LUZ ESPÍRITA
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O próximo passo - Marco Aurélio / Marcelo Cezar

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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:52 pm

O próximo passo
Marcelo Cezar

Marco Aurélio

Marco Aurélio

Marco Aurélio, espírito amigo, tem me acompanhado desde que iniciei meus estudos no espiritismo.

Ele me revelou que, em sua última encarnação, fora investigador de polícia, nascido e criado na cidade do Rio de Janeiro, em fins do século dezanove.

Ajudou a polícia de São Paulo nas investigações e na solução d(r) famoso crime da mala, ocorrido em 1928.

Depois de seu desencarne, ocorrido por volta de 1931, Marco Aurélio uniu-se a uma colónia destinada a trabalhar com médiuns no nosso planeta por meio da psicografia, trazendo ao público histórias reais, sempre respeitando o nome dos verdadeiros envolvidos, pois muitos ainda encontram-se encarnados.

Esse grupo do qual Marco Aurélio faz parte trabalha no desenvolvimento do ser humano, fazendo com que, ao ler nossas histórias, você possa conscientizar-se do seu grau de responsabilidade diante da vida e accionar a chave interior para viver melhor consigo e com os outros, tornando o nosso planeta um lugar bem mais interessante e prazeroso de se viver.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:53 pm

O próximo passo

A tarde começava a se despedir da colónia astral.
O sol tingia o céu, formando uma tela alaranjada de rara beleza.
Uma bonita jovem, de cabelos castanhos e sedosos, cujas pontas balançavam suavemente sobre os ombros, sorriu pela primeira vez em anos.
Seus olhos esverdeados contemplaram o horizonte e ela agradeceu ao Criador por estar viva e cheia de vontade para recomeçar.
Imediatamente sentiu um friozinho na barriga.
- Recomeçar? - perguntou a si mesma, numa voz quase inaudível.
Será que estou pronta?
Ela continuou caminhando.
Parou nas imediações de um belo jardim florido e avistou alguns bancos.
Decidiu sentar-se, porquanto ainda se sentia cansada.
Ajeitou o corpo esguio sobre o banco de madeira, fechou os olhos e aspirou o perfume das flores.
À sua frente estava uma fonte esculpida em mármore, cujos lábios entreabertos dos anjinhos despejavam uma água cristalina e energizante.
A jovem espreguiçou-se, levantando as mãos para o alto, e bocejou.
Levantou-se, caminhou lentamente até a fonte e abaixou--se até que suas mãos tocassem a água clara e fresca.
Juntou as palmas das mãos, formando uma concha.
Trouxe o líquido cristalino até os lábios e o sorveu com prazer.
Limpou os lábios com as costas das mãos.
Fechou novamente os olhos e sorriu.
-Como é bom estar viva! - exclamou.
-Falando sozinha? - indagou uma voz familiar, atrás dela.
A jovem virou o rosto e abriu largo sorriso.
-Lolla!
- Como está?
- Muito bem! - tornou, sorridente.
A água está deliciosa.
Não quer experimentar?
Lolla era um espírito cuja luminosidade a tornava mais bela.
Tinha um rosto angelical, porém seus olhos verdes e cristalinos transmitiam firmeza impressionante.
Aproximou-se da fonte, apanhou um pouco da água fresca e bebericou.
-Hum. Concordo com você.
Está boa mesmo.
-Estava cansada de ficar no quarto.
Uma das enfermeiras deixou-me caminhar até o jardim.
-Faz bem. Seu espírito precisa de movimento.
Há muito tempo está parada.
-O tratamento tem me ajudado bastante a relembrar minha última vida na Terra.
Passei a enxergar tudo com mais clareza.
-Tem certeza?
-Tenho - respondeu, resoluta.
Descobri quem me matou.
-É mesmo?
Você foi morta?
-Sim, Lolla.
É duro perdoar alguém que lhe tirou a vida corpórea, mas, diante da eternidade e entendendo o ciclo da reencarnação, percebo que foi o que tinha de acontecer.
-Você atraiu o tipo de morte que mais se afinizava com seu modo de ser.
Deixava-se sufocar pela negatividade dos outros.
Não escutava a si própria.
-Sei disso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:53 pm

Era estouvada, tinha um génio irascível.
Sempre fui muito manipuladora e controladora.
Era nervosa e não admitia ser contrariada.
Nunca quis enxergar a verdade.
-Prender-se na ilusão e não querer ver pode nos acarretar problemas nos olhos.
Melhor aprender a não temer o que vemos, mesmo que isso possa vir a nos machucar.
-Meus olhos andam meio embaçados - ela levou a mão a boca e perguntou, aturdida:
Vou retornar cega?
-Não. O seu perispírito não chegou ao ponto de lesionar a visão.
Talvez nasça com um probleminha, um pequeno resquício que seu espírito precisa expurgar.
-O que mais me diz?
-Eu creio que você tenha condições de voltar a encontrá-lo.
A jovem sentiu novo frio na barriga.
-Encontrá-lo? Por quê?
-Você mesma disse que compreendeu tudo o que lhe ocorreu na última existência.
Inclusive afirmou que foi duro, mas o perdoou.
Tem certeza de que sabe mesmo como tudo aconteceu?
Enxergou os fatos com os olhos da alma?
-Afirmativo - ela fez sim com a cabeça.
Os técnicos do Departamento de Reencarnação me mostraram tudo o que eu pedi para ver.
Não faltou um detalhe.
-Então não vejo motivo para evitar reencontrá-lo.
-Eu sei o que aconteceu, estou ciente e perdoei a todos.
Daí eu lhe pergunto: encontrá-lo para quê?
Lolla sorriu e acompanhou-a de volta ao banco.
Sentaram-se.
Ela tomou as mãos da jovem e a encarou.
-Sei que seria pedir demais para você reencontrá-lo neste momento.
Sei também que ficaram muitos anos em zonas inferiores acusando-se mutuamente.
Esse período negro passou e foi concedido a ambos o direito de retornar ao planeta.
-Vamos voltar juntos? - perguntou a moça, surpresa.
- Ele está se preparando.
Deve renascer no ano que vem.
A jovem abriu e fechou a boca.
Em seguida mordiscou os lábios, pensativa.
Indagou, curiosa:
- E os demais?
-Alguns já reencarnaram.
Outros irão em momento oportuno.
O que importa é que você poderá voltar; entretanto, diante do passado, precisará concentrar-se em vencer a rejeição.
-Vai me dizer que minha mãe também vai estar lá?
-Vocês precisam se reconciliar.
De nada adianta o perdão aqui no mundo astral se o mesmo não ocorrer numa próxima etapa reencarnatória, com o véu do esquecimento sobre as memórias pretéritas.
Passará por algumas experiências para que seu espírito vença esse sentimento.
A jovem abaixou a cabeça.
Sabia que vencer a rejeição seria dar um passo significativo em sua jornada evolutiva.
Sentia que precisava encarar situações que a fizessem confrontar esse monstro que tanto a machucara em algumas existências.
Ela respirou fundo e olhou fixamente para Lolla:
- Estou pronta.
Sei que sou forte e tenho amigos aqui no astral que vão me inspirar bons pensamentos.
Eu vou vencer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:53 pm

- Fico feliz que pense dessa forma.
Amanhã vamos ao Departamento de Reencarnação para acertar detalhes de sua próxima vida na Terra.
- Devo voltar logo?
- Se tudo der certo, você deverá reencarnar daqui quatro ou cinco anos.
- Ainda vai levar tanto tempo assim, Lolla?
- Agradeça e agarre essa chance.
Nem todos têm o privilégio de planejar o retorno à Terra.
O tempo aqui passa rápido demais.
Quando você se der conta, estará de volta.
- Bom, eu morri em 1915.
Segundo meus cálculos, depois de anos presa naquela zona terrível, acredito estarmos em 1940.
Estou certa?
- Você tem facilidade para organização, mas não é boa em cálculos - tornou Lolla, num largo sorriso.
Seu espírito tem vocação para administração e para as artes.
Sua noção de tempo está bastante equivocada.
- Por quê?
- A Terra acaba de chegar em 1975.
A jovem levou a mão na boca para evitar o grito de espanto.
- O mundo chegou no ano de 1975?
Estou morta - ela fez uma conta rápida com os dedos - quer dizer, estou vivendo aqui no astral há sessenta anos?
Tudo isso?
- Convenhamos que não é um tempo tão longo assim.
É a média que um espírito leva entre uma e outra encarnação, conhecido também como período de erraticidade.
Perceba, querida, que tudo depende do grau de lucidez do espírito.
Alguns ficam aqui pouquíssimo tempo.
Outros, de acordo com a necessidade, ficam um pouco mais.
Estou aqui há bastante tempo e ainda não tenho previsão de retorno.
Mas você ainda deve fazer mais alguns cursos e se preparar para o novo reencarne.
Se tudo correr conforme o planeado - Lolla fez um gesto gracioso com a cabeça - você deverá renascer daqui quatro ou cinco anos, ou seja, por volta de 1980.
-1980! Nem acredito.
O mundo deve estar bem diferente daquele que conheci.
- Em alguns aspectos sim.
A tecnologia evoluiu bastante, contudo os indivíduos continuam sofrendo e vencendo os mesmos medos, traumas e preconceitos.
A mente do homem ainda avança a passos lentos.
Diante da eternidade, para que pressa?
Ambas sorriram e a bela jovem descansou suas mãos sobre as da amiga espiritual.
- Eu vou voltar e vou vencer.
- Estarei torcendo por você.
Agora é hora de voltar ao seu quarto. Vamos?
A jovem assentiu com a cabeça.
Segurou a mão da amiga e seguiram pelo pátio de volta ao edifício.
Ela se despediu de Lolla, entrou no quarto e olhou ao redor. Sorriu.
Fez pequena prece de agradecimento e voltou a se deitar.
Em breve voltaria à Terra.
Sentia-se pronta para vencer a rejeição que tanto a incomodava, dando o próximo passo para o progresso do seu espírito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:54 pm

A história dos pais
1975 - 1980

Capítulo um


Uma tempestade tinha acabado de cair naquele finzinho de tarde, amenizando o calor forte que teimava instalar-se na cidade havia alguns dias.
A chuva espantou as pessoas do cortejo fúnebre.
Muitos foram embora sem se despedir da família.
As irmãs Alzira e Aríete, com dezassete e dezoito anos respectivamente, estavam inconsoláveis.
As lágrimas rolavam sem parar e foi com muito custo que Alzira controlou o choro.
Assoou o nariz e abriu a bolsa.
Apanhou rapidamente o livro amassado e com a capa gasta.
- Preciso ficar bem - disse para si.
Aríete apertou a mão da irmã e tentou um sorriso:
-Esse livro que lemos e relemos tantas vezes... será que é coincidência?
Alzira abriu numa página marcada e bem gasta de Olhai os lírios do campo.
Leu novamente algumas linhas de grande emoção: a carta que a personagem Olívia deixava para seu amado antes de morrer.
Nova lágrima rolou pela sua face avermelhada.
- Não sei se é coincidência, Aríete.
Mas mamãe ter morrido justamente no mesmo dia que o escritor Érico Veríssimo faz eu me sentir mais próxima dele e de seus personagens.
É como se esse choro fosse por mamãe e por ele.
Elas escutaram uma voz logo atrás, censurando-as:
-Mas será o diabo?
Não respeitam nem mesmo enquanto o padre fala?
Cadé o respeito pela mãe de vocês?
Alzira precisou respirar e soltar o ar algumas vezes.
Aríete apertou sua mão, num gesto de solidariedade.
Disse entre dentes:
-Olha quem fala!
Ele mal ajudou a cuidar dela, está de olho naquela sirigaita da Gisele e ainda por cima tenta dar bronca na gente?
-O que será de nossa vida quando voltarmos para casa? - indagou Alzira, nervosa.
-Não sei...
Aríete ia falar, mas o padre alteou a voz e solicitou aos poucos presentes que dessem as mãos e proferissem o Pai Nosso enquanto o caixão de Josefa descia até o fundo da cova.
As meninas pegaram uma rosa branca que estava espetada na única coroa que haviam mandado para o velório e depositaram suavemente sobre o caixão.
-Vá com Deus, mãezinha - disse Aríete.
-Rezaremos por sua alma - emendou Alzira.
Olair nada falou. Resmungou alguma coisa e apressou o passo.
Gisele surgiu do nada, de trás de uma árvore, e aproximou-se de Olair.
Vestia um conjunto preto, como mandava o protocolo, mas extremamente colado ao corpo, mostrando as curvas perfeitas.
Olair abriu um sorriso e aproximou-se da jovem.
Ela cochichou alguma coisa em seu ouvido, ele meneou a cabeça para os lados e sorriu novamente.
Em seguida ofereceu o braço para ela e saíram.
Alzira olhou para a irmã e falou num tom de total reprovação:
-Aquela cascavel está deixando o cemitério de braços dados com o pai.
Acredita nisso?
-Se me contassem, eu custaria a acreditar - replicou Aríete.
Gisele está de olho no pai desde que mamãe adoeceu.
Aposto que agora ela vai dar o bote.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:54 pm

-O pai pode fazer o que quiser da vida dele, contanto que respeite a memória de nossa mãe.
Uma senhora se aproximou e veio se despedir das meninas.
Na sequência, outra mulher, na faixa dos quarenta anos, transmitindo simpatia e solidariedade, cumprimentou-as.
-Meu nome é Célia e gostava muito de sua mãe -disse para Alzira.
-Nunca a vimos em casa - tornou Aríete.
-Olair não deixava que eu visitasse a Josefa.
Eu orava pela mãe de vocês na minha casa, desejando um desencarne tranquilo.
As meninas não entenderam o que Célia estava falando.
Ela sorriu e, antes de despedir-se, falou, num tom que exalava serenidade:
-A morte não é o fim.
Alzira e Aríete assentiram com a cabeça.
-Será? - indagou Aríete.
-Quando quiserem, venham me visitar.
Poderemos conversar sobre qualquer assunto - Célia tirou da bolsa um bloquinho e uma caneta.
Anotou o endereço e entregou o papelzinho para Aríete.
-Esse é o endereço do seu Ariovaldo, vigia da escola.
-É meu marido - respondeu Célia.
-Gostamos do seu Ariovaldo - replicou Alzira.
Ele sempre foi muito bacana com a gente.
-Iremos visitá-los - disse Aríete.
-Serão bem-vindas.
Célia despediu-se e partiu.
Mais uma meia dúzia de pessoas se despediu delas e, no comecinho da noite, Aríete e Alzira deram-se as mãos e deixaram o cemitério do Chora Menino em direcção à casa delas.
Chegando em casa, depois de andarem algumas quadras, não encontraram Olair.
-Vai ver que foi chorar nos braços daquela vadia -vociferou Aríete.
-Não fale assim.
Estamos de luto.
-Por que diz isso?
Nós estamos de luto, mas e o pai?
-Será mesmo que Gisele é má?
-Alzira, você só vê o lado bom das pessoas.
-Mamãe nos criou assim.
-A realidade é diferente.
Há pessoas boas, outras são mais ou menos, algumas são boas e nem tão boas e existem aquelas que nasceram tortas, ruins por natureza.
Gisele faz parte desse último grupo.
-Você é diferente de mim - suspirou Alzira, enquanto começava a preparar um caldo de galinha.
Será que ela é tão má como a gente imagina?
Ou será que estamos com ciúme porque o pai está interessado nela?
Aríete riu e jogou a cabeça para trás.
-Imagine estarmos com ciúme!
O pai mal fala com a gente.
Tenho certeza de que logo ele vai se enrabichar e até casar com essa devassa.
-Mamãe acabou de morrer.
-Sei, Alzira, mas o pai é homem e não pensa com a cabeça.
Ele sempre teve um fraco por mulheres.
Sabemos que ele traía a mamãe.
Sempre foi infiel.
-Será que ele vai se casar de novo?
Se assim o fizer, vamos para o olho da rua.
-De maneira alguma.
Esta casa é tão nossa quanto dele.
Metade pertence a mim e a você.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:54 pm

-Sei, Aríete, porém não se esqueça de que o pai sempre atirou em nossa cara que ele tinha de acordar cedo, trabalhar para sustentar três mulheres.
-Eu sou uma boa pessoa, mas tenho limites.
O pai que não venha com esse papo de sacrifício para cima de mim.
Se ele me colocou no mundo, paciência...
As meninas conversaram, choraram mais um pouco, nem assistiram à novela naquela noite.
Estavam muito tristes e, no último ano, haviam se dedicado integralmente a cuidar da saúde precária da mãe.
Era noite de sábado e elas queriam e tinham necessidade de descansar.
Precisavam dormir e relaxar o corpo, a mente e o espírito.
As duas estavam exaustas física e emocionalmente.
Fazia mais de um ano que Josefa padecia de um câncer que lhe tomara todo o corpo.
Olair não tinha plano de saúde e Josefa teve de ser internada num hospital público.
Naquele tempo o atendimento ainda não era tão precário como nos dias actuais.
Os médicos fizeram tudo o que puderam.
Quando perceberam que o estado de Josefa só piorava e que o câncer iria vencê-la, atenderam seu pedido e a deixaram voltar e morrer em casa.
As meninas cuidavam de Josefa com extremo carinho.
Davam banho, trocavam as roupas, faziam curativos, ministravam os medicamentos, dedicavam-se à mãe com zelo e muito amor.
Olair não parava em casa e mal se interessava pela doença da esposa.
Comprara um colchonete e preferia dormir na alfaiataria.
Sentia enjoo do cheiro de morfina e, com essa desculpa, evitava participar dos cuidados à esposa.
Olair era alfaiate e praticava seu ofício numa lojinha alugada de esquina, a algumas quadras de casa.
Alzira e Aríete estudavam em escola pública e não trabalhavam porque Olair alegava não ter condições de pagar uma empregada doméstica.
Jogava na cara das filhas que elas tinham vindo ao mundo e custavam caro.
Se elas tinham uma cama para dormir e comida à mesa, isso tudo não era de graça; tais regalias não tinham caído do céu.
Por isso, as meninas tinham de dar algo em troca.
Acordavam bem cedo, arrumavam as camas, faziam o café e os curativos da mãe.
Iam para a escola, voltavam e preparavam o almoço.
À tarde, cuidavam da casa, das roupas, do jantar e de Josefa.
Era uma vida dura.
As meninas mal tinham tempo para assistir a um programa de televisão ou mesmo sair na companhia de amigos.
Olair não deixava.
Nesse meio tempo, Aríete fizera um curso de dactilografia porque fora premiada num concurso de revista e ganhara bolsa integral.
Ela era uma mocinha dedicada e em seis meses concluíra o curso.
Alzira dava aulas de reforço de português e o pouco dinheiro que ganhava usava na compra de remédios que ajudassem a amenizar a dor que a doença causava na mãe.
Aríete havia repetido o primeiro ano da escola e, por isso, ela e Alzira estudaram sempre juntas e tinham acabado de concluir o colegial, equivalente ao ensino médio nos dias de hoje.
Alzira adorava literatura e devorava os livros da biblioteca da escola.
Era fã de Orígenes Lessa e Érico Veríssimo.
Lera inúmeras vezes O feijão e o sonho, de Lessa, assim como os clássicos Clarissa e Olhai os lírios do campo, de Veríssimo.
Tinha inclinação para Letras e era muito boa de forno e fogão.
Alzira cozinhava muito bem.
Com a morte da mãe, não sabia o que seria de seu futuro.
Talvez elas fossem procurar emprego e cuidar de suas vidas.
Sentiam que não poderiam contar com o pai dali adiante.
Os dias correram rápido, e o primeiro, de outros choques, veio na noite de Natal.
Alzira e Aríete não queriam fazer nada.
Não tinham vontade de comemorar a data naquele ano.
Estavam ainda guardando luto.
Josefa morrera menos de um mês antes e elas não viam a hora de as festas passarem logo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:54 pm

Queriam entrar rapidamente no ano seguinte e esquecer aquele ano tão difícil.
Olair apareceu em casa pouco depois das seis da tarde.
Trazia uma cesta de Natal numa mão e um peru gigantesco na outra.
Aríete meneou o rosto para os lados por várias vezes.
-O que é isso?
-Ganhei de um cliente rico lá do Jardim França.
Ele me deu a cesta e o peru.
-Nós explicamos várias vezes para o senhor que não queremos comemorar nada.
Mamãe morreu há pouco e...
Olair a cortou violentamente.
-Chega de lamúrias! - vociferou.
- Eu sou o dono desta casa, mando aqui e vocês devem me respeitar.
Estou farto de vê-las chorando pelos cantos, beijando e chorando sobre o retrato da mãe de vocês.
-É claro que choramos.
Sentimos falta da mamãe -disse Alzira.
-É natural - emendou Aríete.
-Natural é deixar isso tudo de lado, porca miséria!
Josefa morreu e não vai mais voltar.
Será que não podem aceitar a realidade?
São moças crescidas. Deveriam estar trabalhando e cuidando melhor desta casa em vez de chorar.
Olair passou o dedo sobre o alto da geladeira e mostrou o dedo empoeirado.
- Viram? É disso que falo.
Vocês nem ao menos limpam a casa direito.
- O senhor não tem o direito de falar assim com a gente - argumentou Alzira.
Respeite a nossa dor.
Olair colocou o peru sobre a mesa e sorriu com desdém.
-Ora, ora. Eu sou o pai e, se derrubarem mais uma lágrima por causa da mãe de vocês, eu puxo a cinta.
Aríete sabia que a conversa ia esquentar.
Perguntou com um ar de deboche:
-O que vai fazer com esse peru e com essa cesta?
-A nossa ceia.
Vocês vão colocar esse bicho no forno agora.
-Impossível -tornou Alzira.
Um peru desse tamanho leva horas para ser assado.
Além do mais, preciso temperá-lo e deixá-lo descansar no molho de um dia para outro.
-Você não é a espertinha que sabe cozinhar?
Pois transforme esse bicho em algo que dê para comer. Ainda hoje.
-Mas precisa ser temperado, já disse.
Só se for para amanhã - respondeu Alzira, com toda a paciência do mundo.
Olair deu de ombros.
-Sem problemas.
Aqui nessa cesta - apontou - tem bastante coisa.
Vou na padaria ali da esquina pegar uma maionese, uma farofa e um lombo.
Vamos ter ceia de Natal.
-Mas... - Alzira tentou novamente argumentar.
Olair respondeu, seco:
-A Gisele vem cear connosco.
-Ah, agora entendi - interveio Aríete num riso irónico.
-Então não precisamos de peru.
Teremos galinha na ceia.
Alzira riu e mal percebeu quando o braço de Olair voou e sua mão grande e bem aberta atingiu em cheio o rosto de Aríete.
Plaft! O tapa foi forte.
Ela ficou zonza por instantes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:55 pm

-Nunca mais se refira a Gisele dessa maneira - falou Olair, num tom ameaçador.
Se voltar a falar mal da moça, além de outros tapas mais fortes, eu vou lhe dar uma surra que vai acabar com a sua raça, além de marcá-la pelo resto da vida, sua desgraçada.
Por que fui ter filhos? Por quê?
Olair falou com raiva, rodou nos calcanhares e saiu.
Bateu a porta da sala com força.
Alzira correu até a irmã.
-Está bem, Aríete?
-Hum, hum.
-Machucou?
-Não está acostumada com esses tapas?
Lembra-se de quando éramos pequenas?
A gente sempre ganhava um tapa sem saber o porquê.
-Crescemos apanhando.
Mamãe bem que tentava ajudar, mas a pobrezinha apanhava ainda mais.
-O pai é um grosso, um estúpido.
Não sabe lidar com o ser humano.
Ele não gostava da mamãe e não gosta da gente, Alzira.
-Ele nunca nos deu um beijo ou um abraço.
-Espero que ele se dê muito mal.
-Não fale assim - tornou Alzira, enquanto ajudava aríete a se recompor.
O pai não sabe o que diz.
-Mas sabe o que faz.
Adora bater na gente.
Estou farta de tudo isso.
-Nossa vida anda muito sem graça.
Agora que mamãe morreu, sinto vontade de sumir daqui.
Aríete teve uma ideia.
-Por que não fazemos nossas malas e vamos embora?
-Embora?
-Sim.
-Como? Para onde?
-Podemos procurar um pensionato para moças.
A filha do seu Marivaldo, do açougue, depois que engravidou, foi morar num pensionato lá perto do convento.
-Aquele pensionato só recebe moças grávidas.
Não é o nosso caso - justificou Alzira.
-Ou podemos tentar encontrar a tia Lurdes.
-Tia Lurdes?
Se o pai escuta a gente falar o nome dela...
-Ela é a nossa única parenta viva.
É irmã do pai.
Mamãe sempre falou da tia Lurdes com carinho.
-Podemos pensar em procurá-la.
Entretanto, não temos foto, endereço, nada.
-A gente acha, Alzira.
-Bem, vamos pensar na noite de hoje.
Não queremos ficar aqui.
-Ele não pode fazer isso connosco - disse Aríete, meneando a cabeça para os lados.
É terrível. Ele está ferindo a memória da nossa mãe.
E, pior, não está respeitando a nossa dor.
-Também não acho justo.
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-Que tal darmos o fora? - sugeriu Aríete, de maneira desafiadora.
-Passar a noite de Natal onde? Na rua?
-Podemos ir até a escola.
O seu Ariovaldo, o vigia, é nosso amigo.
A esposa dele foi muito simpática connosco.
-Gostei da dona Célia.
Havia tanta doçura em sua voz quando veio nos cumprimentar no cemitério - disse Alzira, sorrindo.
Mas, pensando bem, ir à casa dos outros sem ser convidada?
Não é chato?
-É noite de Natal, Alzira.
A gente fica só um pouquinho, para não ter de jantar com essa sirigaita da Gisele.
-Não sei...
-Alzira, deixe de ser medrosa.
Quer ficar aqui e engolir aquela vadia?
-Não suportaria.
-Não nos resta alternativa.
Vamos sair.
-O pai vai ficar fulo.
-Vai nada. Pode ficar nervosinho no começo, mas depois vai dar graças a Deus por estar a sós com a cobra.
Ele está mais com vontade de namorar aquela ordinária do que comemorar o Natal em família.
Alzira concordou.
Era melhor estarem fora de casa.
Não suportaria ver o pai agarrado a uma ordinária feito Gisele e comemorando uma noite em que ela preferia estar trancada no quarto, lendo Érico Veríssimo, tentando absorver a doçura e compreensão de Olívia, a clássica personagem do livro.
-Vamos nos arrumar.
-Qual nada - ajuntou Aríete.
O pai vai retornar logo.
Não quero mais ver a cara dele até amanhã.
-Está certa. Vamos.
As duas saíram, contornaram a esquina e foram até a escola.
O prédio estava escuro e nem sinal do vigia.
-É noite de Natal - disse Alzira.
As ruas estão desertas.
-Eles devem estar em casa.
Aqui está o endereço que dona Célia nos deu - tornou Aríete.
Tocamos a campainha e...
Ariovaldo, o vigia, apareceu e as cumprimentou:
-O que fazem aqui?
Está escurecendo.
Elas se entreolharam e Aríete disse:
-Seu Ariovaldo, por Deus!
Viemos aqui à sua procura.
-Mesmo?
-Sim. Gostaríamos de ir até sua casa e...
Alzira protestou:
-Não é que queremos ir até sua casa, mas...
Aríete interrompeu:
-Não queremos passar o Natal em casa.
Ele assentiu com a cabeça.
-Entendo.
Aquela casa ficou muito triste depois que Josefa morreu.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:55 pm

-É sim.
Nosso pai quer fazer uma ceia e não queremos.
Não estamos com vontade de celebrar nada.
-Por que não celebrar?
Entendo a dor de vocês.
Perder um ente querido sempre nos causa grande sofrimento interior.
No entanto, tudo é passageiro, em breve vamos todos nos reencontrar.
-Enterramos nossa mãe - tornou Aríete, triste.
Tudo está acabado.
Ariovaldo pousou delicadamente sua mão sobre a da jovem.
-A morte não é o fim.
-A sua esposa nos falou a mesma coisa no enterro -considerou Aríete.
-Eu e Célia temos outra visão acerca da vida e da morte - respondeu Ariovaldo, num sorriso.
-Houve um tempo - ajuntou Alzira - em que mamãe nos dizia acreditar na continuidade da vida após a morte do corpo.
Ela estava doente, acamada, e certo dia afirmou que a mãe dela tinha ido visitá-la no quarto.
Aríete surpreendeu-se:
- Eu nunca soube disso!
Alzira sorriu.
-Mamãe gostava de conversar comigo sobre esses assuntos.
Lembra-se dos meus pesadelos?
-E como!
-Mamãe me levou até a dona Augusta e fui benzida.
Depois de algumas rezas, eu nunca mais tive aqueles pesadelos.
Quando mamãe fora desenganada pelos médicos e voltou para casa, confidenciou-me que via a mãe dela no quarto de vez em quando.
-Isso é impossível.
Vovó morreu antes de nascermos.
Mamãe devia estar com alucinações.
Aríete mudou o tom de voz e empinou o peito, fazendo pose de adulta e sabichona:
- Os médicos disseram que ela poderia perder a razão.
Ariovaldo interveio na conversa:
- Creio que sua mãe deve mesmo ter visto o espírito da avó de vocês.
Alzira arrepiou-se inteira e grudou nos braços da irmã.
-Tenho medo de fantasmas.
-Eu não tenho - replicou Aríete.
O senhor pode falar sobre esses assuntos comigo.
Sou crescida e não sou medrosa.
Alzira ia protestar, contudo, Ariovaldo, percebendo que a conversa não teria fim, convidou:
-Venham cear connosco.
Vai ser um prazer recebê-las.
Célia vai adorar, mas, vou logo avisando, é uma casa muito simples.
-Nós também moramos numa casa muito simples -completou Alzira.
Tem certeza de que não vamos incomodar sua esposa?
Não queremos entrar de bico na sua ceia.
Ariovaldo riu.
-Vocês duas não vão entrar de "bico".
Eu e Célia não temos parentes em São Paulo.
Nossa única filha casou cedo e seu marido foi transferido para a Argentina.
-Adoraria conhecer a Argentina - suspirou Alzira.
Nunca saímos de São Paulo.
-Uma vez, muitos anos atrás, o pai levou a gente, contrariado obviamente, para passar uns dias na Praia Grande - acrescentou Aríete.
- Iara nos mandou algumas fotos dela e do marido em Buenos Aires.
Vou mostrar a você, Alzira.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:55 pm

-Oh! Eu adoraria vê-las, seu Ariovaldo.
Um dia ainda vou até lá.
-Claro que vai - ele consultou o relógio e prosseguiu - costumamos cear por volta de oito da noite.
Estamos quase no horário.
As duas se entreolharam e fizeram "sim" com a cabeça.
Ariovaldo sorriu e finalizou:
- Será uma noite muito agradável.
Vocês vão adorar.

1 Érico Lopes Veríssimo nasceu em Cruz Alta, interior do Rio Grande do Sul, em 17 de dezembro de 1905, e morreu em Porto Alegre no dia 28 de novembro de 1975.
Foi um dos escritores brasileiros mais populares do século vinte.
O romance Olhai os lírios do campo foi originalmente publicado em 1938.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:56 pm

Capítulo dois

Em outro extremo da cidade, na região do Morumbi, os empregados corriam com os últimos preparativos para a grande ceia.
Aos poucos, os inúmeros convidados foram chegando ao elegante casarão do empresário Américo Gumercindo Calini.
O convite para participar de qualquer evento que fosse na casa dele era disputadíssimo.
Artistas, empresários, políticos e toda a nata da sociedade paulistana o adoravam.
Américo era muito simpático, tinha forte carisma.
Elegante, alto e dono de olhos verdes e vivos, possuía traços de ascendência europeia.
Os cabelos eram fartos e levemente prateados, penteados para trás.
As roupas sempre lhe caíam muito bem.
Tinha o porte atlético e era muito assediado.
Ele vinha de uma família humilde de imigrantes italianos, que vieram para a capital paulista no início do século vinte.
Depois de muito trabalho, seu avô montou uma mercearia que comercializava secos e molhados.
A pequena loja cresceu, desdobrou-se em outros três grandes mercados e, alguns anos depois, o pai de Américo criou uma das primeiras redes de supermercados do país.
Américo tinha mais um irmão, Adamo.
Este gostava de arquitectura, decidira concluir os estudos na Itália e, de vez em quando, vinha ao país.
Mantinha amizade com Américo e trocavam cartas com regularidade. Américo e a filha visitavam Adamo com frequência.
Américo agora administrava a rede e ela crescera sobremaneira, chegando ao interior e também a outras capitais do país.
Em sua juventude, Américo tivera uma namorada.
Eles eram muito apaixonados e faziam planos para o casamento, contudo, numa festa regada a muita bebida, o rapaz envolveu-se com uma jovem e a engravidou.
Ciente de seu escorregão, Américo, a contragosto, terminou o namoro e casou-se à força com Amélia Vaz, moça pertencente a uma tradicional família paulistana.
O casamento fora destaque nas revistas da época em virtude de um novo rico se casar com uma quatrocentona2.
Alguns meses depois do casamento, Amélia deu à luz uma menina linda, Valéria.
Infelizmente, Amélia morreu devido a uma forte hemorragia alguns dias após o parto.
Diante de fato tão triste, Américo tornou-se o viúvo mais querido, badalado e comentado de seu tempo.
Ele foi atrás da antiga namorada, seu grande amor, contudo ela sumira feito pó que desvanece no ar.
Américo até pagou um detective, mas nada.
A moça sumira.
Desiludido e triste, ele não quis mais saber de relacionar-se seriamente com mulher que fosse e atirou-se de cabeça no trabalho.
Seus negócios prosperaram e ele criou a filha sozinho.
Valéria tinha acabado de completar dezoito anos e Américo, cumpridor de todas as vontades da filha, havia lhe comprado um carro último tipo.
O automóvel estava escondido na garagem e seria o seu presente de Natal.
A moça era bonita.
Puxara ao pai e tinha um corpo esguio, cheio de curvas bem-feitas.
Valéria também tinha olhos verdes que faziam belo par com seus cabelos avermelhados e naturalmente ondulados.
As sardas no rosto alvo lhe conferiam um ar de menina travessa.
Mesmo com excesso de mimo, crescera determinada, amável e dona de seu nariz.
Valéria tinha um bom coração.
Geralmente o lado mimado aparecia quando desejava que o pai lhe fizesse as vontades.
Com os amigos e até com os empregados da casa era cordial e muito simpática.
E, talvez por conta de existências pretéritas, tinha pavor de criança.
Fugia de criança, ou do contacto com uma, assim como o diabo da cruz.
Valéria tinha grande afeição por Américo.
Quando ela estava com cerca de dez anos de idade, bem que ele tentou namorar algumas mulheres, mas o namoro nunca engatava.
Valéria sempre arrumava uma maneira de estragar os relacionamentos afectivos do pai.
Depois, quando entrou na adolescência e começou a sentir atracção por rapazes, tornou-se mais maleável, a ponto de mudar suas atitudes e começar a pensar em arrumar alguém para o pai.
-Ainda mais agora - ela disse para si enquanto se ajeitava em frente ao espelho do banheiro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:56 pm

-Agora o quê? - indagou a doce Natália, amiga de Valéria desde a infância.
Natália era a única pessoa na face da Terra, descontando Américo, por quem Valéria sentia enorme afeição e a quem fazia confidências.
Valéria contava absolutamente tudo de sua vida para a amiga.
Natália era muito apegada a Valéria, pois tinha um coração de manteiga e muitas vezes entrava numa fria porque não sabia dizer não.
Acreditava que precisava resignar-se e aceitar as situações sem fazer força para mudá-las.
Se algo inconveniente lhe acontecia, era porque tinha a ver com alguma acção errada em vida passada.
Natália era muito ligada ao espiritismo e tentava converter as pessoas para aceitarem o mundo dos espíritos.
Valéria não ligava para esse lado de Natália.
Gostava da amiga assim mesmo.
Quando Natália vinha com alguma conversa sobre aceitar sem questionar as influências negativas astrais, Valéria se saía com essa:
"Nos meus pensamentos mando eu.
Ninguém tem poder sobre mim".
Valéria balançou os cabelos e passou um pouco de perfume francês no colo e pescoço.
-Meu pai nunca esteve mais lindo e nunca tivemos tanto dinheiro.
Ele foi eleito o empresário do ano e vai chover mulher na horta dele.
-Sempre tem mulher aos pés do seu Américo - emendou Natália, enquanto ajeitava o coque.
-Sei disso.
-Não vai me dizer que está com ciúme de seu pai?
Pensei que essa fase tivesse passado.
-Passou. Não faço o tipo da filha que tenta destruir os relacionamentos do pai.
Estou em outra.
Gostaria muito que meu pai arrumasse uma namorada, uma mulher que gostasse dele para valer.
A maioria quer o dinheiro dele.
-Isso é facto.
-Eu não vou permitir que qualquer mulher se aproxime dele por conta de interesses financeiros.
Meu pai é bom e merece uma boa mulher para lhe fazer companhia na velhice.
Ele tem que ter uma mulher que o ame de verdade.
Não esse bando de mulheres falsas que querem jóias e vida de luxo.
Meu pai não é uma instituição financeira, é um homem com sentimentos.
-Concordo. Não se esqueça de que seu pai sente cheiro de mulher interesseira.
Ele sabe se virar.
Apesar de sua visão peculiar em relação à espiritualidade, Natália era uma menina encantadora.
Filha de pais que um dia haviam sido ricos, dava-se muito bem com Valéria.
A família de Natália perdera toda a fortuna.
O pai adorava jogo de cartas e, ao longo dos anos, tudo o que tinham perdeu-se para o pagamento das dívidas, que só aumentavam.
Os pais se separaram, ela e a mãe mudaram-se para um bairro mais simples e recomeçaram a vida.
Elenice, mãe de Natália, estudara, passara num concurso e tornara-se professora da rede pública.
Mulher de temperamento equilibrado, não deu trela às amigas que a condenaram por se tornar uma mulher desquitada.
Nessa época da história, uma mulher separada era vítima dos dedos acusadores da sociedade.
As amigas se afastavam com medo de que a desquitada se jogasse sobre seus maridos.
Esse tormento só acabaria com a aprovação da lei do divórcio, dali dois anos.
Elenice não estava nem aí com a sociedade.
Era uma mulher de atitudes firmes, dona de seu nariz.
Conhecera Milton, um quarentão aposentado da prefeitura que morava a algumas quadras da sua casa, e casaram-se no Uruguai.
Viviam numa casa modesta, mas decorada com excelente bom gosto, devido à primorosa educação e vida de luxo que Elenice um dia tivera.
Natália acabara de prestar vestibular para arquitectura.
De estatura mediana e corpo bem-feito, a jovem chamava mais a atenção dos rapazes pela meiguice e doçura na voz do que pelo físico.
Ela sorriu para sua imagem reflectida no espelho.
-Estamos bonitas.
-Não estamos - concluiu Valéria.
Nós somos bonitas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Dez 14, 2015 10:56 pm

-Mamãe deve estar preocupada.
Faz muito tempo que estamos aqui no quarto.
-Tem razão - disse Valéria.
E, a bem da verdade, preciso fazer cara de surpresa.
Papai pensa que eu não sei, mas aquele Maverick na garagem vai ser meu presente de Natal.
-Uau! - exclamou Natália.
Um carro muito bonito.
A propósito, a sua carteira de motorista ficou pronta?
-Ainda não.
O infeliz do despachante entrou em férias e só retorna depois das festas.
-Melhor não usar o carro até...
Valéria cortou a amiga:
-Ei, é louca?
Acha que eu não vou andar com meu carro novinho em folha?
-Você sabe dirigir, mas não tem carta.
Não vá arrumar encrenca.
-O Dário dirige.
Natália fez um muxoxo.
Valéria percebeu e, enquanto ajeitava os brincos de argola nas orelhas, disse:
-Não gosta mesmo dele, não é?
-Sou sua amiga desde sempre.
Sabe o que penso de Dário.
Você sempre foi mimada...
Valéria a cortou:
-Não exagere.
-Amiga, você sempre quis que seu pai lhe fizesse todas as vontades.
Lembro-me que você era menos inconsequente.
Começou a se meter em encrencas depois que Tavinho morreu e você emendou namoro com o Dário.
-Que encrencas?
Sair para dançar numa boate é arrumar encrenca?
Eu gosto de me divertir.
-Tem a carga energética do ambiente.
Se eu entrar numa boate, eu pego tudo o que tiver de ruim lá.
-Ora, por que não pega o que tem de bom?
-E por acaso tem coisa boa em boate?
-Tem. Há muitas pessoas que saem à noite para dançar, descontrair, relaxar, encontrar alguém, paquerar...
A noite pode ser muito boa, ou muito ruim, depende da sua cabeça e não da"energia" do lugar.
-Pensamos de maneira diferente.
Prefiro ficar em casa quieta, lendo.
-Cada um faz o que acha melhor. Prefiro sair.
-Voltando ao Dário.
Mesmo que eu seja a amiga esquisitona, que sente as coisas, não gosto dele.
-Ele é bom para mim.
Dário me ajudou a segurar a barra quando perdi meu ex-namorado.
-Você não era apaixonada por Tavinho.
Era namoro de escola, coisa passageira.
Eu a conheço bem e sei que nunca o amou.
Aliás, com quinze anos de idade na época, você nem tinha ideia do que era amor.
-Tem razão. Mas o Dário é bom.
-Pode ser até uma boa pessoa, Valéria, entretanto ele gosta de bebida e drogas.
Que futuro você espera ao lado de um rapaz que curte drogas?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 24, 2015 9:08 pm

-Coisa passageira.
Quem disse que eu vou me casar com o Dário?
-Mas você... - Natália corou - você... tem intimidades com ele!
-E daí? Não quer dizer que eu vá me casar com ele.Acorde, Natália.
Estou aproveitando a vida. Só isso.
Natália virou a cabeça para os lados, numa negativa.
-Você é tão bonita!
Tem tanto rapaz mais interessante nos seus pés.
O que acha do Lauro Vasconcelos?
É o filho daquele ministro do Supremo, o Robertinho?
-Não são para mim.
-Dário também não é para você.
Pense e reflicta, querida - ponderou Natália.
Reavalie seus sentimentos.
Não perca tempo com quem não faz você feliz.
-Vou pensar.
Você, às vezes, é capaz de me dizer coisas que mexem comigo.
-Que mexem num bom sentido.
Eu gosto verdadeiramente de você.
Natália abraçou-se a Valéria e a beijou no rosto.
-Saiba que sempre estarei ao seu lado, não importa o que aconteça.
Valéria emocionou-se e se afastou, limpando os olhos com as costas das mãos.
-Pare de falar assim.
Desse jeito vamos ficar horas refazendo toda a maquilhagem.
Elas riram e, ao sair do quarto e passarem pelo corredor, Natália notou que havia um porta-retratos diferente sobre uma cómoda.
- Não me lembro desse porta-retratos - apontou.
Quem é esse homem?
Natália falou e sentiu um calor subir pelo corpo.
Valéria riu.
-Gostou?
-Puxa, se gostei. Quem é?
-Meu tio Adamo.
-Está tão diferente.
Eu só o conhecia através dessa foto - apontou para um porta-retratos com uma foto amarelada pelo tempo, em que havia um jovem cujo rosto estava virado para o lado.
-Ah, você estava acostumada com essa foto antiga do meu tio.
Essa foto em preto e branco tem a nossa idade.
Deve ter sido tirada quando ele se mudou para a Itália.
Natália ficou impressionada.
E não estava exagerando.
Se Américo era um homem bem apessoado, Adamo era um deus grego.
Parecia galã de filme.
Lembrava um pouco o actor Robert Redford em sua juventude.
Adamo tinha os cabelos louros como trigo, os olhos verdes, grandes e expressivos.
A boca era torneada por lábios carnudos e o sorriso era de arrasar.
Valéria sorriu.
-Gamou no meu tio. Natália corou.
-Ele é casado?
-Solteiro convicto.
Que eu saiba, nunca namorou sério.
Natália sentiu novo frémito de emoção.
Desconversou.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 24, 2015 9:09 pm

-Vamos descer.
Estamos atrasadas.
-Olha, não sei o que faz eu ser tão sua amiga e gostar tanto de você.
Não temos gostos em comum - tornou Valéria.
Eu nunca me interessaria por um tipo como meu tio.
Prefiro os morenos, com cara de mau.
Homem com cara de anjinho não me agrada.
-Ainda bem que não gostamos do mesmo tipo.
Imagina a confusão que seria?
-É por isso que o Dário me atrai, Natália.
Ele tem um porte avantajado, corpo musculoso e cara de cafajeste.
Isso sim, me atrai.
-Por que não corresponde aos galanteios do Tomás?
Ele tem cara de mau, rosto marcado tipo gangster.
Valéria fechou os olhos e suspirou.
-Tomás é o homem que sonhei para ter pelo resto da vida.
-Não entendo - surpreendeu-se Natália.
O Tomás é louco por você.
Por que não namoram?
-É louca, Natália?
A Marion é alucinada pelo Tomás.
-E daí?
-Daí que eu não quero confusão para o meu lado.
Tomás é um tipo muito interessante, até mais que o Dário.
Entretanto, prefiro passar vontade e esquecê-lo do que ter de encarar Marion.
Lembra-se de quando Tomás beijou a Lina na minha festa de quinze anos?
Natália sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.
-Como me lembro!
Marion quase acabou com a sua festa.
Foi uma gritaria, um bate-boca daqueles.
-Isso não é nada - tornou Valéria.
O mais assustador é que Lina foi atropelada no dia seguinte da festa e quase morreu.
Ficou manca, a pobrezinha.
-Acredita que Marion... - Natália não continuou.
-Com toda certeza.
Um dos que viram o acidente afirmou que o carro era um Corcel GT vermelho com listras pretas.
E as letras da placa eram BT.
Quem tem um carro de acordo com essa descrição?
Natália levou a mão à boca.
Estava aturdida.
-Nunca soube disso.
-Papai me contou.
A família de Marion deu dinheiro a essa testemunha e ela voltou à delegacia e desmentiu tudo.
Disse que o carro era amarelo. Quer saber?
No fundo, sou apaixonada pelo Tomás, mas não me arrisco.
Não quero ser a próxima vítima de Marion.
-Se conversar com o Tomás, de repente...
-O quê? Sei que se eu abrir meu coração ele vai terminar o namoro com ela.
Mas vou arrumar uma inimiga pelo resto da vida.
Não quero isso para mim.
Sou muito jovem e ainda vou encontrar um homem que me atraia da mesma forma que Tomás me encantou.
-Tem razão - concordou Natália. Eu ainda prefiro seu tio. As duas riram a valer. Valéria pousou suas mãos sobre as da amiga.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 24, 2015 9:11 pm

-Deixemos os nossos gostos por homens de lado. O que importa é que gostamos sinceramente uma da outra.
-É verdade.
-Talvez seja coisa de vida passada - emendou Valéria. Natália sorriu.
-Está dizendo isso para tirar sarro da minha cara ou porque eu me interesso pelo assunto?
Valéria passou a mão delicadamente sobre a fronte da amiga.
-Não sei. Às vezes acredito em algo além, mas também tem vezes em que eu acredito que tudo se acaba com a morte.
É o fim. Talvez tenhamos medo de admitir que a vida é uma só.
É por essa e por outras que eu aproveito a vida.
-Precisa ter um pouco mais de equilíbrio.
-Eu tento, embora não seja fácil.
-Se lesse um pouquinho dos livros espíritas que eu tento fazê-la ler...
-Esse é o problema: você quer me impor algo que ainda não me encontro preparada para entender.
As duas continuaram a conversa e contornaram o corredor.
Desceram a escadaria de mármore branco, em forma de caracol, segurando no belíssimo corrimão de bronze, e logo se ouvia o barulho e animação dos convidados lá fora do casarão, já acomodados em mesas circulares ao longo do vasto jardim à beira da piscina.
Américo estava conversando com um banqueiro e sua esposa quando foi abraçado pela filha.
-Estava sentindo a sua falta - disse Valéria, depositando-lhe um beijo no rosto.
Ele beijou a filha de volta e apresentou-a ao casal.
Valéria mal os cumprimentou e foi puxando o pai até a mesa deles.
Lá estavam Elenice, Milton e, naturalmente, Natália.
Américo os cumprimentou e sentou-se.
Enquanto o garção lhe servia um uísque com gelo, ele comentou:
- Bonita noite.
Estava com medo de que a chuva fosse nos surpreender.
Milton ajeitou-se na cadeira e falou:
-Sua casa é muito bonita. Parabéns.
-Eu é que mereço os parabéns - tornou Valéria.
-Ora, por quê?
-Eu cuido da decoração da casa.
Gosto de trocar e combinar os móveis, interesso-me pela combinação de cores...
Américo sorriu satisfeito:
-Essa menina tem gosto excelente.
Desde pequena rabiscava os cómodos em cadernos, usava canetinha colorida para cada ala da casa.
Depois desenhava os móveis, cortava-os e fazia a distribuição sobre a folha de papel.
Elenice interveio:
-Eu me lembro de quando nos mudamos e Valéria ficou dois dias ajeitando os móveis.
-A senhora vivia num casarão e de repente mudou-se para uma casa bem modesta.
Se não fosse a minha perspicácia e senso de espaço, como aqueles móveis imensos iriam caber no sobradinho?
Eu fui um génio!
Todos riram e Elenice continuou:
-Você tem tino para a decoração, Valéria.
Acertou em cheio quando prestou vestibular para arquitectura.
A jovem deu de ombros. Jogou os cabelos para trás e disse:
-Não sou dedicada aos estudos como a Natália.
Eu não vou passar no vestibular.
-Ora, o que é isso, garota?
Desistir mesmo antes de prestar o concurso?
-O vestibular é coisa séria, só dá certo para gente que estuda, que se dedica de verdade.
Eu não sou chegada a estudar horas, como faz Natália.
Talvez, mais a frente, eu faça um curso na Itália e, ao retornar, papai me dê de presente um ateliê de decoração.
-Eu faço questão de lhe dar o melhor ponto da cidade.
Penso no bairro dos Jardins.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 24, 2015 9:11 pm

Elenice exclamou:
- Perfeito! Eu vivi muitos anos no Jardim América.
Lá há casarões maravilhosos, ideais para abrigarem um belo ateliê de decoração.
Valéria suspirou:
-Não sei ao certo.
-Por quê?
-As vezes tenho vontade de ir embora daqui.
O trânsito de São Paulo está cada dia mais insuportável.
-É o progresso - disse Milton.
Actualmente temos linha de metro, estamos nos igualando as grandes metrópoles do mundo.
Valéria riu com desdém.
-Milton, não me venha comparar esta cidade de crescimento desordenado com Nova York, Londres ou Paris.
Nosso metro liga nada a lugar nenhum.
-Vai do bairro do Jabaquara até o de Santana.
-E não existe ainda data para a inauguração da estação Sé, que é a principal.
Isto aqui é um país de quinta categoria.
-Torno a repetir. É o progresso.
-Eu fico irritada com o descaso da sociedade.
Milton, você viu quantos imóveis foram derrubados para se fazer essa tal estação da praça da Sé? - indagou Valéria, aflita.
-Valéria se preocupa com a deterioração do património público.
Sempre foi assim, desde pequena - admitiu Américo.
Ela estava empolgada.
Bebericou um pouco de champanhe e perguntou ao Milton:
-O que me diz do Palacete Santa Helena?
Ele assobiou.
-Um dos prédios mais belos já construídos na cidade!
-Exacto - emendou Valéria.
Um palacete cuja fachada era repleta de esculturas e foi projectado pelo arquitecto italiano Corberi.
Ficava na praça da Sé e foi inaugurado em 1922.
No seu interior, além de lojas e escritórios, havia também um cinema que era tão luxuoso quanto o Teatro Municipal, o Cine teatro Santa Helena.
O palacete foi demolido quatro anos atrás, para a construção da estação central do metro, que iria se chamar Clóvis Beviláqua.
Agora vai receber o nome de estação Sé.
A destruição do palacete - Valéria bebericou sua taça de champanhe e prosseguiu - foi totalmente desnecessária, dispensável.
É uma grande perda arquitectónica para a cidade.
-Meu Deus! Essa menina é uma enciclopédia de arquitectura.
Américo sorriu orgulhoso.
-É minha filha! - Valéria sorriu e finalizou:
-Entende por que fico triste e raivosa?
O nosso património, a nossa memória, de uma maneira geral, está sendo destruída a cada dia que passa.
A conversa estava animada e interessante, no entanto, uma voz grave os cumprimentou e disse em seguida:
- Valéria está certa. Esta cidade é um lixo.
Todos se voltaram para a voz.
Era Dário, o grude de Valéria.
Eles namoravam havia alguns anos.
Américo a princípio não permitira o namoro, contudo, como Dário era filho de um famoso banqueiro paulistano e Américo tinha contraído alguns empréstimos nas instituições daquele banqueiro, fez-se de morto e deixou o namoro seguir adiante, afim de evitar que problemas pessoais interferissem nos negócios.
Américo sabia que mais cedo ou mais tarde a filha poderia se casar com Tomás.
O rapaz era de uma óptima família e era bom moço.
Américo sonhava com essa união.
Natália cumprimentou-o com frieza.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 24, 2015 9:11 pm

- Olá.
Dário respondeu a todos com um "tudo bem, pessoal?" e puxou uma cadeira.
Juntou-se ao grupo.
A conversa tomou outro rumo.
Natália e a mãe levantaram-se para dar uma volta ao redor do jardim.
Milton e Américo começaram a falar sobre os prognósticos da economia para o ano que viria.
Dário puxou Valéria até seu peito.
-E aí, gata?
Vamos depois sair desta festa careta e nos divertir para valer?
Valéria sorriu e nada disse.
Lembrou-se da conversa com Natália.
Por que, afinal de contas, era-lhe tão difícil separar-se de Dário?
Ele era um rapaz atraente, cheio de charme.
Alto, bonito e bronzeado, Dário era assediado por muitas mulheres.
Mas o jovem tinha uma vida bem vazia.
Tinha repetido o terceiro ano do colegial duas vezes e não se interessava por nada.
Rico, bem--nascido e mimado pelos pais, Dário era o tipo encrenqueiro, tinha mania de brincadeiras estúpidas e sem graça.
Arrumava briga onde quer que estivesse e tinha muitos desafectos.
Fazia cerca de três anos que o seu mau comportamento se agravara.
Dário passara a ser mais violento e estúpido, e às vezes não tinha consciência do que fazia.
Para ilustrar a situação, certa vez ele brigou com um rapaz, por uma bobeira qualquer.
Dário era bom de briga, praticara judo por muitos anos, mas nesse caso, em particular, espancou o rapaz até o pobre coitado ficar sem sentidos.
Quase morreu.
Dário jurou que não se lembrava de ter batido no rapaz.
Só se lembrava de sentir uma raiva muito grande, ficar literalmente cego de ódio e apagar.
Quando voltava a si, não se lembrava do que havia praticado.
Os pais o levaram a um renomado psiquiatra e este somente constatara um certo desvio no padrão de comportamento.
Depois os pais se separaram.
A mãe foi viver nos Estados Unidos.
O pai se casou de novo e tinha acabado de ter um filho.
Não estava nem aí com o comportamento de Dário.
Não ligava a mínima para o filho.
Valéria sentia forte atracção pelo rapaz.
Ela nunca o amara.
Era atracção física mesmo, mais nada.
Eles haviam se conhecido no colégio.
Dário agora estava com vinte e um anos e vivia à base de mesadas, que seu pai depositava regiamente numa conta bancária.
Solto e sem perspectivas de construir uma vida sólida e digna, deixava-se levar pelas festas regadas a muita bebida e muita droga.
A cocaína começava a fazer sucesso entre as classes mais favorecidas da sociedade, tornando-se item indispensável nas festas de chiques e famosos, que na época eram conhecidos como grã-finos.
Dário era consumidor regular de maconha.
Estranhamente, de três anos para cá, tornara-se viciado em cocaína.
Natália já o flagrara montando carreirinhas de pó.
Alertara Valéria, mas a amiga dizia que Dário era adulto e responsável por si.
Ele que cheirasse ou fumasse o que quisesse.
Desde que continuasse sendo um bom amante, Valéria não ligava para esse lado obscuro do namorado.
Adoraria apostar as fichas em Tomás, mas ele estava namorando Marion.
E Valéria não queria enfrentar a maldade de Marion.
Depois que a ceia foi servida e os convidados foram embora, a madrugada ia alta.
Natália despediu-se da amiga e ficaram de se encontrar depois do dia de Natal.
No carro, ela comentou com a mãe e com o padrasto:
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 24, 2015 9:12 pm

-Sinto arrepios quando Dário se aproxima.
-Eu já vi algumas sombras escuras ao redor dele -disse Elenice.
Esse garoto precisa de tratamento espiritual.
-Fico mal ao lado dele.
Eu nasci assim, uma esponja.
Pego tudo o que é carga dos outros.
-Precisa dar mais atenção aos pensamentos e filtrar melhor o que capta, minha filha.
Somos donos de nossa mente e não podemos deixar qualquer pensamento nos invadir.
--Lá vem a senhora me dizer que eu estou errada na minha maneira de pensar.
Tenho muita sensibilidade, paciência.
A conversa seguiria na mesma ladainha:
Elenice alertando a filha para ser uma pessoa mais firme e menos susceptível às cargas alheias e Natália arrumando desculpas para a sua sensibilidade aguçada, afirmando que nascera assim e que nada podia fazer.
Milton já sabia o rumo da conversa e disparou:
-Esse menino precisa, antes de tudo, de apoio e atenção dos pais.
Dário não tem limites, e poderá pagar muito caro pelos excessos que comete.
Natália fechou os olhos e fez uma ligeira prece para sua amiga.
Mesmo acreditando que a amiga fosse uma doidivanas, ela gostava sinceramente de Valéria.
-Peço a Deus que proteja minha amiga.
Que nada de mal lhe aconteça.

2 O termo "quatrocentão" surgiu por conta da celebração dos quatrocentos anos de fundação da cidade de São Paulo, em 1954, o chamado "Quarto Centenário".
Designa a antiga aristocracia paulistana, descendente dos barões do café - empresários rurais bem-sucedidos na produção do café ou em outros ramos do comércio e da indústria, que descendiam dos bandeirantes e dos colonizadores pioneiros, fundadores de São Paulo e demais vilas paulistas.


3 Estação Sé, originalmente denominada Estação Central Clóvis Beviláqua, é a estação central e mais movimentada da capital paulista.
Situa-se na Praça da Sé, próxima a Catedral. Integra as linhas Azul e Vermelha do metro.
Foi inaugurada em 17 de fevereiro de 1978.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 24, 2015 9:12 pm

Capítulo três

Passava das dez quando Alzira e Aríete despertaram.
-Bom dia - disse Alzira.
-Feliz Natal, minha irmã - Aríete falou e levantou-se.
Aproximou-se da cama da irmã e a beijou no rosto.
-A noite ontem foi tão agradável.
Seu Ariovaldo e dona Célia são pessoas adoráveis.
-Senti uma paz imensa lá.
Mesmo com a morte de mamãe, senti-me bem acolhida com essas pessoas simples e do bem.
-Eu também - concordou Alzira.
-Sabe, eu percebi uma presença durante o jantar.
-Presença? Como assim? - indagou Alzira.
-Como se alguém invisível ali estivesse.
Não percebeu o clima de harmonia que reinava naquele abençoado lar?
-Aríete, você está imaginando coisas.
A noite foi óptima, mas lá estávamos eu, você, seu Ariovaldo e a mulher dele.
Vai ver você ficou impressionada com aquela conversa sobre espíritos.
-Dona Célia é mulher simples, mas muito inteligente.
Ela falou sobre o espiritismo de uma maneira tão... tão natural, essa é a palavra!
-De facto, concordo com você.
Até eu me interessei pelo assunto.
Gostou de ganharmos esse romance, Entre o amor e a guerra?
-Nunca li romance espírita, Alzira.
Eu já tinha escutado comentários positivos acerca dessa escritora - ela pegou o livro e leu o nome - Zibia Gasparetto.
-Dona Célia disse que o livro acabou de ser lançado.
Está fazendo grande sucesso junto ao público.
Alzira abriu e leu em voz alta um trecho qualquer do prólogo:
-As leis da justiça divina, imutáveis, dão a cada um segundo suas obras.
E o tempo, amigo constante, encarrega-se de restaurar a verdade na intimidade do ser.
-Se Deus dá a cada um segundo suas obras, por que temos de viver assim, órfãs de mãe e com um pai que nos despreza?
Será que fomos pessoas ruins em outras vidas?
-Não sei.
O assunto é novo e me desperta o interesse.
Depois que lermos o livro, talvez possamos reflectir melhor sobretudo o que dona Célia nos disse.
-Tem razão.
Elas se espreguiçaram e Aríete perguntou:
-Quando chegamos, passava da meia-noite e o pai não estava em casa.
Onde será que ele se meteu?
-Deve ter terminado a noite nos braços daquela sirigaita. Aposto.
Aríete mordiscou os lábios.
-Estou apreensiva, Alzira.
-O que foi?
-Tenho certeza de que o pai vai mesmo se juntar com essa lambisgóia.
Sinto que nossa vida vai se transformar num inferno.
Gisele não é pessoa do bem.
-Também tenho a mesma sensação.
E se conversarmos com ela?
Será que o convívio não poderia ser mais harmonioso?
Aríete mexeu os ombros e sacudiu o rosto para os lados.
-Nunca! Gisele quer ter o papai só para ela e não nos quer por perto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 24, 2015 9:12 pm

-O pai poderá nos botar para fora de casa.
Ele sempre nos ameaçou. Mamãe é que não permitia.
Agora que ela se foi, não sei se...
-Qual nada! Metade desta casa é nossa.
Eu não arredo pé daqui.
A não ser que o pai venda e nos dê nossa parte.
-Aríete, por que fica tão ligada nesta casa?
Não vê que temos uma vida inteira pela frente?
Não enxerga que poderemos ter a nossa casa, sem depender do pai?
Aríete nada respondeu.
Ficou pensativa por instantes.
Alzira tornou, amorosa:
-Terminamos o colegial e você também concluiu o curso de dactilografia.
Vou fazer dezoito e você completará dezanove anos.
Podemos arrumar um emprego e ir viver numa pensão.
Ainda há boas pensões para moças aqui na cidade.
-Já disse que só conheço aquela para grávidas, onde foi parar a filha do açougueiro.
-Ontem, enquanto você tirava os pratos da mesa, dona Célia me disse que a filha do seu Tenório, depois que ele morreu, teve de entregar a casa ao proprietário e foi morar numa pensão só para moças, perto da Ponte Pequena.
-Alzira, com você ao meu lado, me apoiando, sou capaz de tudo para manter nossa felicidade.
-Vamos conversar com o pai.
Precisamos saber quais são os sentimentos dele em relação a Gisele.
Pode ser que seja coisa passageira - disse Alzira, ingenuamente.
-Pois que nada!
Conheço nosso pai desde quando ele ficava até tarde na alfaiataria.
Quantas vezes eu não o vi de intimidades com outras mulheres?
Ele tem um fogo difícil de apagar.
Ele é o fósforo e Gisele é como gasolina pura.
Juntos entram em combustão.
E, de mais a mais, não temos parentes próximos.
-Temos a tia Lurdes - completou Alzira.
Percebi que dona Célia ia falar alguma coisa sobre a tia.
-O que ela poderia falar?
Ninguém aqui conheceu a tia Lurdes, que eu saiba.
-Tem razão.
Aríete meneou a cabeça para os lados.
-O pai não suporta escutar o nome dela.
Sabemos que é a única irmã e parenta viva que ele tem aqui.
O resto da família mora em Jutaí, no Amazonas.
Ele não permitiu que pudéssemos tentar localizá-la e avisá-la da morte da cunhada.
-Não sabemos onde ela mora - tornou Alzira.
Só lembro que mamãe falava muito bem da tia Lurdes e, às vezes, pegava uma foto antiga, amarelada pelo tempo, em que aparecia ela e outra moça que aparentava ser um pouco mais velha.
Tenho certeza de que era a tia Lurdes naquela foto.
-Podemos procurar nos pertences da mamãe.
Quem sabe não encontramos algum documento que informe o paradeiro da tia?
-Pode ser.
-Vou ver se o pai se levantou.
-Não estava em casa quando chegamos.
Deve mesmo ter passado a noite fora - arriscou Alzira.
-Deve ter levado ela no matadouro, lá nos fundos da alfaiataria.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 24, 2015 9:12 pm

Aríete disse isso num tom irónico.
Vestiu a camisola, calçou as pantufas, abriu a porta do quarto e olhou ao redor.
A casa estava num silêncio só.
Quis ir para a cozinha.
No caminho, ao longo do corredor, encontrou peças íntimas de mulher.
Ficou horrorizada.
Dirigiu-se ao quarto do pai e empurrou a porta.
Não havia ninguém ali, embora a cama estivesse desarrumada e garrafas de bebida espalhadas ao lado da cama.
A jovem meneou negativamente a cabeça para os lados.
-Meu Deus! O que esse homem vai nos aprontar?
Em seguida, foi à cozinha e coou o café.
Esquentou um pouco de leite.
Abriu o armário e pegou um pote de vidro com biscoitos de água e sal.
A pia estava repleta de louça suja, a mesa estava com restos de comida da "ceia" que Olair improvisara.
Alzira chegou em seguida.
-Viu aquela calcinha e sutiã jogados no chão do corredor?
Não vimos nada quando chegamos.
-Não prestamos atenção.
Mas só podem ser da vagabunda.
-Será, Aríete?
-Tenho certeza.
Olhe para esta cozinha emporcalhada -apontou ao redor.
Eles devem ter se divertido à beça e depois foram dormir nos fundos da alfaiataria.
-O pai não tem um pingo de vergonha na cara.
Se ele quiser namorar, tudo bem, mas ao menos poderia respeitar a memória da esposa.
Estamos em luto.
-Ele nunca nos respeitou, Alzira.
Sempre nos tratou com frieza e distância.
A gente só ganha tapa na cara.
Acaso se lembra da última vez que o pai nos deu um beijo?
Ou um abraço?
Alzira levantou os olhos, e pensou por instantes.
Em seguida respondeu:
-Não me lembro do pai nos dar um beijo.
-Porque ele nunca teve demonstrações de carinho connosco - ajuntou Aríete.
Você não se lembra porque não há o que lembrar.
Nunca houve um contacto de carinho entre nós e ele.
Nem com a mamãe ele demonstrava carinho.
-Também não me lembro de ele beijá-la ou abraçá-la.
Mamãe sempre foi muito obediente, não reclamava.
-Mas com Gisele é diferente.
Vive abraçado àquela desclassificada.
Alzira abriu a geladeira e pegou o pote de margarina.
Tiraram as sobras da ceia, guardaram tudo no forno e ajeitaram a mesa.
Serviram-se de café com leite e comeram alguns biscoitos salgados com margarina.
Quando estavam terminando o desjejum, a campainha tocou.
Aríete vestiu o penhoar e foi atender.
Um rapaz de feições bonitas e porte atlético abriu um largo sorriso, mostrando os dentes alvos e enfileirados.
Aríete sorriu sem perceber.
-Pois não?
-Estou procurando a senhorita Gisele Correia.
-Aqui não mora nenhuma mulher com esse nome! - ela exclamou com veemência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Dez 24, 2015 9:13 pm

E mudou o tom:
- Mais alguma coisa?
O rapaz sentiu-se sem graça.
Mordiscou a ponta do lábio e sorriu:
-Desculpe-me.
É que estou atrás dessa senhorita há dias e ela nunca está em casa.
Sou discreto e não quero um oficial de justiça plantado na porta dela.
Sei que hoje é dia de Natal.
Vim desejar boas-festas para um amigo meu e sua família que mora aqui perto.
Desculpe-me por não me apresentar.
Ele retirou um cartão do bolso e entregou a ela.
Aríete pegou o cartão e leu: Osvaldo Pimentel - Advogado.
-Um advogado procurando Gisele no dia de Natal?
Só pode ser encrenca.
Osvaldo balançou a cabeça para cima e para baixo, fazendo gesto afirmativo.
-Sim. Sou advogado e também oficial de justiça.
-Gente importante.
A que devo a honra?
O rapaz sorriu e tornou:
-Uma vizinha sua - ele apontou para a casa ao lado - informou-me que dona Gisele costuma visitar essa casa.
Estou com uma citação e é necessário entregá-la pessoalmente.
Aríete sentiu o rosto avermelhar e uma raiva súbita apossou-se dela.
-Ela está na casa dela! - disse num tom seco.
-Toquei a campainha e bati palmas no portão. Nada.
-Ela está lá. Tenho certeza.
Você me dá um minutinho?
-Claro.
Aríete encostou a porta e correu até o quarto.
Alzira deixou a louça sobre a pia lotada e foi atrás dela.
Perguntou:
-Aconteceu alguma coisa?
-Tem um oficial de justiça lá fora atrás da Gisele.
-Como pode?
Hoje é dia de Natal! - exclamou Alzira.
-Pois é. Alguma coisa errada tem aí.
-Tem certeza de que é um oficial de justiça?
-E também advogado.
Aríete falou e mostrou o cartão para a irmã, enquanto colocava um vestido florido de alcinhas e formava um rabo de cavalo com os cabelos longos.
-É advogado mesmo - confirmou Alzira.
-O moço é bem bonito.
Alzira correu até a janela da sala, afastou a cortina e espiou.
-Você tem razão.
O rapaz é bonito. Veste-se bem.
É tão difícil aparecer um rapaz bem-apessoado e bem vestido por essas bandas!
-Eu vou com ele até a casa da sirigaita.
O pai deve estar lá também.
Quero ver esse circo pegar fogo.
E, de quebra, descobrir um pouco mais sobre o advogado justiceiro boa-pinta.
As duas riram a valer.
-Aríete, você é impossível.
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