LUZ ESPÍRITA
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2024 8:29 pm

Acerto de contas
Marcelo Cezar

espírito Marco Aurélio

Para Mónica de Castro, minha comadre.
Amiga de todas as horas, foi com você que aprendi o real significado da palavra generosidade.
Pessoas como você me fazem tremendo bem.

Obrigado por tudo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2024 8:29 pm

Capítulo 1
Um belo crepúsculo envolvia a cidade de Santos naquele fim de tarde. O brilho alaranjado do sol, atravessando as poucas nuvens no horizonte, reflectia sobre as águas calmas do mar, convidando as pessoas a caminhar por entre os belos e amplos jardins ao longo da horta. Sílvia atravessou a avenida, deixou bolsa e sandálias sobre um banco de cimento no jardim e logo ganhou a areia. Queria estar próximo do mar. Caminhou até tocar a água, sentindo o frescor em seus pezinhos, e fechou os olhos, sorrindo com prazer. Começou a andar, passos lentos, ora apreciando o céu colorido, ora observando algumas crianças que corriam alegres entre petecas e bambolês, causando-lhe imensa sensação de bem-estar.
Embora fosse época de temperatura mais amena, naquela última semana de julho o calor havia predominado, com sol todos os dias e, às vezes, uma brisa húmida, vinda do mar, soprava ao anoitecer.
Sílvia era filha de um casal de comerciantes que fizera bom dinheiro trabalhando arduamente em uma loja de secos e molhados próximo ao Mercado Municipal, na região central da capital paulista.
O pai falecera quando ela estava com quatro anos. A mãe, dona Eustáquia, continuou à frente dos negócios e, alguns anos depois, casou-se com um comerciante também viúvo, Faruk Chedid, cujo estabelecimento ficava ao lado do dela. Os negócios fundiram-se em um só, ampliaram-se, e o estabelecimento, actualmente, ia muito bem.
Sílvia era filha única. Moça bonita, descendente de italianos e portugueses, tinha a pele alva, estatura média, olhos esverdeados, cabelos castanho-claros, ondulados. O sorriso era encantador. Tinha acabado de se formar normalista no ano anterior e, com planos de se casar, não pensara ingressar em uma faculdade, por ora.
Aproveitava o tempo livre para cuidar da casa, grande por sinal, e vez ou outra, em épocas de datas festivas, ajudar os pais no mercado. Estava com dezanove anos.
Do casamento anterior de Faruk, nasceram Soraia e Jamil. Soraia, também com dezanove anos, se estranhara com Sílvia assim que se conheceram. De personalidade forte, era uma moça que chamava a atenção pelo corpo bem-feito e jeito exuberante de se expressar. Tinha seios fartos, boca carnuda, olhos grandes e expressivos, negros como a noite. Os cabelos, também escuros, estavam sempre presos em forma de rabo de cavalo.
Soraia também era uma moça de grande sensibilidade. Ela não tinha conhecimento disso, ainda. Nos momentos alegres, não percebia a presença salutar de amigos espirituais. Quando estava nervosa, entrava na negatividade, atraía rapidamente para perto de si energias nada saudáveis. Havia vezes que explodia de raiva e nem se dava conta de que estava acompanhada por espíritos perdidos ou perturbados.
Jamil, com vinte e cinco anos, era um homem com traços árabes marcantes. Alto, musculoso, cabelos pretos, chamava a atenção das mulheres pelo porte e pela virilidade. Embora se portasse de maneira bem máscula, dono de uma voz de barítono, que às vezes assustava quem não o conhecia, tinha um bom coração.
Tornara-se naturalmente o irmão mais velho de Sílvia e, por afinidade, o confidente, o amigo, aquele a quem ela podia pedir ajuda em qualquer momento. Essa aproximação entre os dois, a princípio, deixara Soraia cravada no ciúme, aumentando a animosidade entre as meias-irmãs.
Com o tempo, porém, Soraia foi se ligando a outros interesses, não mais se importando com o relacionamento amistoso entre os irmãos.
Faruk comprara o apartamento na praia do Gonzaga havia dois anos. Quase não o frequentava porque ele e Eustáquia estavam sempre trabalhando. Precisavam e adoravam estar no mercado atendendo aos clientes.
Jamil terminara o equivalente ao Ensino Médio e decidira não mais estudar para se dedicar ao trabalho em tempo integral. Não tinha vontade de fazer faculdade. Muito pelo contrário, tinha tino para os negócios e desejava expandir, crescer, fazer com que o mercado se tornasse uma referência na região, perto do Mercadão.
Eustáquia, diferentemente das mulheres de seu tempo, desejava que Sílvia e Soraia tivessem curso superior. Como fora mulher que trabalhara e lutara para se sustentar, ia contra o padrão da época, causando escândalo entre pessoas próximas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2024 8:30 pm

Naquele tempo, meados da década de 1950, a maioria das moças terminava o equivalente ao Ensino Médio, engatava noivado e partia para o casamento. Eram talhadas, educadas para serem esposas e mães. Pouquíssimas eram as que se arriscavam e ousavam chegar à universidade. As moças que concluíam o Ensino Superior não eram bem-vistas pela sociedade.
Soraia, embora não fosse tão presa aos costumes da época, não queria saber de estudar.
Formar-se professora tinha sido um sacrifício e tanto. Fizera o curso mais por conta do pai, que exigira dela o diploma. Queria mesmo era arrumar um bom partido e casar-se.
Ela estava de olho em Ivan, um jovem recém-formado em Medicina, amigo de Jamil. O problema é que ele também era muito amigo de Sílvia. E esse detalhe a irritava sobre-maneira.
O que amenizava a irritação era o fato de Soraia contar com a concretização do noivado de Sílvia. Rezava para Olavo pedir logo a mão da irmã lambisgóia em casamento. Era só o que Soraia desejava. Ter o caminho livre para ter uma chance real com Ivan. Mais nada.
Sílvia, por sua vez, tinha intenção de continuar os estudos, mas só depois de se casar. Estava apaixonada por Olavo, recém-formado em Engenharia no Mackenzie. Eles namoravam havia três anos e ela estava certa de que eles iriam noivar e ele iria pedir a mão dela em casamento logo depois das férias.
Como sou feliz, pensou, enquanto caminhava pela praia. Olavo é o homem mais maravilhoso do mundo. Eu o amo tanto!, reflectiu e suspirou.
Conforme ela deu mais um passo à frente, sentiu duas mãos cobrirem-lhe os olhos e uma voz masculina sussurrou em seus ouvidos:
— Se adivinhar quem é, ganhará um beijo nos lábios. Ela estremeceu de prazer. Levou as mãos dela até tocarem as dele. Sorriu e disse baixinho:
— O amor da minha vida!
Virou-se e era Olavo. Beijaram-se com amor.
— Você veio!
— Sim — respondeu ele. — Saí mais cedo do escritório, desci a serra o quanto antes. Queria vê-la. Estava morrendo de saudades.
Abraçaram-se mais vezes. Ele a pegou pela cintura e a rodopiou pelo ar. Depois a beijou novamente. Assim que a colocou de volta ao chão, Sílvia perguntou, preocupada:
— Ficará onde? Sabe que estou com Soraia no apartamento e, infelizmente, você não poderá...
— Calma — ele a interrompeu com amabilidade na voz. — Ficarei na casa da minha tia Emma, na ilha Porchat. Pode ficar sossegada, pois não vou dar motivos para fuxicos. Principalmente para Soraia.
— Que bom! Sabe que ela gosta de arrumar uma briguinha comigo. Aliás, acredita que está assim — juntou os dedos indicadores das mãos — com minha mãe? Amigas inseparáveis?
— Soraia não é má pessoa. É voluntariosa.
— Não gosto quando a defende. Ela gosta de me provocar, isso sim.
— No fundo, vocês se amam.
Sílvia fez uma careta.
— Não creio.
— Claro. Se há raiva, há amor. Tenho certeza — Olavo a abraçou forte e avaliou: — Eu gosto de provocar você. Fica linda quando está nervosa, de cara amarrada.
— Bobo. Poderá jantar em casa. Eu e Soraia estamos sozinhas. Quer dizer, papai nos obrigou a contratar uma empregada que passa o dia, mas vai embora depois de servir o jantar. Só para ficar de olho na gente — ela riu. — Mamãe e seu Faruk não vão descer a serra. Eles nunca vêm para cá, mas o Jamil virá nos buscar semana que vem. Fim das férias, e então teremos aquele casarão para limpar, arrumar...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2024 8:30 pm

Os olhos de Olavo brilhavam de forma diferente, cheios de cobiça. Não prestava atenção ao que ela dizia.
— Não quero jantar em sua casa. Quero ficar com você. Tenho algo a lhe confessar.
— O que foi?
— Ganhei uma bolsa de estudos para fazer um curso de especialização em uma universidade nos Estados Unidos. Ela exultou de felicidade e o abraçou:
— Que bom! Você sempre quis estudar fora do país.
— Só tem um problema.
— Qual?
— Preciso partir daqui a quinze dias.
— Assim, tão rápido?
- Sim.
— E volta quando?
— Em três meses, no máximo.
Ela o abraçou novamente. Olavo foi categórico:
— E, quando eu voltar, vamos nos casar, Sílvia.
— É o que mais quero. Ser sua e...
Olavo a silenciou com os dedos nos lábios, não a deixou concluir. Ele a puxou pela mão e foram caminhando em direcção à avenida, passando pelo jardim.
— Aonde está me levando? Minhas sandálias e minha bolsa estão ali — apontou para o banco, próximo deles.
— Surpresa — falou ele, enquanto apanhava a bolsa e calçava as sandálias nos pés dela.
— Adoro surpresas!
— Vai amar.
— Mas me diga...
Ele a silenciou novamente com os dedos nos lábios.
— Meu carro está do outro lado da avenida. Vamos para a ilha. Hoje seremos só eu e você.
Uma noite especial. Só nossa.
Sílvia sentiu um friozinho na barriga, mas nada disse. Concordou. Ela amava Olavo. Mais que tudo na vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2024 8:30 pm

Capítulo 2
Fazia pouco mais de um mês que Sílvia retornara de Santos. Sentia-se a moça mais feliz do mundo. No entanto, estava desatenta nos afazeres do dia a dia. Não limpava os cómodos como amiúde, esquecia baldes e vassouras no meio do corredor, deixava queimar o arroz...
Soraia havia percebido o estado dispersivo e de felicidade excessivo da irmã. Desconfiou.
— Aí tem coisa — disse para si. — Preciso saber o que a princesinha andou aprontando. Vou descobrir.
Depois do lanche da tarde, aproximou-se de Sílvia.
— Estou com dúvida sobre o que separar para o bazar beneficente da paróquia do bairro, na semana que vem.
— Você, vir conversar comigo, assim do nada? Sofreu algum tipo de queda, bateu a cabeça no degrau da escada? —- questionou Sílvia, sabendo que Soraia sempre chegava junto quando queria algo de próprio interesse ou vinha para brigar.
A outra segurou a respiração e fez de tudo para manter o equilíbrio e não arranhar o rosto de Sílvia com as unhas compridas e abadas. Fingiu um sorriso:
— Nossa! Você anda nervosa ultimamente. Não sei por que implica comigo. Não tenho culpa se o meu pai se casou com sua mãe e era rico. Eu quero paz.
— Deixe de conversa fiada, Soraia. Vai, desembuche. O que quer?
— Saber sobre as prendas para o bazar da semana que vem.
— Está certo. Qual é a dúvida?
Soraia inventou uma dúvida qualquer sobre xícaras e copos velhos, antigos. Enquanto Sílvia lhe dava explicações sobre o que podia ou não retirar dos armários da copa, Soraia a media de cima a baixo. Sabia que havia acontecido alguma coisa com Sílvia. Estava mais corada, mais animada, mais... solta! De súbito, um pensamento lhe veio à mente:
Será que ela avançou o sinal com Olavo?
Aquilo ficou matutando em sua cabeça. Em segundos, Soraia retrocedeu no tempo e se fixou no fim de semana em que Olavo fora a Santos visitar a irmãzinha. Lembrou-se de que, na sexta-feira em que ele chegara à cidade, Sílvia voltara ao apartamento quando já passava da meia-noite, com os cabelos molhados, e fora directo para o quarto, de cabeça baixa.
Ela aprontou. É claro que sim! Mas como ter certeza?
Depois de dar uma desculpa esfarrapada para Sílvia, alegando uma ida à toalete, Soraia sorriu maliciosa:
— Eu vou descobrir o que ela fez. Quem diria! Silvinha...Passava das nove da noite quando Ivan apareceu na porta da casa e tocou a campainha. Foi Soraia quem o atendeu. O coração bateu descompassado. Abriu largo sorriso ao vê-lo.
— Ivan! Que surpresa agradável! Boa noite.
— Tudo bem? Como está?
— Muito melhor agora. Entre, por favor.
Meio encabulado, Ivan entrou. Ela fez sinal para beijá-lo no rosto, mas ele delicadamente se esquivou e foi entrando como se nada tivesse percebido.
Ivan tinha consciência das investidas de Soraia. Não era bobo. Mas não sentia nada por ela além de amizade. Ela era irmã de Jamil, mais nada. O coração dele, de certo modo, estava fechadíssimo para balanço havia muito tempo, desde... Bom, Ivan evitava pensar no assunto.
— Sente-se, por favor — ela lhe indicou o sofá.
Ele se sentou e ela foi logo avisando:
— Jamil ainda não voltou do mercado. Nem papai, tampouco dona Eustáquia. Eu ia até prestar uma ajuda no mercado hoje, mas estou indisposta — abaixou a voz: — Estou naqueles dias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2024 8:31 pm

— Não vim por conta do seu irmão.
Ela se animou, mas o sorriso logo sumiu dos lábios quando ele acrescentou na sequência:
— Vim falar com Sílvia. Ela está?
Soraia sentiu o rosto avermelhar-se e uma raiva brotar dos pés, subir com rapidez e abraçar o corpo. Fez tremendo esforço para sorrir.
— Está. Foi só o Olavo viajar que já está todo animadinho. Por acaso ele sabe que você está aqui e quer falar com ela?
— Isso não é da sua conta. Pode me fazer o favor de chamar a Sílvia?
Soraia sentiu como se um peso tivesse sido atirado na direcção de seu peito. Nunca Ivan lhe falara naquele tom. De fato, o que a feriu foi o tom com o qual ele lhe dirigira aquelas palavras. De uma secura sem igual.
Ele percebeu a grosseria e tentou consertar:
— Desculpe, Soraia. É que estou aflito. Preciso muito falar com sua irmã.
Ela o deixou falando sozinho. Enquanto subia os degraus da escada para chamar Sílvia, gesticulava:
— O que eu fiz para merecer isso? Por que ele me trata tão mal? Bateu na porta com força e foi entrando:
— Ei, como entra dessa forma? — Sílvia protestou.
— Aqui é minha casa. Sua mãe e você se mudaram para a minha casa — enfatizou.
— Fale logo. O que quer?
Soraia sorriu e falou:
— Você não vai acreditar! Olavo está lá embaixo.
Sílvia desligou a vitrola, jogou a capa do disco do Cauby Peixoto para longe, saltou da banqueta da penteadeira e deu um gritinho de felicidade.
— Não pode ser! Faz duas semanas que Olavo viajou para os Estados Unidos.
— Então há um sósia dele lá embaixo, sentado no sofá da sala.
— Não está de brincadeira?
— Claro que não. Vamos, vou ajudá-la a se arrumar. Aproveite porque hoje estou me sentindo uma boa irmã.
Soraia evitava não rir. Deliciava-se com o excitamento de Sílvia. Ajudou-a a arrumar os cabelos, penteá-los, trocar de vestido, maquiar--se, perfumar-se. Levou uns bons vinte minutos.
Soraia conduziu-a até o espelho e constatou:
— Está linda. Ele vai adorar vê-la assim, toda arrumada, especialmente para ele.
— Não estou acreditando que ele esteja aqui. O que será que aconteceu?
— Deve ser a saudade. Vamos, desça. Está igualzinha à miss Brasil, Teresinha Morango. Não tem o que tirar nem pôr.
Sílvia beijou Soraia no rosto.
— Você, às vezes, me surpreende.
— Imagine, irmãzinha! Você é que tem uma impressão ruim a meu respeito.
Sílvia saiu saltitante do quarto, enquanto Soraia, rosto azedo, resmungou:
— Isso mesmo, bobinha. Está mais para Teresinha Abacaxi do que para Morango.
Sílvia desceu as escadas, alcançou a sala e, ao ver Ivan, indagou:
— Cadê ele? Foi para a cozinha?
— Ele quem? Você demorou um bocado!— Olavo. A Soraia me disse que...
— Olavo está nos Estados Unidos, esqueceu?
Ela se deu um tapa na testa.
— Como fui burra! Caí direitinho na conversa fiada dela.
— Não vá se aporrinhar. Soraia é doidivanas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2024 8:31 pm

— Tenho vontade de subir e arrancar os cabelos dela.
Soraia se divertia no alto da escada.
— Boba sentimental.
Ivan estava com o rosto crispado:
— O assunto é importante. Você poderia sair comigo para dar uma volta?
Ela consultou o relógio no hall da sala. Passava das nove e meia da noite.
— Não sei, não é de bom-tom sair a esta hora. Se a Soraia nos acompanhar...
— O que temos de conversar é confidencial. Não tomarei muito do seu tempo.
— Bom, se é tão importante assim, farei melhor. Vou ligar para o mercado e avisá-los. Falarei com Jamil.
— Perfeito.
Sílvia telefonou para o mercado, conversou com o irmão e, depois que Jamil a tranquilizou afirmando que inventaria uma desculpa aos pais sobre a saída dela, desligou o telefone mais serena.
— Vamos. Jamil me disse que vão chegar tarde e, se eu demorar, vai inventar que você me levou a uma festa e depois ele vai me buscar.
— Óptimo. Venha.
Saíram. Sílvia entrou no carro de Ivan. Da janela do quarto, Soraia dedilhava a cortina para espiá-los:
— Saindo juntinhos, confidenciando segredinhos. O que será que você fez de errado, Silvinha querida?
Soraia não percebeu, mas um vulto de mulher encostou ao lado dela e sussurrou em seu ouvido:
— Ivan é meu e de mais ninguém! Soraia sentiu um calafrio percorrer seu corpo e um leve enjoo. Passou as mãos pelos braços e deitou na cama. Apanhou uma revista e começou a ler a fim de espantar a sensação de mal-estar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2024 8:31 pm

Capítulo 3
Acomodados em uma lanchonete perto de casa, Ivan pediu dois milk-shakes e afirmou, sério:
— Preciso conversar com você algo muito, mas muito grave.
— Falando desse jeito, parece que vai lançar uma bomba sobre minha cabeça, meu colo.
- Mais ou menos.
— O que está acontecendo, Ivan?
— Sabe que a tia de Olavo é muito rígida nos costumes e o criou de maneira bastante severa também, não?
— Sim. Dona Emma nunca aprovou nosso namoro. Alega que a minha linhagem não é pura, que sou descendente de italianos com portugueses e minha mãe se juntou a um libanês. Puro preconceito.
— Sim. Preconceito total. Só que, na cabeça da velha, Olavo deveria namorar uma moça inglesa ou norte-americana. Emma foi casada com um engenheiro da Light. É filha de ingleses.
— E por conta disso Olavo tem de se casar com uma inglesa ou norte-americana? Que absurdo!
— Emma o criou com rédeas curtas, sempre escolheu as namoradinhas, fazia chantagem em relação à herança. Sabe o quanto Olavo tinha e tem horror à pobreza.
— Sei, sim. Todavia, ela permitiu o nosso namoro. Estamos juntos há três anos. Não acredito que ela seja tão rígida assim. Você, por mais amigo que seja, às vezes exagera em suas conclusões. O fato é que Emma fez de tudo para que Olavo ganhasse bolsa para estudar nos Estados Unidos. Vai fazer especialização em sua área, pois há parceria entre a universidade que ele cursou aqui e uma instituição em Boston.
— Isso tudo eu sei, Sílvia — Ivan mordiscou os lábios. — Havia o programa de pós e um estágio em uma empresa de renome...
Sílvia o interrompeu:
— E daqui a poucos meses, estabilizado, com emprego, Olavo voltará, vai pedir a minha mão em casamento e vou com ele para lá. Eu vou desistir de viver no Brasil. Está tudo acertado.
Olhe o anel de noivado que ele me deu em Santos. Sílvia esticou a mão direita e mostrou o anel com a pedrinha brilhante. Ivan sentiu um nó na garganta. Iria falar, contudo, a garçonete aproximou-se com os copos. Ivan bebericou seu milkshake e Sílvia fez um gesto com as mãos e jogou o rosto para trás.
— Esse milk-shake está com cheiro esquisito — afastou o copo e continuou: — Fizemos planos, sabe? Vamos viver em Boston, ou em qualquer outra cidade. Depois teremos nossos filhos, um casal, porque eu sempre quis ter dois filhos. Vamos criá-los de uma maneira menos austera e mais amorosa e, com o passar do tempo, penso em ingressar em uma universidade, trabalhar como a maioria das norte--americanas. Há muitas coisas que sonhamos fazer juntos.
Para toda uma vida! — finalizou, emocionada.
Ivan pousou suas mãos sobre as dela.
— Eu gosto muito de você. É uma amiga muito querida, uma pessoa muito especial por quem nutro um sentimento também especial. Eu estudei com Jamil até o fim do colégio, frequentei bastante sua casa, vi você crescer. Tenho um carinho imenso por você, Sílvia.
— Eu também o admiro muito, Ivan. Tenho um profundo carinho por você. É um irmão, também. Aliás, considero você e Jamil os irmãos que não tive.
— Por isso preciso ser franco, directo. Não quero rodeios, usar meias palavras.
— Então fale. Sem rodeios — ela exigiu, encarando-o.
— Olavo se casou na semana passada.
A frase teve o efeito de um soco na boca do estômago. Sílvia questionou:
— O que disse?
— Olavo se casou na semana passada, em Boston.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2024 8:31 pm

Tudo começou a girar à sua volta e logo escureceu. Sílvia desmaiou.
No hospital, uma simpática enfermeira veio conversar com Ivan.
— É parente da moça que está em observação?
— Não. Sou amigo.
— Preciso que alguém da família venha assinar uns papéis. Pura burocracia.
— Ela vai ficar bem?
— Sim. Mas ficará em repouso. Vamos liberá-la se o senhor puder trazer um parente.
Ivan pensou e, imediatamente, Jamil veio-lhe à cabeça.
Preciso dele aqui. Dona Eustáquia não pode se aborrecer. Saiu do hospital com o carro em disparada e foi em direcção ao mercado. Quando estacionou e desceu do veículo, Jamil baixava as portas do estabelecimento.
— Sabia que iria encontrá-lo aqui, ainda — afirmou Ivan.
— Noite de sexta-feira. Fechamos mais tarde. Em compensação, amanhã trabalharemos só até as duas da tarde.
Ivan subiu o degrau e abraçaram-se, num gesto afectuoso.
— O que faz aqui a essa hora? Está precisando de alguma coisa? Não estava com Sílvia?
— Estava. Quer dizer, estou — Ivan olhou para os lados e indagou: — Cadê seus pais?
— Acabaram de sair. Eu vou encontrar um cliente, que virou amigo, no centro da cidade para beber, conversar.
Ivan sorriu.
— Infelizmente, vai ter de dar o bolo em seu amigo. Sou portador de más notícias.
Ivan explicou o ocorrido. Jamil ficou sensibilizado.
— Pobrezinha. Deve estar muito mal.
— Sim. Está. Arrasada.
— Diga-me: Olavo agiu de má-fé?
— Não sei ao certo. Ele havia conversado comigo sobre essa possibilidade. Disse que a tia o estava colocando contra a parede, exigindo que se casasse com Dorothy. Mas ele achava que a tia não chegaria a tanto, que, tão logo ele chegasse aos Estados Unidos, ela cederia. Por três anos ela não se opusera aos encontros dele com sua irmã. Até tratava Sílvia bem.
— Fez tudo certinho — ajuntou Jamil.
— Como assim?
— Olavo sempre soube que iria embora e teria oportunidade melhor no exterior. Deve ter conversado com a tia, dito a ela que, enquanto não tivesse a viagem resolvida, precisava namorar. A velha Emma foi esperta. Deixou o sobrinho aproveitar-se de Sílvia. E agora ele se foi. Fez o que tanto quis.
— Olavo não seria esse monstro.
— Não sei. É questão de ponto de vista. Ele fez o que julgou melhor para si.
— Ferindo o sentimento dos outros?
— Ele terá de prestar contas à própria consciência. Os actos praticados por ele são responsabilidade dele.— Só não entendo por que se casar tão rápido.
— Dinheiro, Ivan.
— Como assim?
— Grana. No caso, dólares! Muitos dólares. Emma deve ter feito a cabeça do sobrinho.
— De que forma?
— Ora, Olavo é o único herdeiro dela. Entretanto, é sobrinho, não é filho. Emma pode dispor de sua fortuna da forma que bem entender. Eu conheço você muito bem, do mesmo modo que conheço o Olavo. Ele é homem, pode até ter um bom coração, mas o dinheiro, a estabilidade, a segurança económica, todas essas questões são mais importantes para ele.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2024 8:31 pm

— Olavo sempre foi ligado a valores, em status. Com isso, tenho de concordar.
— Ele nunca trabalhou, zombava de mim porque eu saía do colégio e vinha ajudar meu pai na mercearia. Dizia não ter nascido para botar as mãos no pesado.
— É. Sempre foi um bon-vivant. Mas ele ama sua irmã.
— Sei. Tenho certeza de que ele ama Sílvia e deve ter sido difícil fazer a escolha. Mas o amor, para ele, pode ser guardado, esquecido, trocado, manipulado... já o dinheiro, não. É uma questão de valores, materiais e morais. Cada um é um.
— Nossa, Jamil. Você não sente raiva do homem que está fazendo sua irmã sofrer?
— Não, meu amigo. Ninguém faz ninguém sofrer. Nós é que nos entregamos às ilusões.
Criamos expectativas, somos levados a acreditar que o mundo deve ser como o idealizamos. E, se não sair como sonhamos, culpamos o outro, o mundo, Deus, a vida, arrumamos sempre um bode expiatório para condenar. A desilusão pode ser dura, mas é a visita da verdade. E a verdade cura a alma.
Ivan calou-se. Engoliu aquelas palavras e ficou a meditar, reflectindo sobre as próprias ilusões.
Quais eram as ilusões que ele, Ivan, tinha da vida?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 10:54 am

Capítulo 4
No hospital, depois de assinar os papéis, Jamil deu meia-volta para ir à salinha onde Sílvia repousava quando foi abordado por um dos médicos plantonistas:
— É parente da moça que está repousando ali naquela sala — apontou — no fundo do corredor?
— Irmão — respondeu Jamil, já acostumado com o parentesco e com a afinidade que tinha com Sílvia.
— Preciso lhe revelar algo muito sério.
— Pois diga.
— Ela precisa repousar. Muito.
— Está doente?
— Não. Está grávida.
Ele mordiscou os lábios, respirou fundo. Não ficara chocado com a notícia, embora, naqueles tempos, uma mulher solteira e grávida era algo digno de repúdio e escândalo. A família da moça sentia-se manchada em sua honra, e a sociedade lhe apontava dedos acusadores. Era uma espécie de linchamento moral. Um horror.
Jamil era um rapaz sensível, de alma nobre, cujos valores não eram pautados pelos ditames sociais. Não se baseava pelo conjunto de regras que regia a conduta da sociedade. Considerava esse conjunto hipócrita, falso, raso, em que as pessoas tinham que seguir padrões pré-estabelecidos, deveriam pensar de uma determinada forma e não podiam expressar o que sentiam.
Estava acostumado a lidar com o público desde garoto, pois, atendendo atrás do balcão do mercado, conhecera todo tipo de gente.
Tinha conhecimento de que homens e mulheres que entravam no estabelecimento vestiam-se com elegância, tinham posição, sobrenome, faziam questão de mostrar o poder que possuíam dentro da tal pirâmide social, porém, por trás daquele verniz, marcavam encontros secretos, tinham amantes, frequentavam bares e cabarés, ou eram viciados em algo ou alguma coisa para, escondidos, viver o que de fato eram: pessoas comuns que ansiavam por um tiquinho de prazer e felicidade.
Jamil não julgava, não condenava e acreditava que cada pessoa tinha o direito de escolher ser e fazer o que quisesse de sua vida, pois tinha em mente que todos, incluindo a si próprio, eram responsáveis por tudo o que lhes acontecia na vida. Para Jamil, não havia vítimas. Sílvia não era uma vítima de Olavo. Mas ele gostava tanto dessa irmã de coração que faria tudo para ajudá-la, pois sabia que o mundo, fora do hospital, a trataria de forma brutal.
Ele caminhou até a salinha. Sílvia, ao vê-lo, sorriu e fez menção de levantar-se. Jamil foi logo dizendo:
— Não. Fique sentada — aproximou-se, beijou-a na testa e pegou em sua mão. — Como se sente?
— Do desmaio ou da surpresa desagradável?
— Dos dois.
— O desmaio foi coisa boba. Quando o milk-shake chegou, senti um cheiro que embrulhou meu estômago. Passou. Agora, saber que Olavo se casou com uma gringa na semana passada ainda está difícil de assimilar...
Sílvia terminou de falar e algumas lágrimas escorreram pela face, enquanto uma mão alisava a outra, com o dedo que sustentava o anel de noivado. Jamil passou o dedo com delicadeza sob os olhos dela e contemporizou:
— Agora deve pensar em sua vida sem Olavo.
— Eu planejei uma vida ao lado dele. Como esquecer tudo de uma hora para outra?
— Imagine que ele morreu.
Sílvia arregalou os olhos.
— O que quer que eu faça? Que fique de luto?
— Não. Mas comporte-se como se ele tivesse morrido. Quando alguém morre, não há mais condições de a pessoa estar em nossa vida, fisicamente falando. Somente na memória.
— Você um dia me disse que acredita na continuidade da vida. Então, se morre, pode voltar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 10:55 am

— Não sou estudioso do assunto, contudo, não é bem assim.
— No caso de Olavo...
— Imagine que ele morreu, está em outra dimensão. E que um dia, talvez, lá na frente, poderão se reencontrar.
— Ele é o amor da minha vida.
— Será?
— Como pode duvidar, Jamil?
— Não estou duvidando. Acredito que na vida tudo acontece para o nosso melhor. Se é para ser, acontece. Se não é para ser, não vai, emperra, não acontece.— Não entendo.
— Se fosse para você e Olavo se casarem, não haveria obstáculos, barreiras, nada. Tudo seguiria de forma tranquila. Se houve uma mudança no meio do caminho que os separou, se ele mudou de ideia, então, não era para ficarem juntos.
— Eu tenho certeza de que ele não mudou de ideia. Quem o pressionou foi a megera da Emma. Sempre a tia! — Sílvia suspirou. — Ela é a culpada.
— Não. Não há culpados. Olavo fez uma escolha. Simples assim. Aceitar o que não dá para mudar traz serenidade ao coração. Porque não dá para reverter a situação, dá?
— Não, não dá.
— Você não vai sair daqui feito louca e ir até os Estados Unidos para tirar satisfações, vai?
— Bem que eu queria.
— A troco de quê? Ajudaria em algo? Olavo tomou a decisão dele. Fez uma opção. Por mais dolorido que possa ser para você, respeite.
— Mas eu o amo — nova lágrima desceu pelo canto do olho.
— Quem ama liberta, Sílvia. Entenda isso.
— Duro de entender...
— O amor nada mais é do que um meio de libertação, não de apego. Quem ama de verdade aprende a respeitar a liberdade de escolha do ser amado.
Aquelas palavras tocaram fundo em Sílvia. De repente, uma sensação de paz a fez esboçar um sorriso.
— Você sempre me acalma. Se existem mesmo vidas passadas, tenho certeza de que fomos irmãos em outra vida.
— Não tenha dúvida. Eu amo você, como irmã. Os laços que nos unem são de carinho, afecto e respeito.
— Sinto o mesmo por você.
— Por esse motivo, há algo que preciso lhe dizer agora. E, lembre--se, estarei ao seu lado para o que precisar. Conte comigo.
— O que é?
— Você está grávida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 10:56 am

Capítulo 5
O casamento de Olavo e Dorothy foi realizado numa igrejinha simpática no centro de Cambridge, área metropolitana de Boston. A festa, destaque à parte, com direito a coluna em jornal, reuniu a nata do estado de Massachusetts. A lua de mel foi em Paris.
Além do mais, vale ressaltar que um dos avós de Dorothy havia sido dono da maior fábrica de vidros do país, localizada por muitos anos em Cambridge e, por essa razão, fora por muito tempo a maior empregadora da cidade. A família dela tinha prestígio. E dinheiro, muito dinheiro.
Dorothy era uma moça bonitinha e voluntariosa. Estatura média, cabelos ruivos, pele bem branquinha, muitas sardas no rosto, colo e nos ombros. Os lábios eram sedosos. Os olhos, verdes e expressivos. Possuía uma voz doce que, de certa maneira, compensava toda a teimosia que possuía.
Ela seduzia pela voz e pelo olhar enigmático. Dorothy sabia como convencer e manipular quem quer que fosse. Filha única, perdera a mãe muito cedo e fora muito mimada pelo pai.
No entanto, não crescera uma menina fútil e enjoadinha, chata. Longe disso. Dorothy era o tipo de pessoa que sabia o que queria e como queria. Veio ao mundo para fazer acontecer e, obviamente, tudo tinha de ser e sair do seu jeito. Não nascera para ser submissa ou para ceder com facilidade, e sim para mandar, delegar. Tinha bom coração, era firme, justa, mas fazia o estilo osso duro de roer.
Dorothy era a princesinha do pai, que atendia a todos os seus caprichos, porque James, o velho, a respeitava. Ela era o tipo de pessoa que impunha respeito, conversava olhando nos olhos. Jamais abaixava a cabeça. Para nada.
Olavo, a princípio, não se encantara por ela. Achara-a muito dona de si, estilo rebelde. O primeiro beijo, de certo modo, causara-lhe um excitamento. Entretanto, no segundo encontro, quando o pai dela, depois de revelar a ele a pequena lista de propriedades, joias e dinheiro em aplicações financeiras que Dorothy herdaria, os olhos, assim como o coração de Olavo, sofreram súbita transformação.
Ali, ao encarar Dorothy, viu sua galinha dos ovos de ouro.
Ela é voluntariosa, brava. Eu vou domar essa mulher, disse para si, em pensamento. Todo esse dinheiro fará eu me apaixonar rapidinho por essa fera.
Ivan lutava contra os pensamentos e queria acreditar que Olavo havia feito uma escolha dura, difícil. Mentira. Pura balela. Naquele momento, Olavo nem pensou em Sílvia. Nem lhe passou pela cabeça escrever uma carta para ela, desculpando-se, ou rompendo o noivado, nada. Agiu de forma fria, porque ele sabia, desde sempre, que o romance com Sílvia tinha começo, meio e fim.
Para não parecer um patife, jurou a Ivan que fora obrigado a tomar a decisão mais difícil de sua vida, que tia Emma o pressionara, enfim, inventara um drama do tamanho de um bonde para impressionar o amigo e não parecer tão canalha. Por isso, Ivan estava com pensamentos contraditórios em relação à decisão do amigo. Não sabia se acreditava em Olavo ou na intuição de Jamil.
A bem da verdade, ninguém consegue estancar o que sente. Olavo acreditou que, jogando para baixo do tapete todo o amor puro e verdadeiro que sentia por Sílvia, ficaria livre e imune a esse sentimento, como se sentir fosse algo racional, comandado pela cabeça, esquecendo que, nos assuntos afectivos, o coração sempre está ali, pronto para dar as cartas.
Levaria alguns anos, ainda, para Olavo descobrir que o amor verdadeiro é um sentimento tão precioso e profundo que, quando encontrado, é preciso ser valorizado.
Olavo estava apreciando a Torre Eiffel da janela do quarto quando Dorothy o abraçou por trás, semi-nua. Olavo era fluente em inglês e conversavam nesse idioma com naturalidade.
— Acordou faz tempo, querido?
— Não. Estava apreciando a vista. Já faz dez dias. Amanhã vamos embora e começaremos nossa vida de casados — comentou ele, sem desviar o olhar, enquanto soltava baforadas do cigarro pela janela afora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 10:57 am

— Estou tão feliz. Nunca pensei que fosse me casar com um estrangeiro. Com um hombre! — ela tentou misturar os idiomas. — Você vai me ensinar seu idioma, não? Quero hablar direitinho a sua língua e entender as músicas cantadas por Cármen Miranda.
Olavo fechou os olhos e suspirou. Voltou-se para Dorothy e fixou seus olhos nos dela:
— Eu já lhe disse mil vezes que no Brasil falamos português. Não falamos espanhol.
— Não é a mesma coisa?
— Não. Claro que não. São idiomas parecidos, mas diferentes.
Ela deu de ombros.
— Está certo, señor. Faça como quiser.
Ele bufou.
— Não tem jeito, mesmo. É burra — falou em português. Em seguida, entrou no banheiro e bateu a porta com força.
Claro que Dorothy entendeu, pela maneira como ele despejou aquelas palavras. — Está descontrolado — murmurou. — Não posso deixar Olavo nervoso logo na lua de mel.
Já sei o que fazer para deixá-lo mansinho. Mamãe não me ensinou, porque morreu cedo, mas sei o que dá resultado — sorriu de forma maliciosa.
Ela ajeitou os cabelos em frente ao espelho sobre a cómoda, borrifou um pouco de perfume sobre o pescoço e o colo. Depois passou um pouco de batom e beijou o espelho, sorrindo ao ver a marca dos lábios.
— São lindos!
Em seguida, apanhou uma caixinha e pegou uma balinha de menta. Com delicadeza, Dorothy abriu a porta do banheiro. Olavo estava com o corpo imerso na banheira coberta com água morna e sais, tentando relaxar, olhos fechados.
Ela entrou sem fazer barulho, pés descalços. Tirou a roupa e, nua, aproximou-se da banheira.
— Hoje eu acalmo esse homem!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 10:57 am

Capítulo 6
A notícia da gravidez caiu como uma bomba sobre a família. Dona Eustáquia teve chiliques, passou mal, desmaiou. Todos foram acudidos, menos Sílvia, que estava destroçada numa poltrona, de tanto que chorava.
Soraia correu até a cozinha e voltou com um pano com álcool e um copo com água e açúcar.
Aos poucos, Eustáquia voltou ao normal. Chorosa, perguntava:
— O que fiz para você me aprontar um desatino desses? Sempre fomos tão amigas. Por que, Sílvia? Por quê?
Sílvia não respondia, chorava copiosamente. Soraia tentava amenizar a situação, passando as mãos nas de Eustáquia. E pensou:
Eu poderia tripudiar sobre a situação, mas até sinto pena de Sílvia. Eu não gostaria de estar no lugar dela.
Seu Faruk, sentindo-se responsável por Sílvia, experimentou um sentimento doloroso de impotência e fracasso. Era como se tivesse falhado na educação que tentara dar, fracassara por completo nos valores que tentara transmitir aos filhos.
Todos estavam estarrecidos. Até Jamil, que era o mais compreensivo e segurava a mão de Sílvia, não sabia ao certo o que fazer. Entendia os sentimentos de Faruk e Eustáquia. Não podia repreendê-los. Estava um tanto perdido.
A energia do ambiente estava conturbada, uma onda de medo pairava no ar. A negatividade se fazia presente e foi fácil para que um vulto de mulher pudesse ali entrar e grudar-se em Soraia. Ela nem percebeu a aproximação.
De repente, Soraia tirou as mãos das de Eustáquia, cruzou os braços e seus olhos brilhavam excitados. Era um brilho estranho, cujos ingredientes continham desprezo, alegria, raiva e uma pitada de desdém.
Ao encarar Sílvia prostrada no sofá, cabeça baixa, lágrimas escorrendo sem parar, sentiu uma onda de contentamento invadir-lhe o corpo. Lamuriou, numa voz baixa:
— Idiota, estúpida. Deixou-se seduzir e, ainda por cima, engravidar. Como pôde ser tão burra?!
— O que está resmungando aí no canto? — quis saber Jamil.
— Nada. Só estou vendo essa cena patética, apreciando sem moderação. Posso?
— Podia ter um pouco de compaixão.— Sei. Ela abre as pernas para qualquer um, engravida não sei de quem, suja o nome da família, e eu é que tenho de ter compaixão?
Jamil respirou fundo para não se irritar. Faruk entrou na sintonia do espírito colado a Soraia e emendou:
— Isso mesmo! Onde já se viu repreender a minha filha? Ela nada fez, Jamil. Foi Sílvia quem manchou nossa honra. Ela acabou com nossa reputação. O que faremos agora? O que diremos aos vizinhos, aos amigos?
— É com isso que estão preocupados? —Jamil estava perplexo.
— E quer que estejamos preocupados com o quê? — indagou o pai. — Essa está perdida. Não tem mais jeito. Precisamos tomar providências imediatas.
— Quais providências? — Sílvia se manifestou pela primeira vez, os olhos inchados de tanto chorar.
A mãe levantou-se e Soraia aproximou-se de Eustáquia, amparando-a.
— Venha, dona Eustáquia, eu a ajudo a subir para descansar.
— Quero morrer — dramatizava a mulher.
— Não vai morrer. Levarei a senhora para o quarto, ajudarei a trocar de roupa e deitar-se. Precisa de repouso. O que Sílvia fez não tem perdão. Eu a entendo — asseverou, enquanto encarava Sílvia com ar irritadiço.
Enquanto as duas subiam os degraus, Jamil repetiu praticamente o que Sílvia havia indagado:
— Que providências vai tomar?
Faruk foi categórico:
— Mandada para longe, para a casa de algum conhecido, mas distante daqui. Não podemos passar por essa vergonha.
— Não conhecemos ninguém — Sílvia disse baixinho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 10:57 am

— Tenho amizade com um padre que é freguês antigo do mercado. Ele poderá me ajudar.
— Mas esse tipo de situação fará com que, depois que meu filho nascer, eu tenha de entregá-lo para adopção.
— Isso mesmo — advertiu Faruk.
Sílvia apertou a mão de Jamil. Ele a encarou e fez sinal para que nada dissesse, por ora. Ela compreendeu e ele tomou a palavra:
— Está certo. O senhor tem razão. Vamos fazer isso a que se propõe. Converse com o padre o mais rápido possível. Faruk deu um longo e profundo suspiro. Em seguida, também subiu para tentar descansar.
Sílvia cochichou:
— Por que concordou com ele? É um absurdo!
— Eu sei. Só estou ganhando tempo.
— Ganhando tempo?
— Sim. Precisamos conversar com Ivan.
— Contar a ele?
— Claro. Ele vai nos ajudar.
— Tenho vergonha.
— Sílvia, deixe de ser arrogante. Nesse momento, precisa aceitar todo tipo de ajuda e, para isso, precisa passar por cima do orgulho.
— Não é fácil.
— Também não é impossível. É um desafio. Vamos, estou do seu lado. Ivan é seu amigo. Vai nos ajudar, antes que papai converse com o padre. Confie em mim.
Ivan era o filho caçula de três irmãos. Todos homens. Os dois mais velhos, também médicos, já estavam casados, tinham filhos. Um havia se mudado para o Rio e o outro recebera convite para dirigir um hospital em Campinas, interior do estado.
Era um rapaz simpático. Tinha traços bonitos, porte elegante, a pele clara, olhos castanhos, os cabelos sempre jogados para trás e usava óculos de grau. Não era um galã de cinema, mas era um tipo interessante. Exalava carisma, simpatia, acima de tudo, tinha bom humor e acreditava que sempre havia solução para todo tipo de problema.
Tivera uma namorada, Ivete. Acreditou que ela fosse a mulher com quem iria se casar e viver para sempre ao seu lado. Chegaram a noivar. Mas Ivete morreu afogada durante um feriado, no litoral. Um acidente bobo, uma morte inesperada, que arrasara Ivan e fechara seu coração para novos relacionamentos.
Ivan não acreditava na continuidade da vida após a morte e, por conta disso, era-lhe muito duro lidar com o sentimento de perda da noiva amada.
Ele nunca mais quis saber de envolvimento afectivo. Isso ocorrera quando ingressara na faculdade, já fazia um bocado de anos. Sabia que Soraia arrastava as asas para cima dele, porém não queria saber de mulher nenhuma em sua vida. Nunca mais. Morreria solteiro.
De mais a mais, Ivan estava começando a clinicar, especializara--se em obstetrícia. Queria ajudar mulheres a trazer uma nova vida ao mundo, já que perdera o amor de sua vida de maneira que ele julgava inexplicável. Para Ivan, cada nascimento realizado por ele era uma vingança contra a morte de Ivete, que se fora do mundo tão jovem.
Apesar de não ser adepto da espiritualidade, era homem de alma sensível. Naquela tarde ele estava lendo O lustre, de Clarice Lispector, sua escritora predilecta, quando a campainha tocou.
Sua mãe atendeu, em seguida Sílvia e Jamil estavam na saleta de leitura, à sua frente.
Ivan levantou-se surpreso:
— Vocês! O que fazem aqui? Que surpresa agradável!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 10:59 am

A mãe dele os deixou à vontade e se retirou, fechando a porta atrás de si.
Jamil sorriu e declarou:
— Temos algo sério para conversar. Precisamos de sua ajuda.
— Sentem-se, por favor — indicou um sofazinho ao lado.
Sílvia sentou-se, um pouco acabrunhada. Ivan notou o semblante avermelhado e perguntou:
— Você está bem? Não está com bom aspecto. Quer que eu a examine?
Jamil interveio:
— Sem meias palavras, meu amigo. Sílvia está grávida. De Olavo, claro.
Ivan estancou o passo. Ficou parado olhando para Sílvia. Não sabia se a abraçava ou xingava por ter se deixado seduzir por Olavo tão facilmente. Mil pensamentos passaram por sua mente. Sentiu raiva, muita raiva. Mas raiva de Olavo.
Só conseguiu dizer:
— Precisamos contar a Olavo.
Sílvia deu um salto do sofá.
— De jeito nenhum. Você nunca vai falar nada. Nem você, nem eu, tampouco Jamil.
— Mas se ele é o pai...
Ela o interrompeu:
— Não interessa, Ivan. Ele fez a escolha dele. Está casado com outra, vivendo em outro país.
Não quero ser um peso, ser a outra, a amante latina que vai viver de migalhas, com um filho bastardo a tiracolo. Tenho minha dignidade.
Ele se emocionou.
— Você vai ter o filho!— É claro! Vou ter e preciso de sua ajuda, porque seu Faruk quer me mandar para longe.
Quer que eu tenha a criança e a entregue para adopção. Não vou fazer isso, nem que tenha de fugir.
Jamil a tranquilizou:
— Calma, Silvinha. Não vai precisar de actos extremos. Nada de fugas noturnas, actos desesperados. Vamos dar um jeito.
— Eu vou ter meu filho. Só que não tenho dinheiro, não tenho como me virar, por agora. Eu só peço que me ajudem, me dêem um emprego, me indiquem uma pensão, enfim...
Ivan emocionou-se com tamanha firmeza, coragem e sinceridade. E foi de supetão que as palavras saltaram de sua boca:
— Quer se casar comigo?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 10:59 am

Capítulo 7
Jamil estava aliviado e feliz. Se pudesse, gritaria toda essa felicidade. O pedido de casamento de Ivan tinha sido uma solução inesperada e perfeita.
Ivan e Sílvia eram muito amigos. Ela estava grávida de algumas semanas, portanto, ele, como obstetra, poderia afirmar que o parto da criança tinha sido feito de oito meses devido a diabetes na gravidez ou algo do tipo. Ninguém suspeitaria de nada. Ficaria tudo bem para eles, para a sociedade e, principalmente, para a criança, que teria um pai maravilhoso, um lar, uma família de verdade, e não sofreria preconceito, não seria apontada na rua como um filho bastardo.
— A vida é fantástica! Acaba por fazer com que tudo dê certo. Estou muito feliz e, agora, não gostaria de ir para casa. Queria dar uma volta, tomar novos ares.
Murmurou essas palavras enquanto dobrava a avenida São Luís, no centro da cidade, e observava o burburinho frenético formado por pessoas, carros e bondes. Parou em frente a um bar, respirou fundo e disse a si mesmo:
— É aqui. Coragem, Jamil.
Entrou. Era um bar sofisticado, frequentado por homens de terno e gravata. Jamil estava só de camisa e calça social, por isso foi barrado na porta.
— Não sabia que era preciso usar terno e gravata.
O segurança, notando o nervosismo, sorriu:
— Não se aborreça. Logo ali — apontou para fora — no Pari Bar, não há necessidade de usar terno e gravata. Ali você não será barrado.
— Obrigado.
Jamil saiu e entrou no outro bar. Havia gente mais jovem entre os frequentadores. Ele se sentou a uma mesa e pediu um guaraná. Minutos depois, alguém tocou em seu braço.
— Jamil!
— Paulo! — exclamou surpreso.
O outro também pediu um guaraná e sentou-se ao lado de Jamil. Era um pouco mais velho do que Jamil, trinta anos, rosto quadrado, ainda afeito ao uso de barba. Paulo era professor de História da USP, leccionava ali perto, na Maria Antónia.
— Eu estava dobrando a quadra no sentido da Consolação quando o vi saindo do Barbazul.
Jamil o olhou meio sem graça.— Eu deveria saber sobre o uso da gravata. Se temos de usá-la para ir ao cinema, não me causa estranheza ter de usá-la também para frequentar um bar sofisticado.
— Não está acostumado. Por que não veio me encontrar na sexta--feira? Fiquei esperando você na porta do Barbazul.
— Tive uns problemas de família para resolver. Não tive como avisá-lo. Desculpe.
— Tudo bem. Acreditei mesmo que algo tivesse acontecido. Fui beber com Herculano, depois fui para casa.
— Você e Herculano estão sempre juntos. São amigos há muito tempo?
Paulo suspirou e ficou pensativo:
— Desde a infância. Embora rebelde, é um grande amigo e, como não tive irmãos, eu o trato como se fosse um. Eu o entendo e ele me entende. Era para estarmos juntos, mas ele tinha programa com uma garota. Coisas de Herculano.
— Você sempre anda por esses lados da cidade?
— Moro na Marquês de Itu, aqui perto. Alguns de meus alunos frequentam os bares aqui da região.
A naturalidade com que Paulo falava deixou Jamil à vontade para indagar:
— Desculpe a intromissão. É meu cliente no mercado há anos, agora somos amigos, nunca tivemos conversas mais íntimas. Sei que era casado até pouco tempo atrás. E unha e carne com Herculano. Marcou de conversarmos naquele bar — apontou. — E agora estamos neste.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 10:59 am

São lugares, bem, são lugares diferentes, frequentados só por homens. Você, por acaso, é...Paulo sorriu e completou:
— Quer saber se sou homossexual? Ou bissexual?
Jamil fez sim com a cabeça, meio constrangido.
— Não, Jamil. Eu gosto de mulher. Herculano também. É que sempre fui uma pessoa de mente aberta, estudei História e lecciono a matéria tentando mostrar aos meus alunos que não devemos ter preconceito de raça, cor, condição social, orientação sexual. Temos lutado há tantos séculos por igualdade, dignidade e respeito e, além do mais, embora eu não seja religioso, compartilho do lema: “Amai o próximo como a ti mesmo”. Escutamos a frase há quase dois mil anos e ainda não somos capazes de respeitar as diferenças. Como conviver num mundo tão diverso se não aceitamos e não respeitamos o outro como ele é e escolhe ser, ou seja, negro, magro, gordo, coxo, cego, homossexual...
— Você me comove com tanta compreensão.
Paulo colocou a mão sobre a de Jamil.
— De forma alguma, meu amigo. Eu tento ser uma pessoa boa para mim mesmo e, na medida do possível, semear a bondade no mundo, sem pieguices. Respeitar as diferenças já é um bom começo. Além do mais, você também é um rapaz de extrema sensibilidade. Por trás desse semblante árabe, com vozeirão que às vezes mete medo, há um homem cheio de vontade para dar e receber carinho.
— Você me conhece há um bom tempo.
— Percebo a maneira gentil como trata seus clientes. É um cavalheiro. As mulheres suspiram por você, inclusive as casadas. Sabe disso.
Jamil riu.
— Sei. E agora quer que eu encontre novos amigos.
— Qual é o problema? Não é bom travar novas amizades? Você vive muito só.
— Isso é. Eu amo trabalhar. As vezes, sinto falta de uma conversa, um abraço, um amigo mais íntimo.
— Todo ser humano sente essa falta, Jamil. É natural. Mas, me diga, nunca frequentou um lugar como este?
— Eu só havia ido ao Nick’s Bar uma vez, ao lado do TBC, mas não me senti confortável. Sabe, ao ver minha irmã passar por uma situação difícil e logo em seguida ser pedida em casamento por um amigo meu muito querido, não sei, me senti muito feliz, creio que tive vontade de conhecer alguém, namorar até, algo impensável até há pouco tempo. No entanto, tenho tantos grilos em relação a mim, ao meu jeito de ser. Será que isso é possível?
— Claro que é! Um dos meus amigos, também professor, é muito parecido com você.
Eduardo tem muita sensibilidade, é um rapaz de boa índole. Costuma reunir colegas para jantares em seu apartamento aqui mesmo na São Luís — apontou para um prédio mais adiante.
— Acha que eu poderia ir com você a um desses jantares? Nunca conheci ninguém e...
— Precisa se soltar mais. Tem muito medo do que o mundo pense a seu respeito.
— Fazer o quê? Vivemos em sociedade.
— Contudo, a sociedade não pode reger sua vida. Ela deve ser pautada de acordo com o que você sente, com o que tem vontade de fazer.
— Às vezes, acho que estou agindo errado em pensar viver dessa forma — enfatizou.
— Preconceito. Precisa enxergar a vida de outro modo. Conhecer meu amigo vai ajudar você a se aceitar.
— Assim espero. Então, pode me apresentar ao seu amigo? — pediu.
— Sim. Com uma condição.— Qual?
— Gostaria que me apresentasse à sua irmã.
— Chegou tarde. Sílvia vai se casar. Uma pena, meu amigo.
— Não falo dela. Quero conhecer Soraia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 10:59 am

Jamil quase deixou o copo de guaraná ir ao chão, tamanha surpresa.
— Soraia? Ouvi bem?
— Sim. Eu a vi duas vezes no mercado. Nunca mais esqueci aqueles olhos negros, aqueles cabelos, aquele rosto parecido com o de Ava Gardner. Fiquei encantado.
Jamil sorriu.
— Soraia se parece com a actriz Ava Gardner. Só que minha irmã tem um génio estouvado.
Não é mulher fácil de conviver.
— Não há problema. Eu adoro desafios. Poderia arrumar uma maneira de nos apresentar?
— Claro.
Ergueram os copos de guaraná e brindaram.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 9:10 pm

Capítulo 8
Eustáquia levou a mão ao coração, tamanha emoção. Faruk levou a mão à cabeça, tamanho alívio. E Soraia teve vontade de levar a mão até o rosto de Sílvia, como se uma bofetada fosse capaz de diminuir o ódio que sentia naquele momento. Não adiantou. Ela teve uma espécie de vertigem e saiu em disparada para o quarto, subindo os degraus como um pula-pula.
— O que deu nela? — indagou Sílvia.
— Nada — respondeu Ivan. —Abrace seus pais.
Eustáquia começou a chorar, não contendo a emoção.
— É verdade mesmo? Vão se casar?
— Em alguns dias, no máximo. Vai depender de a papelada ser entregue a tempo no cartório, arrumar uma igreja com disponibilidade, enfim... Meus pais foram tomados de surpresa, mas, como não são muito de festas, aceitaram que façamos um evento pequeno somente para as duas famílias. Já aluguei o salão de um clube aqui na região da Vila Mariana. Tudo para facilitar.
— E onde vão morar? — quis saber Faruk.
— Meu pai tem um imóvel que estava à venda na Mooca. Decidiu nos oferecer como presente de casamento. É um belo sobrado, com três quartos, quintal, jardim, bem espaçoso.
Vamos nos mudar para lá e, aos poucos, Sílvia o reformará de acordo com seu gosto.
Viveremos bem.
— Parabéns! — felicitou Faruk. — Ao menos minha menina vai se casar com um bom homem, ter um lar e não vai desonrar o nome de nossa família.
— Já me sinto pai desse bebê — Ivan passou delicadamente a mão sobre a barriga de Sílvia.
— Eu gosto muito de sua filha, seu Faruk. Fique tranquilo porque seremos uma família muito feliz.
Faruk bem que tentou, mas uma lágrima teimosa escapou pelo canto do olho. Ele se aproximou de Ivan e o abraçou.
— Obrigado, meu filho. Obrigado por tudo o que está fazendo por nós e, acima de tudo, por
Sílvia e pela criança.
— Eu é que agradeço, seu Faruk. Acredite, estou feliz.
No portão de casa, ao se despedirem, Sílvia questionou:
— Tem certeza mesmo, Ivan? Não quer pensar mais um pouco?— Pensar em quê?
— É um passo decisivo para toda uma vida. Está se sacrificando por mim. Pode encontrar alguém e construir uma vida cheia de amor e...
Ele levou o dedo até os lábios dela:
— Estou me sentindo feliz. O que importa é que me sinto bem ao seu lado. O resto é resto.
Não estou à procura de um grande amor, Sílvia. Sabe o quanto sofri com a morte de Ivete.
Fechei meu coração para o amor. Desejei nunca mais me apaixonar. O que estou fazendo é em nome de nossa amizade. Ao menos, não ficaremos sozinhos.
— E — ela concordou, num muxoxo. — Nós dois já sofremos por amor, cada qual à sua maneira. Somos amigos que têm carinho e consideração um pelo outro...
— Além de admiração e respeito — ele completou. — São os ingredientes necessários para que uma relação entre duas pessoas se mantenha saudável e duradoura. Somos companheiros. Você verá, nós dois, juntos, vamos dar certo. E vamos cuidar muito bem desse menino.
Sílvia enrugou a testa.
— Como assim, menino?
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— Pela expressão do seu rosto — ele divagou, mirou o infinito e depois voltou a encará-la. — Eu peguei essa facilidade de observação do meu avô, também obstetra. Ele nunca errava o sexo dos bebés de suas pacientes. Eu também não costumo errar.
— Você tem um dom!
— Não sei se é dom. Não sou de crendices. Sabe que sou homem de ciência, não acredito em nada. Apenas que para tudo pode-se dar um jeito na vida. E mais nada.
Ela o abraçou com carinho.
— Não tenho como agradecer-lhe.
— Não precisa.
— Preciso. Serei grata por toda a minha vida. Você é meu herói. Ela o beijou no rosto e entrou em casa. Ivan passou o dedo na bochecha e sentiu agradável sensação de bem-estar.
Ao entrar no quarto, Sílvia encontrou Soraia sentada na banqueta em frente à penteadeira, escovando os cabelos negros e compridos. Parecia alheia ao ambiente.
Aproximou-se e perguntou:
— Está tudo bem?— Sim. Claro que está. Você vai se casar com o Ivan. Sabia desde sempre que eu gostava dele.
Tenho certeza de que vai se casar com ele só para me ferir.
— Imagine! Nem pensei nisso. Pelo amor de Deus! Soraia, foi um ato de desespero. Aceitei a proposta de Ivan porque não tenho saída.
— Muito conveniente essa saída. Você rouba minha única chance de ser feliz, ajeita a sua vida -— enfatizou — e danem-se os outros. Nem quer saber o que vai em meu coração.
Sílvia parou para reflectir. Sentou-se na cama um tanto sem graça.
— Tem razão, eu não pensei em nada, em ninguém. Mas você precisa admitir uma coisa.
— O que é?
— Ivan nunca deu bola para você. Já me confessou que você arrastava uma asa para cima dele, e ele fazia de tudo para fingir que não percebia suas investidas.
Soraia virou o pescoço e atirou a escova na direcção de Sílvia. A jovem abaixou-se a tempo. O objecto bateu com força contra a parede.
— É louca? Está querendo me matar?
— Se possível, adoraria. Pena que está grávida, caso contrário, eu partiria para cima de você agora mesmo e arrancaria seu couro.
— Eu só falei a verdade. Sabe que Ivan não gosta de você. Se ele gostasse, eu jamais aceitaria a proposta de casamento. Quer dizer, ele nunca me faria uma proposta dessas se estivesse apaixonado por você.
— Por que está atrapalhando o meu caminho?
— Eu?! Como assim? Nunca atrapalhei você.
Os olhos de Soraia brilhavam de maneira estranha. Ela aproximou--se de Sílvia de modo tão esquisito que a outra agarrou o travesseiro para proteger-se.
— Você sempre foi um estorvo. Sempre. Se atrapalhar meu caminho outra vez, juro que sou capaz de matá-la. Ele é meu, só meu!
Eustáquia entrou no quarto e anunciou:
— O lanche vai ser servido. É uma tarde alegre. Vamos celebrar. Jamil acabou de chegar e avisou que um amigo virá logo mais para se juntar a nós. Quer apresentá-lo a você, Soraia.
Ela balançou a cabeça e virou o pescoço para Eustáquia, mudando completamente o semblante e a voz:
— A mim?
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— Sim. É um cliente do mercado, um rapaz simpático. Sílvia aproveitou e saltou da cama, fugindo da irmã e juntando-se a Eustáquia.
— Vamos descer, mamãe. Estou pronta.
— E você, não vem? — quis saber Eustáquia.
Soraia sorriu de maneira estranha.
— Eu vou me arrumar. Já desço.
Enquanto mãe e filha saíam e deixavam o quarto, Soraia procurava algo para vestir e impressionar o amigo de Jamil.
— Amigo de Jamil, amigo de Jamil. Quem será?
Os pensamentos estavam confusos. Ao mesmo tempo que queria se vestir e se arrumar da melhor maneira possível, uma outra voz se sobrepunha aos seus pensamentos:
— Vamos impedir esse casamento. Ivan é meu.
Soraia, acreditando ser seus aqueles pensamentos, repetiu mecanicamente:
— Preciso impedir esse casamento. Ivan é meu.
Ao seu lado, um espírito em forma de mulher, corpo abatido, estava praticamente colado a Soraia. Ivete, a noiva de Ivan que morrera afogada anos atrás, estava ali, em espírito, perturbada e infeliz, influenciando e atrapalhando os pensamentos de Soraia.
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Capítulo 9
Após momentos excitantes na banheira, Dorothy acreditou que Olavo fosse tratá-la melhor.
De certa forma, ele a tratou. Contudo, durou até o momento de terminarem de se arrumar e saírem para jantar. Na recepção do hotel, ela disparou:
— Estoy feliz! Me gustaría un viño para celebrar.
Ele a fulminou com os olhos.
— Estou feliz. Eu gostaria de um vinho... — rebateu, em alto tom.
— Não foi o que eu disse?
— Não. Você falou em espanhol. Já disse que a minha língua materna é o português.
Ela levantou os ombros.
— Para mim, também já disse, é a mesma coisa.
— Que bom! Pois saiba que idiota, estúpida e ignorante têm o mesmo significado nos dois idiomas.
— O que quer dizer? Falou rápido. Não entendi.
— Vire-se, sabichona. Estou farto de sua ignorância e petulância. Só porque é norte-americana acredita ter o rei na barriga.
— Não tenho culpa se o meu país é o mais poderoso do Ocidente.
— Idiota, estúpida e ignorante — ele repetiu.
— O quê...
Olavo a deixou falando sozinha pisando firme. Meteu a mão com força na porta giratória, saiu do hotel, apanhou um táxi que estava parado logo na porta e desapareceu na primeira curva.
Dorothy ficou na recepção parada, atónita, sem reacção.
O gerente do hotel, educado, muito elegante, aproximou-se e, como havia presenciado a discussão, limitou-se a perguntar, em inglês:
— Quer que eu chame um táxi para a madame?
— Não, por favor. Gostaria que me levasse até o quarto — disparou num francês fluente.
Ele estranhou o pedido e ela emendou:
— Meu marido saiu em disparada e está com a chave do quarto.— Eu levarei outra para a madame.
— Vou subir. Espero pela chave — disse, atordoada.
— Claro, madame. Só um instante.
O gerente chegou até a porta. Dorothy chorava. Ele a levantou com delicadeza, abriu a porta e a conduziu para dentro do quarto. Enquanto isso, Olavo saltava do táxi nas imediações de Montmartre. Pagou o chofer, desceu e caminhou até alcançar as escadas que davam acesso à parte alta do bairro. Encontrou um bar frequentado por artistas e intelectuais. Entrou, sentou-se em uma banqueta, pediu uma bebida e, acendeu um cigarro.
Logo, uma mulher belíssima apareceu, engataram uma conversa, uma bebida, uns beijos, e Olavo, por ora, esqueceu-se da discussão com a esposa.
Passava das cinco da manhã quando ele entrou no quarto. Dorothy dormia a sono solto. Ele tirou os sapatos com delicadeza, se desfez das roupas e ficou só de ceroulas. Deitou-se ao lado dela e sentiu o hálito forte de bebida.
— Ela bebeu. Precisaremos conversar sobre isso quando voltarmos para casa. Não gosto que minha esposa beba.
Encostou a cabeça no travesseiro e logo adormeceu.
Paulo chegou, e Jamil o apresentou para os pais. Sílvia o cumprimentou e logo entabularam conversa.
— Seu irmão me disse que você vai se casar daqui a uma semana.
— Modo de dizer — explicou Sílvia. — Na verdade, será daqui a uns dias. Além da burocracia com os papéis, a casa onde vou morar com meu futuro marido precisa de pequena reforma,
alguns reparos, há móveis para serem entregues, ao menos os básicos, como os móveis de quarto e da cozinha. O resto, bem, compraremos aos poucos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 9:11 pm

— É um passo muito importante.
Sílvia o encarou e argumentou:
— Sei, mas não tive alternativa.
— Sempre temos.
— Não entenderia — ela não quis, obviamente, comentar sobre o estado de gravidez. Jamil tampouco havia revelado o assunto a Paulo.
— O que nos falta é coragem para assumir o que queremos e quem somos.
— Não entendi.— Vivemos em um mundo regido por valores muito atrelados a moral, a costumes que mudam conforme crenças, e valores são questionados por uma determinada parcela da sociedade. Quando colocados em xeque, a maioria se dá conta de que tais valores não eram tão importantes a ponto de ser seguidos e, por sua vez, perdem força, deixam de ter significado, não causam mais escândalo.
— As pessoas acabam por aceitar valores que não aceitavam antes.
— E até condenavam. Veja o caso de vocês, mulheres. Não podiam participar da vida política do país até há pouco tempo. O voto feminino só foi regulamentado com a Constituição de 1934.
— Ainda temos uma longa batalha pela frente. Temos muitos deveres, poucos direitos. Não somos reconhecidas profissionalmente —-e arriscou: — Também uma mulher não pode criar um filho sozinha.
— Você se engana.
Sílvia arqueou a sobrancelha.
— Como não?
— A maioria das famílias pobres, de baixa renda, é constituída por mães solteiras, ou cujos maridos as abandonaram. Eu frequento alguns bairros da periferia e encontro muitas famílias chefiadas por mulheres, sem maridos.
— Nossa sociedade condena uma mãe solteira.
— A sociedade a que se refere é este mundinho no qual eu e você vivemos, endurecido pelo verniz social, cheio de regras, em que não podemos ser nós mesmos. Precisamos representar um papel. Vivemos como robôs. Não é assim que eu gostaria de viver. Ao menos, é o que tento passar aos meus alunos.
— Você é professor, não?
— Sim. Dou aula de História. Sempre fui questionador, todavia, mudei minha ideia sobre a convivência em sociedade quando me separei de minha esposa.
— Foi casado?
— Sim.
— Foi duro desquitar-se?
— Até que não sofri tanto, mas Dalva sofreu bastante. Não foi justo o que lhe aconteceu.
Todas as amigas, incluindo a família, afastaram-se dela assim que o desquite saiu. Era como se Dalva tivesse uma doença altamente contagiosa. Foi isolada, marcada, passou a ser hostilizada por pessoas que antes a tratavam bem. E por quê? Porque deixou de ser casada? Ora, ela continuou sendo a mesma pessoa de sempre, boa, inteligente, honesta, alegre, digna e correta.— Por que não continuaram casados?
— Porque não nos amávamos. Casamos porque ela havia engravidado.
Sílvia sentiu o sangue sumir do rosto. Meio que de forma mecânica, quis saber:
— Seria indelicado querer saber sobre detalhes da gravidez de Dalva e sua reacção?
— Minha?
— Sim.
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