LUZ ESPÍRITA
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 4 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 11:19 am

— Serei abalada? Fernando está em perigo?
— Você e sua preocupação com Fernando!
— Ele é meu tesouro. Sei que posso ser condenada e malvista pela sociedade, mas o que fazer? Eu o amo mais que meu próprio filho. Não tenho como negar.
— Eu a compreendo. Aqui não julgamos. Cada um é livre para escolher de que gostar, de quem gostar. Não há obrigatoriedades.
— Eu juro que, desde a gravidez, fiz tremendo esforço para amar Maurício. Eu o amo. Claro que o amo. Mas não é o mesmo que sinto por Fernando. Até o sentimento que nutro por Clarice, minha sobrinha, é diferente. Nela, tudo me atrai, faz com que eu queira estar sempre ao seu lado. Infelizmente, há algo em meu filho que faz com que eu o empurre para longe de mim.
— É uma questão de afinidade energética.— Já estudei sobre o assunto. É quando se diz que o santo da gente não bate com o da outra pessoa, não é?
— Isso mesmo.
— Às vezes, me sinto culpada. Ele é meu filho.
— Cada um dá o que tem. Você sempre foi mãe amorosa.
— Contudo, Maurício cobra de mim que eu dou mais atenção a Fernando. E olha que agora é adulto. Tornou-se um rapaz rebelde, respondão, encrenqueiro, sem limites. Paulo passa a mão na cabeça dele, diz que é coisa da idade, que vai passar. Eu não concordo. Brigo com Maurício, exijo que tenha compostura, que seja adulto e aja como tal, mas sinto que, a cada briga, nos tornamos mais distantes.
— Estou aqui para ajudá-la. Vim para serenar seu coração. Vou inspirar bons pensamentos, ajudar você a não se irritar, a ter condições de relacionar-se de maneira mais harmônica com seu filho.
— Tenho medo de Maurício cometer uma loucura.
— Bom, se ele passar dos limites, há a eternidade para se acertar, não é mesmo? Estamos presos aos ciclos da reencarnação justamente para desenvolver nossas habilidades, aprender a controlar nossos desejos, dominar nossos pensamentos, manter nosso equilíbrio, encontrar a paz.
— Em todos esses anos, na casa de Leocádia, aprendemos que a reencarnação é, de facto, uma dádiva maravilhosa, uma oportunidade única de progresso e de experiências enriquecedoras para o espírito.
— Pois é. Está tudo certo. Agora vamos. Dê-me sua mão.
Soraia estendeu o braço e Raul pegou a mão dela com extrema delicadeza. Logo, os dois deixaram o quarto rumo a um local, no mundo astral, para intensificação das energias do corpo espiritual de encarnados.
Soraia mastigou a saliva e demorou um pouco a concatenar os pensamentos. Apalpou o corpo e percebeu estar deitada, na cama. Abriu os olhos e, pela fresta da janela, visualizou alguns raios de sol que penetravam no recinto.
Ela se espreguiçou com vontade. Sorriu ao lembrar-se de que tivera um sonho no qual conversara com um rapaz conhecido, mas não conseguia se fixar no rosto do rapaz.
— Não era o Fernando — disse para si. — Não era ele. Tenho certeza.
Soergueu o corpo na cama e seus olhos fixaram o porta-retratos sobre o criado-mudo. Na foto, tirada no último Natal, estavam ela, Paulo, Maurício, Fernando e Clarice. O filho estava ao lado do pai. Ela estava entre os dois sobrinhos, filhos de Sílvia. Eram seus xodós. Fernando crescera sendo paparicado por ela. Clarice, um doce de criatura, conseguira equilibrar, ao longo dos anos, esse carinho excessivo da tia sobre ela e dosava numa boa o amor dispensado à mãe e à tia.
Maurício, por sua vez, crescera à sombra dos primos, catando migalhas do amor da mãe.
Interessante que desenvolvera certa animosidade na relação com Fernando. O primo até que tentava ser mais cordial, mas Maurício o tratava de maneira seca.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 11:19 am

Já com Clarice era diferente. Por mais que tentasse odiá-la, não conseguia. Havia algo na prima que o acalmava, que o fazia sentir-se bem. Mesmo que sua mãe dispensasse doses cavalares de carinho e amor à prima, Maurício era todo cheio de dengos com Clarice. Adorava e idolatrava a prima.
Quando a ditadura engrossou o caldo e os direitos civis foram suspensos, a vida de Paulo virou do avesso. Foi interrogado, afastado da universidade. Perdeu o emprego, salário, e sofreu um arranhão em sua dignidade da noite para o dia.
Um amigo, desses do peito, dono de uma editora sediada no Rio de Janeiro, na época Guanabara, convidou-o para trabalhar como editor de conteúdo, porquanto publicava livros de História.
Paulo aceitou o convite, venderam o apartamento e se mudaram de São Paulo para a Guanabara no início de 1969. Compraram uma casinha no Rio Comprido, a algumas quadras da editora. O Túnel Rebouças já havia sido inaugurado dois anos antes, mas, com a construção do elevado Paulo de Frontin em 1971, o bairro foi, aos poucos, perdendo a óptima qualidade de vida que oferecia e muitos moradores saíram de lá.
Paulo não queria ficar muito longe da editora e, tempos depois, vendeu a casa e comprou um apartamento de dois quartos em um prédio charmoso de três andares na Tijuca. Maurício não gostou nem um pouco da decisão. A bem da verdade, odiou. Desejava viver na zona sul, sonhava em morar em Ipanema.
Soraia teve seus chiliques, muito mais por ficar longe dos sobrinhos. Até propôs um plano mirabolante de levar Fernando e Clarice para morar com eles no Rio, projecto devidamente abortado depois que Ivan e Sílvia prometeram, de joelhos, que as crianças iriam visitá-la nas férias de julho e de fim de ano.
Passada a choradeira da despedida e após a adaptação na nova cidade, Maurício acreditou que a ligação com a mãe se estreitaria, afinal, os primos estavam bem longe dali.
Em vão. Soraia passava horas no telefone com Sílvia, Fernando e Clarice, todos os dias. Eram fortunas de interurbano e ela contava, marcando em uma folhinha de calendário presa atrás da porta da cozinha, os dias que faltavam para que Fernando e Clarice chegassem para passar as férias com ela.
A partir da mudança de cidade, durante catorze anos o ritmo foi esse. Clarice foi espaçando as visitas com o tempo. Passou a aproveitar as férias para se dedicar a cursos e trabalhos voluntários. Queria ser enfermeira, cuidar de gente. Tinha jeito especial para lidar com as pessoas.
Mesmo com faculdade, namoradas e trabalho, Fernando arrumava tempo para visitar os tios.
E a animosidade de Maurício começou a se transformar em raiva. Actualmente, estava a ponto de subir para o patamar do ódio.
Naquela segunda-feira, em particular, Soraia estava em outra sintonia. Apanhou o controle remoto e ligou a tevê. Foi passando pelos canais até parar num de notícias. A apresentadora, semblante triste, informava:
— A morte de Jardel Filho, ocorrida no último sábado, abalou toda a equipe de Sol de verão.
A direcção da emissora de tevê acredita que ainda é cedo para saber se a novela das oito deve permanecer no ar. O autor Manoel Carlos, no entanto, muito amigo do actor, afirma que a morte do protagonista...
Soraia procurou na memória de quais trabalhos do actor ela se lembrava, pois gostava muito de Jardel Filho, morto tão jovem e tão de repente. Mal começou a pensar, uma batida na porta tirou sua atenção. Logo um moço bonito, nem alto nem baixo, corpo bem-feito, vinte e dois anos, cabelos alourados e longos, estilo surfista, entrou, falando e gesticulando sem cerimónia:
— Mãe, está atrasada!
— Ei! Como entra assim no meu quarto? Que falta de respeito!
Ele nem prestou atenção e foi até próximo da cama:
— Ficou de ir comigo levar os documentos na faculdade para a matrícula.
— Perdi a hora, Maurício. Acontece. Passei o fim de semana com insónia, dor de cabeça. Esta foi a única noite que dormi bem.
— Ficou com insónia por causa do filhinho postiço que foi embora semana passada. Já está morta de saudades.
Ela o mirou com ar estafado:
— Não pegue no meu pé! Meu Deus, às vezes, como você é chato. Ele a fulminou com os olhos.
— Você não me ama.
— Deixe de ser dramático. Agora saia do quarto que eu preciso me arrumar.
Ele saiu pisando firme e bateu a porta com força. Soraia mexeu a cabeça para os lados e suspirou:
— Até quando vou ter de aguentar esse martírio?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 11:20 am

Capítulo 25
No carro, Maurício não parava de falar. Enquanto dirigia de volta para casa, gesticulava e falava num tom elevado de voz:
— Você é irresponsável, me fez perder a matrícula!
— Eu?! Está me culpando por ter perdido a matrícula? Da sua faculdade? Que você iria cursar? Está de brincadeira comigo?
Ele espumava de ódio.
— Ficou toda derretida dando atenção para o pamonha do Fernando e se esqueceu das obrigações que tinha em relação ao seu único filho!
Soraia desceu a janela, acendeu um cigarro e, após soltar uma longa baforada, encarou Maurício:
— Escute aqui!
— Não posso olhar para você. Estou no trânsito, dirigindo. Se cometo alguma barbeiragem, vou escutar um monte — fez um sinal com a mão próximo da orelha. — Vai dizer que sou irresponsável, que Fernando sabe dirigir, é prudente, já está formado e eu ainda não entrei na faculdade.
— Falou e disse — Soraia concordou. — Nem entrou em uma faculdade. Está com vinte e dois anos e não faz nada a não ser querer tirar do Petit o posto de “menino do Rio”.
— Eu...
— Calado. Continue dirigindo porque sou eu que estou falando. Sou sua mãe.
Maurício mordiscou os lábios e continuou olhando para a frente. Vez ou outra, seus olhos fitavam a mãe de esguelha. Soraia mexia a cabeça para os lados:
— Não sei se dou risada, se choro, se esqueço tudo o que me diz porque está no meio de um surto psicótico. Você cresceu rebelde, mimado e irresponsável. Seu pai o protegeu sobremaneira, fazendo todas as suas vontades. Eu tentei colocar um freio em você, mas Paulo sempre foi do tipo que tudo se resolve na conversa. Mas com você? Nunca nos ouviu, nunca nos respeitou. Sempre fez o que bem quis. Foi expulso de três escolas, era cruel com os coleguinhas, os mais fracos se borravam de medo porque você os maltratava.
— O mundo é feito de gente esperta. Quem é burro e não sabe se defender, paciência. Que se dane!
— Gente bem esperta, como o senhor. Terminou o colegial aos vinte anos, não conseguiu entrar em uma universidade porque não tem QI suficiente e acha que só porque é bonitinho consegue tudo o que quer.— Sou bonito mesmo. Tem gente que me acha tão bonito quanto o menino do Rio. Eu já fui confundido com ele. Que fazer se nasci lindo?
— Lindo e burro. Lindo e sem coração. Lindo e sem um pingo de consideração pelo próximo.
— Eu não preciso ser humilhado pela minha própria mãe, que não gosta tanto assim de mim.
— Quer saber?
Maurício engoliu em seco e não queria saber. Já sabia o que Soraia iria dizer. Ficou quieto.
Cruzaram o Túnel Rebouças em completo silêncio. Já estavam no meio do Rio Comprido quando ele fez uma observação, apontando para baixo do elevado:
— Lembra-se de quando íamos àquela padaria, depois da Haddock Lobo? Não foi por ali que o elevado caiu?
— Não mude o assunto -— Soraia apagou o cigarro no porta--cinzeiro, fechou a gavetinha com a guimba e as cinzas. —Você sempre odiou o Rio Comprido. Não suporta a Tijuca.
— Imagina!
— Não se faça de besta comigo. Ser chamado de tijucano, para você, não é elogio, é xingamento. O que você mais queria era viver em Ipanema.
— Você não é fácil. Estou tentando ser amável.
— Qual nada! Quem não te conhece que te compre. Eu sei quem você é. Eu o gerei.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 11:20 am

— Por que me trata dessa forma?
— Não entendo. É homem feito. Eu o trato como acho que devo tratá-lo. Não sei por que exige tanto de mim. Não sei por que tem tanto ciúme de Fernando. E de Clarice!
- Não coloque Clarice nessa história. Minha prima é uma princesa. Não é como aquele imbecil que faz tudo o que os pais pedem. Parece um robô.
— Um robô que se formou, está bem empregado e, daqui a pouco, vai encontrar uma boa moça, casar-se. E, quanto a você, vai fazer o que da sua vida?
Maurício não respondeu. Ligou o rádio, sintonizou em uma estação de músicas atuais.
Soraia prosseguiu:
— A beleza vai embora, sabia? A pele enruga e perde o viço, o cabelo fica branco, a força e a potência também se esvaem. É natural envelhecer. Pena daqueles que se prendem à beleza física.
— Vou envelhecer muito bem. Serei um coroa bonitão. Não ficarei como meu pai, ou como você, que está ficando com cara de velha.
Ela riu e deu de ombros.— Eu não me importo com as mudanças naturais que a vida me impõe. Faz parte do processo. O tempo está passando para mim, para seu pai, seus tios. Vai passar um dia para você também. Os jovens de hoje serão os velhinhos de amanhã.
Maurício fez um gesto com as mãos.
— Bobagem. Eu não estou nessa lista.
— Conversinha à parte, estamos quase em casa. E então?
— Então o quê?
— Pergunto de novo, vai fazer o que da vida? Procurar outra faculdade, outro curso? Porque não vai ficar mais um ano sem fazer nada. Ao menos veja se arruma um trabalho.
— Eu, trabalhar? Está louca?
— Louca você vai ver quando eu chegar a nossa casa. Vou conversar com seu pai. Ai dele se continuar dando mesada para você.
— O que pretende fazer? — Maurício a desafiou com uma voz e uma postura que Soraia já conhecia, desde quando ele era criança e fazia birra.
Simplesmente respondeu:
— Se desta vez seu pai não concordar comigo, eu me separo dele e largo vocês dois. E me mudo para São Paulo. Vou viver com seu primo.
Maurício roeu a unha do polegar com tanta força que os dentes arrancaram toda a cutícula do dedo. Logo ele sentiu o gosto amargo de sangue e sentiu medo. Um medo tremendo de ficar sozinho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 11:20 am

Capítulo 26
Dorothy separou-se de Olavo e mudou-se com a pequena Débora e Mary, a empregada, para Nova York. Lá, seu trabalho foi reconhecido, valorizado. A amizade com Jacqueline, na época ainda Kennedy, ajudara-a bastante a colocar seus modelos de vestidos, ousados e modernos, em evidência.
Com a morte de Esther, em 1972, Dorothy sentiu a dor da perda de maneira muito forte. Foi como se tivesse perdido uma irmã de sangue. Esther tinha sido seu norte, sua mentora, a mulher que a ajudara a deixar de ser herdeira para se tornar dona de seu próprio negócio e ganhar seu próprio dinheiro. Ela não era muito de namorar, gostava mesmo de trabalhar. Muito.
Aos catorze anos, Débora já demonstrava habilidade natural para o mundo da moda e seria a sucessora natural da mãe, o que enchia Dorothy de orgulho, visto que seu negócio só crescia e prosperava.
Num jantar beneficente para arrecadar fundos para a campanha de George McGovern, candidato do Partido Democrata às eleições daquele ano, Dorothy conheceu Nelson Wisley Gabeira, filho de mãe norte--americana e pai brasileiro, fazendeiro, dono de grande extensão de terras e gado em Goiás. Nelson tinha quarenta e quatro anos — oito a mais que Dorothy -, era divorciado e tinha uma filha de vinte e quatro anos, assistente social, que vivia ligada a organismos internacionais de ajuda a países devastados por guerras. Naquele momento, Ana Lúcia, sua filha, estava envolvida com a Guerra do Vietname e morando em Saigão.
Depois de drinques, jantares e algumas noites dormidas juntos, assumiram o romance.
Casaram-se e, como havia travado amizade com a estilista Zuzu Angel, Dorothy decidiu mudar-se com Débora para o Brasil. Nelson não queria que ela ficasse em lugar tão distante como o interior de Goiás. Decidiram que iriam morar no Rio de Janeiro. Estabeleceram-se em um apartamento no miolo do Leblon.
Nelson as visitava a cada quinze dias, um mês. Era um relacionamento maravilhoso, em que havia uma boa sintonia entre o casal. Viviam muito bem, a ponto de Débora chamar Nelson de pai, porquanto, depois do incidente com o tipo sanguíneo, Olavo evitava conversar com a filha.
Ao botar o primeiro pé no chão do Galeão, Débora amou o Brasil. Adorou o clima, o ar, o povo, adaptou-se facilmente ao estilo carioca de ser. Como havia aprendido um pouco de português nas conversas que mantinha com o pai, por telefone, logo estava falando português sem sotaque.
O tempo a transformou em uma ruiva bonita, com sardas pelo rosto e pelos ombros. A pele era alva, o corpo bem-feito, os olhos como duas pedrinhas de safira verde-água. Tinha estatura mediana e cativava as pessoas com seu sorriso franco. Dorothy vendera parte dos negócios nos Estados Unidos e abrira uma confecção com cinco lojas: uma em Porto Alegre, uma em Belo Horizonte, uma no Recife, uma estilosa na Augusta, em São Paulo e, claro, seu cartão-postal: a loja de Ipanema.
Agora, neste começo de 1983, estava à procura de um gerente geral, visto que o último tentara roubar-lhe, não em espécie, mas em esquemas com o pessoal do porto, com sonegação de impostos. Dorothy tivera muita dor de cabeça para colocar os negócios em ordem.
— Bom que o carnaval passou, estamos começando o ano!
Débora riu com gosto.
— Você sempre diz a mesma coisa, mamãe, todos os anos. Nunca paramos de trabalhar. E vendemos mais no começo do ano e no carnaval.
— É verdade. Força de expressão. É que agora parece que tudo começa a andar de facto.
Apenas precisamos de um bom profissional.
— Ele vai aparecer.
— Não quero mais saber de gente complicada! — suspirou, enquanto dirigia para casa.
— Mãe, não esquenta. É só você se ligar à corrente universal positiva. É uma questão de crença. Precisa acreditar que vai atrair um bom profissional. Precisa acabar com essa ideia de que todo gerente vai querer levar vantagem sobre seu negócio.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 4 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 8:40 pm

— Nosso! — Dorothy corrigiu. — Nosso negócio. Sabe que um dia você irá comandar a empresa, as lojas. Confio na sua capacidade, no seu talento.
Débora sorriu, agradecida.
— Sei disso. Sempre me incentivou, permitindo que eu pudesse fazer especialização no exterior. Sou bem capacitada.
— Inteligente. E sagaz, tem o sangue da minha família nas veias. Eu a admiro muito.
Dorothy falou e uma ponta de orgulho formou-se em seu semblante.
— Devo ter um pouco do papai também. Ele sempre foi bem esperto nos negócios.
Dorothy gargalhou.
— Seu pai! Sei — ela ficou meio desconcertada, mas logo emendou: — Olavo não aproveitou a boa vida que teve nas mãos. Não soube administrar a herança da tia, perdeu tudo.
— Sobrou o dinheiro da separação de vocês.
— Que ele gastava a torto e a direito com a desmiolada da sua irmã. Aquilo não tem conserto.
— Aquilo é usado para coisa, objecto. Rachel é gente.— Sem fazer trocadilho ao filme, ela não é gente como a gente. Sua irmã é de outro planeta.
— É sua filha.
— E daí? Só porque a coloquei no mundo sou obrigada a aturar todas as suas vontades? Ela é mimada demais, foi estragada pelo seu pai. Viu o que deu nas últimas férias que passou connosco? Maltratou Mary, chamando-a de pretinha burra. Isso é inadmissível!
— É verdade. Ela jamais deveria destratar Mary por causa da cor da pele.
— Sua irmã é terrível. Essa mania de querer ser superior aos outros, de xingar os negros... Um dia ela vai tomar na cabeça.
— Rachel ainda é nova, pode mudar.
— E você acredita? Rachel está prestes a completar vinte e um anos. É adulta, mas se comporta como criança rebelde. Ela se faz de sonsa. É uma cobra.
— Mãe!
— É. Cobra. Serpente. Eu conheço de longe. Tem que tomar muito cuidado com esse tipo de gente. Vacilou, ela vem e dá o bote. As vezes, uma picada pode ser fatal...
Depois de enfrentarem calor e trânsito, Dorothy estacionou o carro na garagem. Subiram e, logo na entrada, Mary estava aflita:
- Dona Dorô — assim ela chamava a patroa, depois de aprender o idioma português — liguei para a loja faz mais de uma hora.
— O trânsito. E depois, passamos em uma confeitaria, queria trazer uns docinhos para comermos mais tarde. É normal que eu demore, às vezes. Mas o que aconteceu? Nelson?
— Não. Seu Nelson não ligou.
— Ai, que susto! — ela levou a mão ao peito. — Não me meta medo, Mary. Você e sua mania de exagerar nas coisas. Sei lá, pensei em bobagens.
— É pior.
Dorothy e Débora trocaram um olhar cúmplice.
— O que foi?
— É seu Olavo.
— O que tem? — quis saber Débora.
A porta do corredor bateu com força e uma moça alta, cabelos castanho-claros, olhos amendoados e vestido justo e colado apareceu na sala. Mãe e filha olharam-se sem saber o que dizer. Dorothy, refeita do susto, pediu a Mary:
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 8:40 pm

— Quero um copo com água e muito, muito açúcar.
— Sim, senhora.
Dorothy sentou-se no sofá e Débora foi até a moça, estendendo os braços:
— Querida! Como vai a minha caçula?
Rachel desviou-se da irmã e aproximou-se de Dorothy:
— Olá, mummy. Pensei que já tivesse demitido a negrinha.
— Se for insultar Mary, eu a coloco no olho da rua, agora.
— Calma. Foi só um comentário.
— Preconceituoso, por sinal. A negrinha é como nós, é gente — ela revirou os olhos nas órbitas e suspirou: — Afinal, o que faz aqui? Não gosto que apareça sem avisar.
— Agora vim de mala e cuia. Adorei essa expressão. Aprendi com o motorista de táxi que me trouxe do aeroporto para cá.
— Como assim?
— Deixei meus pertences no quarto de hóspedes. Claro que, daqui para a frente, vai ser o meu quarto — enfatizou. — Até vou me esforçar para tratar bem a Mary — fez um muxoxo.
— Brincadeira de mau gosto — ajuntou Dorothy. — Sabe que é impossível você e eu convivermos sob o mesmo tecto. Além do mais, você vive com seu pai.
Rachel fez beicinho e fingiu uma lágrima.
— Sinto lhe dizer, não tenho mais pai.
Dorothy, num primeiro momento, não concatenou a ideia. Débora sentiu um frio na barriga e indagou, perplexa:
— O que está querendo dizer, Rachel?
— O papai morreu. Simples assim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 8:40 pm

Capítulo 27
Quando Fernando descortinou a janela e olhou para fora, já havia amanhecido. Ele esfregou os olhos, bocejou e caminhou até o banheiro para fazer a toalete.
Olhou-se no espelho e notou uma espinha próximo do queixo. Apertou e a região ficou avermelhada.
— Pareço adolescente. Espinhas e cravos no rosto, aos vinte e quatro. Como pode?
— Porque você ainda é um bebê — Sílvia apareceu na soleira da porta. Abraçou o filho por trás, ele era bem mais alto que ela, e beijou--o na nuca. — Bom dia, filho.
— Já acordou, mãe?
— Faz dez dias que não durmo direito. Não sei o que acontece. Sonhos estranhos, não me lembro de muita coisa. Acordo quebrada, moída, parece que um tractor passou por cima de mim.
— Não será a menopausa?
— Olha a intimidade, menino! — ela deu um tapinha nas costas dele. — Não tenho idade para isso. Ainda sou jovem. Estou na casa dos quarenta.
Ele riu bem-humorado.
— Está uma gata. Você e tia Soraia estão gatas. Vão viver até os cem anos.
— Se for com saúde e disposição, que assim seja. Me diga, como está o trabalho?
— Espero uma promoção. Tenho competência para gerenciar o departamento todo. Aliás, para gerenciar a empresa toda. Não me dão chance. Há os queridinhos, estão na frente.
— Podem ser queridos e ter competência.
— Se assim fosse, eu ficaria feliz. Não são capazes. São pessoas . que estão ali para ganharem mais, para conseguirem uma maneira de fazer caixa dois, sangrar a empresa. Dizem que, como é estrangeira e muito grande, não há problema em arrancar um pedacinho, tirar uma lasquinha. Eu não gosto desse tipo de comportamento. São pessoas que não estão preocupadas com o crescimento da empresa, com o bem-estar dos funcionários, com a qualidade no trabalho. Querem enriquecer a qualquer custo. Uma pena.
— Não há maneira de conseguir provas e mostrar à directoria, presidência, que essas pessoas estão agindo de má-fé, estão adoecendo a companhia?
Enquanto barbeava-se, Fernando meneou a cabeça para os lados. — Infelizmente, muita gente lá do alto escalão está comprometida com essa maneira horrível de se corromper.
— Também sou contra a corrupção.
— Pois é. Acostumaram-se a ganhar um favor, um presente, um extra. Se eu for e abrir o bico, sou sumariamente demitido. Gostaria que as coisas funcionassem de outra maneira.
— Então, procure outro emprego.
— Esta empresa me dá visibilidade, mamãe. Apesar de tudo, é conceituada no mercado.
Como administrador, fica bem tê-la como referência em meu currículo. Se a promoção não aparecer, prometo que mais um tempo eu saio e vou em busca de novos desafios.
— Assim é que se fala. Nada de comodismo. Sempre gostei do seu jeito de ir em busca do que quer.
— Se eu não for, quem vai por mim?
Sílvia o beijou no rosto, pegou uma pontinha do creme de barbear e brincou com a espuma no nariz do filho. Desceu as escadas. Clarice estava na cozinha, pondo a mesa do café:
— Não está atrasada?
___Troquei o turno com a Maria Rosa. A mãe dela está bem doente.
— Jura? A cirurgia não resolveu?
— Ajudou, mas o câncer havia se espalhado por boa parte do corpo. Não há mais o que fazer.
Apenas esperar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 8:40 pm

— Gosto da Maria Rosa.
— Eu também. É uma boa amiga. Mas, se acreditasse na vida após a morte, ficaria melhor.
— Por que diz isso?
Clarice deu de ombros, enquanto terminava de colocar as xícaras e ajeitar delicadamente os guardanapos ao lado dos pires.
— Ela acredita que, com a morte da mãe, tudo vai acabar. Será o fim de tudo. Nunca mais haverá a mínima chance de um reencontro. Maria Rosa não acredita em nada. É difícil aceitar a perda de alguém que se ama quando não acreditamos em nada.
— Tem razão. Quando seu avô morreu, eu não era filha dele de sangue, mas seu Faruk foi como um pai para mim e, por acreditar na continuidade da vida após a morte do corpo físico, parece que meu coração sofreu menos.
— A gente nunca vai deixar de sentir saudades. Não tem como deixar de sentir por alguém que amamos. Contudo, aceitar o que não há como mudar, o que faz parte natural da vida, nos deixa mais confiantes, faz com que pensemos melhor sobre o dia a dia. Muitos se preocupam somente com o amanhã. Não vivem o hoje, o agora, o momento. Perdem a chance maravilhosa de experimentar uma vida rica e prazerosa agora, pensando que amanhã, talvez, possam viver melhor. Pura ilusão.
— Você me enche de orgulho! Entrou na faculdade aos dezassete anos, formou-se aos vinte e um. Conseguiu excelente estágio e tem uma cabeça tão madura para sua idade!
Clarice sorriu.
— Aproveitei as oportunidades que a vida me deu. Se tive a chance de entrar mais cedo na faculdade, óptimo. Contudo, batalhei muito para entrar na USP Não foi fácil conseguir uma vaga para o curso de Enfermagem. Foram anos de muita dedicação. Mas, como amo o que faço, tudo correu bem, sem peso. Eu nasci para o ofício.
— Desde pequena era assim. Não podia ver um avental branco e logo o vestia.
— É verdade. No entanto, recorda-se da moça de branco com a qual eu sonhava? Era o espírito de uma enfermeira. Disse que eu muito a ajudei no passado e, quando morri, em última vida, como agradecimento, fez questão de me resgatar. Ela faz parte da equipe de Florence Nightingale, enfermeira inglesa pioneira no tratamento aos feridos de guerra.
— Quem sabe você não viveu na Inglaterra? E não morreu na Guerra da Crimeia ou na Primeira Guerra? Como nasceu em 1962, pode ser que tenha até morrido na Segunda Guerra Mundial.
Clarice deu de ombros novamente, de forma graciosa.
— Não ligo para o passado porque ficou para trás. O que passou, passou, não volta, não muda. Quer dizer, só muda na cabeça da gente — apontou para a própria testa. — Em todo caso, uma vez, esse espírito me revelou que morri num acidente em que havia água. Vai ver morri no naufrágio do Titanic — riu.
Sílvia sentiu um estremecimento pelo corpo. Mirou a filha de cima a baixo. Depois balançou a cabeça para os lados.
Pensou:
Não. Não tem nada a ver com Ivete. Não pode ser. Amo tanto a minha filha, temos tantas afinidades. Bobagem da minha cabeça.
Fez um gesto com as mãos e Clarice notou:
— O que foi? Pensando em quê?
— Nada. Estava comentando com seu irmão lá em cima. Faz dez dias que não durmo bem.
Clarice a olhou com profundidade. Sílvia sentiu um arrepio.
— Não gosto quando me olha assim.— Algo me diz que você está com companhia astral.
— Não entendo. Faz muitos anos que não frequento mais as reuniões de Leocádia. Sabe muito bem que eu e seu pai não temos afinidade com assuntos do Além.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 4 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 8:40 pm

— Muito me admira. Pelo que sei, você e papai começaram a frequentar as reuniões de Leocádia por causa de um espírito.
— Que nada! Quem disse isso?
— Não interessa. Papai teve uma noiva, antes de você, que morreu afogada — Clarice falou e fitou um ponto qualquer da cozinha.
Foi como se tivesse sido anestesiada por alguns segundos. Sílvia nada percebeu. Ela meneou a cabeça e voltou em seguida: — Vocês estudaram um bocado do mundo espiritual, não foi?
— Passado. Faz parte do passado. Seu pai tem alma sensível, mas não gosta das coisas ligadas ao espiritismo. Eu me dou muito bem com ele e prefiro também não me meter nesses assuntos.
— Seja passado ou não, vou ser clara: você está com encosto, mamãe. Entendeu?
Sílvia levou a mão ao peito e sentiu taquicardia. O espírito que estava ao lado dela levou um susto e deu um salto. Por ora, foi para o jardim da casa. Não sabia como havia parado ali.
Contudo, descobriria um jeito de voltar a grudar em Sílvia. Era com ela que queria ficar. Para sempre.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 8:41 pm

Capítulo 28
O jantar na Tijuca teve como prato principal discussão e, em seguida, como sobremesa, bate-boca e gritaria. Chegou a um ponto que Paulo, sempre cordato e estilo paz e amor, deu um murro na mesa, fazendo a garrafa de refrigerante entornar, derrubando o líquido sobre a roupa de Soraia.
Ela se levantou de supetão:
— Isso não pode acontecer! Esse moleque está acabando com minha saúde, com nossa vida!
Paulo levantou a garrafa de refrigerante e, sem jeito, tentou contemporizar:
— Desculpe, meu amor. Perdi um pouco a paciência. Mas vocês dois precisam se entender, de uma vez por todas. Ou quem vai perder a saúde sou eu. Estou a ponto de enfartar!
— Qual nada, velho. Você é forte feito um touro! Foi fichado, interrogado e passou dois dias preso no tempo da ditadura. Além do mais, aguenta essa mulher há anos — Maurício fez um gesto com o queixo, apontando para Soraia. — Não morre tão cedo.
— Você deixa esse infeliz falar assim na nossa frente? Sem respeito a mim ou a você?
— É o jeito jovem de se expressar — acrescentou Paulo. — Maurício nem chegou aos vinte e três anos.
Soraia sentiu uma veia dançar freneticamente no canto da testa. Ficou rubra de raiva:
— Não pode estar falando sério, Paulo. Passa a mão na cabeça desse moleque a todo momento.
— Só quando você exagera.
— Ficou do lado dele até quando o expulsaram do Pedro II. Pode? Ser expulso de um dos colégios mais tradicionais do país? Acho que ninguém foi expulso do Pedro II, para minha vergonha.
— Só pensa na sua vergonha — provocou Maurício. — Eu era massacrado pelos professores.
Ninguém me ajudava, implicavam comigo.
— Será porque era o único aluno que não fazia os deveres de casa e só tirava zero, ou era pego colando nas provas? Ou porque quase aleijou um colega de classe?
— Não fui eu. Já disse — falou e virou o rosto, evitando mostrar o sorriso cínico.
— Está bem. Admitindo ou não a culpa, o resultado da sua insensatez foi que o coitado ficou manco.
— Não joguei o galho de árvore na frente da bicicleta dele.— Isso já foi explicado e é assunto passado -— interveio Paulo. — Nosso filho foi inocentado.
Por que levantar isso agora, depois de anos?
— Porque ele é um vagabundo, Paulo. Porque não faz nada na vida, a não ser torrar a mesada, fruto do suor de seu trabalho, nas praias de Ipanema.
— Alto lá! Tenho direito a defesa — justificou-se Maurício. — Ano passado não consegui passar no vestibular para universidade pública. Foi neste ano que decidimos que o pai poderia me pagar uma faculdade particular.
Soraia espremeu os olhos e enrugou a testa, pensativa. E deduziu:
— Pois bem. Deixe-me ver. Há dois anos, não prestou vestibular porque tinha acabado de concluir o colegial, estava esgotado, segundo suas palavras, e pediu para o pai lhe pagar cursinho.
— Isso mesmo — concordou Maurício.
— Depois de um ano de cursinho, não passou na primeira fase do vestibular.
— Acontece, mãe. É a lei das probabilidades.
— Sei. Só que dois anos atrás, na mesma época do vestibular, aconteceu o show do Queen, em São Paulo. Por uma coincidência — Soraia fez um gesto com os dedos das mãos, imitando aspas — você foi visitar sua avó naquela semana. Ano passado, por esses dias, creio, também, ocorreu o show da banda The Police. Foi bem na semana do vestibular. E, nova coincidência! Você foi ao show.
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
— Por acaso, tem algum show de banda ou de cantor estrangeiro que vai acontecer por estes dias ou semanas?
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 4 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 8:41 pm

Será que você não armou toda essa confusão da matrícula só para se esbaldar em mais um show e perambular com seus amigos vagabundos sem eira nem beira?
— Como pode pensar isso de mim? Que mente mais doentia!
— Soraia, creio que está indo longe demais — interveio Paulo.
— Não, querido. É só você ligar os pontos. Eu vou dar uma olhada nos jornais, ficar atenta.
Tenho certeza de que vai ter algum show, dos bons. E esse moleque — apontou com desprezo
— vai querer ir. Escute o que estou te falando!
— Pai, não escute. Ela está inventando tudo isso por culpa, porque perdeu a data da minha matrícula.
Paulo parecia um robô. Só escutava o filho:
— Ele me disse que você perdeu a data da matrícula dele na faculdade e... Soraia o cortou com um grito:— Não é responsabilidade minha! Ele deveria saber a data limite para se matricular. Não tem cinco anos de idade. É um homem.
— Ela fala isso porque, antes de o sobrinho-maravilha passar a temporada aqui em casa, prometeu que iria comigo fazer a matrícula, pai. Disse para eu não me preocupar.
— Se você prometeu, Soraia, deveria cumprir. Maurício tem razão. Você sempre fica avoada quando Fernando fica aqui em casa.
Soraia deu novo grito, falou um palavrão e saiu batendo as tamancas até o quarto. Bateu a porta com força.
— Não te disse, pai? A mãe pirou. Desde a última vez que Fernando esteve aqui, ela anda assim, nervosa, me trata dessa forma esquisita — ele mostrou o braço com uma ferida para o pai.
Paulo indagou:
— O que é isso?
— A mãe. Voltando da faculdade, ela se irritou comigo e, dentro do Túnel Rebouças, aproveitou que estava meio escuro e apagou o cigarro no meu braço.
Paulo levou a mão à testa, indignado.
— Está falando sério?
— Iria brincar com você? — Maurício forçou uma lágrima. Estava acostumado a fazer esse teatro. Manipulava Paulo como a um fantoche. O pai não percebia e caía direitinho nas artimanhas do filho. O que Maurício dizia era lei. Seu filho tinha sempre razão.
Por exemplo, cheiro de maconha vindo do quarto? Era do vizinho de baixo, que soltava as baforadas na direcção da janela do filho. Havia briga na rua envolvendo seu filho? Maurício era sempre a vítima. Havia confusão, arruaça, baderna? Alguém, excepto seu filho, tinha começado a encrenca. Nunca Maurício.
Alguns amigos haviam alertado Paulo de que o filho não era lá esse anjinho que ele acreditava que fosse. Maurício fingia muito bem, com seu rosto bonitinho, um ar de bom moço. Muita gente na redondeza já sabia que ele não passava de lobo em pele de cordeiro.
Para falar a verdade, Soraia era bem esperta e tinha sacado o filho. Sabia que Maurício era manipulador e não entrava em seu jogo. Infelizmente, Paulo não enxergava as artimanhas do filho.
Maurício precisou de muito sangue-frio para se controlar quando a mãe falou sobre os shows.
O pior é que era verdade. Ele não tinha vontade de estudar, de fazer faculdade. Queria gozar a vida, aproveitar tudo o que podia e, coincidentemente com as datas de vestibulares, aconteciam shows maravilhosos, de bandas estrangeiras que nunca, jamais haviam tocado no país. Ele não podia deixar de assistir a esses shows. E, se estivesse compromissado com vestibular ou matrícula, a mãe faria da vida dele um inferno e não permitiria que ele fosse a um concerto. Eram "pirações” de Soraia, ele deduzia.
E Soraia havia percebido o padrão: dois anos antes, um show; ano passado, outro. Neste ano, na praia, alguém disse que a banda Van Halen iria tocar em São Paulo, única apresentação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 8:41 pm

Maurício ficou maluco. Precisava ir. O imbróglio da matrícula era perfeito para conseguir do pai o dinheiro necessário para comprar o ingresso e passar uns dias na cidade.
Depois que Paulo o abraçou por conta da pena que sentira em relação à queimadura de cigarro, que ele próprio fizera, Maurício comentou:
— A situação aqui em casa está bem complicada. Sei que eu também deveria ter me atentado à data da matrícula, mas tenho pensado tanto em arrumar um emprego, em ajudar você nas despesas da casa... Já sou adulto, pai. Preciso contribuir.
Paulo chegou a ir às lágrimas.
— Não precisa se preocupar, meu filho. O que ganho é suficiente para nos manter com dignidade. A sua mesada não compromete nosso orçamento. Sua mãe exagera.
— Não. Ela não exagera — mentiu. — Está certa. Tenho vinte e dois anos. Não sou mais criança. Se for comparado ao Fernando, o que ela sempre faz, todo santo dia, não valho nada.
Preciso tomar um rumo na vida.
— Não pense dessa forma. Sua mãe não pode ficar a todo momento comparando-o a seu primo. Cada um é único no mundo. Não há duas pessoas iguais. Cada um tem seus potenciais, talentos, habilidades, defeitos também. Tenho certeza de que logo vai encontrar seu talento.
— Mas o clima aqui está pesado. Não posso passar o dia todo aqui. Como vou voltar a estudar, pegar nos livros, me dedicar, se a mãe briga comigo a todo momento? Precisaria sair daqui, ficar fora uns tempos.
— Não diga isso!
— É a pura verdade, pai. Uma amiga da praia me convidou para passar uns dias na casa dela.
— Nem pensar! — Paulo levantou-se do sofá nervoso. — Filho meu não sai de casa por causa de chilique de mãe.
— Por outro lado — era agora que tinha de dar o bote no pai — tinha pensado em visitar a avó Eustáquia. Tio Jamil disse que ela está bem doentinha. Contudo... — ele fez uma longa pausa, calculada, para gerar um efeito dramático — não temos condições de você me dar grana para viajar e passar uns dias em São Paulo.
— Tem vontade de ver sua avó?
— Tio Jamil me ligou três vezes semana passada. Eu não quis comentar porque fica chato. Ele queria mandar o dinheiro das passagens. Disse até que pagaria a ponte aérea, imagina...
O discurso mentiroso mexeu com o orgulho de Paulo.— Nada disso. A família acha que passamos fome, que vivemos no aperto?
— Não sei. Vai saber o que o Fernando comenta lá com a família dele, com o tio. Deve dizer que os móveis deste apartamento são velhos, que moramos longe do mar, deve falar coisas horríveis pelas nossas costas.
— Sobrinho ingrato!
Maurício esboçou um sorriso. Pigarreou:
— Deixe o Fernando, pai. Ele é inseguro, tem problemas de auto-estima, não tem a beleza que eu tenho. Coitado. Em todo caso, você concordaria com minha viagem para São Paulo?
— Diante do desequilíbrio de sua mãe, esta é a melhor alternativa. Vou ver o preço das passagens e dobrar a mesada deste mês. Não quero filho meu na casa dos outros com ar de mendigo.
— Isso mesmo, pai. Gostei!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 8:41 pm

Capítulo 29
Depois da discussão, Soraia entrou no quarto sentindo tremenda dor de cabeça. Saiu, foi até o banheiro, escutou ao longe pai e filho conversando, fez uma careta. Abriu a gaveta de remédios, apanhou uma cartela e dela tirou um comprimido. Tomou com um copo de água da torneira e voltou para o quarto.
Atirou-se na cama, apagou a luz e deixou que só a luzinha do abajur ficasse acesa. Olhando para o tecto, passou a reflectir sobre sua vida nos últimos anos.
Ela amava Paulo, mais que tudo. Era um companheiro maravilhoso, um marido nota dez, dedicado, fiel, cortês, bem-humorado, bom amante. Seria tudo perfeito não fossem os problemas que começaram a surgir desde a infância de Maurício.
Ela admitia, sim, que no começo da maternidade dava bem mais atenção ao sobrinho. Fosse Fernando mais querido, fosse seu afilhado, Soraia não saberia responder, mas havia um elo de afecto muito forte que os unia. Ela o amava como a um filho. Era algo natural, sem forçar a barra.
Num primeiro momento, Sílvia teve seus acessos de ciúmes, mas, com o tempo, percebeu que Fernando também nutria pela tia um sentimento especial, um amor diferente. Era como se fossem mãe e filho. Havia cumplicidade, confidências, afinidades, coisas em comum que transcendiam sangue, filiação. Havia também o amor declarado por Clarice; contudo, como a garota tinha um jeito especial de lidar com as pessoas, conseguia manter equilíbrio na relação de afecto com a tia.
Além do mais, Clarice também nutria um sentimento especial por Maurício. Fosse ele rebelde, manipulador ou consciente de que agia de má-fé, ela o compreendia e o aceitava da maneira que era. Havia nela algo de profundo carinho e protecção, o que, de certo modo, ao longo do tempo, permitiu criar certo distanciamento entre o convívio de Soraia com ela.
Soraia revirou-se na cama, recordando os momentos nos quais tentou ser boa mãe, educar Maurício com firmeza, mostrando a ele limites, modos. Nunca levantara a mão para bater nele. Disse baixinho:
— Fui uma boa mãe. Não o amei com toda a força do universo. Também não deixei de expressar carinho, afecto. Gosto do meu filho, mas Paulo o estragou. Ele me desautoriza na frente de Maurício. Faz que eu perca a autoridade. Não vê que Maurício o manipula a seu bel-prazer. E está fazendo com que briguemos. Nunca briguei ou discuti com Paulo. Será que Maurício vai fazer a cabeça do pai e Paulo vai se separar de mim?
Uma onda de insegurança a invadiu. Soraia sentiu mal-estar. Apagou a luz do abajur, tentou fazer uma prece, esquecer os acontecimentos e, com a ajuda do comprimido para dor de cabeça, em minutos adormeceu. Acordou com um toque sobre o ombro. Percebeu que estava sonhando.
— Você! — exclamou.
— Como vai, Soraia?
Ela se remexeu na cama e sentou-se, meio sonolenta. A dor de cabeça sumira. Não sentia nada. Até o mal-estar passara.
— Estou bem. Quer dizer, as dores passaram, mas a minha vida está um inferno. Você viu o que aconteceu há pouco, Raul?
— Na noite passada, você quer dizer.
— Como assim? Eu me deitei agora há pouco.
Ele sorriu.
— Descansou bastante. Está quase amanhecendo. Veja — apontou para o lado da cama. — Paulo dorme a sono solto.
Ela olhou para o lado, desalentada.
— O que me preocupa é que não estamos bem. Não o vi se deitar. Quando se deita, sempre me dá um beijo de boa-noite. Esteja eu com comprimido, dormindo, sinto seu beijo e retribuo, mesmo sonolenta. Ele não me beijou.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 8:42 pm

— Não a beijou. Eu vi.
— Fala desse jeito... com naturalidade na voz.
— Queria que eu fosse dramático? Que gritasse? Chorasse? — Raul sentou-se ao lado dela na cama e passou o braço pelo ombro. — Sei que o momento é difícil.
— Terrível, melhor dizer. Maurício está se tornando intratável. Ele mente na caradura, manipula, distorce os fatos, está jogando Paulo contra mim. Sei que meu casamento está abalado, mas o que será de meu filho?
— Estou aqui para ajudá-la a ajudá-lo.
— Frase de efeito bem interessante. Nessa altura da vida, Maurício aceita conselhos do capeta, menos vindos de mim.
— Pode mudar a maneira de aproximação.
— Eu?! Mudar?
— É.
— Está dizendo que eu tenho de mudar meu jeito de ser?— Não. Não tem de mudar seu jeito de ser. Precisa mudar a sua maneira de abordar seu filho.
Sempre chega em Maurício com duas pedras, duas facas, pronta para o ataque.
— Como quer que eu fale com ele? Sempre me tira do sério!
— Já percebeu que não lhe dá bom-dia, não lhe dirige uma palavra de carinho, uma palavra de afecto? Há quanto tempo não diz ao seu filho “Eu te amo”?
Soraia passou os dentes pelo lábio inferior. Ficou pensativa.
— Não me recordo.
— Porque nunca disse a Maurício que o amava.
— Não há necessidade. Sou a mãe dele. Eu lhe dou carinho, afecto.
— Não basta.
— Ele não tem limites, Raul. Cresceu com Paulo lhe passando a mão na cabeça, deixando de puni-lo pelos erros que cometia. Maurício cresceu acreditando que poderia fazer o que quisesse, como quisesse, com quem quisesse. Isso não é bom sinal. Se ele desrespeita a mim, que sou sua mãe, imagino o que possa fazer com qualquer pessoa fora de casa. Tenho medo.
Raul a olhou com profundo carinho.
— Estou aqui para ajudá-la. Já disse.
— Como?
— Primeiro, tentando se manter mais calma. Este lar está com energias perturbadoras. Um lar com energias nesse teor faz com que as pessoas que nele habitam se sintam mal, cansadas, perturbadas, com a mente desfocada. É local ideal para atrair espíritos também perturbados que se alimentam dessas energias ruins.
— Deus me livre! Não quero espírito invasor na minha casa.
— Mude o jeito de ser. Seja mais positiva.
— Com os problemas que Maurício me traz?
— Como se ele fosse o único problema nesta casa.
— E não é?
— Fácil jogar a responsabilidade sobre os outros. Claro que ele também tem sua parcela de responsabilidade por causar certo desequilíbrio no lar. Mas você precisa fazer sua parte, Soraia. Seja forte, imponha sua vontade, seu ânimo, sua força! Se você mudar, ele muda, Paulo também muda.
— Duvido. Paulo é grudado nele. Parece que são amigos de várias vidas. Eu sou a intrusa.— Não veja sob esse ponto de vista. Se são uma família, é porque devem se amar e se respeitar, promover a amizade, estimular o carinho, o afecto entre os três. Não pense se são amigos ou inimigos do passado. Isso é bobeira. Se está na sua vida, é porque tem a ver com você, tem afinidade de alguma forma, você atraiu esse filho com sua maneira de pensar, de ser.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 10:06 am

— Sempre eu. De novo, eu entro como a grande responsável.
— Não quero que veja a situação como certa ou errada, culpada ou inocente. A vida sempre trabalha para que os envolvidos melhorem. Se estão juntos, é para promover o amor.
— Hummm...
— Vai levar certo tempo, mas precisa fazer sua parte. Comece a mudar sua maneira de ser.
Lembre-se da maternidade, dos primeiros meses de vida, de quando ele aprendeu as primeiras palavras, a andar, a mastigar... mesmo que sua ligação com Fernando seja mais forte, não tem como negar que houve momentos muito belos entre você e Maurício.
— Tem razão. Houve. Lá atrás.
— Precisa levar em conta, Soraia, que Maurício cresceu na ilusão, acreditando que a vida é algo bem diferente da realidade. Tornou-se um mimado clássico. Do tipo que acredita que pode ter tudo o que quer.
— Sim. Você disse tudo!
— Pessoas assim crescem sem limites, sem disciplina, sem ouvir "não”. Nada pode contrariá-las. Os pais, no seu caso, o pai, superprotegeu o filho, contribuindo para ele se tornar rebelde, agressivo até, preso numa espécie de bolha de plástico, acreditando que as pessoas no mundo devem fazer tudo para ele.
— Está descrevendo meu filho...
— Pois bem. Quando nasce, geralmente o espírito pode trazer essa personalidade, que de certa forma estava bem desenvolvida.
— Quer dizer que já é um padrão? No caso de Maurício, a irresponsabilidade é um traço forte de seu espírito.
— Isso mesmo. Nascendo em um lar onde há protecção em excesso, o que acontece? A super-proteção acaba por minar a força da criança, e ela cresce sem estímulo para vencer na vida. Ao perceber que o mundo é diferente da vida que tem dentro de casa, leva um choque de realidade. Muitos se tornam mais rebeldes, outros acabam nos vícios, afundam-se em drogas, bebidas, sexo, arrumam grandes encrencas, metem-se em badernas, acidentes, ou seja, procuram algo forte que possa ajudá-los a encarar a realidade com menos dor e lidar com seus pontos fracos.
— É muito triste.
— Não deixa de ser uma maneira de sair da ilusão e melhorar.— O que eu faço, agora?
— Primeiro, mude seu jeito de pensar. Precisa mudar as energias deste lar. Eu consegui afastar alguns espíritos que queriam entrar no apartamento. Limpei o ambiente. E você bem sabe que, ao acordarem, se voltarem a discutir, toda a energia perturbadora voltará a reinar e eu não terei como evitar as companhias desagradáveis de entrar no recinto.
— Sei.
— Depois, comece a mudar seu jeito de ser, Soraia. Se não conseguir mudar com Maurício porque ele continua intratável, mude você. Não dê importância ao que ele diz, não entre em suas provocações.
— Difícil.
— Mas não impossível. Leia frases positivas. Cole pedaços de cartolina na geladeira, na parte interna do guarda-roupa, esteja sempre ligada à espiritualidade maior. Não se esqueça de que está amparada e protegida pelos amigos espirituais. Se sentir aperto, me chame mentalmente.
— E se, com tudo isso, meu filho não mudar?
— Das duas uma: ou ele vai mudar, mesmo que um pouco, ou ele vai sair de casa.
— Não acredito. Paulo não deixaria.
— Nunca sabemos o dia de amanhã.
— Mas...
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 4 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 10:06 am

Raul a interrompeu com amabilidade na voz:
— Agora é hora de voltar a dormir mais um pouquinho. Logo você vai despertar para um novo dia. Cada novo dia no mundo é um recomeço, uma chance de você fazer tudo diferente. Então, faça com alegria, com boa vontade, disposição!
— Está bem. Espero me lembrar de tudo isso.
Raul a beijou na testa e despediram-se. Soraia voltou a deitar e seu perispírito encaixou-se no corpo. Acordou na manhã seguinte sentindo agradável sensação de bem-estar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 10:07 am

Capítulo 30
Nos anos que se passaram desde que se conheceram, Jamil e João Carlos estabeleceram uma parceria sólida, um relacionamento pautado em valores como amizade, afecto, admiração e, sobretudo, respeito.
Viviam em casas separadas. João Carlos, nos últimos tempos, insistia que o melhor era viverem sob o mesmo tecto, pois estavam envelhecendo e, com as viagens ao exterior diminuindo, ele ficaria mais no país e seria bom ter o companheiro ao seu lado.
Jamil, por sua vez, relutava bastante em aceitar dar esse passo. Embora a relação dos dois fosse sólida e cheia de afecto, Jamil ainda tinha medo dos dedos acusadores da sociedade.
Acreditava que, viver com outro homem, na mesma casa, chamava muito a atenção, poderia suscitar comentários maledicentes etc.
João Carlos ficava furioso com esse tipo de comportamento do parceiro. Se não fosse pelo amor que sentia, já teria terminado o relacionamento com Jamil havia muito tempo. Mas resistia. Não sabia até quando...
Jamil também usava, como desculpa para não viverem juntos, a doença de Eustáquia, que, para ele, era como se fosse sua mãe. Depois da morte de Faruk, em 1975, ela não fora mais a mesma. Perdera a vontade de trabalhar, o gosto pela vida. Fechada em seu mundo, os sinais de demência começaram a surgir no comecinho da década de 1980.
Naquela época não havia ainda o conceito de casas de saúde para idosos. Soraia alegou que morava em outro estado e seu apartamento era muito pequeno para acomodar a mãe postiça.
Sílvia argumentou que sua casa era um sobrado e não teria como fazer adaptações para acolher a mãe.
Era - e infelizmente ainda é — um grande problema em várias famílias: o pai ou a mãe com idade avançada, doente, torna-se um estorvo para os filhos.
Jamil, notando que o jogo do empurra-empurra entre as irmãs não teria fim, tomou uma atitude digna. Contratou duas enfermeiras aposentadas que se revezavam nos cuidados com a velha senhora. Quando tinha tempo livre no mercado, passava as horas com Eustáquia. João Carlos chegava de viagem para ficarem juntos, contudo Jamil se sentia constrangido e limitava as visitas do companheiro. João Carlos tinha uma paciência de Jó.
Clarice, durante a faculdade e depois que se formou, passava todo fim de semana ao lado da avó. Era com grande carinho que se revezava com as enfermeiras e cuidava de Eustáquia.
Embora fosse padrinho de Fernando, Jamil desenvolvera adoração por Clarice. Viviam grudados, o que havia gerado ciúme em Soraia. Para contemporizar, Clarice argumentava que o tio vivia em São Paulo e, por esse motivo, estavam mais próximos. Jamil, por medo de assumir sua orientação sexual, continuou vivendo na casa da família. Era um belo casarão na Bela Vista, em uma área ainda não dominada por prédios. Ele adaptou a parte inferior da residência para acomodar Eustáquia. Transformou a sala de estar e o lavabo em uma suíte bem espaçosa.
João Carlos, por sua vez, colocado meio de escanteio, vivia em um amplo apartamento na São Luís. Mantinha no imóvel seu ateliê. Com o passar dos anos, seu trabalho no mercado internacional valorizou-se e ele se tornou artista plástico de renome. Estava sempre participando de exposições pelo mundo. Aliás, viajava mais do que necessitava para não brigar com Jamil.
Depois de mais de vinte anos de relacionamento, João Carlos começava a se questionar se estava valendo a pena continuar ao lado de alguém que valorizava mais o que os outros pensavam do que os próprios sentimentos. Fez uma parceria com galerias em algumas cidades europeias e ficaria um bom tempo fora do país. Estava na hora de repensar a relação. Quando voltasse, teria uma conversa definitiva com Jamil.
Nessa noite, Jamil havia chegado do mercado, verificado com a enfermeira o estado de Eustáquia. Na mesma. Eustáquia havia brigado com a mulher e exigido que a levasse para trabalhar, porque Faruk a estava esperando.
— Não mudou muito — constatou ele, entristecido.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 4 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 10:07 am

— Eu vou dar a canja para ela. Sobrou um pouco. O senhor quer?
— Não. Mais tarde como alguma coisa. Obrigado.
Ele beijou Eustáquia na testa. Ela sorriu e nada disse. O telefone tocou e ele atendeu. Era Leocádia.
— Estou sentindo sua falta! — lamentou, sentida.
— Muito trabalho, como sempre. E, quando sobra tempo, eu o divido com Eustáquia e João Carlos.
— Mas ele está em Londres, expondo suas obras.
— Sei. Só faz eu trabalhar, cuidar de Eustáquia e morrer de saudades.
Os dois riram. Ela falou:
— Queria visitá-lo.
— Pois venha.
— É algo sério.
— Não gosto quando fala nesse tom.
— Gostaria que viesse até minha casa, mas, no estado em que Eustáquia se encontra, prefiro ir até aí. Importa-se de eu ir agora? É muito tarde para você?— Não. Eu durmo tarde. Sabe disso. Além do mais, me fará companhia. Venha. Será um prazer.
— Meia hora. Beijos.
Jamil desligou o telefone.
— Ao menos dá tempo de um banho — disse para si.
Foi ao banheiro, tirou a roupa e olhou para sua imagem reflectida no espelho. Ficou um tanto decepcionado ao vê-la. Já não tinha mais o corpo atlético de outrora. Deixara a barriga crescer e andava um tanto desleixado. Sentiu insegurança:
— Agora que virei os cinquenta, se João Carlos não me quiser mais, nunca mais vou ter ninguém. Com esse corpo — apontou para a imagem reflectida no espelho — não pego mais nada.
Fez uma cara triste. Entrou no boxe, abriu a torneira, tomou uma ducha. Depois do banho,
vestiu uma calça de moletom, camiseta e chinelo de dedos. Jamil continuava um homem bonito, os cabelos, agora prateados, até lhe conferiam certo charme. Entretanto, faltava--lhe viço. Estava apagado, apático. A auto-estima estava lá embaixo, no fundo do poço. Era um homem que adorava fazer discursos sobre pensamentos positivos, mas não se valorizava.
Desceu as escadas. A campainha tocou. Abriu largo sorriso ao ver Leocádia.
— Você não envelhece, Leocádia!
Ela o abraçou e deu um tapinha nas costas.
— Fala assim e eu acredito.
— Pura verdade. Como pode?
— Creme no rosto e — baixou a voz, fingindo tom de segredo — João Carlos me traz do exterior as fitas de ginástica da Jane Fonda. Eu faço todos os exercícios. É fantástico.
— Ah, vá!
— Sério. Passei dos sessenta e consigo me alongar como menina. Quer que eu lhe mostre?
— Não é necessário. Tenho certeza de que você é capaz. Está radiante.
— Não posso dizer o mesmo de você. Que cara é essa?
— A que Deus me deu — respondeu ele, de bico.
— Jamil, eu o conheço. Não está bem. O que foi?
— João Carlos não me liga faz semanas. Isso nunca aconteceu.
Ela deu de ombros.— Isso um dia iria acontecer. Não valoriza o que tem, uma hora não vai ter mais.
— Ora! — ele se indignou. — Eu sempre tratei bem seu filho. Sou fiel, um companheiro que o respeita e admira.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 4 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 10:07 am

— Mas falta paixão. Você não se entrega, não é você mesmo. Fica com medo dos outros. Se sua família o apoia, por que tem tanto medo de viver com João Carlos, como um casal?
— Porque... porque...
— Nem você sabe ao certo por quê. Está perdido nas convenções sociais, nos medos, no julgamento. Justamente você, uma pessoa que sempre afirmou que todos são responsáveis por suas escolhas e que não há vítimas no mundo. Quer saber? Você só fala da boca para fora.
É uma fraude.
— Leocádia!
— Isso mesmo. Você não é o que diz. Fala, prega uma coisa e vive outra. É um homem que está perdendo a beleza, está se deixando levar pelas ideias maledicentes do mundo e, por esse motivo, vai perder a pessoa que o ama. E, se continuar agindo dessa forma, ou seja, se não modificar seu jeito de ser, se não tiver modéstia, aprender a ser seu amigo, ficar do seu lado para o que der e vier, vai terminar a vida sozinho, triste e infeliz.
Jamil sentiu um nó na garganta. Por mais dura que fosse, Leocádia lhe dizia a verdade.
De repente, o semblante dele entristeceu.
— Você está certa. Preciso mudar, tanto o jeito de ser como cuidar mais de mim. Estou ficando gordo. Nunca tive uma barriga como esta — apontou para o ventre.
— Posso lhe emprestar as fitas da Jane Fonda. É um bom começo.
Ele sorriu sem graça e a fitou de cima a baixo. Leocádia indagou:
— O que foi, querido? — ela perguntou, enquanto entravam e iam até o quarto onde estava Eustáquia.
— Fiquei aqui pensando com meus botões. Você tem praticamente a mesma idade de dona Eustáquia. Se bobear, você é mais velha que ela.
— Sou um ano mais velha.
— Então, como pode? Você vai vê-la. Ao seu lado, ela parece uma mulher de oitenta anos. É praticamente sua mãe.
— Não exagere.
— Verdade, Leocádia. Ela está um trapo. Tudo bem, sempre foi mais acabadinha, nunca cuidou do corpo. Dedicou a vida toda ao trabalho. Mas terminar assim, nesse estado? — a voz dele estava embargada. Leocádia desprendeu-se dele e entrou na sala transformada em quarto. Encontrou Eustáquia terminando de tomar a canja. A enfermeira os olhou e disse:
— Faz uma hora que tento lhe dar a canja. Ela diz que a estou envenenando para ficar com o marido dela.
— Não ligue para o que ela diz. Eustáquia resolveu viver em outro mundo — Leocádia explicou e aproximou-se. Abaixou-se e seus olhos encontraram os de Eustáquia. Ela tomou as mãos com delicadeza e perguntou: — Como vai você?
— Vou bem. Queria meu marido. Está me esperando no mercado.
— Sei. Mas, antes de ir ao mercado encontrá-lo, vamos bater um papo?
— Tenho pressa.
— Eu pedi para a empregada passar um vestido lindo.
— Para quê? — Eustáquia fez uma cara de maus amigos.
— Para você agradar Faruk. Não pode chegar desse jeito ao mercado, concorda? Tem de estar bem-vestida, perfumada, cabelos penteados. Vamos, quero deixar você bonita.
Os olhos de Eustáquia brilharam emocionados.
— Eu quero. Você me ajuda?
— Claro — Leocádia virou-se para Jamil e pediu: — Pode me arrumar uma escova de cabelos?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 10:07 am

Ele assentiu e foi ao banheiro ao lado. Voltou com a escova. Leocádia a pegou e, com carinho, começou a passar pelos cabelos brancos de Eustáquia.
— Vamos deixar esses cabelos bem-arrumados. Depois, vamos colocar uma presilha. E, na sequência, vamos passar uma colónia. Faruk gosta de perfume?
— Adora! Ele me comprou um na semana passada.
— Onde está?
Eustáquia ficou pensativa. Leocádia foi rápida:
— Sei. O perfume que está na bancada da penteadeira, certo?
— Esse mesmo!
— Jamil, por favor, vá buscar para nós.
Ele fez cara de interrogação. Leocádia sorriu, levantou-se e disse baixinho:
— Ela tem algum perfume?
— Acho que tem alguma coisa lá em cima.— Pois traga. Se não encontrar, traga um perfume seu.
— Mas...
— Nada de “mas”. Confie em mim. Vamos. Depressa.
Jamil concordou e foi para o andar de cima. Cinco minutos depois voltou com um frasco de colónia.
— Acho que está vencido.
— Não tem problema. O importante não é o cheiro, mas a intenção.
Leocádia tomou o frasco das mãos dele. Passou um pouco no pulso e aspirou.
— Hum, que delícia! Nossa, que bom gosto seu marido tem! Parabéns.
— Obrigada.
Leocádia passou o perfume no pulso de Eustáquia e, em seguida, ela baixou a cabeça.
Dormiu. A enfermeira veio rápido:
— Enquanto tomava a canja, dei os remédios que o doutor Seabra receitou. Tinha o calmante da noite. Acho que agora ela vai dormir.
— Vai descansar — assegurou Leocádia. -— Vai ter uma boa noite de sono. Meus amigos do astral vão levá-la para um passeio. Espero que ela volte de lá um pouco diferente, melhor.
— Acredita que ela possa reverter a demência? — quis saber Jamil, esperançoso.
— Tudo é possível. No caso de Eustáquia, porém, o cérebro está bem comprometido. Mesmo que apresente melhora, nunca mais será a mesma. Seu espírito perdeu o gosto pela vida. No dia em que ele decretou essa perda, todo seu sistema de integridade imunológica começou a deteriorar. Isso não começou ontem.
— Mês passado fez oito anos que papai morreu — revelou Jamil.
— Oito anos não são oito dias. Imagine trezentos e sessenta e cinco dias vezes oito. Depois multiplique o resultado por vinte e quatro.
Faça as contas. É a quantidade de horas que sua mãe amada ficou amargurando a vida.
— Pensando assim, ela causou um grande estrago a si mesma.
— É. Talvez não consiga mais reverter o quadro nesta vida, somente no mundo astral.
— Mas você a deixou bem, a fez sorrir.
— É o jeito de tratar.
— Eu a trato com amor — protestou Jamil.— Trata-a com amor, sei disso. Contudo, precisa usar a alegria, o humor. Não pode encarar essa doença com dramaticidade. Por que o drama, a dor, o sofrimento? Não vai fazer festa, claro. Precisa tratar o doente de forma menos aflitiva. Com o tempo, aprendemos.
— Sabe, pensando melhor, minha sobrinha Clarice tem um jeito parecido ao seu para lidar com dona Eustáquia.
— Óbvio. Sua sobrinha tem carisma nato. Além do mais, há um grupo de enfermeiras do mundo espiritual que a acompanham. Clarice veio para realizar grandes feitos.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 4 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 10:07 am

— Mesmo?
— Há muita doença, muita dor, muito sofrimento que está por vir. Clarice será uma luz na vida de muita gente.
— Está se referindo a esta nova doença, aids?
— Também.
— Não sabemos quase nada a respeito. Apenas que ataca homossexuais masculinos.
— Você não viu nada. Muita coisa está por acontecer. Não é uma doença ligada somente a um grupo restrito de indivíduos. O problema será bem maior, afectará homens e mulheres no mundo todo, sem distinção de raça, cor, condição social, ou orientação sexual.
— O que minha sobrinha tem a ver com isso?
— Clarice tem jeito especial para lidar com as pessoas. Não vai ter preconceito para tratar de pacientes que apresentem essa doença. Muitos profissionais vão se recusar a atender os doentes.
— Não pode. Seria antiético!
— Você não tem ideia do medo que a aids vai causar e da transformação de costumes que vai ocorrer em toda a sociedade. Mas isso agora não vem ao caso. Vim aqui para tratar de outro assunto.
Depois de acomodarem Eustáquia, foram para uma saleta contígua. Jamil fechou as portas atrás de si e ofereceu um licor para Leocádia, que aceitou com gosto.
Após bebericar seu licor, ela disse:
— Precisamos marcar uma sessão especial em minha casa.
— Sessão? Sessão espírita?
— Sim.
— Nossa, faz tanto tempo que não participo de uma, que não fazemos nada parecido. Por qual motivo?
— Sílvia precisa de ajuda.— Minha irmã querida? O que houve?
— Há um espírito ao lado dela. Não quer sair de perto.
— Eu o conheço?
— Claro. É Olavo.
Jamil quase engasgou-se com o licor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 10:08 am

Capítulo 31
Depois de beber dois copos de água com açúcar, Dorothy suspirou e encarou a filha:
— Como diz uma coisa dessas para nós, assim?
— Assim como? Eu vim morar com vocês. Não é uma maravilha?
— informou Rachel.
— Não é isso que estou dizendo. Claro que percebi. Infelizmente, você virá passar uns tempos aqui.
— Uns tempos, não, mummy. Um bom tempo. Sei que não temos muita afinidade — ela baixou a voz —, que não gosto da Mary; entretanto, preciso me adaptar à cidade. Depois você me aluga um apartamento.
— Use o dinheiro do seu fundo e...
— O que estão fazendo? — gritou Débora — Discutindo moradia?
— Queria que eu estivesse trajando um vestido preto, com um chapéu também preto, óculos escuros, chorando muito? Ora, mamãe, tenha paciência. Fui prática — e virando-se para Débora, finalizou: -— Fiz o que tinha de fazer, maninha.
— Ele era meu pai também. Era sua obrigação, ao menos, me ligar e me informar. E se eu quisesse ir ao funeral? — a voz de Débora saiu um tanto embargada.
— Não me venha com sentimentalismos — foi logo dizendo Rachel. — Fazia anos que não hablava con papito. Ele até estava ressentido com você. Reclamava que fora abandonado pela primogénita — mentiu, só para ver o rosto contraído da irmã. Também tinha o péssimo hábito, como sua mãe, muitos anos atrás, de confundir o português com o espanhol.
Deu resultado. Débora levou as mãos ao rosto, tentando estancar o choro. Caiu no sofá.
Dorothy, enquanto passava o braço pelo seu ombro, tentando confortá-la, fulminava Rachel com os olhos injectados de raiva.
— Não ligue, filha. Rachel a está provocando. Bem sabe que foi seu pai quem cortou relações com você. Por culpa dessa aí — apontou para Rachel.
— Eu?! Imagine.
— Não venha bancar a santinha para cima de mim. Eu não te compro.
A discussão iria começar, contudo, Débora levantou-se e encarou a irmã, nariz escorrendo, olhos inchados:— Diga. De que ele morreu? Como? O que aconteceu?
— Bom. A nossa situação financeira estava de mal a pior. Sorte que eu tenho meu fundo, administrado por aqueles mortos de fome que não me deixam retirar quase nada.
— Sei — desdenhou Dorothy. — Você ganha uma mesada bem gorda. É uma riquinha mimada, isso sim. Ainda bem que seu pai não podia tocar no seu dinheiro, caso contrário, você estaria à míngua.
— Prossiga — pediu Débora.
— Papai e seus negócios megalomaníacos. Perdeu outro investimento. Com o pouco que tinha, foi a Las Vegas. Acreditou que, apostando os últimos dólares nas máquinas de um cassino qualquer, ficaria rico. Qual nada! Perdeu tudo. Ficou tão fulo, chutou máquinas, foi expulso do cassino. Irritado, teve um ataque e, quando os paramédicos chegaram, já era tarde.
— E você? Onde estava? — Dorothy a mirava com olhar perscrutador.
— Eu estava na casa de praia de uma amiga, em Malibu — mentiu.
Se passassem um detector de mentiras sobre a testa de Rachel, iria apitar e mostrar que ela mentia descaradamente. Quando a polícia conseguiu localizá-la, estava na casa de um ricaço, em Los Angeles, cuja esposa passava as férias com os filhos na Europa.
Rachel não valia o prato que comia. Era da pá virada. Tinha pegado os amigos do pai, os primos, os amigos dos primos, passava o rodo em todo mundo. Até seduziu um dos administradores do fundo que gerenciava seus bens para arrancar um dinheiro extra.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 10:08 am

Como se tratava de um fundo respeitadíssimo, só ganhou o jantar e a noite de sexo. Mas gostou, só porque o homem tinha a reputação de marido fiel.
Era destruidora de lares. Era tão doidinha que, para ver o circo pegar fogo, se o homem era duro na queda, ela era capaz de seduzir a esposa. Só pelo prazer da sedução, da luxúria. E, depois, com calculada maldade, distribuía o comentário para a pessoa certa, no lugar certo, na hora certa. Quantos divórcios haviam ocorrido graças aos desvarios dessa mocinha de apenas vinte e um anos!
Entretanto, em vez de se passar por mulher fatal, fazia a linha mocinha indefesa, inocente, às vezes, burra. Passava até despercebida porque não chamava tanto a atenção. Esse era seu trunfo.
Além do mais, havia o preconceito racial. Rachel tinha comprado briga com grupos que começavam a se formar em prol da igualdade racial no país. Ela continuava a desrespeitar e a maltratar os negros. E sua mãe sabia a boa bisca que ela era. Já ouvira comentários, soubera de histórias, até dos problemas em razão do preconceito. Dorothy sabia da cobra - ou galinha - que trouxera ao mundo.
Débora não percebia esse traço da irmã. E perguntou na sequência:
— E correu de Malibu até Las Vegas... — Sim. Peguei o primeiro voo disponível de Los Angeles até Las Vegas. Tratei da identificação e liberação do corpo. Contratei a funerária e cremei o corpo.
— Onde estão as cinzas?
— Eu as joguei nas águas de Malibu — mentiu de novo porque, logo após a cremação, Rachel pagou a funerária e foi embora. Nem quis saber de pegar as cinzas. E emendou: — Papai sempre gostou da costa oeste.
Débora abraçou a irmã e começou a chorar. Rachel abraçou-a e levantou a cabeça. Seu olhar cruzou com o da mãe. Ela sorriu para Dorothy. Um sorriso assustador.
Bem longe dali, na capital paulista, mais precisamente no jardim da casa de Sílvia e Ivan, um espírito balbuciava palavras desconexas, andando de um lado para o outro. Olavo não entendia bem o que lhe havia acontecido.
A mente lhe pesava, apertava. Ele levou as mãos à cabeça para ver se a dor passava. Cenas do cassino misturadas à sua retirada brusca do recinto, Rachel olhando para seu corpo e ele imobilizado, sem poder se mexer, tentando falar-lhe, o fogo...
Ao se lembrar do fogo consumindo o caixão, apalpou o corpo.
— Não é possível! Não me queimei. Continuo vivo. Que brincadeira de mau gosto é essa?
Estava transtornado. Cansado, sentou-se sobre a grama e afundou a cabeça entre os joelhos.
Sentiu alguém tocar seu ombro. Levantou a cabeça e perguntou, sem entusiasmo:
— O que quer?
— Conversar com você.
— Não estou com vontade.
— Mas percebo que não está bem.
Olavo remexeu-se no gramado e olhou para a moça. Era uma negra linda. Olhos esverdeados, cabelos crespos, volumosos, alta, esbelta, os lábios bem desenhados. Aparentava estar na casa dos trinta anos.
— Eu a conheço?
— De um outro tempo, o que não vem ao caso, por ora. Eu me chamo Adélia.
— Prazer — ele estendeu a mão. — Olavo.
— Sim. Estou aqui por sua causa.
— Por mim? Como me achou?
— Eu sou uma espécie de tutora desta família — apontou para a casa, atrás deles.— Conhece Sílvia?
— Muito mais do que você imagina.
— Ela é o amor da minha vida, sabia? Vim de longe para lhe fazer essa confissão.
— Não acha que demorou tempo demais?
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 4 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 10:08 am

— Sim. Mas a esperança é a última que morre. Não é esse o ditado?
Adélia sorriu.
— É. Só que não se aplica a essa situação. Você teve a chance, pôde escolher e preferiu abdicar do sentimento nobre por dinheiro.
— Está me recriminando?
— De forma alguma. Cada um é livre para fazer o que bem entender. Se você conviveu bem com essa escolha, tudo bem. Aqui nesta dimensão não há julgamento. É o próprio indivíduo quem se martiriza, se condena.
— Eu me culpo pelas escolhas erradas que fiz.
— Não há escolhas erradas. Escolha é escolha. Cada uma vai conduzi-lo a caminhos distintos, fazendo-o descobrir novas sensações, experimentar estados de felicidade ou de dor.
— Tive muitos momentos bons, mas muita infelicidade. Nunca amei ninguém como Sílvia. No entanto... — ele ficou pensativo por instantes e indagou: — O que quis dizer com “esta dimensão”?
— A dimensão em que você vive agora.
Olavo olhou para Adélia e dela para a casa. Em seguida, viu algumas pessoas caminharem pela rua e sentiu algo estranho. Passou delicadamente a mão por entre as flores à sua frente e não as sentiu, atravessando as pétalas, como se fosse invisível.
Ele arregalou os olhos:
— O que significa isso? Não vai me dizer que eu estou...
Adélia fez sim com a cabeça.
Uma lágrima rolou pelo canto do olho de Olavo. Em seguida, o pranto correu solto e ele se abraçou a Adélia. Estava inconformado e muito abalado.
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