, sendo uma mulher ainda bastante jovem, não seria afeita às rabugices do pai!... Quanto ao primo Afonso, lembrava-se bem dele: era um rapagão bonito e elegante e tinha os olhos doces como o mel!... Ninguém lá era parecido com o Pai!... A mãe acertara em cheio!...
Na manhã do dia subsequente, a Marquesa das Alfarrobeiras enxugava uma falsa e discreta lágrima, ao despedir-se da filha, diante das escadarias de sua mansão. O pai esperava pela jovenzinha, dentro do coche que os levaria a Lisboa.
- Vai com Deus, minha queridinha! - exclama a matrona, atraindo a filha para si. E, depois, murmura baixinho, ao ouvido da jovem, enquanto se abraçavam, comovidas. - Aproveita bastante a tua estada com Manuela e busca aprender boas maneiras com a tua prima, que é uma mulher refinadíssima!... E, principalmente, não te deixes intimidar por nada!... Se o teu amor aparecer por lá, recebe-o, entendeste bem?... Agora, faze uma cara de grande tristeza e vê se choras um pouquinho mais!... Não quero nem pensar no fato do teu pai desconfiar de que tramamos isso tudo!
O pai bate, com insistência, a bengala, na janela do carro, apressando a filha.
- Já avisei João Miguel... - sussurra ela ao ouvido da mãe.
A mãe pisca-lhe um olho, cúmplice, e, a seguir, fingindo ambas alta consternação, desenvencilhar-se do longo abraço. Teresa Cristina toma assento no carro, ao lado do pai. A seguir, o cocheiro estala o longo chicote no ar, e a parelha de belos corcéis negros dispara, célere. Satisfeitíssima, Bárbara Dantas e Melo acena, nervosamente, um lencinho de rendas brancas, enquanto o coche ganha, ligeiro, a estracinha de saibro amarelo e desaparece, rapidamente, rumo a seu destino.
- Veremos, se tu te casarás com aquele espantalho do Vasco, minha pombinha!...Veremos!... - murmura a Marquesa das Alfarrobeiras, e um sorriso de satisfação plena brota-lhe nos lábios exageradamente pintados de carmim...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 7:45 pm

Capítulo 6 - Inusitado encontro
Do alto da escadaria de reluzente mármore branco, Manuela Albuquerque e Meneses, com olhos carregados de desdém, espia, demoradamente, a mocinha recém-chegada. Que é que aquela pirralha de olhos cor de mel tinha de vir para a sua casa a encher-lhe as paciências, tirar-lhe a liberdade?... Parentes!... Que maçada!... Os parentes e suas desagradáveis visitas de surpresa!... Entretanto, à medida que foi vencendo os degraus da escada, muda, rapidamente, as feições e abre um largo sorriso.
- Oh, seja bem-vinda, queridinha!... - diz ela, abraçando-se à priminha que a olhava, meio tímida, parada no meio do imenso vestíbulo. -Vieste sozinha?... - pergunta Manuela, espichando o pescoço e tentando ver lá fora.
- Papai supervisiona o descarregamento da bagagem - responde Teresa Cristina.
"Céus!...", pensa Manuela. "Vieram todos e para ficar!...". Contudo, mestra que era nas dissimulações, nada deixa transparecer e pergunta, puxando a mocinha pela mão, enquanto se encaminham para a entrada do vestíbulo: - Creio que disseste que teu pai veio contigo... E a tua mãe não veio?
- Não, mamãe ficou, e acho que papai retomará amanhã - responde a mocinha.
'Hum... Então a insuportável Bárbara não veio!... Melhor assim!... Melhor assim!...", pensa Manuela, animando-se um pouco mais.
- Entretanto, presumo que tu ficarás por mais alguns dias... - observa Manuela, olhando para a mocinha, com o rabo dos olhos, enquanto ganhavam o grande pórtico de entrada do vestíbulo.
- Ficarei um bom tempo contigo, Manuela - diz Teresa Cristina. - o Pai pretendia meter-me no convento das Carmelitas Descalças!
- Que horror!... - exclama Manuela, estacando, de repente, altamente espantada. - E por que queria o teu pai cometer tal despautério contigo?... Diz-mo lá: que foi que aprontaste, hein, menina? - pergunta, assaz desconfiada.
Teresa Cristina ia responder, quando Jerónimo aproxima-se.
- Cara Manuela!... - exclama o Marquês das Alfarrobeiras, beijando a mão que a mulher lhe estendia.
- Primo Jerónimo!... - diz a anfitriã, fingindo alta satisfação. - Quanta honra recebê-los em minha casa!... E Bárbara, por quer não veio?... Ai, que morro de saudades da minha adorada prima!...
Jerónimo Dantas e Melo partiu de volta, na manhã do dia subsequente, deixando a filha aos cuidados da estouvada Manuela que, diga-se de passagem, a princípio, não gostara nada da ideia de ter a priminha por ali, a bisbilhotar tudo o que fizesse. Manuela sentiu-se encalacrar: como receberia os amantes, doravante?... E, se a talzinha percebesse algo e contasse a Afonso, seu marido?... Não conhecia, profundamente, a mocinha, pois haviam tido pouquíssimos contactos até então. E, se tivesse se saído tão bisbilhoteira quanto a mãe, que era dona de olhos espertíssimos, que nada - mas nada mesmo! -, deixavam escapar?... Na realidade, parente consanguíneo dos Marqueses das Alfarrobeiras era seu esposo; Manuela, apenas, considerava-os parentes por afinidade, por respeito, embora os achasse por demais provincianos, apesar de sintrãos e de morarem ali bem pertinho de Lisboa. Que maçada!... Que faria doravante?... Ficaria sem os furtivos encontros que mantinha, à noite, com seus amantes?... Que pena!... Agora que poderia aproveitar bastante, pois o marido não dava sinal de vida, fazia, já, mais de quarenta dias.
- Ainda não me contaste direito por que cargas d'água desejava o maluco do teu pai internar-te nas Carmelitas Descalças... - diz Manuela para Teresa Cristina, no dia subsequente à chegada da mocinha, enquanto ambas tomavam a merenda da tarde, sentadas em espaçosa varanda que dava para o jardim interno da mansão.
- Oh, nem te conto, cara prima!... Nem te conto!... - exclama a mocinha, olhando, um tanto ressabiada, para a criada que as servia e que, estática, postava-se num canto, ali ao lado, e que, de repente, espichara as orelhas para ouvir.
_ Não te preocupes com Inácia - diz Manuela, percebendo que a prima intimidava-se com a presença da serviçal -; é discreta como um túmulo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 7:45 pm

Pilhada na escuta, a criada encolhe-se à sua antiga e pretensa rispidez, e Teresa Cristina prossegue:
_ O capataz de papai surpreendeu-me, a sós, com meu namorado - diz a mocinha, baixando os olhos, cheia de pudor.
- E isso foi motivo suficiente para o teu pai intentar meter-te naquela horrorosa clausura? - pergunta Manuela. - Acaso namoravas sem o consentimento dele?
- Sim - responde, tímida, a mocinha. - Na realidade, João Miguel não é o meu verdadeiro namorado...
- Hum, entendo... - diz Manuela, trocando significativo olhar com Inácia que, de orelhas em pé, feito uma lebre, não perdia uma só das palavras do colóquio de ambas. - Na realidade, tu tens um outro namorado...
- Tenho... - responde a jovenzinha. - Na verdade, um noivo...
- Ora!... - exclama Manuela, empertigando-se na cadeira de vime e, agora, interessando-se, enormemente, pelo que lhe contava a priminha. - Dizes, então, que tens um noivo, é?... E quem é o gajo?... Conheço-o, acaso?...
- Por certo que o conheces, Manuela - responde Teresa Cristina.
- Trata-se de Vasco de Almeida Soares, filho do Visconde de Carvalhal e que, por sinal, é meu primo!
- Que lástima!... - exclama Manuela. - Por que foste arranjar um homem tão feio quanto aquele?... Que péssimo gosto tiveste, menina!... - e, aproximando-se mais da outra, prossegue, abrindo um sorriso maroto:
- Foi pelo dinheiro dele, não foi?
- Não! - exclama Teresa Cristina. - Por Deus que não!... Eu abomino Vasco l...
- Não te entendo, priminha!... - diz Manuela, cheia de sarcasmo. -Se não foi pela montanha de ouro que os Viscondes de Carvalhal, certamente, guardam enterrado, nos subterrâneos daquele velhusco e tétrico castelo que habitam, por que foi, então?
- Papai arranjou-me este nefando noivado, prima... - explica a jovenzinha, baixando os olhos, carregados de tristeza.
- Começo a entender... - diz Manuela, quase a sentir pena da outra. -meço a entender... Tu não amas Vasco: tu tens um outro amor não
- Sim, amo João Miguel, um rapaz por quem sou perdidamente apaixonada e que também me ama!... - responde a mocinha. - Entretanto, nossas famílias odeiam-se!... Somos vizinhos de quinta e, consequência de um litígio de terras, que se arrastou por anos e anos, nossos pais são inimigos ferrenhos!...
- Oh, que complicação!... - exclama Manuela, trocando um olhar com a criada, que não perdia uma só das palavras, altamente interessada que estava no assunto. E a esposa de Afonso Albuquerque e Meneses prossegue, cheia de curiosidade: - E esse... Esse rapaz por quem és apaixonada é jovem, formoso e rico ou se trata de outro rebotalho de bofe como Vasco de Almeida Soares!
- Não, ele não é como Vasco, não! - responde a mocinha, de repente, acendendo intenso brilho aos olhos. - João Miguel é lindíssimo e muito rico!... E filho único e herdará toda a fortuna do pai, o Barão da Reboleira!
- E nobre, bonito e rico! - exclama Manuela, extravasando ironia até pelas orelhas. - Teu pai é, realmente, um jumento!... Prefere ver-te infeliz a casar-te com um pitéu assim?... Que desperdício, meu Deus!... Judia de ti por puro orgulho!...
- Pois se é, cara prima! - responde a mocinha. - E não tem quem o faça mudar de ideia!...
Manuela pensa por instantes e, depois, pergunta:
- Diz-me, Tininha, teu namorado sabe que estás aqui?
- Sim, contei-lhe que vinha para a tua casa... - diz a mocinha, baixando os olhos. - Fiz mal?...
- Oh, não!... - apressa-se em responder a outra. E, depois de trocar ligeiro, mas expressivo olhar com a sua criada, prossegue: - Oh, não!... Fizeste foi muitíssimo bem, em dizer-lhe onde é que te esconderias!...
Um silêncio estabelece-se, então, entre as duas mulheres. Manuela cogitava sobre o drama que a prima, embora ainda tão jovenzinha, já vivia. Como os homens costumavam ser tão duros acerca das mulheres!... Que é que pensavam que eram?...
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O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini - Página 2 Empty Re: O Mosteiro de São Jerónimo - Monsenhor Eusébio Sintra/Valter Turini

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 7:45 pm

Os donos do mundo?... Punham e dispunham sobre o destino das coitadas das filhas como se estivessem a mercadejar peixe salgado!... Ora essa!...
A esposa de Afonso Albuquerque e Meneses era muito avançada para a sua época. Única mulher, e a caçula, dentre os cinco filhos de Inocêncio Flores Martins, Barão de Leiria, Manuela criara-se, livremente, entre os irmãos, por um pai extremamente amoroso e dono de vastíssima cultura e que, embora enviuvando relativamente jovem, optara por não contrair segundas núpcias e se obrigando, assim, a tomar às mãos, sozinho, a condução do lar e, por ser extremamente liberal, não colocara muita distinção no método que empregara para educar os quatro meninos e a única menina que tivera, dando-lhes, desde muito cedo, liberdade de pensar e de agir, numa época em que os pais eram mais ditadores que educadores, a cercearem e a limitarem a liberdade e a acção dos filhos, com pancadarias e com castigos inomináveis. Possuindo educação diferenciada da grande maioria das pessoas, a filha do Barão de Leiria indignava-se com a condição das mulheres de seu tempo. "Ah, esses homens!... E por isso que não os levo nada a sério!... ", pensa Manuela, fixando os olhos no belo rostinho da prima. "E tu, pequerrucha, ainda sofrerás muito, sob os tacões das botinas do jerico do teu pai!...!" Depois, meneia, quase que imperceptivelmente, a cabeça, para afastar os pensamentos e emite um suspiro fundo. E, quase a sentir pena de Teresa Cristina, remexe-se na cadeira e diz:
- Fica à vontade, queridinha, pois a casa é tua!... - e, levantando-se, beija a prima, delicadamente, à testa. Em seguida, olha para a criada e ordena: - Inácia, acompanha-me ao meu quarto, que preciso de ti!
Inopinadamente, Manuela sentira intenso afogueamento tomando-me o corpo todo, abrasando-a de volúpia, e imensa saudade dos arrochadíssimos abraços de João Manuel invadira-a, insistentemente. Era preciso, então, tratar de apagar aquele edacíssimo incêndio, sem mais delongas, urgentemente...

* * * * * * *
Gerusa havia tomando um banho, longa e demoradamente. Passara um tempão, mergulhada na banheira, a qual se resumia a um velho tonel de vinho, seccionado ao meio. Naquela tarde tépida de primavera, enxugava-se, lentamente, com a surrada toalha encardida pelo excesso de uso e se lembrava de Madalena. Fazia já um tempão que ocorrera o estranho fenómeno, envolvendo a antiga companheira e, desde então, nada mais acontecera. Estava vencendo o medo e, todas as noites, quando chegava a casa, quase aos albores da manhã, ao deitar-se, desejava, ardentemente, que a camisa aparecesse para conversarem. Forte curiosidade.
agora, animava-a, e uma série de questões atormentava-lhe a cabeça. Se a amiga aparecera-lhe, vivinha, então a morte não seria o fim de tudo!... E, se não morremos, para onde é que vamos, depois da morte?... E, por que teria citado o nome de Anjinho!... Ela, Gerusa, tinha a certeza absoluta de que o rapaz não houvera cometido aquele brutal assassinato, pois estivera com ele o tempo todo!... Além do mais, Madalena e Anjinho sempre haviam sido tão amigos!... Muito amigos, mesmo, e ele não teria motivo nenhum para matá-la... Questões, assim, apoquentavam os miolos da pobre prostituta e a deixavam exasperada.
Anoitecia e, devagar, Gerusa punha-se a preparar-se para mais uma noitada, durante a qual, competia-lhe caminhar pelas escuras ruas e ladeiras que davam acesso ao porto, em busca do seu ganha-pão. Tocava a vender seu corpo - bufarinhas que quase nenhum valor atribuíam os porcarinhos, a nefanda fauna de viciados do sexo, a constituir-se, mormente, de nervosíssimos jovens inexperientes, homens brutais e valentões, além dos caricaturescos velhotes debochados e carcomidos pelas doenças venéreas -, vindos de todos os lugares da cidade e que enxameavam pelo porto, à noite, em busca de aventuras baratas. Havia, ainda, os marinheiros, oriundos de todos os lugares do mundo e que, costumeiramente, encharcavam-se de álcool até a alma, pelas inúmeras bodegas que por ali enxameavam, e, depois, saíam, trôpegos, à cata das mulheres... Esses eram os mais temidos. Em vez de remunerá-las pelo serviço, costumavam surrá-las, barbaramente, e, depois, sumiam, escondendo-se, covardemente, nas respectivas embarcações em que serviam e que, habitualmente, zarpariam, logo em seguida, deixando-as, literalmente, a "verem navios"!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 7:45 pm

Reclamar para quem?... Não eram todas elas proscritas e alijadas, de antemão, de todo e qualquer respeito e do mínimo de consideração por uma sociedade vil, corrupta e hipócrita?
Gerusa pensava nessas coisas, e um frémito de ódio percorre-a. Que vida desgraçada, a dela!...Como desejava, ardentemente, ir-se dali, ganhar novas fronteiras, retomar a dignidade perdida, ser respeitada por todos!... Entretanto, para onde iria?... A ninguém mais tinha neste mundo de Deus!... De repente, lembra-se da mãe, e duas lágrimas brotam grossas, volumosas, dos olhos, e lhe descem face abaixo, queimando como o fogo e lhe borrando a maquiagem. Enxuga as lágrimas com a ponta dos dedos. O rosto da mãe surge-lhe à mente, cansado, sofrido, vilmente envelhecido antes da hora. "Temo por ti, meu bem!...", dissera-lhe a mãe, entre lágrimas, pois sabia achar-se à beira da morte. "Que será de ti, doravante, que só a mim tens, neste mundo?... Oh, não sabes o quanto isso me aperta o coração!..." e, fixando-a com olhos aflitos, aconselhara-a: "Mas, olha, se o teu padrasto te perseguir, foge!--- Ganha o mundo, vai trabalhar, pois não te faltarão nunca um tecto e um pedaço de pão, se fores honesta e trabalhadeira!..."
- Pobre mamãe!... - murmura Gerusa, entre lágrimas. - Mal sabias em que inferno tornar-se-ia a minha vida!... - e os soluços sacodem-na violentamente. - Agora, tu não mais existes!... Estou só... Irremediavelmente só...
A jovem meretriz interrompe a maquiagem que fazia, olhando-se no velhusco espelhinho oval de aço carcomido pelas beiras. Arroja-se sobre o leito de lençol encardido, afunda o rosto no travesseiro e chora. Chora até não mais querer, chora até desafogar-se. Depois, vencida pela terrível descarga emocional, acaba por adormecer.
Quando Gerusa abre os olhos, já havia escurecido. Nada enxergava, no meio das trevas em que seu quarto mergulhara. Tacteando, estende a mão para a mesinha de cabeceira e procura pela lixa e pela pederneira. De repente, fosforescente luminescência principia a formar-se, bem do lado dela, e o ambiente ilumina-se de ténue claridade esverdinhada. Gerusa empertiga-se, sentando-se no leito.
- Mada!... - balbucia, entre curiosa e tomada pelo medo. - És tu, Madá?...
Um frémito de terror, então, percorre a espinha da jovem prostituta de alto abaixo. Deus do céu!... Era o fantasma de Madalena de novo!... Gerusa quis gritar; imaginara-se forte e corajosa, antes, mas, agora, o medo dominava-a. "Ai, Jesus Cristo, socorrei-me, Senhor!...", pensa ela, transida pelo medo extremo. - Madá!... - tartamudeia, com os olhos estatelados de pavor. - Madá!... Que queres?... - arrisca-se a perguntar, vencendo, por fim, o medo, depois de extremo esforço.
O espectro da amiga acabava de condensar-se, ali, bem pertinho dela, ao lado do leito. Ainda trazia o corpo todo enlameado e ensanguentado e as feições altamente transtornadas como da última vez. Gerusa ate lhe podia sentir a respiração opressa, difícil.
- Gerusa... - ouve-lhe a inconfundível voz, sussurrando-lhe o nome com extrema dificuldade.
- Sim, o que é?... - pergunta Gerusa, fixando a amiga nos olhos. Coragem!... Diz-me o que desejas!...
O fantasma crava os olhos esgazeados na antiga companheira, e as lágrimas brotam-lhe abundantes.
- Anjinho...
- Sim!... Sim!... - exclama Gerusa. - Da última vez em que aqui estiveste, tu disseste o mesmo e depois te foste, em seguida, deixando-nos apreensivos!... Diz-lo, Madá!... Vamos, coragem!... Diz-lo, por favor!...
- Anjinho... - balbucia o espírito, com extrema dificuldade. - Anjinho... Sei quem é ele...
- O quê?!... - grita Gerusa, aprumando-se mais, no leito, para melhor ouvir a outra. - Então, vai lá!... Toma coragem e mo dize, minha amiga!... Queres matar-me de curiosidade, é?... Espero que não vás sumir, de repente, no ar, como da última vez, vais?...
O espectro pareceu acalmar-se e ensaiar um esboço de sorriso, diante das palavras e do excesso de ansiedade que demonstrava a antiga companheira; Madalena quase que se esquecia, momentaneamente, da desgraceira em que se tomara a sua pobre existência. Haviam sido tão amigas, quase irmãs... Que saudade sentia de Gerusa, sempre tão forte, tão despachada!... Que desejo infrene de abraçar-se a ela!... Fixa, então, demoradamente, o olhar, no fundo dos ansiosíssimos olhos da amiga, e esboça um arremedo de sorriso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 7:46 pm

- Anjinho é fidalgo... - diz, por fim, o espírito da prostituta assassinada. - Sonda bem a marca que tem à espádua!... Ali está a revelação!...
- Ah, eu bem que imaginava!... - diz Gerusa, aprumando-se no leito. - Bem que eu imaginava!... Anjinho é filho de gente graúda!...
- Mas, toma cuidado!... - adverte o espírito. - Terríveis interesses escondem-se por trás da verdadeira família de Anjinho]... Vê o que fizeram comigo!...
- Quem fez isso contigo? - pergunta Gerusa, não entendendo bem o que lhe dizia a outra. - Queres dizer que foram eles, os familiares de Anjinho, que te mataram?
- Sim - responde o espírito. - O irmão mais velho, matou-me!... Eu havia descoberto tudo!...
- Deus do céu!... - exclama Gerusa. - Conta-me isso direito, Madá!
_ O verdadeiro nome de Anjinho não é João Manuel; seu nome real é Francisco de Assis Ramalho e Alcântara, filho mais moço do Barão da Reboleira, de Sintra, e que foi roubado da família, ainda quando era um mamo te de alguns meses!...
_ Virgem Santa!... - exclama Gerusa, arregalando os olhos. -Então o gajo pertence à alta nobreza e sequer disso tem noção!
- Sim - responde o espírito. - Os pais procuraram-no a vida inteira, sem, entretanto, encontrarem-no, que foi deixado pelo seu cruel raptor, na roda dos enjeitados das freiras Carmelitas.
- Posso adivinhar o resultado disso: foi adoptado pela velha que o criou!... - emenda Gerusa.
-Aí tens os fatos, como realmente aconteceram, minha amiga! - diz o espírito. - Porém, tem cuidado!... Se revelares tudo a Anjinho, este correrá risco de vida, pois o irmão quer vê-lo morto a ter de dividirem entre si a fabulosa herança, entendes?...
- E foi esse irmão de Anjinho que te matou?... - pergunta Gerusa.
- Sim - responde Madalena. - Matou-me, porque descobri quem Anjinho era, na realidade.
- Mesmo assim, não consigo entender direito, Madá! - exclama Gerusa. - Como vieste a saber tudo isso?
- Conheci João Miguel, o irmão de Anjinho, há algum tempo -explica o espírito. - Belo rapaz, rico e elegante, abordou-me na rua e me propôs negócio. Disse-me que procurava por um jovem que, possivelmente, assemelhar-se-ia a ele próprio, pois se tratava de seu irmão, desaparecido fazia muitos anos. E eu, estudando-lhe, minuciosamente, as feições, notei nele traços que me foram familiares, mas, a princípio, não atinei com quem se parecia aquele moço elegante e de modos refinados. Não conseguindo lembrar-me, de imediato, com quem o gajo parecia-se, prometi-lhe pensar no caso, com tranquilidade. Ele se despediu de mim e disse que mais tarde, viria procurar-me. Passaram-se alguns dias e ele voltou. Nesse espaço de tempo, fiz uma série de associações e descobri que João Manuel parecia-se muito com o rapaz, além de ter a idade correspondente. Pediu-me ele, então, que lhe mostrasse Anjinho, de longe. Não nos foi difícil localizá-lo, que bebia vinho e jogava dados, numa bodega do cais. E, então, minuciosamente, João Miguel estudou, de certa distância, as feições, o porte e os gestos de João Manuel. Por fim, disse-me que achava ser aquele rapaz o seu irmão, sim, mas que só teria certeza disso, quando averiguasse se o outro ostentasse certa marca ao ombro. Lembrei-me, então, de que já havia visto a tal marca em Anjinho e lhe pude confirmar, assim, ser João Manuel o irmão que ele buscava, fazia tantos anos. Entretanto, em vez de demonstrar alegria ou interesse em revelar-se ao irmão, deu-me alguns dobrões de ouro pelo serviço prestado e me pediu silêncio absoluto sobre o caso. Disse-me que queria fazer uma surpresa ao irmão, trazendo os pais, pois desejava que fossem eles a fazerem a tão esperada revelação. Concordei com ele e achei tudo razoável; entretanto, os dias passaram-se e ninguém apareceu para revelar nada a João Manuel. Intrigava-me com a demora e, um dia, encontrei o irmão de Anjinho, numa das ruas do porto. Ele seguia o irmão de longe, sem se deixar ver, como se lhe estudasse os costumes. Demonstrou surpresa ao ver-me e disse que ainda nada revelara ao irmão porque a mãe encontrava-se grandemente enferma e que tal emoção poderia apressar-lhe o fim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 7:46 pm

Algo então, passou-me pela cabeça. E se aquele sujeito estivesse, na verdade, intentando algo contra Anjinho?... Resolvi apertá-lo e dizer que, se não revelasse a verdade ao irmão, eu mesma faria. Súbito, as feições do rapaz transformaram-se. Pegou-me, brutalmente, pela mão e, arrastando-me para um beco escuro, fez-me terríveis ameaças. Disse-me que, se me atrevesse a revelar algo ao irmão, antes que ele mesmo o fizesse, eu pagaria caro pela ousadia. Em seguida, colocou mais alguns dobrões de ouro em minha mão e saiu furioso. Passou mais algum tempo e nada de novo notei na vida de Anjinho, sinal de que nada lhe haviam revelado. Eu, então, usando as moedas de ouro que o tal me havia dado, viajei até Sintra e não me foi difícil descobrir onde é que o misterioso rapaz vivia. Estupefacta, deparei-me com esplendoroso palacete!... Eram, de fato, pessoas riquíssimas. Resoluta, toquei a sineta e solicitei uma entrevista com o rapaz. Avisado pelo mordomo que me atendera, João Miguel apareceu e, muito ressabiado, conduziu-me até o imenso bosque que circundava a esplêndida casa e conversou comigo, entre as árvores do parque, e me censurou, rispidamente, pelo atrevimento. Depois, deu-me mais alguns dobrões de ouro e me disse que, daí a três dias, encontrar-me-ia em determinada rua do cais do porto. E, foi naquela fatídica manhã chuvosa, de que tu tão bem te recordas, que nos encontramos, ele e eu, num escuro beco...
_ Pobre Madá!... - exclama Gerusa, com os olhos mareados de lágrimas. - Perdeste a tua vida, porque querias revelar a Anjinho quem ele é na realidade!...
- Sim - responde o espírito. - João Miguel é um homem perigosíssimo !... Um frio e impiedoso assassino!... Atraindo-me àquele beco escuro, apunhalou-me, sem o mínimo titubeio!... A mãe já está morta, o pai encontra-se muito doente e ele, na iminência de herdar, sozinho, a fabulosa fortuna dos Barões da Reboleira, jamais revelará a verdade ao irmão desaparecido há tanto tempo!... Periga, sim, assassinar, vil e covardemente, qualquer um que se interpuser em seu caminho!... Cuidado, Gerusa\... - adverte o espectro de Madalena. - Pensa bem no que vais fazer doravante!... Podereis, tu e Anjinho, ter o mesmo fim que tive!...
- E tu, Madá - pergunta Gerusa, tentando tocar o espírito com a ponta dos dedos -, e tu, que será de ti, daqui para diante?
- Vês? - responde o espírito, ao observar que as mãos da companheira atravessavam-lhe o ténue corpo espiritual, sem conseguirem, de fato, tocá-lo. - Vês em que me transformei?... Numa sombra!... Entretanto, continuo sendo a mesma; vejo as pessoas, embora a grande maioria não me veja; posso caminhar, ainda que tropegamente; consigo raciocinar; tenho fome e sede; sinto dores horríveis ao peito, onde me feriu, mortalmente, aquele demónio!...1 E, principalmente, sinto muito ódio!... Tenho um ódio inominável pelo desgraçado que, vilmente, tirou-me a vida!... Tenho ganas de também matá-lo!... Ainda não sei como, mas aquele miserável pagar-me-á caro!...2
Com o rosto transido de dor, Gerusa olha para a outra. Pobre Madá!... A antiga companheira encontrava-se horrível, naquele estado. Tocado pela expressão de intensa piedade que Gerusa trazia estampada ao rosto, o espírito olha, longamente, para a velha amiga, e seu rosto foi, aos poucos, demudando e, por fim, resumiu-se num único esgar de dor suprema, infinita, do tamanho do mundo. E, nada mais disse; limitou-se a acenar, tristemente, com a mão, enquanto se desvanecia no ar como fumaça.
- Vais deixar-me, Madá?!... - grita Gerusa, entre soluços.
Por longo tempo, a jovem meretriz permaneceu de bruços, estirada sobre a cama, enquanto os soluços sacudiam-na, violentamente. Trevas absolutas invadiam tudo. Perdida no silêncio da noite, não tinha nenhum ânimo para terminar de se vestir e ter de enfrentar mais uma duríssima jornada pela sobrevivência. Resolveu, então, que, naquela noite, não sairia. Naquela noite, não. Gerusa chorou muito. Chorou até se esfalfar. Que vida, meu Deus!... Quanta coisa estranha havia neste mundo!... Horas depois, acende o toco de vela, engastado na boca da botelha de terracota. Olha-se, demoradamente, no espelhinho oval. Que horror!... Trôpega, vai até a bacia de latão e, vertendo água da jarra enferrujada, lava o rosto, repetidas vezes. Depois, senta-se no leito e medita. Pensa nas palavras de Madalena. Que faria?... Diria a Anjinho, ou não?... E, se o tal irmão resolvesse matá-la, também?...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 25, 2024 7:46 pm

Por longo tempo, Gerusa matutou sobre que posição tomar, diante de tão brutal revelação. Por fim, decide-se. Resoluta, recomeça a vestir-se e, em pouco tempo, ganhava a rua escura. Precisava encontrar João Manuel. Ia contar-lhe tudo.

* * * * * * *
Naquele mesmo instante, João Manuel parava diante do imenso portão de grades altíssimas da mansão de Afonso Albuquerque e Meneses. Passava da meia-noite, e a escuridão seria total não fossem os lampiões a óleo, pendurados aos postes de ferro, a lançarem mortiça luz amarelada sobre o caminhozinho de pedras que dava para a escadaria de mármore branco, fronteiriça à luxuosíssima mansão. O rapaz não passava de um borrão escuro, grudado às negras grades de ferro. Pacientemente, aguardava e, amiúde, espiava para o interior do jardim. Silencioso, o imenso casarão encontrava-se totalmente às escuras. Havia forçado o portão, mas ele estava trancado. De repente, um vulto coberto por um xale preto destaca-se da sebe que margeava o caminhozinho e se aproxima sorrateiramente.
- João Manuel... - chama o vulto, em voz baixa. O rapaz aproxima-se mais.
- Inácia?... - murmura ele.
- Entra... - diz a criada, abrindo o portão, com um estalido da chave na fechadura. - A patroa espera-te!... - prossegue ela, convidando-o a segui-la, com um sinal de cabeça.
Ambos os vultos fundem-se na escuridão. Uma vez dentro da casa, a criada guia-o, com um coto de vela aceso à mão.
- Vai-te, João Manuel, por este corredor, e conta três portas; na quarta, entra, sem bateres - cochicha a criada, explicando-lhe o caminho a seguir.
Enquanto caminhava pelo escuro corredor, em absoluto silêncio e quase às palpadelas, o rapaz cogitava sobre o motivo de Manuela ora lhe ter indicado novo caminho a seguir. "Nada de escalares a minha janela!", mandara-lhe o recado pela criada. "Desta vez, entrarás por dentro..."
A escuridão reinante no corredor era tal que o rapaz atrapalhava-se. Deus do céu!... Como era grande aquela casa!... Ele, que sempre habitara escuros e húmidos cubículos, estranhava a magnitude das coisas ali. Quantas portas já tacteara?... Três?... Quatro?... Perdera a conta. Como guiar-se naquela escuridão?... Bem que Inácia poderia tê-lo conduzido até a porta certa, mas a doida morria de sono e o deixara ali, todo desorientado!... Finalmente, decide-se, diante de uma porta: certamente, seria a quarta. E, então, testa a maçaneta que, com ligeiro estalido, abre-se. Resoluto, entra, e fecha a porta atrás de si. Ténue claridade espalhava-se no ambiente, gerada por singelo castiçal de pequeninas velas que queimavam sobre uma mesinha a um canto do imenso dormitório. Estava certo: um corpo de mulher dormia, displicentemente, sobre os alvos lençóis de cambraia. João Manuel abre ligeiro sorriso. Fica, por instantes, admirando as formas perfeitas daquele corpo. A seguir, põe-se a despir-se e, aproximando-se, deita-se, de mansinho, ao lado dela. A mulher agita-se no leito e emite ligeiro gemido. O rapaz, então, com extrema delicadeza principia a afagar-lhe os cabelos. De repente, o inusitado!
-Ai, meu Deus!... - grita a mulher, erguendo-se, apavorada, no leito. - Quem és tu?!...
Apanhado pela surpresa, João Manuel empertiga-se, ligeiro, sentando-se no leito. Aquela mulher não era Manuela!... A jovem, tomada de altíssimo espanto, empurra, violentamente, o rapaz, e se levanta da cama aos berros:
- Socorro!... Acudam-me!... Um ladrão!...
João Manuel, exasperado pelo desastrado encontro, deixa-se levar pelo lado instintivo e, abraçando a jovem com seus possantes braços, tapa-lhe, facilmente, a boca com a mão.
- Ouve-me, moça - sussurra-lhe ele ao ouvido -, não sou nenhum ladrão, não!... Apenas enganei-me de quarto!... Por favor, não grites!...
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