LUZ ESPÍRITA
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 2 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 9:11 pm

— Eu havia acabado de concluir a faculdade e tinha passado no concurso como professor universidade. Dalva estava com vontade de ser secretária de uma multinacional e cursar universidade. Nossa intenção era, eventualmente, casar. No entanto, nunca pensamos, num primeiro momento, em filhos.
— E então?
— Estávamos noivos na época. Fomos passar um fim de semana em Campos do Jordão. Os pais dela foram visitar amigos, veio uma chuva forte, eles não puderam retornar e ficamos sozinhos no chalé. Sabe como é, jovens, namorados, friozinho, chocolate quente, lareira...
Aconteceu. Ficamos juntos. Resumindo a história, casamos para não causar dissabores às famílias. Entretanto, no terceiro mês de gravidez, Dalva sofreu um aborto espontâneo.
— Sinto muito.
— Ficamos muito tristes. Como não tínhamos intenção de ter mais filhos até nos firmarmos em nossas carreiras, então, não tentamos mais. Permanecemos casados, mas notamos que éramos amigos, gostávamos de estar juntos, porém faltava o componente essencial para uma relação perdurar: amor. Vivíamos como irmãos, entende?
Sílvia sentiu novo estremecimento pelo corpo. Seria aquela conversa um sinal, um toque, para ela reflectir sobre a atitude que estava tomando?
Paulo prosseguiu:
— A atracção foi se esvaindo. Eu não sentia mais prazer em estar junto dela. E percebia que Dalva não tinha mais prazer em estar ao meu lado. Embora o desquite seja algo ainda pesado para a mulher, pensamos muito a respeito, mas vimos que seria a melhor decisão. Estávamos presos, encarcerados, e não queríamos terminar nossa vida sem nos dar a chance de tentar ser feliz, procurar um amor.
— Ficaram casados por quanto tempo?
— Três anos. Faz dois anos que estou desquitado. No começo deste ano, Dalva fez uma viagem a Porto Alegre, pois tem parentes lá. Conheceu um rapaz também desquitado, advogado. Apaixonaram--se. Vão se casar no Uruguai. Mais por uma questão de protocolo, de ritual, porque o casamento não é válido no Brasil. Decidiram viver juntos. Vão enfrentar os dedos acusadores da sociedade porque perceberam que sentem algo muito forte um pelo outro.
— Não sente ciúmes?
— Eu? Não. Muito pelo contrário. Estou feliz por Dalva. Desejo a ela toda a felicidade do mundo, assim como desejo também a você, a mim, a Jamil. Quanto mais lecciono aulas de história e revejo a trajectória da humanidade, mais sinto que em todas as eras procuramos pelo mesmo objectivo: viver bem, de preferência ao lado de alguém que valha a pena. Mais nada.
Sílvia mordiscou os lábios e pensou em Olavo. Ela tinha gostado tanto dele, depositado tanta esperança num relacionamento duradouro, mas ele a trocara por outra. Ele não levara em conta os sentimentos dela. Paulo tinha um belo discurso, mas a realidade era bem mais dura.
Ela precisava proteger o bebê que carregava no ventre. Precisava dar a ele um lar e, principalmente, um pai. Ela abriria mão de sua felicidade em prol da felicidade da criança.
— Afinal de contas, os pais não se sacrificam pelos filhos? — ela disse baixinho.
Paulo ia perguntar o que ela havia sussurrado, mas Jamil apareceu, puxou uma cadeira e sentou-se próximo.
— Parece que se tornaram melhores amigos.
— Não fique com ciúme — brincou Paulo. — Sílvia sempre será sua irmã de coração, a preferida.
— Gostei do Paulo — ela emendou. — É muito simpático.
— Não sabe o porquê de eu tê-lo trazido aqui.
Sílvia fez ar de interrogação.
— O que foi?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 9:11 pm

— Paulo quer conhecer Soraia.
— Sério? — Sílvia não conseguiu esconder o descontentamento. — Não tenho nada contra Soraia, mas ultimamente eu e ela não temos nos dado bem. Deve ser porque... — Sílvia não quis comentar.
— O que foi? — indagou Paulo.
— Nada. Creio que o meu santo não bate com o dela.
A voz de Soraia se fez presente:
— Há pessoas com as quais o meu santo também não bate. Eu acho isso triste, uma pena mesmo, porque eu adoraria que ele desse uma surra em um bando de gente.
Paulo voltou o rosto para trás e abriu largo sorriso.
— Você é mais linda do que eu havia guardado na memória. Mais linda do que Ava Gardner. Ela simpatizou com ele. Mesmo com a interferência de Ivete, Soraia se mostrava simpática.
Afinal, havia algo em Paulo que a tocava. Esse sentimento era imune a obsessão. Sorriu e estendeu a mão.
— Prazer, Soraia.
— Paulo, amigo de Jamil.
— Aceita uma bebida, um refresco?
— Um refresco.
— Venha comigo. O ambiente aqui está carregado. Há gente demais no recinto — comentou ao encarar Sílvia, pois, nesse momento, era Ivete quem se sobrepunha. Estendeu o braço para Paulo e foram em direcção à sala de jantar.
Jamil mexeu a cabeça para os lados.
— Não ligue. Sabe o quanto Soraia gosta de provocar você.
— Tenho pena do seu amigo.
— Paulo insistiu. Eu também fiquei surpreso quando ele me pediu para conhecer Soraia.
— Cada coisa! Bom, há chinelo para todos os pés, não é mesmo?
Jamil sorriu e concordou:
— Sim. Mas, me diga, como está seu coração?
— Não sei ao certo. Ainda anestesiado com tudo. A bem da verdade, para ser sincera, estou com muita raiva de Olavo. Nunca pensei que pudesse ser tão desonesto e baixo a esse ponto, de me trocar por um punhado de dólares.
— Está julgando-o. Não sabe o que aconteceu.
— E eu lá quero saber o que aconteceu, Jamil? Estávamos juntos havia três anos. Ele me prometeu mundos e fundos. De repente, sem mais nem menos, fico sabendo que se casou com outra e nunca mais voltará ao Brasil. É muita falta de carácter.
— Olhando por esse ângulo...
— Tem outro?
— Creio que há sempre um motivo por trás de tudo. Na vida da gente, nada acontece em vão.
Para mim, a união com Ivan vai ser muito mais proveitosa para você.
— Estava conversando com Paulo sobre casamento. Será que uma união sem amor é o melhor caminho que eu deveria tomar?
— Quem disse que não há amor nessa união com Ivan?— Eu não o amo.
— Não o ama nos moldes que aprendeu, da maneira como viu nos filmes bobos e açucarados que invadem nossos cinemas. Você só tem dezanove anos, Sílvia. Ainda há muita coisa para aprender, experimentar, sentir, apreciar. Não deixe que essa paixão por Olavo seja o molde, a referência, para a construção de seus verdadeiros sentimentos de afecto e amor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 9:11 pm

— Não foi paixão.
— Claro que foi. Porque você vivia ansiosa, aflita, sempre esperando por Olavo.
— Normal.
— Não é. A paixão é uma ilusão que faz você sofrer o tempo todo. Não há descanso. Muito pelo contrário, promove cansaço mental e físico. Já o amor traz alegria, ânimo e bem-estar.
Desde que Ivan lhe fez a proposta de casamento, noto um brilho diferente em seu olhar.
— Claro, Jamil. Ele me tirou de uma situação complicada. Está me oferecendo uma vida digna, de respeito.
— Não é isso. Há algo mais.
— Não entendo o que me diz.
— Você e Ivan ainda não perceberam. Mas vão perceber.
— O quê?
— O tempo vai dizer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 9:12 pm

Capítulo 10
O casamento de Sílvia e Ivan foi realizado na igreja São José, no Ipiranga, único local disponível para a celebração do matrimónio. A festa seguiu em um clube próximo à igreja. Foi uma recepção para poucos convidados, somente as famílias dos noivos e poucos amigos. Foi uma comemoração bonita, elegante, com direito a música ao vivo.
Soraia estava linda, com os cabelos presos num belíssimo coque, que deixava o pescoço à mostra. Usava um vestido verde-água que lhe caía bem, combinava com o tom da pele. Atraía a atenção dos rapazes. Estava sentada com os pais, quando Paulo se aproximou:
— Você me concederia esta dança?
— Sim, se desgrudar do Herculano.
Ele sorriu.
— Não precisa ficar com ciúme do meu amigo. Sabe que o trato como irmão.
Havia algo em Herculano que não agradava a Soraia. Era muito solto, falava alto, não tinha muitos modos. Ela o achava mimado. Pensando assim, levantou-se. De supetão, Herculano apareceu.
— Surpresa! — gritou, enquanto a abraçava pela cintura.
Soraia esbarrou na taça de champanhe, derramando o líquido sobre o vestido.
— Você me assustou.
— Brincadeira — tornou Herculano.
— Estúpido! — e, virando para Paulo, comentou: — Terei de lhe conceder outra dança. Agora vou ao banheiro para passar um pouco de água antes que manche o tecido. É um dos meus preferidos!
— Está bem.
Soraia saiu fulminando Herculano.
— Ela é nervosinha.
— Pega leve, Herculano — pediu Paulo. — Sabe que estou apaixonado por ela.
— Sim, mas é muito nervosinha. Jamais me apaixonaria por ela.
— Sorte minha! Faruk o convidou para juntar-se a eles. Ele se sentou entre Faruk e Eustáquia, e entabulou conversa animada com o casal.
Enquanto Soraia se dirigia para a toalete, Sílvia e Ivan dançavam.
— Como se sente, senhora Marcondes?
— Ainda estou tentando assimilar meu novo sobrenome — ponderou, olhando para a aliança dourada no anelar esquerdo.
— Agora é uma mulher casada. Logo será mãe!
—Teremos nosso bebê.
Ivan emocionou-se. Sílvia perguntou:
— O que foi?
— Você disse nosso bebê.
— Mas é. Daqui em diante, essa criança será minha e sua. Sempre. Jamais saberá que é filha de Olavo. É um pacto que estamos fazendo agora, Ivan.
— Não crê que seja justo contar a verdade quando a criança estiver crescida?
— Para quê? Para gerar confusão? Você é e sempre será o pai.
— Sei que seus pais jamais vão dizer nada, claro. Jamil também não. Minha família não sabe de nada sobre sua gravidez. Temo por Soraia.
— Ela tem um temperamento forte, génio difícil. Mas não é má pessoa. Ela não cometeria uma crueldade dessas.
— Tem certeza?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2024 9:12 pm

— Sinto que Soraia, lá no fundo, gosta de mim, mas há algo que nos impede de desenvolvermos afeição maior uma pela outra. Creio que é por essa razão que a vida nos juntou como irmãs, meias-irmãs. E, de mais a mais, ultimamente, tem alguma coisa estranha com ela.
— O quê?
— Não sei. Soraia tem tido comportamento estranho. Muda de humor com facilidade, está mais agressiva comigo. Nos últimos dias antes do casamento, estava cada vez mais irritadiça.
— Ciúme. Sabe que ela arrastava uma asa para mim.
— Não é isso, Ivan. Há algo nos olhos dela que me assusta. Soraia não está bem. É como se estivesse tomada por alguma coisa, sabe?
— Acredita nessas crendices?
— Às vezes, sim. Não sou tão ligada aos assuntos de religião. Fui baptizada quando bebê e, de vez em quando, frequentava a missa com minha mãe. Claro, acredito em Deus e faço minhas orações, à minha maneira. E você?
— Já lhe disse que não acredito em nada, excepto na ciência. Não gostaria que nosso filho crescesse dentro de normas preestabelecidas. Podemos conversar e explicar a ele sobre fé, as diferentes correntes religiosas, e deixá-lo escolher o melhor caminho a seguir nesse aspecto, caso isso a alegre.
— Concordo com você. Temos de ensinar, orientar e dar opções à criança. É muito importante conversar sobre assuntos espirituais com os filhos. Uma pena que o tema não seja discutido de forma clara. Em todo caso, devo lhe confessar algo muito estranho que nos aconteceu alguns anos atrás. E com Soraia.
— Diga.
— Logo que mamãe se casou com seu Faruk, Soraia teve dificuldade em nos aceitar como membros de sua família. Tinha pesadelos, acordava de noite, sonâmbula, vagava pela casa de olhos abertos e, certa vez, aproximou-se de minha mãe e a xingou em árabe. Seu Faruk estava presente e arregalou os olhos.
— Por quê?
— Ele jurou que quem falava daquele jeito era a falecida esposa dele. Era como se Soraia tivesse incorporado a própria mãe, e esta, indignada com o segundo casamento do marido, estivesse ali para tirar satisfações.
— É fantasioso. A mulher estava morta. Estamos falando em possessão? Em algum distúrbio, desequilíbrio? Algo do tipo?
— Não sei ao certo. Depois de falar, Soraia desmaiou. Uma vizinha amiga de mamãe nos indicou uma benzedeira. Ela nos afirmou, na época, que Soraia fora tomada pelo espírito da própria mãe. Defumou nossa casa, orientou Soraia a acender uma vela de sete dias, rezar um determinado salmo e fazer outras orações pela alma da mãe, durante o período em que a vela estivesse acesa. Garantira, na época, que, depois que a vela se apagasse, a mãe de Soraia seria encaminhada a um local de socorro no mundo espiritual.
Ivan sorriu incrédulo e moveu a cabeça para os lados.
— Sei que presenciou esse evento, contudo, confesso que não acredito no sobrenatural.
Sílvia deu de ombros e continuaram a dançar.
Enquanto eles dançavam, na toalete, Soraia passava um pano com água sobre o tecido.
— Não pode manchar. Não posso perder um vestido que acabei de receber da costureira.
Tudo culpa de Herculano. Idiota. É um vestido tão lindo...
Ela levantou o rosto e olhou para sua imagem reflectida no espelho. De repente, não era seu rosto que via, mas outro. Soraia sentiu tudo girar à sua volta e começou a resmungar: - Ivan não podia se casar. Ele ia se casar comigo. Prometeu que eu seria única. Foi só eu me afogar e o tempo passar. Pronto. Agora está casado. Ele me traiu.
Uma moça que acabava de entrar no banheiro perguntou:
— Precisa de ajuda?
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 2 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 11:18 am

— Só se for para te matar. Saia da minha frente!
A menina arregalou os olhos assustadíssima. Soraia saiu feito um tornado, rodopiando pelo salão, até alcançar Sílvia e Ivan. Parou a dança do casal e encarou Sílvia, olhos arregalados.
— O que foi, Soraia? — ela quis saber.
— Vadia! — Soraia arrancou o arranjo floral da cabeça de Sílvia com força. — Nunca deveria ter aceitado a proposta dele.
Ivan a segurou pelos braços:
— Isso são modos, Soraia? Não acha que está passando dos limites?
Ela o mirou com fúria.
— Não está me reconhecendo, Ivan?
— O quê?
— Sou eu. Acha que só porque me afoguei e morri não existo mais?
Ele soltou os braços de Soraia e gelou. As pernas não se moviam. Ela prosseguiu:
— Continuo viva. Mais viva do que nunca. Você prometeu, antes de eu dar aquele mergulho fatal, que iria me amar pelo resto da vida. Jurou que jamais se casaria com outra. E olha só o resultado! Como fui trouxa. Acreditei em suas palavras. Você me enterrou com o seu anel de noivado, me traiu...
Soraia não terminou de falar. Caiu sobre si e desmaiou ali no meio do salão. Os pais vieram correndo, assim como Jamil e Paulo. Herculano deu de ombros e se deleitava com a situação. Sílvia encarou a mãe e afirmou:
— Tenho a impressão de que Soraia está passando pelo mesmo processo da época em que você se casou com seu Faruk. Lembra-se?
Eustáquia levou a mão à boca.
— Acha que ela está tomada? — perguntou baixinho.
— Estava. Quando acordar, não vai se recordar de nada. Entretanto, precisamos levá-la para atendimento espiritual.
Jamil pegou Soraia nos braços e a conduziu até um sofá. Vieram com panos encharcados em água fria e sais. Soraia foi despertando aos poucos.— O que aconteceu? Fui ao banheiro limpar o vestido e tudo ficou escuro, não me lembro de mais nada...
Ivan olhava tudo de maneira perplexa. Sílvia aproximou-se dele e passou o braço pela cintura.
— E agora, acredita no sobrenatural?
— Nossa! Se me contasse, eu não acreditaria. Mas posso jurar que, por instantes, vi Ivete na minha frente.
— Sua ex-noiva, que morreu afogada.
— Sim... Sim... — ele balbuciou. — Como pode ser possível?
— Pelo pouco que sei, de algumas conversas com Jamil, a vida continua depois da morte do corpo. Creio que hoje tivemos uma prova.
— E tem o anel...
— Que anel, Ivan?
— Nada — ele estava transtornado. Ninguém sabia daquilo. Na hora de fecharem o caixão, ele tirou a aliança de noivado da mão e a pousou delicadamente sobre as mãos de Ivete. — Precisamos saber mais a respeito.
— Claro — ajuntou Sílvia, sem entender direito o que tinha acontecido. — Temos de ajudar Soraia e também prestar auxílio a Ivete. Creio que chegou o momento de abrir nossa mente ao conhecimento espiritual.
Ivan balançou a cabeça de maneira positiva, suando em bicas, ainda perplexo com tudo o que presenciara.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 11:18 am

Capítulo 11
Dois dias depois, Jamil atendia uma cliente que era ligada aos assuntos espirituais e, de vez em quando, conversava com ele sobre o tema.
— Dona Leocádia, preciso conversar um minuto a sós com a senhora.
— Claro.
— Teria um tempo para mim, agora?
— Estou com a tarde livre. Podemos conversar à vontade. Mas você está sempre ocupado.
— O movimento hoje está tranquilo. Pedirei a meu pai e dona Eustáquia para reforçarem o atendimento.
— Está bem.
Jamil explicou aos pais por alto sobre o motivo de ir ter com Leocádia, pediu licença e saiu.
Em poucos minutos, estavam em um gracioso café. Sentaram-se, fizeram os pedidos, e Jamil tomou a palavra:
— Sei que é espírita e poderia nos ajudar.
— Sim. Estudei espiritismo por muitos anos. Depois, quando me casei, meu marido me levou para conhecer o Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento. Lá, eu tive maior entendimento das questões do espírito.
— Não conheço.
— É uma ordem esotérica, cujos princípios fundamentais estão baseados na Harmonia, no Amor, na Verdade e na Justiça. Esses ideais são as colunas que sustentam a filosofia da ordem e constituem a tónica de suas actividades.
— Muito interessante.
Leocádia tinha um sorriso encantador. Prosseguiu, voz suave:
— O Círculo é a primeira ordem esotérica estabelecida no Brasil e seu propósito é estudar as forças ocultas da natureza e do homem, além de promover o despertar das energias criadoras latentes no pensamento humano. A mente humana é capaz de grandes feitos!
— Adoraria conhecer.
— Posso levá-lo a uma reunião para não filiados. Se gostar e se interessar, poderá filiar-se. É frequentado por pessoas de qualquer profissão, com grande vontade de melhorar a si próprias e de fazer deste mundo um lugar melhor para vivermos. — Depois me passe dia e horário de reunião para eu poder ajeitar minha saída. Como sabe, trabalho até tarde no mercado.
— Sim, sei. E qual é o problema que o trouxe até mim?
— Desde adolescente me interesso por assuntos de ordem espiritual. Li alguns livros de Allan Kardec, contudo, nunca frequentei centro espírita. Acredito que conhecer e estudar as forças ocultas da natureza e do homem seja um grande passo a dar em minha vida, no entanto, no momento, estamos passando por um problema, digamos, de ordem espiritual lá em casa.
— O que ocorre?
— Tenho a impressão de que minha irmã Soraia está sendo influenciada por um espírito. Pelo que já li a respeito, é possível, certo?
— Sim. O mundo espiritual é real. Só porque não o vemos, não quer dizer que não existe.
Ocorre que nós, humanos, somos sensíveis, alguns em grau maior ou menor. Todos percebem o mundo espiritual, que eu prefiro chamar de mundo das energias. Sua irmã tem uma facilidade maior de captar essas energias.
— Mesmo que elas sejam de uma pessoa morta?
— Chamamos de morto quem deixa o corpo físico; contudo, o espírito é eterno e continua vivo em outra dimensão. O que morre é o corpo de carne, este que temos para viver no mundo — ela tocou os próprios braços para demonstrar.
— Então Soraia tem o que se conhece por mediunidade?
— Todos nós temos. Ela tem um grau de sensibilidade maior. Há muito tabu e preconceito diante da mediunidade, como se ela fosse algo ruim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 11:18 am

— E não é?
— De forma alguma. É um instrumento precioso, uma ferramenta que pode ajudar bastante no progresso do ser. Se bem utilizada, pode trazer muitos benefícios para a pessoa.
— Como Soraia pode fazer para se livrar dessas influências que lhe causam mal-estar?
— A mediunidade só se equilibra quando a pessoa vence a negatividade e deixa de ver maldade em si, no outro, no mundo. Como vê, não é um trabalho fácil.
Jamil mordiscou o lábio antes de bebericar seu café.
— Vai ser difícil. Soraia é nervosa, gosta de uma briga, está sempre amarga.
— Porque não está feliz com o que tem, com o que é. Sua irmã sofre de auto-desprezo, sente-se desvalorizada. Se você é muito exigente consigo, muito crítico, não se gosta, quem vai gostar? Como pode querer que os outros gostem de você? Se você está dividido, travando uma guerra interior, não vai atrair nada de bom. Se Soraia estivesse de bem consigo e com a vida, atrairia bons espíritos ao seu lado e manteria os atormentados a certa distância. Mas, como anda perturbada, vai atrair outro perturbado. É a lei da afinidade. As palavras tocaram fundo em Jamil. Parecia que Leocádia dizia aquilo tudo para ele. Pensaria sobre o assunto depois, porque agora precisava ajudar sua irmã. Indagou:
— O que podemos fazer? Levá-la a um centro espírita para tratamento?
—Pode ser. Um tratamento de passes ajuda bastante, assim como um tratamento de desobsessão. Mas de nada vai adiantar se Soraia não mudar o seu jeito de ser. Se ela permanecer na amargura, no negativo, vai atrair outros espíritos afins e terá de passar o resto da vida em sessões de desobsessão. Veja, você não pode depender de tratamentos espirituais para viver em equilíbrio. A ajuda espiritual é essencial quando você não está bem, mas, assim que a recebe, precisa fazer a sua parte, ou seja, mudar sua maneira de ver a vida, de encarar os fatos que o surpreendem, procurar ser mais positivo, mais alegre, aceitar-se como é, colocar-se em primeiro lugar...
— Vivemos em um mundo que prega tudo ao contrário. Não podemos nos colocar em primeiro lugar, devemos sempre fazer a vontade dos outros e sufocar nossos desejos.
— Diz isso porque gostaria de expressar seu amor por outra pessoa de forma explícita e a sociedade condena sua forma de amar.
Jamil levou um susto. Como Leocádia poderia saber que ele era gay? Ela passou a mão sobre a dele, tranquilizando-o:
— Meu filho João Carlos é como você. Eu o amo do jeito que ele é, porque gostar não impõe condições. Quem ama, ama! — ela sorriu. — Eu fui mãe muito cedo. Tive João Carlos aos dezoito anos. Ele está com vinte e dois. Por isso, vou lhe pedir que me chame de Leocádia.
Deixemos os formalismos de lado, por favor.
— Pode deixar, Leocádia! Por onde anda seu filho?
— Adoraria apresentá-lo a você. Creio que se dariam muito bem. Contudo, João Carlos decidiu terminar os estudos no exterior. Vive em Londres com um amigo, George.
— Parece que você não está muito feliz com essa união.
— Não é isso — ela divagou. — João Carlos é alegre, divertido. Creio que tenha arrumado companhia por estar se sentindo só. Fui passar o Natal com ele, ano passado. Apresentou-me a George. É um rapaz simpático, elegante, trabalha na rádio BBC. Mas não combinam. Algo me diz que João Carlos ainda vai voltar e ser feliz aqui. Um dia... — Leocádia balançou a cabeça e mudou de assunto: — Há um centro pequeno, não muito longe da casa de vocês, que poderá atender sua irmã para sanar essa emergência. Quando poderei visitá-la?
— O quanto antes, por favor.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 2 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 11:19 am

Capítulo 12
De volta a Boston, Dorothy e Olavo começaram a enfrentar os desafios da vida a dois. E, de certa forma, a vida de um casal norte--americano, naquela época, não era tão diferente da vida de um casal brasileiro no que diz respeito à rotina do dia a dia.
Olavo esperava por uma esposa ao estilo da época: cordata, que preparasse o café da manhã, cuidasse da casa, de suas roupas, cozinhasse, jamais reclamasse, enfim, que fosse autêntica senhora absoluta do lar.
Dorothy, como era de se esperar, não fazia nada a que fosse obrigada, não seguia regras nem protocolos. Acordava, retirava os bobes dos cabelos, os cremes do rosto. Passava um bom tempo arrumando--se entre banheiro e closet para, quase duas horas depois, descer belíssima para o café. Limitava-se a colocar duas torradas na torradeira e fazer um café instantâneo.
Olavo indignou-se:
— Cadê os ovos mexidos? E a mesa pronta?
— Não posso estragar minhas unhas. Além do mais, não o quero gordo. Nada de bacon, ovos, manteiga. Aqui sempre teremos um café da manhã frugal. Café e torradas com geleia. Mais nada. Se seguir essa rotina, você vai me agradecer daqui a alguns anos.
Ela foi até a geladeira, pegou um pote de geleia, colocou-o sobre a mesa. Olavo bufava:
— Isso não está certo.
— Não sei quem determinou o que é certo ou errado dentro de casa. Na minha casa — ela enfatizou — eu dito as regras. E também trabalho. Dividimos as tarefas.
— Você é a esposa. Sua obrigação é cuidar da casa.
— O mundo está mudando. Até o fim da guerra esse discurso servia. Agora, não mais.
— Você pode realizar as duas tarefas, cuidar da casa e trabalhar. É seu papel — ele foi até a sala e voltou com uma revista. Abriu-a e apontou com o dedo: — Leia. Aqui está o guia da boa esposa. Uma delas: “Ele é o dono da casa e você não tem o direito de questioná-lo”. Isso quer dizer o quê? Que quem manda aqui sou eu.
Dorothy deu uma gargalhada. Apanhou a revista e mexeu a cabeça para os lados.
— Só pode ter sido a empregada que trouxe essa revista aqui para casa. Eu jamais compraria um lixo desses. Não sou esse tipo de mulher submissa.
— Mas tem de desempenhar esse papel. É o que toda mulher casada faz.— Papel? Acha que eu sou mulher de desempenhar papel? Olhe bem para mim, querido — e disse num português impecável: — Não sou sua empregada! — e rasgou a revista em vários pedaços, atirando os pedacinhos de papel sobre a mesa.
— Isso é um absurdo! Vou falar com seu pai.
— Fale com papai. Pode marcar entrevista com o presidente Eisenhower. Ou então, entre em contacto com os soviéticos. Vivemos tempos de tensão, discuta minha insubordinação com Nikita Kruschev.
— Não pode falar comigo nesse tom.
— Falo e “desfalo”, desautorizo, desmando, destudo! Já disse, você se casou comigo, mas não manda em mim — ela consultou o relógio e o encarou: —Agora preciso ir. Fiquei de encontrar uma amiga para discutirmos a possibilidade de, juntas, montarmos um ateliê.
Foi a vez de Olavo gargalhar.
— Você, filhinha de papai, vai montar um ateliê! Essa é boa. Pensa que está em Paris?
— Não. A nossa viagem à França me deu motivação. Fui visitar o ateliê de madame Chanel. Se ela reabriu um ateliê depois da guerra, aos setenta anos de idade, por que eu, aos vinte e um, também não posso?
— Para começar, porque você não tem a competência de madame Chanel.
— Você não tem ideia do que sou capaz, Olavo — falou, novamente, em bom português, e saiu batendo os saltos e a porta, com força.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 2 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 11:19 am

Olavo ficou olhando para a porta e perguntou para si mesmo:
— Será que valeu a pena ter me casado com ela por conta do dinheiro? Será que fiz a coisa certa?
Dorothy encostou seu carrão em frente a uma bela casa, toda ajardinada, com flores de várias espécies. Tirou os óculos escuros e o lenço que cobria os cabelos, agora alourados e cacheados. Mudara o corte e a cor durante a lua de mel.
Aspirou o perfume que vinha do jardim. Sentiu leve enjoo, mas não perdeu a pose. Sorriu.
Tocou a campainha e foi atendida por outra loura, bem mais alta e esguia. Esther era uma mulher mais velha, na casa dos quarenta, divorciada, sem filhos.
Quando jovem, estudara Artes na Universidade de Chicago e decidiu, na época da Depressão, viver na Europa. Mergulhou no mundo da moda, apaixonou-se pelo ofício e foi manequim de
Nina Ricci. Conheceu o costureiro Rousseau Bocher, da grife Mainbocher, durante uma apresentação m que desfilava para Nina. Ele estava para abrir uma filial de sua maison em Nova York e convidou Esther para gerenciar o estabelecimento. Ela retornou aos Estados Unidos, ficou doze anos trabalhando com a grife até decidir trabalhar por conta própria. Fazia cinco anos que estava debruçada sobre tecidos, cores, texturas, tendências, modelos de roupas.
Esther desejava que a mulher pudesse ter mais liberdade para se vestir. Embora apreciasse o figurino de sua época, achava que os vestidos lindos e maravilhosos escravizavam a mulher.
Desejava um dia chegar a “menos sem perder o glamour”.
Abraçou Dorothy com efusividade e a convidou para entrar. Passaram por uma sala ricamente mobiliada e entraram em outra, que Esther usava como ateliê.
— Não se incomode com a bagunça. Passei a noite toda tentando uma maneira de diminuir o comprimento das saias.
Dorothy apanhou uma cartolina e admirou-se com o desenho:
— Pensa em encurtar tanto assim? Não acha um tanto ousado?
— Passar da altura dos joelhos? Não. Precisamos de movimento, de liberdade para nosso corpo. Esse monte de panos nos impede de fazer tanta coisa. Veja você. Para manter essa saia rodada, precisa de anáguas, corseletes, é tudo muito sofrido. Como faz para se sentar?
Dorothy olhou para seu vestido, todo engomado, com saia rodada e, de forma elegante, sentou-se na poltrona, meio que de lado.
— Vê como, de certa forma, é desconfortável? O New Look criado por Dior é belíssimo, mas não é prático para o dia a dia. Quero algo mais simples, porém que não perca a elegância.
— Jamais vi uma mulher vestindo uma saia tão curta.
— Em breve verá. Não percebe uma onda de mudança no ar? A inesperada morte de
Christian Dior deixou o mundo da moda de pernas para o ar. Novas tendências estão surgindo.
Logo outros sectores também vão começar a mudar. A música que toca nas rádios já está diferente.
Dorothy ficou pensativa por instantes.
— Concordo com você. Senti algo diferente em Paris. E, por falar em Paris, preciso lhe confidenciar algo.
— O que é?
Dorothy contou as peripécias da última noite e Esther a olhou de maneira enigmática:
— Às vezes, não sei quem você é.
— Por que diz isso?
— Eu sou uma mulher à frente do meu tempo, não estou presa a valores, a nada. Luto pela igualdade dos sexos. Mas você consegue me surpreender.— Ora, eu também sou uma pessoa à frente do meu tempo.
— É impulsiva, Dorothy. A impulsividade pode levá-la a cometer sandices. O que fez em Paris pode ter consequências devastadoras em sua vida.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 2 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 11:19 am

— Está sendo dramática. Não foi nada de mais. Só quis me vingar, mostrar a Olavo que eu faço o que quero, do jeito que quero.
— Só que não precisa correr riscos.
— Sou assim, ora. Sempre fui de correr riscos.
Esther encarou-a por instantes e acendeu um cigarro. Em seguida, sentou-se numa banqueta, apanhou uma caneta e convidou Dorothy:
— Pegue uma cadeira. Sente-se ao meu lado. Vou ensiná-la a desenhar os modelos.
Dorothy assentiu.
— Antes, vou ao seu quarto me trocar. Realmente este vestido incomoda sobremaneira.
Posso usar uma calça comprida?
— Fique à vontade.
Dorothy saiu do ateliê, subiu as escadas, passou pelo corredor e entrou no quarto da amiga.
Enquanto se vestia, sentiu tontura e mal--estar, espécie de vertigem. Correu para o banheiro.
Depois de jogar água no rosto e enxugá-lo com uma toalha, disse convicta para sua imagem reflectida no espelho:
— Tenho certeza. Estou grávida.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 2 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 11:19 am

Capítulo 13
Fazia dois meses que Soraia tinha se submetido a tratamento espiritual em um centro espírita próximo de casa. Ainda estava um pouco mexida com o ocorrido, pois nunca participara de uma sessão de desobsessão e, na primeira à qual fora convidada a participar, ficara semiconsciente e sabia que não era ela quem estava falando:
— Por que me trouxeram aqui?
— Porque chegou a hora de receber ajuda — respondeu a dirigente do trabalho.
— Não quero ajuda. Quero Ivan.
— Não é possível, por ora. Estão em dimensões diferentes.
— E daí? Ele é meu. Prometeu casar-se comigo. Tem de cumprir o que prometeu. Não vou enquanto não nos casarmos.
— Já lhe disse, você está em outra dimensão. Seu corpo físico morreu. Agora vive em espírito, Ivete. Precisa aceitar a realidade e seguir sua nova vida, cheia de possibilidades incríveis.
— Quais possibilidades? Eu não tenho nada a perder. Só tinha o amor de Ivan.
— Há alguém aqui que muito a estima e está com muita vontade de ajudá-la a se recompor.
— Não me lembro de ninguém que estaria com vontade de ajudar-me.
A dirigente encostou uma mão na testa de Soraia e outra na nuca. Em seguida perguntou:
— Não se recorda de seu primo Aristides?
— Sim, claro! Adorava ir à casa dele. Mas Aristides morreu quando eu era pequena.
— Ele também a adorava. Está aqui.
— Impossível.
— Olhe melhor. Na sua frente.
O salão ficou em silêncio por instantes até que Soraia, em prantos, estendeu os braços para a frente, olhos abertos e murmurou:
— Aristides, meu primo amado, quanta saudade! Estou tão cansada. Por favor, leve-me com você.
Logo, Soraia remexeu-se na cadeira e fechou os olhos. Alguns minutos depois voltou e não se recordava direito do que ocorrera, somente de alguns flashes. Deram-lhe um copo com água, foi-lhe indicada a leitura de Nos domínios da mediunidade e o recém-lançado Acção e reacção, ambos de Chico Xavier, e também, como tratamento complementar, sessões de passe por algumas semanas.
Ela apanhou um dos livros que ganhara e recomeçou a ler. Estava mudada. Desde o tratamento, Soraia passara a tratar as pessoas de forma mais cordata. Claro, tinha sua personalidade forte, mantinha ainda seu génio um tanto irascível — afinal, eram características suas -, mas estava mais serena, até mais alegre.
Depois que fora afastada das influências de Ivete, passara a ver Ivan de outra maneira. Ela gostara dele, contudo, agora que se via cortejada por Paulo, percebia o que era ser valorizada e querida por alguém.
De certa forma, Soraia também começava a sentir-se interessada por ele. Nesse dia ele a convidara para saírem. Era um sorvete, nada de mais. Paulo ficara de buscá-la por volta das cinco da tarde.
Faltava uma hora para o encontro. Soraia bem que tentava concentrar--se na leitura edificante, todavia, olhava o relógio de minuto a minuto.
A campainha tocou e ela correu para atender. Fez um ar de desagrado porque não era ele.
Cumprimentou a visitante com um beijo e um abraço.
— Como vai, dona Leocádia?
— Vou bem. Vim saber de você.
— Estou bem. Entre. Não poderei me demorar com a senhora porque Paulo virá me buscar daqui a uma hora para sairmos.
— Não, querida. Minha visita será rápida. Fique tranquila.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 2 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 11:20 am

— Aceita uma água, um café?
— Não, obrigada. Quero saber como você está se sentindo, depois do tratamento espiritual.— Estou bem — Soraia respondeu enquanto as duas se ajeitavam no sofá.
— Vejo que está com o semblante mais sereno, mais corada. Não sente mais as influências perturbadoras de Ivete?
— Deus me livre! — Soraia bateu três vezes sobre a mesinha de centro. — Nem quero. Dela nem de ninguém.
— Para isso, sabe que precisa manter bons pensamentos.
— Bem que tento! Não é fácil. Pela minha cabeça passam mil pensamentos a todo momento.
Nem todos são bons. Eu tento me afastar deles, contudo, há alguns que tentam colar em mim.
— Nem todos os pensamentos que passam são seus. — Como não? Se estão aqui — apontou para a cabeça — é porque são meus.
— Engana-se. Como temos sensibilidade, captamos e transmitimos pensamentos. Somos como antenas de rádio, que captam sinais da emissora e os emitem como ondas para as casas das pessoas.
— Quer dizer que nem tudo o que penso...
— Pode ser de alguém que esteja muito ligado a você, de algum espírito. Por isso, é importante seleccionar nossos pensamentos.
— Fica difícil saber o que é meu e o que não é. Não sei como fazer essa separação.
— Realmente é bem difícil — concordou Leocádia. — Há uma maneira bastante prática de você separá-los.
— Como?
— Faça assim: todo pensamento que lhe causar bem-estar, tome--o como seu; todo pensamento que lhe causar mal-estar, que não lhe fizer bem, for negativo, recuse, aja de maneira como se não fosse seu, rejeite-o. É mais simples e fácil para educar nossa mente.
— Uma maneira bem interessante de trabalhar a cabeça. Mas vou sempre ver tudo de maneira positiva? E as situações dramáticas que acontecem à minha volta? Não posso deixar de percebê-las, dona Leocádia.
— O sofrimento sempre estará presente no mundo enquanto as pessoas se nutrirem de ilusões. Não podemos evitar o sofrimento dos outros. Cada um precisa passar por suas próprias experiências para aprender a amadurecer.
— Gostaria de sofrer menos. Não queria passar mais pela experiência pela qual passei há pouco. Por mais que tenha minhas diferenças com Sílvia, sei que ela é uma boa pessoa. Desejo que ela e Ivan possam ter uma boa vida em comum.
— Cabe a você, Soraia, mudar sua maneira de ver a vida, de julgar, de entender que nem tudo é como desejamos. Você nutriu por muito tempo um sentimento não correspondido por Ivan.
Sentiu-se rejeitada e ferida em seus sentimentos, mas veja, você criou expectativas e ilusões.
— Isso é.
— Acreditar em ilusões, dar força para o negativo é causa de todos os sofrimentos que afligem a humanidade. Se você quer ser feliz, de verdade, precisa pensar no bem. Sempre que tiver um pensamento ruim, não lhe dê força.
— Estou aprendendo. Agora que Paulo apareceu em minha vida, tenho reflectido sobre sentimentos verdadeiros. O que sentia por Ivan era capricho. Creio que o que estou sentindo por Paulo é um sentimento de amor verdadeiro.
— Porque Paulo gosta de você do jeito que é. Ele a aprecia com seu temperamento forte, com seu jeito ousado de ser.— Além do mais, ele me faz rir. Nunca alguém me fez rir. E Paulo, com suas piadas sobre História, me faz cair na risada. Meu pai estava um pouco chateado com o namoro porque Paulo é desquitado e não poderemos casar na igreja.
— Convenções sociais. O mais importante é que vocês se amam. Eu vim aqui para ver como está e, pelo jeito, percebo que melhorou bastante. E vai melhorar muito mais.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 2 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 11:20 am

— Por que diz isso?
— Porque, quando nos damos a chance de melhorar, a vida também começa a nos dar boas. Também vejo um espírito ao seu lado, feliz.
Soraia olhou ao redor, um tanto assustada.
— Não precisa ficar preocupada — acalmou Leocádia. — Trata--se de um espírito em forma de mulher, amiga, que a ama muito.
— É um anjo da guarda?
— Creio que espécie de protectora. Está lhe mandando um beijo e agradecendo.
— Por quê? Não me lembro de ter feito nada ultimamente.
— Nunca sabemos. O importante é você manter seu coração limpo e ter sempre em mente que Deus é amor. O sofrimento é uma ilusão que o tempo vai arrancar. Um dia, Soraia, o homem compreenderá que foi criado para a alegria, o amor, a felicidade, a beleza — Leocádia a beijou no rosto e se despediu.
O espírito que ali estava também a beijou no rosto e sussurrou:
— Vim me despedir, querida. Logo vai se iniciar o meu processo de reencarne. Não vou mais perturbá-la — disse Ivete, com sinceridade. — Creio que nos reencontraremos daqui a alguns anos. Eu a estimo muito, minha amiga. Descobri, aqui com o primo Aristides, que tive ligação com você, Sílvia e Ivan no passado. E agora prometo que tudo vai ser diferente. Para melhor!
Não serei sua filha, mas nossa ligação será muito forte.
Soraia sentiu, naquele momento, uma indescritível sensação de bem-estar. Sentou-se no sofá, passou a mão pelo rosto e depois, instintivamente, pela barriga. Embora aquele espírito, em particular, não fosse voltar ao mundo como filho seu, despertou em Soraia uma vontade imensa de ser mãe.
— Espero que Paulo não demore muito para pedir a minha mão em casamento — ela suspirou.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 11:20 am

Capítulo 14
Sílvia andava a passos lentos. A dor mal a deixava caminhar. Ivan segurava a maleta com uma mão e a mão dela com a outra, suando, aflito. Ela, com dor, tentava acalmá-lo:
— Vai dar tudo certo. Foi só a bolsa que estourou.
— Fala como se fosse a coisa mais natural do mundo.
— E é. A bolsa estourou. Agora vamos para a maternidade. O bebê vai nascer. Você, como obstetra, deveria estar acostumadíssimo.
— Agora eu sou o pai. O obstetra ainda não apareceu.
Sílvia sorriu e entraram no carro. Chegaram ao hospital e, horas depois, Sílvia dava à luz um menino saudável e com fartos cabelos pretos. Recebeu o nome de Fernando.
Ivan sentia-se o mais feliz dos homens.
— É lindo! Ele se parece tanto com você!
— Imagina. Mal abriu os olhinhos — Sílvia murmurou, enquanto virava-se na cama, dolorida.
— Tem os seus traços. A boca, o nariz...
— Deixe-o sentir-se feliz — pediu Jamil. — Ivan fez o parto, trouxe Fernando à vida. Merece ficar nesse estado pleno de felicidade.
— Porque não foi ele quem pariu — interveio Soraia, sentada num canto do quarto.
— Obrigada — agradeceu Sílvia. — Ao menos tenho alguém para me defender.
— Impressionante — comentou Jamil. —Agora essas duas viraram amigas de infância.
— Nem é para tanto — protestou Soraia. —Apenas estamos mais tolerantes uma com a outra. Dando uma trégua à turbulência.
— Isso mesmo. Estamos num momento de paz — completou Sílvia.
— Essas mulheres, vai entender o que se passa na cabeça delas! — ajuntou Ivan.
Eles riram. Paulo entrou no quarto, acompanhado de Herculano, carregando um buquê de flores. Naquela época, podia-se entrar no quarto da gestante com flores, inclusive acender um cigarro no recinto. Outros tempos...
Soraia, assim que viu Herculano, fez uma careta. Definitivamente, o santo dela não batia com o dele. Paulo entregou o buquê para Sílvia e disse, emocionado:
— Fico contente que tudo tenha dado certo. — Quem sabe você não se anima? — sugeriu Sílvia, cheirando as rosas vermelhas.
— Não sei ao certo. Eu nunca tive muita vontade de ser pai.
— Será que não era mais por influência de sua ex-esposa?
— Não sei ao certo.
— Claro que sim — interveio Herculano. — A Dalva era chata, não gostava de crianças.
— Por que defende tanto seu amigo? —- quis saber Soraia.
— Por que é tão nervosinha? — retrucou Herculano.
Paulo ajuntou:
— Vocês dois, por favor. Agora não é hora de discussão.
Soraia e Herculano fulminaram-se com os olhos injectados de fúria. Paulo prosseguiu:
— Sabe, Sílvia, o que ele diz sobre Dalva pode ser verdade. Era ela quem não queria filhos. Sei que, antes de vir para o quarto, passei no berçário e não pude deixar de me emocionar com aqueles bebés. Confesso que deu uma vontadezinha de ter um.
— Um. Só um — a voz de Soraia soou autoritária. — Criar um filho exige muito da gente. Sei que uma família grande, com irmãos, é lindo de se ver, só que exige demais dos pais. Devo ser franca. Eu não tenho estrutura para ter mais de um filho.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 2 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 8:27 pm

— Ainda bem que não somos parentes. Eu poderia ser filho do capeta, mas jamais seria seu filho — provocou Herculano.
— E eu jamais aceitaria ser sua mãe. Que horror! — rebateu Soraia.
— Podemos pensar nessa possibilidade, minha querida — Paulo deu a volta pela cama e foi ao encontro de Soraia. Beijou-a nos lábios e passou a mão pela cintura dela. — O seu pedido é uma ordem.
— Ele vai estragar essa mulher — queixou-se Jamil. — Soraia vai ficar impossível.
— Tenho culpa se Paulo realiza todos os meus desejos?
— Você tirou a sorte grande — complementou Sílvia. — Uma relação não se sustenta sem amor.
Ela falou e, sem perceber, olhou para Ivan. Ele baixou os olhos, envergonhado. Jamil notou a situação um tanto embaraçosa e convidou Soraia, Paulo e Herculano para se retirarem.
— Está na nossa hora. Melhor irmos. Assim que eu e Soraia chegarmos ao mercado, o pai e dona Eustáquia virão para cá, visitá-la. Estão loucos para ver o neto.
Despediram-se e, quando fecharam a porta, Ivan sentou-se na beirada da cama. Tomou a mão de Sílvia com carinho e disse:— Vivemos como bons amigos. Mas saiba que eu tenho uma afeição muito grande por você.
Gosto de nossas conversas, de seu sorriso, de suas reclamações, enfim, gosto muito de sua companhia. Se fosse outra circunstância, creio que eu teria me apaixonado tranquilamente por você.
— Digo o mesmo, Ivan. Se eu não tivesse passado o que passei em razão da decepção amorosa que Olavo me causou, juro que você seria o homem ideal para mim. Confesso que, se ele não tivesse passado por minha vida, eu entregaria meu coração de bandeja para você.
Sabemos que fomos feridos, ainda estamos em processo de cicatrização.
— E quanto tempo será que vai levar para curarmos nossa ferida? Uma vida toda?
— Não sei. Agora que temos Fernando, talvez muito de nosso amor seja direccionado a ele.— Só fico apreensivo de ele crescer e ver seus pais dormindo em camas separadas. Não acha isso estranho?
— Estive pensando sobre o assunto. Assim que receber alta e voltar para casa, poderíamos dormir em uma mesma cama. Não vejo problema nisso. Podemos comprar uma cama de casal bem espaçosa.
— Eu me alegro que pense dessa forma. E prometo que vou respeitá-la.
Ivan beijou a mão de Sílvia e logo uma enfermeira entrou no quarto chamando-o para uma emergência. Assim que ele saiu, Sílvia ficou pensativa, revivendo os últimos meses.
A vida com Ivan estava muito boa. Ele era óptimo companheiro, leal, amoroso, simpático, divertido, compreensivo. Conversavam bastante, tinham muitos gostos em comum. Era um homem de extrema sensibilidade, apresentara a ela os livros de Clarice Lispector, sua escritora predilecta.
Ela e Ivan passaram a se dedicar ao conhecimento espiritual depois do episódio com Soraia, na festa de casamento deles. Compraram alguns livros indicados por Jamil, foram por ele apresentados a Leocádia e, vez ou outra, reuniam-se todos para discutir e tirar dúvidas. Alguns meses depois, um tanto céptico, Ivan deixou os estudos. Era-lhe difícil entender e aceitar os conceitos espiritualistas.
Conforme a barriga crescia, no entanto, Ivan a cobria de mimos e cuidados. Não fosse o coração partido, ela teria se apaixonado por ele. Todavia, no sexto mês de gravidez, agora rememorando o episódio na cama do hospital, Sílvia se lembrou de que, numa tarde, quando fora se levantar da cama e sentira tontura, Ivan foi correndo acudi-la e a segurou pelos braços.
A maneira como ele a pegou e a proximidade dos rostos, fazendo com que Sílvia sentisse o hálito doce e quente dele, mexeu com seus hormônios. Ela sentiu um frémito de prazer. Não soube identificar ao certo, mas, naquele momento, teve vontade de beijá-lo. Segurou-se e virou o rosto. Ivan nada percebeu.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 8:27 pm

Matutando sobre esse dia, ela agora se perguntava:
— Será que estou começando a gostar de Ivan de verdade? Será? Ivan foi atender uma paciente que chegou com fortes dores. Estava no sexto mês de gravidez.
Depois de medicá-la, fazer alguns exames e encaminhá-la para observação, percebeu que o bebê passava bem e a mãe também.
Ele foi até a salinha dos médicos, serviu-se de café. Sentou-se num sofá e logo esticou as pernas. Deitou um pouco, estava cansado, tenso ainda por ter realizado o parto do próprio filho. Para ele, Fernando era seu filho. Não tinha mais dúvidas quanto a isso. Talvez, quem sabe, um dia pudesse tocar no assunto com Olavo, revelar ao amigo toda a verdade, enfim, mas deixaria para depois.
Agora estava ali, pensando na proposta de Sílvia, de dormirem na mesma cama. Aquilo o encheu de esperança. Estava, havia alguns meses, sentindo mais do que um simples sentimento de amizade por ela.
Desde que se casaram e mudaram para a casa, começando a vida a dois, apesar do acordo de manterem as aparências, Ivan começou, no dia a dia, a notar outros aspectos de Sílvia. O sorriso, o jeito de falar, a maneira de ajeitar a casa, de sorrir, de também solucionar os problemas, enfim, havia muita afinidade entre eles.
Ivan começou a olhar para ela como mulher, não mais como amiga. Afinal de contas, Sílvia era uma moça bonita, atraente. Depois de se ver livre das influências de Ivete, pareceu-lhe não haver mais obstáculos para se abrir às possibilidades de um novo amor.
Ora, se o seu coração estava se cicatrizando de maneira tão rápida, por que procurar fora se dentro de casa havia alguém que lhe despertava grande interesse? Lembrou-se de uma vez em que foi segurar Sílvia, tomou-a nos braços, seus rostos ficaram muito próximos e ele, por um triz, quase a beijou. Fez uma força hercúlea para não beijá-la nos lábios.
Enquanto bebericava seu café, Ivan perguntou para si:
— Será que estou começando a gostar de Sílvia de verdade? Será?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 8:27 pm

Capítulo 15
A gravidez de Dorothy não foi surpresa para a família. Esperavam que ela engravidasse durante a lua de mel. O pai e duas tias estavam radiantes.
Olavo, a princípio, não se mostrou muito entusiasmado. Depois, com o passar dos meses, conforme a barriga de Dorothy crescia, ela ficava cada vez mais insuportável, reclamando do corpo, do calor, do inchaço, dos enjoos, mais ele foi gostando.
Era como se, por meio da gravidez, ele estivesse se vingando da esposa.
— Não faz o que eu quero? No entanto, é obrigada a carregar esse bebê por nove meses.
— Insensível! Ainda tem coragem de tripudiar sobre o meu estado? Queria ver se fosse você que estivesse grávido! Não tem posição para dormir, não tem sossego, a barriga mexe a todo momento. E os enjoos não param nunca.
— Bem feito! Para você aprender que existem coisas na vida que você é obrigada a engolir.
Dorothy apanhou uma almofada que estava próxima e atirou-a contra Olavo.
— Saia daqui antes que eu exploda de ódio. Está fazendo mal a mim e ao bebê.
— Tomara que nasça um menino. Vai aporrinhar você até dizer chega.
— Eu torço, com todas as minhas forças, que nasça uma menina, para que eu tenha uma companheira. Será minha aliada.
— Vire essa boca para lá. Duas Dorothys? Eu não dou conta.
Todavia, Olavo teve de dar conta, pois Dorothy deu à luz uma linda ruivinha, Débora. A cara da mãe.
Quando Fernando completou três meses de vida, durante um almoço de família, Sílvia fez o anúncio inesperado:
— Eu e Ivan pensamos bem no assunto. A princípio, não iríamos baptizar nosso filho, pois gostaríamos que Fernando crescesse livre para ter a liberdade de professar a sua fé. No entanto, conversando com minha sogra, cheguei à conclusão de que o baptizado será importante para o bebê, visto que ele vai estudar em escola de padres.
— Fico feliz com sua iniciativa — ajuntou Eustáquia. — O baptizado torna a criança cristã. Para mim, é como se, a partir do baptismo, estivesse sempre protegida por Jesus.— Penso da mesma forma, embora possam achar que somos crentes ou paranóicas — complementou Soraia. — Eu não me importo. Fico também contente que meu sobrinho seja baptizado.
— Além do mais — Ivan tomou a palavra —, o baptismo exige que a criança ganhe uma madrinha e um padrinho, que, de certo modo, são figuras importantes na vida da criança. São como segundos pais.
— Isso é fato — concordou Eustáquia. — Pensou em alguém, desde que não seja eu ou Faruk?
— Por quê? O que há de errado com vocês? — quis saber Paulo.
— Já temos idade, estamos ficando velhos. Não teremos como acompanhar o crescimento de Fernando.— Não diga isso, mamãe — reagiu Sílvia, em tom de censura.
— É a pura verdade. Eu e Faruk estamos com idade. Fernando precisa de padrinhos mais jovens.
— Já pensou nos padrinhos? — perguntou Jamil.
— Sim — respondeu Ivan. — Depois de uma rápida conversa, eu e Sílvia tivemos a mesma ideia —- Ivan fez sinal com a cabeça e Sílvia informou:
— Nós gostaríamos que os padrinhos de Fernando fossem Soraia e Jamil.
Houve um rápido silêncio e, na sequência, Soraia correu até a meia-irmã e, antes de beijá-la, pegou o pequeno Fernando nos braços. Beijou-o e acarinhou-o de maneira que comoveu a todos:
— Eu serei a tia-madrinha mais maravilhosa do mundo. Sempre poderá contar comigo. Toda vez que sua mãe pegar no seu pé ou brigar com você, ligue para mim ou corra para minha casa. Eu sempre vou amá-lo, não importa o que aconteça.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 8:28 pm

Todos ficaram emocionados. Jamil aproximou-se e beijou o bebê.
— Também serei um tio e padrinho maravilhoso. Darei o melhor de mim para que você seja um homem de bem.
Em seguida, ele se dirigiu a Sílvia e Ivan, e os abraçou com carinho:
— Muito obrigado pela consideração. Não sabem como me fizeram feliz.
— Temos certeza de que sua presença fará muito bem ao nosso filho.
— Eu vou trabalhar muito, estarei muitas horas ausente — emendou Ivan. — Talvez ele passe horas com o padrinho no mercado e tome gosto pelos negócios. Nunca se sabe! Após novos abraços e mais cumprimentos, Faruk propôs um brinde por aquele momento tão especial.
Paulo aproximou-se de Soraia e confessou:
— Vendo-a embalar Fernando nos braços, juro que me deu uma vontade imensa de lhe dar um filho.
— Então, por que não pede logo a minha mão em casamento? Já tem casa, quer dizer, um apartamento, mas é seu, é próprio.
— Só se for comigo ao baile de formatura.
— Está falando sério?
— Sim. A turma que se forma este ano quer me prestar uma homenagem. Adoraria levar minha namorada. Ou noiva.
Soraia riu e provocou:
— Aceito, desde que já aproveite o momento para oficializar nossa união. E sem Herculano.
Ele precisa estar connosco toda vez que saímos?
— Não vou prometer. Muito pelo contrário. Herculano tem carro próprio, vai nos levar.
— Ah, essa não! Ainda terei de ir no carro daquele doidivanas, inconsequente?
— Não sei o porquê de pegar tanto no pé dele.
— É muito compreensível. Demais.
— Herculano teve vida difícil. Sou o irmão que ele nunca teve.
— Está bem — Soraia fez um muxoxo: — Não vou mais tocar no assunto. O amigo é seu. E, de mais a mais, hoje é um dia especial. Quero transmitir somente boas sensações a este bebezinho lindo — finalizou, beijando Fernando várias vezes no rosto.
Paulo pigarreou e, assim que brindaram à saúde do pequeno Fernando, ele pediu a atenção e encarou o patriarca:
— Seu Faruk, eu gostaria de pedir, formalmente, a mão de sua filha Soraia em casamento.
Mais vivas e brindes. Foi um dia de muita felicidade para todos.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 2 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 8:28 pm

Capítulo 16
Promessa é promessa. Soraia, depois de ganhar o anel de noivado, topou ir ao baile de formatura com Paulo, mesmo com a presença de Herculano. Era um baile de gala, em um clube tradicional da cidade.
O carro de Herculano estava na oficina, para reparos. Ele sempre se metia em confusão, rachas e afins. Não tinha mês que seu carro não passava uns dias dentro de uma oficina, para consertos os mais variados. Por esse motivo, Soraia pediu o carro emprestado a Jamil, desde que Paulo o dirigisse.
Ela estava elegante, bem bonita e, com seu corpo cheio de curvas e cabelos negros penteados ao estilo Ava Gardner, chamava atenção por onde passava, deixando Paulo cheio de orgulho.
No caminho, ela e Herculano, para variar, trocaram farpas.
— Eu podia dirigir. E os dois ficariam no banco de trás, namorando — comentou Herculano.
— O carro é do meu irmão. Jamais deixaria um irresponsável como você botar as mãos na direcção. Paulo está dirigindo muito bem — disse e piscou para o noivo, ao lado.
— Nossa, como você é insuportável! Deus me livre e guarde! Tenho pena de Paulo.
— Ora...
E a discussão seguia. Paulo ria com a situação.
— No fundo, vocês se adoram.
Quase foi linchado. Por Soraia e Herculano.
A festa foi animada, com música ao vivo, alguns comes e muitos bebes. A bebida, de facto, rolou solta. Paulo, para surpresa de Soraia, meteu os dois pés no uísque, na cachaça, na cerveja... talvez pelo fato de ter sido homenageado e estar desfilando ao lado de uma mulher tão bonita e cobiçada. Ele, um tanto reservado, exagerou na bebida a fim de se soltar e ficar um pouco mais sociável.
Acontece que, ao final da festa, Paulo estava completamente bêbado. Não respondia por si.
— Está na hora de ir embora? Já? — indagou Herculano, voz pastosa, deitado com a cabeça sobre o ombro de Paulo, completamente bêbado.
— Engraçadinho! — ela bateu com a bolsinha sobre o peito dele. — Vocês dois são péssimos exemplos. Não sabem se controlar?
Herculano olhou para Paulo e riu:
— Vai ver ele bebeu para esquecer você.— Sem graça. Ele me ama.
— Sei disso — Herculano levantou-se com dificuldade, passou o braço pela cintura do amigo e foi carregando Paulo na direcção do estacionamento.
Soraia ainda estava tomando aulas de direcção e não tinha tirado carteira de habilitação. Por isso, alertou, voz grave:
— Eu deveria conduzir o carro. Jamil confiou em mim. E olhe o seu estado! Está sem condições de dirigir.
— Estou muito bem. Pare de falar como uma matraca e me ajude a colocar seu noivinho no banco de trás. Pelo estado em que se encontra, acho que precisa chamar um guincho — ele brincou. — Para rebocar o Paulo, não o carro.
Soraia estava possessa.
— Beber, tudo bem. Eu até bebi um pouco de ponche. Você, nem vou dizer. Sempre foi um irresponsável, doidivanas. Mas Paulo, que não é muito de beber, exagerou. Olhe o estado dele.
Que coisa feia! Foi homenageado pelos alunos. Não fica bem.
Herculano deitou o amigo no banco de trás e, na sequência, comentou:
— Sou obrigado, mesmo a contragosto, a concordar com você. Tem razão. Meu amigo passou dos limites.
— Você não está em condições de dirigir. O melhor seria tomar um táxi e, amanhã, pegarmos o carro.
Nada disso — Herculano protestou. — Sei dirigir, não vou deixar que o carro de seu irmão durma no sereno.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 2 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 8:28 pm

Depois de muito bate-boca, Soraia concordou. Herculano finalizou:
— Levamos você até sua casa e deixamos o carro. Depois eu tomo um táxi e vou com Paulo até a casa dele. Ele não tem condições de dormir sozinho, ao menos esta noite.
— Sempre arruma um jeito de ficar perto do amiguinho.
— Ciúmes à parte, acha que ele tem condições de ficar sozinho?
— Sou obrigada, mais uma vez, a concordar com você. Se fosse possível, eu ficaria com ele.
Sinceramente, estou decepcionada.
— Não seja tão rígida. Hoje é dia de festa. Dê um desconto ao seu noivo.
— Está bem. Só hoje. Mas amanhã eu e ele vamos ter uma conversa bem séria. Muito séria.
— Ainda bem que não tenho namorada. Vocês, mulheres, são mandonas.
Soraia iria retrucar; contudo, Paulo balbuciou alguma coisa. Herculano observou: — Vamos. Quanto mais cedo chegarmos em casa, melhor.
E assim fizeram. Herculano pegou as chaves da mão dela e tomou a direcção. Soraia sentou-se no banco da frente ao lado dele. Paulo, no banco de trás, apagou. Ressonava e mastigava a saliva. Herculano deu partida. Seguiram calados. Herculano, um tanto alterado pela bebida, acelerava além do convencional. Soraia não estava gostando muito daquilo. Às vezes, ele fazia uma curva muito fechada, o carro parecia que iria perder o controle.
— Herculano, vá mais devagar.
— Calma. Este carro é seguro, dos bons. Eu dirijo bem.
— Dirija sem olhar para mim. Dirija olhando para a frente.
— É que você é muito bonita. Paulo soube escolher.
— Vai me dar cantada agora? Dar em cima da noiva do seu amigo?
— Não — ele sorriu de forma maliciosa. — Estou bêbado, mas não perdi a noção do que é belo. Que você é bonita, ah, isso é! Não podemos negar e...
Herculano falava olhando para Soraia, sem prestar atenção a sinal, cruzamento, nada. De repente, veio o grito apavorado de Soraia, a freada brusca, o baque seco contra o veículo e, logo na sequência, outro baque sobre o asfalto.
— O que foi? — Herculano voltou a si, depois de frear.
Soraia olhou para trás. Havia um corpo estirado no asfalto e se mexia, lentamente.
— Você atropelou alguém. Foi isso! Pelo amor de Deus! Vamos acudir.
Ela saiu do carro e correu. Era um rapaz, mesma idade que ela, talvez. O rosto ralado, com alguns ferimentos e sangue. Ele esticou o braço para ela:
— Não sinto as pernas. Por favor, me ajude.
Soraia tocou na mão do rapaz. Herculano puxou-a com força para trás.
— Venha, vamos embora.
— Não! — ela gritou. — Não podemos. Ele precisa de ajuda.
— Se chamarmos a polícia, seremos todos presos. Eu estou bêbado. O carro é de seu irmão.
Quer arrumar encrenca para Jamil?
— Não, mas...
Herculano não a deixou terminar de falar. Arrastou Soraia para dentro do carro.
— Nada. Vamos embora. Quando chegarmos a sua casa, você liga para a polícia. Anote o nome das ruas do cruzamento.— O rapaz precisa de ajuda...
Herculano não quis saber. Deu partida e acelerou. Soraia, lágrimas nos olhos, não sabia o que fazer. Chacoalhava Paulo, mas ele não acordava, nem com toda essa confusão.
Meu Deus, o que posso fazer para ajudar esse rapaz?, pensou, aflita. Não quero deixá-lo na mão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 8:28 pm

Mas o deixou. Porque, mesmo depois que chegou a sua casa, ela ligou para Ivan, contando o ocorrido. Ivan accionou um amigo da polícia e resgataram o rapaz. Levado para a Santa Casa, constatou-se que a batida provocara em seu corpo a ruptura de algumas vértebras, o que o deixaria definitivamente paraplégico.
No entanto, como houve demora no atendimento, Raul - esse era o nome do rapaz de apenas dezoito anos — perdera muito sangue, teve hemorragia e não resistiu aos ferimentos. Morreu dali a dois dias.
Ao receber a notícia, Soraia teve um ataque, tipo chilique mesmo. Paulo, por sua vez, sentiu-se o mais impotente e idiota dos homens. Impotente por não poder ter feito nada para ajudar.
Nem poderia. Naquela noite, ele havia apagado por completo e não registrara o acidente.
Idiota porque, se não tivesse bebido tanto assim, talvez nada disso tivesse acontecido.
— Nunca vou me perdoar.
— Você não tem culpa — ela disse, chorosa.
— Como não? Se eu tivesse me mantido sóbrio, essa tragédia jamais teria caído sobre nossa cabeça. E uma vida teria sido poupada.
— Estava desmaiado. Eu fui a culpada. Toquei na mão dele, deveria ficar ali até chegar a ambulância. Se tivesse feito isso, talvez o rapaz sobrevivesse.
— Sobreviveria, mas ficaria defeituoso, inválido — interveio Herculano. — Creio que foi melhor assim.
Soraia teve vontade de esganá-lo:
— Como se atreve a falar assim? Quem pensa que é? Deus?
— Não. Mas não acredito que um rapaz saudável, na flor da idade, gostaria de viver preso a uma cadeira de rodas.
— Você pensa dessa forma. Como pode se colocar no lugar dos outros e achar o que pensam?
— o tom de Soraia era de raiva.
— Sou prático.
— Frio, só pensa em você. Só olha para o próprio umbigo. Por que tinha de estar na festa e por que pegou o carro? Por quê?— Porque seu noivinho se afundou na cachaça. Porque seu noivinho não tem tolerância para bebida. Só isso.
Paulo levantou-se e meteu o dedo em riste:
— Chega, Herculano! Você passou dos limites. Sou da paz, mas não quero briga. Melhor você parar por aqui e ir para casa, reflectir.
— Sou seu amigo.
— Melhor ir embora — Paulo repetiu, olhando para baixo.
— Está bem. Agora querem que eu suma da vida de vocês. Eu sou o pária, o excluído.
— Suma de nossa vida! — Soraia gritou. — Desapareça! Eu odeio você.
Herculano teve imensa vontade de abraçar Paulo, porém conteve--se. Encarou Soraia e fulminou-a com os olhos. Saiu pisando firme e bateu a porta com força. Ela abraçou Paulo, e os dois choraram muito. De dor, de remorso, de culpa...
Algum tempo depois, Soraia, aflita, ligou e pediu para conversar com Leocádia. Ao abrir a porta de casa, Soraia abraçou-a de maneira desesperada. As lágrimas desciam sem cessar.
Leocádia solicitou:
— Calma, minha pequena.
— Eu me sinto tão infeliz.
— Venha, vamos entrar.
Leocádia fechou a porta e conduziu Soraia até a sala de estar. Sentaram-se no sofá. Leocádia tocou uma sineta. A empregada apareceu e ela pediu um copo de água com açúcar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 8:29 pm

Depois que Soraia bebeu, ela indagou:
— Sente-se melhor?
— Humm, humm. Sim.
— Óptimo.
— Preciso acabar com esta culpa que me consome. Não deixo de pensar no rapaz, no acidente. Tenho pesadelos. Será que ele virá atrás de mim como a Ivete, ex-noiva de Ivan?
— Não. Sinto que esse moço está bem e entende que você queria ajudá-lo.
— Eu peço perdão a ele todos os dias.
— Ele sabe disso.
— Sabe?— Está ao seu lado.
Soraia só não deu um pulo do sofá porque estava abalada, destruída emocionalmente e consumida pela culpa. Os últimos meses tinham sido muito estafantes para ela.
Antes, uma moça voluntariosa, de temperamento forte, personalidade idem. Brigava com as pessoas, não era afeita a carregar um sorriso nos lábios. Estava e andava sempre na defensiva, acreditava que as pessoas sempre tinham segundas intenções.
Soraia era o tipo de pessoa que tem em mente que nenhum ser humano age movido pela bondade, pois sempre vai querer uma vantagem, tirar algum proveito, fazer cobrança, ganhar alguma coisa. Havia mudado um pouco com o tratamento de passes no centro, logo depois que Ivete se aproximara dela.
No entanto, depois que o tratamento terminou, Soraia deixou a leitura espiritual de lado, não quis mais saber de rever posturas e atitudes que a irritavam, não estava mais tratando de sua reforma íntima como deveria.
Mesmo assim, ela, que nunca acreditara na generosidade do próximo, na noite do acidente, de forma espontânea, quis ajudar um estranho. Agiu pelo coração, não pela razão.
Era por esse motivo que o espírito de Raul estava ali, agradecendo-lhe.
— Ele está aqui?
— Sim. Agradece suas orações. Aliás, foram suas orações sinceras, cheias de amor, que o ajudaram a fazer uma passagem tranquila para outra dimensão. Além do mais, o perispírito dele não sofreu lesões.
— Como assim?
— O corpo físico de Raul foi afectado, lesado. O corpo astral, não. Ele está de pé, ao seu lado.
Soraia emocionou-se.
— Fico contente que esteja bem.
— Veio agradecer e dizer-lhe que não deve carregar mais a culpa sobre seus ombros.
— Fui omissa. Se eu o tivesse ajudado, ele poderia estar vivo.
— Mas ele continua vivo. De outra forma.
— E tem Herculano. A maneira fria como ele tratou o caso, o jeito como até agora ele vê o acidente. Parece que não tem coração.
— Cada um é um. Você não pode julgar o que os outros pensam, por mais estapafúrdios que sejam os pensamentos ou ideias deles. Abençoe Herculano. Deixe-o seguir seu caminho.
— Não sei. Talvez aceitar o que ele fez seja mais difícil que arrancar a culpa que sinto. Além do mais...Leocádia interrompeu-a com carinho:
— Raul afirma que tudo acontece no momento certo. Nada acontece por acaso. As pessoas são unidas pela vida. Se estão juntas, é porque precisam trocar experiências, aprender umas com as outras.
— Por que a vida nos juntou Não vejo um motivo plausível.
— Raul está sorrindo e um dia, se estiver madura, você irá saber. Mas, agora, o importante é você ter em mente que a culpa só faz mal. Dedicar-se a ela é como ingerir drogas que, aos poucos, vão minando nossas possibilidades de paz e felicidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 8:29 pm

— Creio que começo a entender, Leocádia. Sinto bem-estar.
— Ele está ao seu lado enviando energias de calma e paz. E, antes de partir, está lhe dizendo que, sempre que possível, virá visitá-la. Também sugere que uma boa maneira de arrancar de vez essa culpa é pensar que você fez só o que sabia e acreditava, que fizera o seu melhor na noite do acidente. Ninguém erra porque quer.
Soraia balançou a cabeça de forma positiva.
— É verdade. Obrigada, Raul — falou olhando para o vazio, ao lado. Em seguida, esticou as mãos e tocou as de Leocádia: — Obrigada.
— Você é uma mulher de personalidade exuberante.
— Preciso ser mais reservada.
— Não. Continue sendo exuberante. Só precisa entender que as pessoas são diferentes, cada um tem um jeito próprio de ser, de pensar e de agir. Se você viver pensando dessa forma, vai se tornar uma pessoa menos briguenta, mais compreensiva, alegre, querida, de bem com a vida.
— Isso é o que eu quero.
— Você vai conseguir. Eu acredito em você, Soraia. É uma boa mulher.
Soraia abraçou-a demoradamente. Ficaram assim por um bom tempo, enquanto das mãos de Raul uma luz suave atingia as duas, proporcionando-lhes bem-estar e harmonia ao ambiente.
Um mês depois desse encontro na casa de Leocádia, Soraia e Paulo foram surpreendidos com uma triste notícia. Um avião que partia de Congonhas, cujo voo tinha como destino o Rio de Janeiro, não conseguiu ganhar altura suficiente após a decolagem e caiu sobre uma área residencial do bairro do Jabaquara. A bordo havia quatro tripulantes e dezasseis passageiros, dentre eles, Herculano. Todos morreram.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 13, 2024 8:29 pm

Capítulo 17
A união entre Soraia e Paulo, diferentemente da de Sílvia, foi celebrada na casa de Faruk, com um jantar para a família dos noivos, no início de dezembro de 1959, coincidindo com as férias de Paulo na faculdade.
Em seguida, partiram para o Uruguai, destino escolhido por nove entre dez casais, à época, para oficializarem um segundo casamento. Como Paulo era desquitado, no Brasil não seria possível celebrar nova união. Quem fosse separado somente poderia casar-se outra vez depois da aprovação da Lei do Divórcio, em 1977.
Na viagem, que também serviu como pano de fundo para a lua de mel, Soraia exigiu:
— Sei que vamos viver juntos por toda a vida. Por isso, gostaria de lhe fazer um pedido.
— Pois faça — pediu Paulo.
— Ao completarmos bodas de prata, gostaria de ter a festa à qual não tive direito.
Paulo a abraçou com ternura e prometeu:
— Fique tranquila, pois vamos comemorar vinte e cinco anos de casados, como também cinquenta. E você terá uma festa à altura, porque tenho certeza de que até lá a nossa situação matrimonial será reconhecida.
Feliz, Soraia o encheu de beijos e abraços. Passaram dias maravilhosos em Montevidéu.
Os meses foram passando e, no dia em que Fernando completou dois anos e meio, Soraia deu à luz um menino, Maurício. Gordinho e muito saudável, transformou positiva e radicalmente a vida de Paulo.
Depois da experiência ruim pela qual passara com o atropelamento, Paulo se transformou em outra pessoa. Nunca mais colocou uma gota de bebida na boca. Largou o cigarro, entrou no time de natação do clube, procurava manter hábitos saudáveis e, juntamente com Soraia, frequentava as reuniões na casa de Leocádia para entender e conhecer mais sobre o universo da espiritualidade e também desvendar os mistérios da mente.
Depois do acidente, Soraia voltara a se interessar pelos estudos espirituais. Agora, era uma mulher diferente, porque tentava viver a espiritualidade no cotidiano. Procurava ser alegre, bem-humorada. Continuava, obviamente, com seu temperamento forte e exuberante, mas tornara-se uma mulher mais sensível.
Leocádia lhes dava e indicava livros, às vezes os convidava para irem às palestras abertas ao público no Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento. Soraia frequentava um centro perto da casa dela e ia de vez em quando para receber tratamento espiritual. Contudo, a bem da verdade, alimentava a esperança de receber uma mensagem de Raul, visto que o centro fazia esse tipo de trabalho, e Leocádia nunca mais tivera contacto com o jovem espírito.
A convivência entre pai e filho era tocante. Paulo preocupava-se até demais da conta, pois agora se via desesperado com qualquer choro ou espirro do bebê. Passava madrugadas em claro observando o filho, para ver se dormia bem, se não iria sufocar, se não iria cair da cama...
Soraia, de certa maneira, até gostava, pois, enquanto ele se desdobrava em atenções com o bebê, tinha tempo para tocar a casa e, coisa incrível, dedicar também o máximo de tempo às brincadeiras com Fernando. Era apaixonada pelo sobrinho-afilhado. Vivia agarrada com ele, levava-o para passear quase todos os dias.
De certo modo, desde a amamentação, despertara em Soraia ojeriza pelo filho, fosse porque os seios doíam, fosse porque ela estava cansada, fosse porque Maurício chorava demais da conta.
Assim, com o tempo, ela foi se distanciando do bebê, deixando-o mais aos cuidados de Paulo e, naturalmente, dedicando maior parte do tempo a Fernando.
Sílvia já havia percebido esse grude, mas acreditava que, com o nascimento de Maurício, essa ligação fosse se tornar mais branda. Não ficou. Soraia dava mais atenção ao sobrinho do que ao filho. E isso, com os anos, iria causar desarmonia na família. Mas veremos o desenrolar mais à frente...
Fernando também começava a desenvolver uma atracção especial pela tia. Chorava quando ela o deixava em casa, abria o berreiro quando Soraia se despedia dele, preferia estar com a tia a ficar com a mãe.
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