LUZ ESPÍRITA
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 5 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 9:16 pm

Capítulo 32
Fazia uma semana que Soraia tentava tratar o filho e, por tabela, o marido com certa cortesia.
Estava difícil, porquanto Maurício fazia de tudo para tirá-la do sério. Todavia, imagens do sonho que tivera com Raul vinham-lhe à mente e, inspirada pelo amigo espiritual, ela conseguia manter certo nível de positividade.
Passava das sete quando Maurício chegou a casa. Fez questão de bater a prancha no chão, derramando areia pelo corredor e jogou-a de qualquer jeito na área de serviço. Em seguida, sem cumprimentar a mãe, esparramou-se no sofá e ligou a tevê.
Soraia veio do quarto e, enquanto pegava o controle remoto e baixava o volume, pediu:
— Faça o favor de tirar esse calção. Está húmido. Por que não tirou a sunga? Veio assim da praia? De Ipanema até aqui?
— Vim. E daí? — respondeu, esticado no sofá, cruzando as pernas.
— Molhou o banco do carro, com certeza!
— O carro é meu, faço dele o que quiser.
— O carro é nosso. Seu pai o comprou para mim e para você.
— Não, senhora! Ganhei no aniversário de dezoito anos. Aliás, está na hora de trocar. Modelo velho. Nenhum de meus amigos tem um Fiat 147. Agora o barato é ter um Escort XR3.
Soraia riu com desdém.
— Está bem. Seu pai mal consegue cobrir as despesas de casa. Acha que vai comprar um carro desportivo? Custa os olhos da cara.
— Ele se vira. Sempre se virou.
— Não é assim que funciona.
— Claro que é. Faz hora extra, rouba livro do stoque para vender no mercado negro, faz qualquer coisa. Mas que vai me dar o carro novo, vai.
— Você é um moleque petulante. Um encostado que só mama nas tetas dos pais. Deveria ter vergonha.
Foi a vez de Maurício rir.
— Eu?! Vergonha? Está maluca? Vocês me botaram no mundo. É obrigação dos dois cuidar de mim, não? Cuidar bem, quero dizer.— A minha responsabilidade acabou quando você completou dezoito anos e tirou a carteira de reservista. É um homem, pode se virar na vida. Eu e seu pai não temos mais obrigações com você.
— Você pensa assim, velha. O pai, não.
Soraia fechou os olhos e respirou fundo. Contou até três. Soltou o ar.
Ele não vai me tirar do sério. Não vai, pensou e remendou:
— Vamos esquecer essa história e pensar no futuro. Semana que vem começarão as aulas do cursinho. Vamos ver se, desta vez, você estuda para valer.
— Sinto muito, mas o pai já cancelou a matrícula. Vou entrar na turma de maio.
— Como assim, turma de maio?
— Agora não vai dar.
— Não estou entendendo.
— Vou visitar a avó Eustáquia em São Paulo. Passar uns dias com ela.
— Você mal dava trela para a sua avó. Que saudade é essa, repentina?
— Ela está doente, vai que a qualquer momento parte desta para melhor. Não quero ter remorso — falou e riu.
Soraia perdeu as estribeiras. Partiu para cima de Maurício e começou a estapeá-lo. Atónito, pego de surpresa, ele tentou se defender:
— O que é isso?
— Falar de minha mãe desse jeito. Falta de respeito. Pensa que não sei que está mentindo?
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 5 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 9:16 pm

— Eu?!
— É. Está usando a doença da minha mãe para ir a São Paulo assistir ao show do Van Halen.
Pensa que não me informei? Sei que a banda vai se apresentar daqui a algumas semanas.
Patife.
E continuou a estapeá-lo. Maurício olhou no relógio sobre a estante e, sabendo que o pai, meticuloso, não se atrasava para chegar a casa, foi protelando a discussão. Espiou pela janela da sala e viu quando Paulo atravessou a rua em direcção ao predinho em que moravam. Sorriu de maneira sarcástica. E prosseguiu:
— Por que ficou nervosa? Eustáquia nem é sua mãe de verdade!
Soraia sentiu o sangue subir. Avançou sobre o rapaz com fúria e Maurício não fez força alguma para se defender. Deixou que ela o derrubasse no chão e, aproveitando a queda, passou o braço sobre os objectos da mesinha de centro para causar um maior impacto.
A cena estava montada, ou melhor, o circo estava armado. Naquele exacto momento, Paulo girou a maçaneta da porta e entrou. Ao ver a esposa sobre o filho e os objectos esparramados, quase teve uma síncope. Largou a pasta no chão e correu até o meio da sala. Puxou Soraia pelos ombros e os dois caíram para trás, sentados.
Maurício, fingindo uma dor inexistente, começou a gritar:
— Pai! Graças a Deus você chegou! Ela ia me matar.
— O que aconteceu? -— Paulo estava sem entender.
Soraia desvencilhou-se dele. Levantou-se, ajeitou a alça do vestido, recompôs-se. Mirou o filho com raiva.
— Maurício desrespeitou minha mãe.
— É verdade isso, meu filho? — quis saber Paulo, enquanto também se levantava e se recompunha, tirando o paletó e afrouxando o nó da gravata.
— Imagina, pai. Acredita que eu iria brincar com a avó Eustáquia, doente? Não conversamos a semana toda sobre o estado de saúde dela? Não liguei para a Clarice todos os dias querendo saber da avó? Você estava ao meu lado durante as ligações. Como poderia brincar?
— É verdade. Difícil acreditar que você faria uma brincadeira tão grosseira assim.
Soraia deixou os braços caírem para baixo, numa atitude impotente. As lágrimas escorriam sem cessar. Ela encarou Maurício, mas falava com o marido:
— Eu juro, Paulo. Não sei mais o que fazer. Maurício o manipula e você entra no jogo dele.
— Eu...
Ela o interrompeu:
— Vou terminar. Não vou mais discutir, brigar, nada. Sei que Maurício vai para São Paulo passar uns dias com a avó. É o que ele diz. Talvez eu tenha um momento de paz. Quando você voltar — encarou o filho bem fundo nos olhos —, vamos ter uma conversa bem séria, de mãe para filho.
Ele deu de ombros.
— Como você quiser. Serei todo ouvidos, desde que não me machuque. Nunca fiz nada que justificasse tamanha agressão.
Ela meneou a cabeça para os lados e foi para o quarto em silêncio. Paulo abraçou-se a Maurício:— Como você está, filho?
— Mal, né, pai?
— Conte-me o que aconteceu.
Maurício contou a sua versão:
— Cheguei da praia e fui dar um oi. Ela não respondeu. Achei estranho. Depois vim para a sala, liguei a tevê. Ela veio em seguida, apanhou o controle remoto, mandou tirar a sunga, avisou que vocês iam ficar meses vivendo no aperto por conta da minha viagem a São Paulo.
— Que absurdo! Está tudo sob controle.
— Pois é. Foi o que eu disse a ela. Você tinha feito as contas, estava tudo em ordem. Daí falei que tinha ligado para Clarice para saber da avó e ela ficou irritada. Foi aí que o couro comeu.
Partiu para cima de mim e falou que eu deveria ter pedido permissão para ligar, que eu passei por cima da autoridade dela. Foi horrível, pai. Horrível — Maurício levou as mãos ao rosto pretextando um sofrimento irreal, nulo.
E Paulo acreditou.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 9:17 pm

Capítulo 33
Maurício chegou a São Paulo numa manhã de sexta-feira. O dia estava nublado, mas quente.
Assim que pegou a mala, tomou um táxi em direcção à casa da avó.
Ao chegar ao casarão da Bela Vista, fez uma careta.
— Lugarzinho ruim, hein? Poderiam morar nos Jardins. Tio Jamil factura uma nota preta naquele mercado e vive mal. Não ajuda minha mãe em nada, dando a desculpa de que a velha, adoentada, custa caro. Também, duas enfermeiras, médicos, remédios, comida especial. Será que uma velha demente merece tudo isso? Quanto gasto por nada!
Ele nem tocou a campainha. Abriu o portãozinho e girou a maçaneta da porta principal.
Estava destrancada. Entrou e deu de cara com uma senhora gordinha. A mulher assustou-se a princípio, mas, ao ver aquele príncipe grego, sorriu. É, Maurício era um lixo por dentro, mas por fora deixava as mulheres, de qualquer idade, doidinhas.
— Oi. Eu sou neto da Eustáquia.
— Prazer. Edwiges. Uma das enfermeiras. Pode entrar, por favor.
Ele largou a mala em um canto e estava para sair quando a mulher perguntou:
— Não vai ver sua avó?
— Sim — mentiu.
Ele não tinha vontade alguma de ver Eustáquia. No entanto, para causar boa impressão, fez uma forcinha. Acompanhou a mulher e entrou no quarto adaptado ali ao lado. Viu Eustáquia, aproximou-se, beijou-a na testa e saiu. Tomou um táxi com destino ao shopping Iguatemi.
— Quero ver gente rica, bonita, elegante. Quem sabe não me dou bem nesta cidade?
E se deu. Muito bem. Desceu do táxi, percebeu alguns olhares cravados nele. Sorriu.
Almoçou, depois deu uma volta, observou algumas vitrinas e parou em uma confeitaria. Pediu um suco e ficou fazendo pose.
Em poucos minutos, uma mulher, na casa dos quarenta anos de idade, começou a lhe dar bola. Ele fez um pouco de charme, depois se aproximou. Apresentou-se como Jean, carioca, filho de pai francês e mãe brasileira, passando uns dias em São Paulo e, com jeitinho, deixou claro que era um profissional do sexo.
Não era, claro. Contudo, Maurício queria dinheiro. E dinheiro fácil se fazia desse modo. Ele já conseguira um extra fazendo alguns programas no Rio. Sabia que dava resultado. Só apelava para essa prática em casos de extrema necessidade.
Meia dúzia de frases feitas, toques de mão e logo ele saiu de lá para o apartamento da mulher. Depois de passar o restante da tarde com ela, saiu de lá com um punhado de notas nas mãos. Pegou outro táxi e seguiu para a Mooca. Queria ver a prima Clarice, a única mulher capaz de ajudá-lo a se transformar em uma pessoa melhor, caso a vida permitisse e, obviamente, se o tempo também permitisse.
Tocou a campainha e foi atravessando o jardim. Quando Sílvia abriu a porta, deu de cara com ele. Tomou um susto.
— Você, aqui? — abraçou-o e perguntou, com certa aflição: — Aconteceu alguma coisa com seus pais?
— Não, tia. A Clarice não te falou?
— O quê?
— Vim para passar uns dias em São Paulo. Respirar um pouco de poluição.
Ela deu um tapa no braço dele.
— Engraçadinho. Reclama de São Paulo, mas, sempre que possível, vem para cá.
— Estou de brincadeira. Gosto muito daqui. Do clima. Pena não ter praia.
— Santos fica a cinquenta minutos daqui de casa.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 5 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 9:17 pm

— Sério?
— Não se lembra quando íamos para lá, antes de você se mudar para o Rio?
— Não me lembrava que ficava tão perto.
— Fica. Se quiser, podemos dar um pulo até lá. O apartamento está à nossa espera.
— Pode ser. É que já programei muita coisa para fazer na cidade. Se sobrar tempo, eu vou. Se Clarice puder ir, melhor ainda.
— Você e Clarice! Quanto grude!
— Ela é a minha princesinha. Sempre foi.
Sílvia sorriu.
— Sim. Entre. Venha. Ivan teve um parto de emergência e vai demorar a chegar. Clarice, esta semana, pegou o turno da noite, mas Fernando acabou de chegar do trabalho.
Maurício fez ar de desagrado.
O mala está em casa. Que saco!, pensou, entretanto, disse:
— Que legal! Estou com saudades do primo.
— Saudades, sei. Ele esteve na sua casa faz pouco tempo.
— Ficou grudado na madrinha. Agora que tia Soraia não está por perto, eu poderei ficar junto dele. — É verdade.
Entraram e Maurício acomodou-se no sofá, como se a casa fosse sua. Folgado, tirou o par de ténis e esticou-se.
— Não trabalha mais no mercado, tia?
— Sim. Mas tem dias da semana em que posso sair mais cedo, quando há pouco movimento.
É um trato antigo que tenho com seu tio Jamil, desde quando sua mãe deixou de trabalhar lá em razão da mudança para o Rio.
— Bom trabalhar assim.
— Poderia ir comigo até lá, aprender um pouco.
— Eu? Até curto o mercado, gosto dessa coisa de ser de família. No entanto, meu negócio é praia, surfe, é outra parada.
— E acha que vai surfar até os oitenta anos? Um dia terá de decidir o que fazer da vida.
— Viver de renda. Pode ser?
— Que renda?
— Herança.
— A qual herança você se refere? Seu pai não tem parentes, tampouco bens. Da parte de sua mãe, há o casarão e o apartamento da praia. E para serem divididos por três herdeiros. Não vejo como você vai conseguir viver de renda.
— Mas tem o mercado. Posso conseguir uma gratificação, sei lá. Ele também é meu.
Sílvia passou a mão na testa para afastar a onda de pensamentos negativos que tentavam invadi-la.
— É maluco? Doidinho? Tomou muito sol ou engoliu muita água salgada do mar?
— Por que, tia?
— O mercado é do seu tio. É justo. Ele se dedicou a vida toda àquele negócio. Se aquilo ainda está de pé, é por causa de Jamil.
— Mas quem começou com tudo foram meus avós.
— Não interessa. Eu e sua mãe já assinamos os documentos que transferem nossa parte do negócio para ele.
Ele meneou a cabeça, cruzando e descruzando as pernas.
— Depois eu que sou o maluco. Perderem uma fonte de renda assim, do nada. Bom, eu arrumo um outro jeito de ganhar a vida. Há muitas maneiras.— Desde que não roube nem prejudique ninguém...
— Não, tia. Eu não sou ladrão. Olhe para esse rosto lindo e esse corpo de deus grego.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 5 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 9:17 pm

— Convencido.
— Uma amiga no Rio disse que eu tenho perfil para ser modelo.
— É uma boa opção. Imagine, você famoso? Eu vou ficar tão orgulhosa!
— Não. Dá muito trabalho. Tem de ter comprometimento, disciplina, acordar cedo... Não gosto disso — e, antes que Sílvia retrucasse, pediu: — Tia, me traz um copo de suco? Estou morrendo de sede.
— Aqui não é sua casa. Se quiser, levante e pegue. A cozinha fica ali — apontou.
Ele fez um muxoxo, respirou fundo. Levantou-se e foi até a cozinha. Pegou o suco na geladeira, serviu-se. Colocou o copo sobre a pia.
Sílvia o recriminou:
— Não. Aqui, o que se usa para beber ou comer, se lava em seguida. Todo mundo colabora. Usou, lavou.
— Está bem — lavou o copo, colocou-o sobre o escorredor. — Mais alguma coisa?
— Não. É que aqui as coisas são diferentes da sua casa. Só isso.
— Tudo bem, tia. Foi mal. Desculpe.
— Você se acostuma.
E ele se acostumou. Na casa de Sílvia, Maurício colaborava facilmente com os afazeres do dia a dia, participava da rotina da família. Ficou tão à vontade que, no dia imediato, trouxe a mala e se instalou ali, pretextando que, por chegar em horários alternados devido às saídas constantes, poderia atrapalhar a rotina na casa da avó. Pura balela. Maurício não gostava de ficar perto de gente doente.
— Melhor aturar o Fernando do que ficar naquela casa cheirando a mofo e éter — disse entre dentes, assim que se instalou no quarto do primo, esparramando-se na cama, sem cerimónia.
No dia em que veio para ficar na casa da tia, Maurício, ao descer as escadas para sair e dar um giro pela cidade - precisava juntar mais dinheiro e já sabia como -, deu um esbarrão em Fernando, que chegou com cara de poucos amigos, muito preocupado.
- Nossa! Nunca o vi desse jeito — confessou Maurício. — O que foi que aconteceu?
— Nada de mais, primo.
— Para cima de mim? O que foi? Pode se abrir comigo. Sou seu único primo.
E amigo Fernando, um tanto prostrado, colocou a pasta que carregava nos ombros sobre uma das poltronas da sala. Desatou o nó da gravata e, suando muito, sentou-se no sofá.
— Estou com muita dor.
-- Onde?
— Aqui embaixo — apalpou o lado direito do abdome.
— Não faço ideia. Será prisão de ventre?
Fernando contorceu-se de dor e fez que não.
Por sorte, Clarice chegava naquele momento e, ao ver o irmão naquele estado e constatar que, além daquela dor específica, estava com náuseas e vómitos, não teve dúvidas:
— Apendicite. Quase certeza. Vamos já para a emergência.
— Não é só tomar um comprimido e logo passa? — interveio Maurício.
— Não! Se for isso mesmo, pode evoluir para apendicite supurada, que é o rompimento do apêndice inflamado. Num caso extremo desses, o indivíduo pode até morrer.
Maurício pensou:
Bem que o caso do primo podia evoluir para apendicite supurada. Eu me livraria dele sem esforço, mas falou:
— Então precisamos correr até um hospital.
— Sim. Nem há tempo de ligar para meus pais.
— Você pode ir com ele no banco de trás — sugeriu Maurício. — Eu dirijo.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 5 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 9:17 pm

— Está bem — concordou Clarice.
Fernando quase não falava com tamanha dor. Foi se arrastando até o carro. Chegaram ao pronto-socorro de um bom hospital - Fernando tinha um excelente convénio médico coberto pela empresa — e fora constatada apendicite. Em algumas horas, Fernando estava na sala de cirurgia.
Sílvia e Clarice estavam na sala de espera, apreensivas. Maurício tentava confortá-las:
— Vai correr tudo bem — procurando ocultar o sorriso sinistro, torcendo, internamente, para que o médico tremesse a mão, errasse no corte, enfim, que alguma coisa desse errado no centro cirúrgico.
Ivan estava na administração, conversando com um dos médicos, amigo seu que coordenava parte do grupo que estava operando seu filho.
— Fique sossegado — tranquilizou o médico. — Fernando está em boas mãos. — Eu sei. No entanto, quando se trata do nosso filho, tudo muda de figura.
— Sei como é isso. Já passei por situação semelhante. Não se desespere. Vai correr tudo bem.
E correu. A cirurgia durou em torno de uma hora. Sílvia, Ivan, Clarice e Soraia, aflitíssima, no Rio de Janeiro, vibraram de alegria. Maurício, a um canto do corredor, afastado dos parentes, rilhava os dentes de raiva.
— Ele conseguiu se safar. Que cara de sorte!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 9:18 pm

Capítulo 34
O sol estava a pino quando algumas nuvens surgiram no horizonte, formando desenhos e figuras conforme a imaginação de quem os via.
Olavo estava ali, sentado no gramado, prestando atenção a uma grande nuvem que, para ele, mais se parecia a uma grande árvore. Sorriu.
— Queria continuar aqui — disse para si. — Adélia não é dona de mim. Eu posso fazer o que quiser. Não quero ficar naquele lugar. Quero ver Sílvia.
Nesse exacto momento, Sílvia vinha do mercado para deixar algumas compras em casa, acertar o almoço com a empregada e, logo em seguida, retornar ao mercado.
Logo que a viu, Olavo abriu imenso sorriso. Levantou-se e aproximou-se:
— Sílvia! Como está linda! O tempo só lhe fez bem.
Tentou abraçá-la e ela passou através dele, como se Olavo fosse um espectro, um aglomerado de fumaça.
Assim que transpassou, Sílvia sentiu um arrepio, e Olavo lhe veio à mente. Não era algo raro.
Naqueles anos todos, secretamente, ela, às vezes, pensava nele.
Não pensava no amor, nos momentos que poderiam viver juntos. Sílvia alimentava o tipo de pensamento que muitas pessoas geralmente mantêm: situações mal resolvidas com alguém.
Tentam resolver a situação tão somente na cabeça, imaginando cenários, situações, diálogos, o que poderia ter dito, o que diria hoje, o que não diria; remoem a mesma situação uma, duas, vinte, cem vezes, até durante muitos anos. São frases do tipo: “Se eu encontrasse fulano hoje, diria...”; “Ah, se aquela discussão fosse agora, eu, com a cabeça de hoje, argumentaria... ; fazendo com que as pessoas fiquem presas entre si, por meio de seus campos energéticos.
Sílvia estava conectada a Olavo dessa forma. Ela o atraía para si não por amor, mas por obsessão. O fato é que ficara muito magoada, desapontada e, anos atrás, quando Ivan regressara da viagem aos Estados Unidos e revelara a ela a conversa com Olavo, da boa impressão que tivera de Dorothy, e que estavam para ganhar mais um bebê, ela sentira uma ponta de rejeição. Tivera uma vontade enorme de estar frente a frente com Olavo para jogar-lhe na cara uma série de desaforos.
Por que, afinal de contas, estivera com ela durante três anos, declarara seu amor e, tempos depois, estava casado, com família formada? Por que ela não era a mulher com a qual ele formara esta família?
Essas e outras tantas perguntas ficaram matutando na cabeça de Sílvia por muitos anos.
Secretamente, ao longo desse tempo, passara noites mal dormidas com os olhos abertos, mirando o tecto, remoendo tais pensamentos, imaginando Olavo na sua frente, cobrando dele satisfações, exigindo-lhe as respostas as quais ela tanto ansiava, idealizando um dia qualquer, um momento oportuno para que essa conversa pudesse ter a chance de acontecer. Sílvia não tinha ideia de que Olavo havia morrido, ainda.
Ela entrou em casa, colocou as sacolas sobre a mesa. Foi até a pia, apanhou um copo, aproximou-se do filtro e encheu-o de água. Bebeu de um gole só. Passou as costas das mãos pela boca, suspirou e percebeu que transpirava.
A empregada percebeu o estado agitado e indagou:
— A senhora está bem?
— Sim. Um pouco de indisposição. Corri muito nesta manhã, muitos afazeres no mercado e me cansei com a lista do supermercado. Estou só um pouco cansada. Diga-me, Maurício acordou?
— Faz um tempinho. Levantou-se, tomou um banho, fez um bom café da manhã, comeu três pães, e avisou que não tem hora para voltar.
— Ele já assistiu ao show que tanto queria. Não sei o que o prende aqui. Não entendo esse menino. Tão perdido... — ela divagou um pouco e quis saber: — E Fernando?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 9:18 pm

— Disse que vai se arrumar para o trabalho. Precisam dele no escritório.
— Ele é louco! O médico lhe deu quinze dias de repouso. Ainda falta algum tempo. Esse menino é o oposto do primo. Que diferença!
— Melhor subir logo. Ele estava decidido a ir.
— Ainda está com os pontos!
Sílvia subiu as escadas, dobrou o corredor e entrou no quarto sem bater. Fernando estava apoiado na porta do guarda-roupa, escolhendo uma camisa.
— O que pensa que está fazendo?
— Oi, mãe. Vou voltar ao trabalho. Coisa rápida.
— De jeito nenhum. Não pode.
— A pele onde estão os pontos está praticamente cicatrizada. Até poderia retirá-los. Eu sou forte.
— Fico feliz com a boa recuperação, mas ainda faltam cinco dias.
— Muito tempo. Há coisas urgentes que trouxe comigo no dia em que fui levado ao hospital.
Preciso levar os documentos.
— Se sabem que operou, podem mandar um portador até nossa casa, ora!— Sim, mãe — Fernando tentava contemporizar. — Norton, meu chefe, prontificou-se a enviar alguém para buscar os documentos. Mas eu lhe dei a minha palavra de que iria levá-los pessoalmente.
— Ligue e diga que não pode fazer isso.
— Não tem como. Já acertei com ele. Não posso mudar de opinião e alterar o andamento da empresa de acordo com o meu humor, ou de acordo com a sua vontade. Eu estou bem, posso ir.
Sílvia sentiu uma dor no peito, leve sensação de desconforto.
— Não vá, Fernando. Sinto que ainda não deve sair. E se alguém esbarra em você? E se os pontos estouram? Não pode. Que custa esperar mais cinco dias? Não sei de onde veio tanta teimosia!
— Do meu avô, talvez. Seu Faruk era determinado, obstinado!
— Mas não era seu avô de sangue.
— De tanto convívio, devo ter herdado o jeitão dele — observou.
Enquanto Sílvia discutia com o filho, Olavo, atraído pela força magnética dela, estava ali presente. Sentado na cadeira próximo da escrivaninha, assistia a tudo e, ao ver Fernando, sentiu tremenda semelhança consigo próprio.
— Ele se parece comigo quando eu era jovem. Tem os meus traços. E é obstinado como eu.
Ele bem que poderia ser meu...
Uma avalanche de sensações percorreu seu corpo perispiritual, praticamente anestesiando-o.
Olavo espremeu os olhos e franziu o cenho:
— Hum, pensando melhor, esse moço não tem nada a ver com Ivan. Nada.
Nesse momento, Adélia apareceu ao seu lado.
— Ora, ora, encontrei o garoto fujão. Aonde o senhor pensa que iria? Para o céu? Estava atrás de uma nuvem para deitar-se e fugir de mim?
— Não. Não gostei do lugar a que me levou. Querem que eu entre em contacto com a minha “essência”. Não estou preparado. Não gosto de entrar nesse terreno.
— Compreendo. Sempre foi homem de fugir das emoções. Nunca quis entrar em contacto com seus sentimentos. Nunca quis sentir, sempre foi de pensar.
— É. Isso é.
— Agora é o momento de reflectir, de sentir, de perceber o que é bom para você, do que vale a pena gostar e o que não interessa mais em sua vida.— O que não interessa eu já sei. Não me interesso por Dorothy, por exemplo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 9:18 pm

Aliás, só tenho gratidão por essa mulher, porque por meio dela aprendi o que não é o amor. Ela foi essencial em minha vida. Por causa dela, aprendi a valorizar o que sinto por Sílvia.
— Que bonito! Isso é um avanço. Valorizar o que sente ajuda a expressar os sensos da alma. É disso que você tanto precisa para poder seguir em frente, nessa nova etapa.
— Mas preciso falar com Sílvia.
— Estamos providenciando isso.
Ele se animou.
— Vamos nos encontrar?
— Não da maneira como pensa.
— Queria tanto abraçá-la, beijá-la...
— Quem sabe, um dia.
— Perdi a chance, não?
— Por ora. Há tempo de sobra, se contar a eternidade, para reencontrá-la e poderem conversar. Agora precisamos sair daqui. Não é o lugar ideal para ficarmos.
— Não disse que vou conversar com ela?
— Por isso mesmo que precisamos sair. Venha, vou prepará-lo.
— Está bem. Eu vou. Só porque você é uma mulher linda, cheia de graça e perfumada.
Adélia riu com gosto.
— Obrigada.
— Só mais uma coisa.
— O que é?
— Esse moço que está conversando com Sílvia.
— O que tem?
— É filho dela, não? — quis saber Olavo.
— Sim.
— E do Ivan?
— Por certo.
— Ele se parece tanto comigo.— Vamos. O tempo urge.
Olavo segurou a mão de Adélia e, ao passar por entre Sílvia e Fernando, encarou o rapaz.
Seus olhos brilharam. Olavo teve certeza de que tinha alguma afinidade com aquele rapaz.
Ainda iria descobrir qual era.
De volta à conversa no quarto, Sílvia tentava, inutilmente, demover a ideia do filho de sair de casa. Maurício entrou e indagou:
— O que se passa? Acabei de chegar e a empregada me contou que o primo está a fim de meter o paletó e voltar à activa?
— É. Preciso voltar ao trabalho.
— Ele não pode, Maurício. Ainda necessita de repouso — interveio Sílvia.
— Mamãe não entende que tenho responsabilidades, primo. Eu me comprometi a entregar um relatório para meu chefe que está em minha pasta desde o dia da internação. Vou levá-lo.
Sou de cumprir com a palavra. E ele precisa desse relatório para tomar uma decisão
importante.
— Deixe-o ir, tia.
— Não. Não pode. Eu levo!
Maurício viu ali uma grande oportunidade de se passar por bom moço.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 5 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Mar 16, 2024 9:18 pm

— Eu faço isso. Eu levo o relatório. Entrego-o nas mãos do seu chefe. E ficamos todos bem.
— Faria isso? — perguntou Sílvia, segurando o braço do sobrinho, olhos emotivos.
— Claro, tia. Estou aqui para quê? Para ser útil, ajudar vocês, retribuir de alguma forma. É só me passar o endereço. Estou de boa, já sei circular bem pela cidade, sei até pegar o metrô!
— É fácil — comentou Fernando. — Pegando o ônibus na esquina de casa, desce na praça da República. O escritório da matriz fica naquela região. Você vai encontrá-lo facilmente e precisa procurar pelo Norton, meu chefe — e, voltando-se para Sílvia, completou: — Está feliz, dona Sílvia? Assim eu a deixo mais calma?
Ela o beijou várias vezes no rosto.
— Você é meu filho amado. Obrigada. Não custa nada esperar mais uns dias. E ainda pode contar com a prestimosa ajuda do seu primo.
— Por essa eu não esperava — exclamou, surpreso.
— Que é isso, primo?! Estou aqui para servi-lo — falou Maurício, forçando um sorriso.
Ao sair de casa e subir no ônibus, Maurício pagou a passagem e sentou-se em um dos bancos.
Abriu a janelinha e deixou que o vento soprasse em seu rosto, jogando seus cabelos para trás.
Fechou os olhos e sorriu:— Hoje eu começo a minar seu emprego, priminho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 12:10 pm

Capítulo 35
Fazia uma semana que Leocádia conversara com Jamil. E ligou para ele naquela manhã:
— Recebi inspiração para fazer uma sessão no sábado à noite, em casa.
— Eu não conversei com Sílvia.
— A orientação que recebi foi para não avisá-la sobre a morte de Olavo. Querem que ela, Ivan, Clarice, Fernando e você estejam na reunião.
— Eles quem?
— Os amigos espirituais. Já foi oferecida ajuda a Olavo. No entanto, ele se recusa a receber tratamento porque quer conversar com Sílvia.
— Não tem esse direito — irritou-se Jamil. — Deveria ter conversado com ela anos atrás. E por que levar Fernando? Ele ainda se recupera da cirurgia.
— Pelo que sei, até sexta-feira já deu o prazo de recuperação. Ele não vai voltar a trabalhar na segunda?
— Sim.
— Dois dias antes não vai lhe fazer mal algum. É importante que ele esteja lá.
— Tenho medo de que o passado venha à tona.
— Os espíritos são éticos. Não vão permitir que Olavo fale o que não precisa ser dito. Além do mais, seu sobrinho é hipersensível, precisa começar a ter contacto com a espiritualidade.
— Não acho justo — a voz dele estava num tom acima do normal.
— De nada adianta alterar o tom de voz. Lembre-se de que nada acontece por acaso. Cada um atrai para si as situações que precisa para desenvolver seus potenciais. Os desafios sempre surgem para nos fazer crescer. Não foi diferente com sua irmã.
— Ela sofreu bastante.
— Esta é sua maneira dramática de enxergar a situação pela qual ela passou. O seu discurso sempre foi de que não há vítimas.
— É diferente.
— Por quê? -— ele não soube responder e Leocádia continuou: — Eu vejo que Sílvia teve muita sorte.
— Sorte?!— Sim, Jamil. Sorte. Por causa da inconsequência de Olavo, por assim dizer, ela recebeu o carinho e apoio de Ivan, o que só fortaleceu o elo entre ambos, dando-lhes a chance de cultivar verdadeiros valores e criar uma família muito bonita. Se ela tivesse se casado com Olavo, teria sido tão feliz assim?
— Vendo a situação por esse ângulo...
— Eu sempre procuro enxergar as situações pelos bons ângulos. Por que devo olhar pelo lado ruim? Em que vai me ajudar?
— Vai ajudar a me precaver. Pelo menos, não vou cair em armadilhas, trapaças, pessoas querendo puxar o meu tapete. Eu acredito no bem das pessoas, mas, depois que passei a me relacionar com seu filho, senti e sinto na pele o peso do preconceito. Não é fácil viver sob o dedo acusador das pessoas.
— Você vive acuado porque se deixa intimidar.
— É fácil falar quando não é com você.
— Ora. João Carlos não está nem aí com os outros.
— Ele é diferente. Não trabalha aqui, vive mais no exterior, tem outro tipo de actividade. Eu estou aqui no meio da cidade, lidando com pessoas que não entendem minha forma de amar.
— Engano seu. Respeite-se e será respeitado; ame-se e será amado; fique do seu lado e se apoie, e as pessoas também ficarão do seu lado. Tudo depende de como você irradia suas energias. Se você está cem por cento do seu lado, apoiando-se constantemente, sem se autopunir um instante sequer, não vai sofrer reprimendas e, se elas vierem, você não vai lhes dar importância.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 12:10 pm

— Sinto vergonha.
— Porque não está do seu lado. Está ao lado do mundo, da sociedade, dos valores que um grupo de pessoas estabeleceu como “normal”, verdadeiro e que deve ser aceito. Não perguntaram a você o que sente, do que gosta, o que vai em seu coração. Você foi criado a não gostar de você e seguir normas que vão contra suas vontades.
— Isso é. Sempre foi assim. Cresci me sentindo inadequado.
— Você é a perfeição da natureza. Precisa se ver e se aceitar como um indivíduo amado pela vida. Dê o seu melhor para a vida, e a vida vai lhe dar o melhor.
— Eu bem que tento.
— Com essa voz fraca ao telefone? Ainda bem que não estou vendo sua cara!
Eles riram.
— Você tem o dom de me animar, Leocádia, e me deixar bem. Se não fosse a sua amizade e o amor que sinto por seu filho, não sei o que seria da minha vida. — Você é um bom homem, Jamil. Apenas não está cem por cento do seu lado. Ainda teme a sociedade, o que ela pensa de você, como ela o avalia. O dia que não der mais importância a isso, vai se sentir livre e viver melhor consigo mesmo. Lembre-se de que João Carlos gosta muito de você, mas ele tem seu limite.
— O que quer dizer com isso? — quis saber, preocupado.
— Nada. Cada um sabe de si. João Carlos não é mais um menino, é um homem com mais de quarenta anos. Ele quer viver ao lado de alguém que o valorize, que esteja ao lado dele para o que der e vier.
Jamil não soube o que responder. Mudou de assunto. Leocádia, já o conhecendo bem, não quis forçar a situação.
— Bom, Leocádia, a que horas pretende realizar a reunião?
— Você pode sair do mercado mais cedo? Eu gostaria de começar às oito e meia. Já conversei
com Clarice. Ela ficou de confirmar comigo, mas tenho certeza de que tudo vai dar certo.
— Está bem. Eu vou deixar o mercado nas mãos do Estêvão, meu funcionário de confiança. Sairei com Sílvia, passarei para ver mamãe, saber com a enfermeira se está tudo em ordem.
Tomo um banho, faço um lanche e vou para sua casa.
— Chegue um pouco mais cedo para me ajudar a preparar energeticamente o ambiente.
— Está certo. Conte comigo.
— Um beijo.
Jamil desligou o telefone e ficou pensativo por instantes. Tinha verdadeira paixão pelo conhecimento espiritual, interessava-se por entender os mistérios da vida, da morte, da mente humana, do sistema de crenças do indivíduo e do funcionamento do livre-arbítrio. Ainda lhe era difícil lidar com as tintas escuras do preconceito. E o que Leocádia lhe dissera sobre João Carlos o deixara profundamente inseguro.
Embora não tivesse trejeitos e não despertasse dúvidas em relação à sua masculinidade, sentia-se vulnerável porque era-lhe desconfortável ter de esconder sua homossexualidade.
Não gostava quando clientes, principalmente os mais antigos, vinham com perguntas:
“Quando vai se casar?”, “Cadê a namorada?”, “Esse partidão ainda não casou por quê?” e ele respondia com monossílabos ou mentia.
Na verdade, tinha vontade de dizer que já tinha alguém, que amava e era amado e muito feliz. E agora, quando acreditava que começava a ver abertura para se posicionar na sociedade, eis que uma doença terrível, incurável, fazia justamente a sociedade hostilizar, novamente, os gays. Parecia que o preconceito agora vinha com uma dose de crueldade, temperada com cheiro de morte.
Jamil espantou os pensamentos com as mãos e voltou para o balcão. Tinha muito trabalho pela frente. E o trabalho o ajudava a esquecer toda a série de conflitos que flutuavam sobre sua mente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 12:11 pm

Capítulo 36
Às oito e meia em ponto, os convidados estavam na casa de Leocádia. Sílvia, Ivan, Clarice, Fernando e Jamil.
Sílvia estava receosa. Fazia tempo que não frequentava as sessões espirituais. No começo, alegara que as crianças ocupavam muito de seu tempo, depois foi a desculpa do trabalho no mercado. E, assim, foi se afastando das visitas, sessões e conversas com Leocádia.
Ivan também não fizera questão de frequentar as sessões. Depois que lera e discutira alguns livros da doutrina espírita e outros livros espiritualistas com Leocádia, deu-se por satisfeito.
Também alegara que tinha muitos pacientes, a quantidade de partos aumentara sobremaneira e ele mal dava conta, por esta razão foi também se distanciando dos estudos e das visitas.
Clarice, em virtude da afinidade que tinha com Soraia e Jamil, descobriu cedo o gosto pelos assuntos de teor espiritual. De forma espontânea, conduzida pelo tio, aos treze anos, passou a frequentar as sessões na casa de Leocádia.
Fernando olhava a casa com olhos curiosos. Nunca lhe fora permitido frequentar a casa de Leocádia. Os pais não queriam, visto que Clarice, influenciada pelos tios, já lhes desobedecera.
Não queriam que o filho também se “metesse” com coisas do Além.
A princípio, embora não gostasse muito da ideia, Ivan teve de aceitar os argumentos da filha, afinal, Clarice era sua princesinha e conseguia tudo o que queria. Era muito fácil dobrá-lo. Mas, no fundo, ele não queria que seus filhos se ligassem a nenhum tipo de religião.
Ivan acreditava que toda e qualquer religião - na visão dele - era o ópio do povo, uma maneira torpe de pessoas manipuladoras conseguirem tirar proveito em cima do desespero daqueles que não acreditam na própria força, que necessitam de um deus que realize milagres em suas vidas.
Infelizmente, Ivan tivera uma educação muito rígida, com uma mãe católica fervorosa, devota de santos, cumpridora de promessas a todo instante. Crescera em um ambiente em que tudo era fruto do pecado, da danação, que a felicidade não era deste mundo.
Ao se tornar adulto, não quis entender o verdadeiro significado da fé, da religiosidade, enfim, não quis entender o real significado de Deus, que, na verdade, a vida é Deus em acção, tem sabedoria e sempre faz tudo certo.
Leocádia bem que tentou passar a Ivan a ideia de que a fonte do saber, essência da vida, está dentro de nós e que Deus fala por meio dela e nos faz perceber o que precisamos para suprir todas as nossas necessidades. Em vão.
No entanto, ao entrar na casa, ele se recordou de algumas sessões, encontros que tiveram, anos atrás. Sentiu forte emoção. Clarice percebeu o estado do pai, sorriu e ficou calada. Sílvia, ao seu lado, a princípio receosa, também fora tomada por forte emoção. Fernando sentia uma espécie de alegria misturada a angústia. Jamil, logo atrás, procurou tranquilizá-lo:
— Está tudo bem, querido. Ligue-se em bons pensamentos. Logo, tudo vai passar.
— Está bem, tio.
Sílvia indagou ao filho:
— Fernando, como se sente?
— Estou bem. Recuperado. Não tirei os pontos hoje cedo? Pare de tanta preocupação, por favor!
Ela sorriu.
— Está bem. Desculpe. Zelo excessivo de mãe.
Em seguida, ela apertou a mão de Ivan e murmurou:
— Não sei se é porque faz tempo que não vimos a esta casa, mas fui tomada por uma emoção inexplicável.
Ivan confidenciou:
— Senti o mesmo. Devem ser impressões do ambiente. Não vamos nos deixar levar por elas.
Jamil os conduziu até a sala preparada para a sessão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 12:11 pm

Uma luz azul suave iluminava a sala, transmitindo aconchego. Havia uma mesa com uma toalha de renda branca e sobre ela alguns livros, uma bandeja com uma jarra de água e copos.
No centro um vaso com lírios brancos dava um toque elegante e aroma agradável.
Leocádia, sentada, na cabeceira, fez sinal para que se sentassem. Sílvia e Ivan se sentaram de um lado da mesa rectangular. Clarice e Jamil, do lado oposto. Na outra ponta da mesa, sentou-se Fernando.
Jamil tomou a palavra e pediu para que todos ali procurassem serenar a mente, deixar os pensamentos do dia, as atribulações pelas quais haviam passado, ensinando-os um exercício de limpeza da mente prático e fácil de fazer para que o ambiente estivesse propício para o intercâmbio com os espíritos.
Após cinco minutos, Clarice sentiu o corpo estremecer levemente, a respiração oscilar e disse com modulação de voz alterada, um pouco mais grossa:
— Até que enfim!
Leocádia, sentada próximo dela, tocou em sua mão e indagou:
— Até que enfim digo eu, meu amigo. Como vai?
— Não tão bem como gostaria. Não conheço você.— Não me conhece, mas sabe o porquê de estar aqui. Está entre amigos.
— Não sei bem ao certo. Ele — apontou para Ivan — não é meu amigo.
Ivan levou um susto. Leocádia fez sinal para ele permanecer quieto. Ele assentiu. Clarice, incorporada pelo espírito, prosseguiu:
— Ele me traiu.
— Como? — quis saber Leocádia.
— Ele era meu amigo. Mas me traiu. Roubou de mim o meu amor.
Sílvia sentiu o corpo todo estremecer. Começou a suar frio. Em sua mente veio imediatamente a imagem de Olavo. Em pensamento ela disse:
Não pode ser!
Leocádia, tranquila, continuou:
— Roubou como?
— Ela era minha. Ele se casou com ela.
— Mas você a abandonou para se casar com outra. Você a traiu. Ela sofreu muito.
Houve um silêncio sepulcral. Clarice se remexeu na cadeira, a respiração oscilou e respondeu, chorosa:
— Na época não pensei. Não tinha maturidade. Estava com a cabeça em outra sintonia. Só alguns anos depois percebi o quanto a amava e o quanto fui burro por ter desprezado esse amor.
— E o que veio fazer aqui hoje?
— Pedir perdão a ela.
Sílvia sentiu a garganta apertar. Antes mesmo de as lágrimas descerem, o espírito disse, por meio de Clarice:
— Perdão, Sílvia. Eu preciso do seu perdão para continuar minha caminhada neste outro lado da vida. Desprezei seu amor e paguei alto preço por isso. Apenas preciso ouvir de você que me perdoa, caso contrário, não poderei seguir em paz.
As lágrimas escorriam e Ivan, sem saber ao certo o que fazer, segurou nas mãos dela, transmitindo-lhe força. Sussurrou-lhe no ouvido:
— Diga a Olavo que o perdoa.
— É difícil — ela disse baixinho. — Fui tomada de surpresa.
Leocádia interveio:— Só quem tem orgulho fica preso à mágoa e, por conta disso, não consegue perdoar.
Liberte-se da mágoa, Sílvia. Ela não lhe faz bem. Há anos que você gostaria de estar frente a frente com ele e conversar, dizer um monte de coisas, mas a vida sabe o que faz. Ele agora não vive mais neste mundo e arrependeu-se. Está ciente de que fez o que pôde.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 5 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 12:11 pm

— É muito difícil para mim. Não foi fácil ter de suportar a dor do abandono, da separação, enfim... — ela não queria se estender a fim de não comentar sobre a gravidez.
Ivan tomou a palavra e encarou Clarice, olhos baixos:
— Eu não o traí. Pelo contrário. Você a deixou sozinha, você a abandonou. O que poderia fazer? Eu a acolhi, eu tomei conta dela, fiz o que você deveria fazer e não fez.
Clarice, do outro lado, respiração ofegante, argumentou:
— Mas era meu amigo! Deveria ter falado comigo!
— Você não imagina o que passamos. Agora o passado está enterrado. Você deve seguir em paz.
Nesse momento, Clarice voltou os olhos para Fernando, que, juntamente com Jamil, estava de olhos semicerrados em prece. Em seguida, ela voltou os olhos para Sílvia e perscrutou seus pensamentos:
— Agora entendo tudo! Sei o porquê de ser tão difícil conseguir seu perdão. Meu Deus, eu fui um crápula!
Foi a vez de Ivan remexer-se na cadeira. Ele notara que Clarice, incorporada, passara os olhos em Fernando e, em seguida, pousara-os em Sílvia. Disse em pensamento:
Ele descobriu que é pai de Fernando!
Clarice, chorosa, ouviu de Olavo:
— Agora eu é que devo lhe pedir perdão, Sílvia. Mil vezes, perdão!
Ela arregalou os olhos.
— Não. Não precisa. Creio que, como Ivan disse, o passado está enterrado. O que passou, passou. Você agora tem um novo caminho a seguir. Desejo-lhe o melhor, do fundo de meu coração.
— Eu sei. Sinto isso. Sei que, no fundo, você gosta de mim — Ivan sentiu uma ponta de ciúme e Olavo prosseguiu: — Já vivemos juntos antes. Sempre nos machucamos em nome do amor.
Nesta vida, tivemos a chance de viver novas experiências, sentir o amor de verdade. Você, ao menos, tem essa chance. Eu não tive. Casei-me com uma mulher que acredito nunca ter me amado.
— Não se martirize. Está tudo certo, agora. Siga seu caminho. Se precisa ouvir, então está bem: eu o perdoo.— Adélia, minha mentora, diz que preciso partir. Preciso ir. Antes, preciso dar um recado a Ivan.
Sílvia e Ivan estremeceram. Será que a verdade viria à tona? Ivan suou frio. Um pingo escorreu pelo canto da testa. Clarice, voz rouca, disse-lhe:
— A minha colega aqui do astral diz que não vai demorar muito e um acontecimento vai fazer você reflectir sobre questões da existência e querer retomar os estudos espirituais—e, voltando os olhos para Fernando, olhos marejados, reconheceu: — Embora não o tenha conhecido, sinto grande afeição por você. Que sua vida seja repleta de sucesso e paz! Adeus.
Clarice soltou um suspiro e seu corpo pendeu para a frente. Em seguida, ela se espreguiçou, abriu os olhos e considerou:
— Meu Deus! Que homem de personalidade marcante! Eu estava semiconsciente e senti as emoções dele. Estava sinceramente arrependido. Por que necessitava tanto de seu perdão, mamãe?
Leocádia pegou o jarro com água e serviu os copos. Depois que todos beberam a água fluidificada, Sílvia, enxugando a boca com as costas da mão, disse, voz melíflua:
— Um antigo namorado. Brigamos, ele se mudou para o exterior e nunca mais nos vimos.
Depois da briga, casei-me com seu pai.
— Vocês dois eram amigos? — quis saber Fernando, dirigindo o olhar ao pai.
Ivan o encarou e admitiu, meio sem jeito:
— Fomos. Mas, depois da discussão, ele foi embora sem avisar e não tivemos mais contacto — mentiu, omitindo a viagem que fizera aos Estados Unidos e o encontro com Olavo, muitos anos atrás.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 12:11 pm

— Por que ele disse que sente grande afeição por mim? E que deseja que minha vida seja de sucesso? Se ele foi embora antes de vocês se casarem, eu nem havia nascido — observou Fernando.
Jamil interveio:
— Tenho certeza de que é um espírito amigo de outras vidas.
— Ah, pode ser.
Sílvia fez um sinal mudo de agradecimento a Jamil. Ivan fez o mesmo. Não desejavam, de forma alguma, revelar a verdadeira ligação entre Olavo e Fernando. Para quê?
Leocádia pediu para que se dessem as mãos e encerrou a sessão. Ao final, terminou com palavras belíssimas:
— E vamos sentir a presença de Deus, acreditar e crer em seu poder divino, que nos ama e tudo dispõe a nosso favor. Vamos, neste momento, abrir o nosso coração para a luz que os amigos espirituais nos lançam e mentalizar energias de amor, de alegria, de paz e, principalmente, de perdão, que foi o principal assunto da sessão. Que possamos firmar o propósito de manter essa sintonia, fazendo brilhar a luz que carregamos no coração.
Nesta noite, todos os participantes da sessão, encarnados e desencarnados, dormiram muito bem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 12:11 pm

Capítulo 37
Voltando ao meio da semana...
Maurício saltou do ônibus na Praça da República, atravessou o lago, passou pelo prédio da Escola Caetano de Campos e, do outro lado da praça, encontrou o prédio onde Fernando trabalhava.
— É aqui que o almofadinha trabalha. Vamos ver.
Ele retirou o envelope que prendia sob o braço, abriu-o e, de forma cuidadosa, retirou duas folhas, sem critério.
— Relatório incompleto. Quero ver o que o chefe vai dizer.
Ele passou pela recepção, jogou seu charme para a atendente, subiu com facilidade, chegou ao andar, conversou com a secretária como se fossem amigos de infância. Ao ser atendido pela assistente do chefe, abriu largo sorriso. Com boa lábia, entregou o envelope e disse:
— Fernando informou que está tudo aqui, do jeito que o senhor Norton pediu.
— Nossa! Estão precisando disso para “ontem”. Que bom que chegou a tempo! Você é...
— Sou primo dele. Prazer. Maurício.
— Encantada, Sheila.
— Queria saber como faço para chegar à Rela Cintra, sentido Jardins.
— É fácil. Está de carro?
— Não. Estou usando táxi, porque estou de férias, a passeio.
— Pelo sotaque e pela cor da pele, bronzeada, diria ser do Rio.
— Acertou. Gosta?
— Do Rio?
— De carioca.
Ela ficou encabulada e disse, tímida:
— Adoro. Por quê?
— Se não for fazer nada depois do expediente, bom — ele consultou o relógio e fez o convite:
— Poderia sair comigo para uma bebida, um papo...
Ela abriu e fechou a boca, extasiada. Pensou: Meu Deus! Um homem desses me chamar para sair? Tirei a sorte grande. E respondeu:
— Claro. Se não se importar, pode aguardar naquela salinha — apontou — e não vou demorar para sair. Preciso entregar esse relatório para o meu chefe, estamos terminando a reunião. Já vou sair.
— Está bem, gata. Espero, com o maior prazer.
Maurício sentou-se confortavelmente no sofá, ligou seu walkman e colocou os fones de ouvido. Virou a fita cassete e logo uma música dançante encheu seus ouvidos. Ele fechou os olhos e deixou-se conduzir pela melodia.
Dez minutos depois, Sheila apareceu e tocou em seu ombro.
— Vamos?
Ele tirou os fones e desligou o aparelho.
— Claro. Vamos, sim.
Pegaram o elevador e, na saída, ela fez um sinal:
— Meu carro está no edifício-garagem logo ali.
— Vamos de carro?
— Melhor. Você é turista, não conhece muito bem a cidade, pode se perder — ela falou de maneira provocativa.
Pegaram o carro, foram até um bar nos Jardins, beberam, conversaram e terminaram na casa dela. A transa com a moça não foi lá essas coisas. Ele estava mais interessado em usufruir das coisas boas que ela estava lhe oferecendo — pagando as contas do bar, restaurante — e estava doido para saber se a retirada dos papéis do relatório tinha surtido algum efeito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 12:11 pm

— Nossa, eu não sou de comentar nada do meu trabalho. E você é primo do Fernando. Mas acho que ele está em maus lençóis.
— Por quê?
— Sei que ele teve de fazer uma cirurgia de urgência, ficou uns dias em casa; contudo, estava preparando um relatório para a directoria fazia tempo. Disse que tinha competência para fazer sozinho.
— E o que aconteceu?
— Enviou pela metade, faltando pedaços, deixou o senhor Norton com cara de tacho na frente dos superiores. Ele quase teve um chilique. Não sei, não, mas você jura que não vai contar nada?
Maurício fez cruz com os polegares, beijou e depois disse:
— Juro. Palavra de honra.— Tenho certeza de que esse relatório malfeito vai custar o emprego do seu primo. Fernando vai ser demitido.
Maurício sentiu um prazer tão grande que, naquele momento, não escutou mais nada.
Atirou-se sobre Sheila e a amou com toda sua força, deixando-a extasiada. Não a amou porque a desejava, mas porque sentiu um prazer inenarrável. Destruir Fernando o deixava feliz. Muito feliz.
Na segunda-feira, quando Fernando retornou ao trabalho, nem o deixaram seguir para sua mesa. Foi encaminhado para o Departamento Pessoal.
A princípio, ele acreditou que fosse para acertar questões relativas ao seu afastamento. Ao chegar lá, a notícia de Akira, o chefe da seção de pessoal havia vinte anos e que sempre dava as notícias no mesmo tom, do mesmo jeito, sem alterar a modulação de voz:
— Sinto muito, Fernando. Era para ser por justa causa, contudo, como houve o afastamento de quinze dias e tal, a empresa está pagando tudo, mais o aviso prévio e um extra. Enfim, querem se livrar de você de qualquer jeito.
— Mas o que houve?
— O seu Norton nem quer olhar na sua cara. Disse que, se o vir, vai arranhá-lo todo. Está decepcionado.
— Fiz um relatório tão minucioso. Tão perfeito.
— Bom, melhor assinar tudo aqui e sair na paz.
— Não. Quero falar com ele.
— Ele foi para Curitiba. Reunião com o pessoal da granja. Esquece.
Fernando assinou a carta de demissão com um nó na garganta.
Entregaram seus pertences ali mesmo no Pessoal e, no fim da tarde, quando ligou para Clóvis, colega que se sentava ao seu lado no escritório, escutou:
— Norton odiou seu relatório. É só o que eu soube.
— Não é possível, Clóvis.
— Mas é.
— Preciso falar com ele. Tenho de me explicar. Alguma coisa estranha aconteceu. Eu me dediquei, você bem sabe.
— Sim. Achei estranhíssimo — ele baixou o tom de voz. — Dizem que ele ficou pé da vida com você. Queria arrancar seu couro. Chamou-o de tudo quanto foi nome. Disse que havia se arrependido de tê-lo contratado, que você era um irresponsável.— Não pode ser.
— Mas é.
Fernando desligou o telefone abatido. Maurício entrou no quarto e indagou:
— E aí, primo, o que foi?
— Você não faz ideia. Fui demitido.
Maurício jogou-se na poltrona em frente à cama. Fez ar de surpresa:
— Não! Mentira!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 12:12 pm

— Nossa! Mas eu levei o relatório que você fez. Não era importantíssimo?
— Pois é. Esse relatório... — Fernando coçou o queixo e perguntou: — Diga-me uma coisa.
Você mexeu no relatório, Maurício?
— Como assim?
— Abriu o envelope, deixou cair alguma folha, sei lá!
— Primo, por quem me toma? Quem pensa que sou? — Maurício fez cara de ofendido. — Poxa, eu vou numa boa entregar o negócio para você no trabalho e desconfia de mim?
— Não é isso...
Sílvia entrou no quarto:
— O que foi?
Maurício aproveitou a deixa:
— Tia, acredita? Seu filho acha que eu boicotei o trabalho dele. Diz que fui o responsável por ele ter sido demitido. Pode isso?
— Verdade, filho?
— Não foi isso que eu disse — defendeu-se Fernando.
— Mas foi o que “quis" dizer — contra-argumentou Maurício. — Muito feio. Assim, me ofende.
— Desculpe-me. Estou de cabeça quente.
— Eu vim aqui porque sua tia está ao telefone. Diz que sonhou com você e está aflita.
— Tia Soraia sempre me acalma. Fernando levantou para atender o telefone, e Maurício sentiu um ódio surdo brotar dentro de si.
Sílvia percebeu a alteração de estado de humor do sobrinho. Notara tal estado desde sempre, pois Soraia fazia diferença de tratamento entre o sobrinho-afilhado e o próprio filho.
Acercou-se de Maurício e, acariciando seus cabelos ondulados, disse-lhe:
— Querido, não leve a mal. Sua mãe tem uma relação especial com Fernando. Eu também tive minhas crises de ciúme. Hoje entendo que cada um dá o que tem. Eles têm uma ligação afectiva muito forte.
— Então, por que ele não nasceu filho dela? Por que não nasci seu filho ou de outra?
Ela o abraçou.
— Porque, mesmo não sendo estudiosa da espiritualidade como sua mãe, seu tio ou sua prima, eu acredito que nascemos no lugar que devemos nascer, com as pessoas com as quais precisamos conviver, seja para fortalecer os elos de amizade e amor, seja para superar as desavenças e animosidades.
— No meu caso...
— Você e Soraia vieram para superar desafios do passado. Tenho certeza disso. Sua mãe o ama, mesmo assim. Do jeito dela. No fundo, você também a ama.
— Não sei. Fiz de tudo para que ela gostasse de mim. Ela nunca me olhou como eu queria.
— Aí é que está. Você queria que ela gostasse de você da maneira que você idealizou.
Sonhou, criou na mente a mãe ideal, talvez porque tenha visto outras mães mais amorosas e tenha desejado o mesmo. Todavia, cada pessoa é única, tem suas qualidades, seus pontos fracos e, como disse, apenas pode dar o que tem. Não dá para exigir além daquilo que não se pode dar.
— É duro, tia. Ela e Fernando. Fernando e ela, dona Soraia.
— Por outro lado, Paulo o idolatra. Até acho que o estragou um pouco de tanto que o mimou.
— Meu pai não me estragou — defendeu-se. — Ele só deu o que minha mãe não me deu.
— Seu pai não lhe deu limites. Você cresceu sem cercas, não soube nunca escutar um “não”.
— Mas, quando Clarice diz “não”, eu respeito.
— Porque a ligação de vocês é especial.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 5 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 12:12 pm

Ele sorriu.
— Isso é. Clarice tem o dom de me acalmar. Ela me deixa bem. Ela me faz um bem tremendo! — A isso damos o nome de afinidade. É um processo, puro e simples. A medida que você dá, você recebe. Como sempre teve uma relação de afecto muito forte com Clarice, deu e recebeu muito amor.
— E com minha mãe...
— É, com Soraia...
Fernando entrou no quarto e os interrompeu:
— Primo, já sei o que vou fazer para sair dessa tristeza.
— O que vai fazer? — indagou curioso.
— Vou passar uns dias no Rio. Na sua casa!
Maurício teve a nítida impressão de que uma veia do pescoço ia explodir, tamanho ódio. Teve vontade de abrir um buraco e desaparecer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 9:08 pm

Capítulo 38
Fazia uma semana que Fernando havia chegado ao Rio de Janeiro. Soraia havia se transformado em outra pessoa. Estava mais alegre, sorridente, andava com o sobrinho para tudo quanto era canto da cidade. Passeavam todos os dias, não se desgrudavam.
Quem não gostava nada disso era Maurício. Quando mãe e primo passavam por ele, ciciava:
— Aonde a vaca vai, o boi vai atrás... — cantarolando o megas-sucesso de João da Praia. — Parece que a música foi feita para eles — ironizava.
Soraia chegou a chamá-lo, uma, duas vezes para participar dos passeios, mas ele os recusou.
— Não vou perder tempo em ir aos lugares frequentados por turistas. Acho um saco!
— Pior para você — disse ela, puxando Fernando pelo braço. — A última vez que o levei ao Pão de Açúcar, você tinha onze anos. Faz tanto tempo que até trocaram os bondes.
Ele deu de ombros.
- Podem ter trocado os bondes, mas a paisagem é a mesma, as filas são insuportáveis do mesmo jeito e não tenho saco para aguentar esse tipo de programa. Eu passo. Prefiro encontrar meus amigos na praia.
— Quero marcar contigo de irmos à praia dia desses — ajuntou Fernando.
Maurício fez que não ouviu. Entrou no quarto para se arrumar e ir à praia. Em seguida, voltou para o corredor e avisou:
— Se vão sair, usem táxi ou ónibus. Eu vou precisar do carro.
— Nada disso — protestou Soraia. — Seu primo é visita. Nós é que vamos usar o carro.— Meu carro — enfatizou Maurício.
Deu-se início ao bate-boca. Fernando procurou contemporizar. Apartou mãe e filho, colocando-se entre os dois e por fim disse, com calma:
— Eu e a dinda vamos de táxi.
— Não — protestou Soraia.
— Melhor, tia. O trânsito perto do Pão de Açúcar fica carregado, lento. Melhor irmos de táxi.
Também temos tempo de conversar porque não precisamos prestar atenção em nada.
— É verdade. Só eu e você. Maurício bufou e fungou. Separou-se dos dois, voltou para o quarto e bateu a porta com força.
— O que deu nele, tia?
— Coisa de hormônio, vai saber. Maurício tem um génio difícil. Não sei lidar muito bem com seu primo. Mas ele vai ficar bem. Assim que chegar a Ipanema, ele sossega. Vamos.
Soraia apanhou a bolsa sobre o console e saíram.
Assim que saltaram do bondinho que fazia o segundo trecho, entre o Morro da Urca e o Pão de Açúcar, Fernando sentiu uma lufada de ar fresco, que fez esvoaçar seus cabelos.
Olhou para os lados e para o alto e sorriu:
— Tia, o dia está perfeito para este passeio. Não há uma nuvem no céu. Daqui do alto poderemos ver a cidade toda.
— Pois sim. Faz tantos anos que não venho aqui. Estou toda arrepiada. Veja — apontou para os pelos dos braços, eriçados.
— É muita emoção. Vamos caminhar.
Fizeram o passeio pelos arredores, tiraram fotos, apreciaram a vista da cidade e, depois de um tempo, foram até a lanchonete. Sentaram-se, pediram água, suco e salgadinhos.
Conversaram amenidades e, num determinado momento, Fernando comentou:
— Na sessão que houve outro dia lá na casa de Leocádia, aconteceu algo inusitado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 9:08 pm

Soraia já sabia de tudo o que tinha acontecido, porquanto Jamil lhe relatara os pormenores da sessão no dia imediato, mas procurou fingir surpresa:
— O que seria?
— O espírito que lá apareceu foi pedir perdão para minha mãe.
— Fiquei sabendo por alto. Seu tio Jamil me fez um resumo da reunião.
— Quando Clarice estava para desincorporar, ou seja, quando o espírito comunicante estava para se desligar dela e partir, virou-se para mim e disse que me tinha muita afeição.
— É?
— Ah, por que um espírito que nem se identificou na sessão, foi pedir perdão para minha mãe, virou-se para mim e disse que tinha enorme afeição por mim?
Soraia estremeceu e remexeu-se na cadeira. Bebericou seu suco, divagou e respondeu:
— Deve ser um guia.— Guia não viria para pedir perdão. Concorda?
— Tem razão — ela mordiscou os lábios. Não queria continuar aquela conversa. Pediu intimamente aos céus, aos anjos, aos espíritos, a tudo o que tinha fé e acreditava piamente para ajudá-la naquele momento e fazer com que Fernando parasse de lhe fazer tantas perguntas.
— Tive a sensação de que aquele espírito tem algo muito forte comigo. Não sei explicar. Não sei. Sabe quando o coração bate mais forte? Parece que existe um elo, uma conexão mais profunda, sabe?
Não, não sei. Não quero saber. Você também não quer nem deve saber, era o pensamento dela, mas disse:
— Imagino. Contudo, você estava ainda se refazendo da cirurgia, que veio assim, de surpresa, estava com o emocional ainda abalado — e foi enrolando, falando o que vinha na cabeça para ver se Fernando saía do assunto, mudava o foco.
Até que o invisível escutou seu chamado. Uma amiga em comum apareceu e a cumprimentou, quebrando a onda de indagações do sobrinho, por ora.
— Soraia! Você aqui no alto do Pão de Açúcar? Não creio.
— Micaela. Quanto tempo! — Soraia levantou-se para abraçá-la e beijá-la. Fernando levantou-se em seguida. Soraia o apresentou: — Este é meu sobrinho, também afilhado, Fernando. É de São Paulo.
— Prazer.
— O prazer é todo meu, querido — sorriu ela, simpática.
— E você, o que faz aqui?
— Estou com um grupo de turistas suecos, menina. Esta semana eu já subi e desci estes morros umas trinta vezes.
Os três riram.
— E você, o que anda fazendo?
— Nada, em especial, Micaela. Cuidando da casa, tentando botar juízo na cabeça do Maurício.
— Difícil — a amiga ajuntou. — Em todo caso, água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Um dia, quem sabe, ele não toma jeito?
— Quem dera! — exclamou Soraia, em seguida, indagou: — Diga-me. Você que conhece metade do Rio de Janeiro, pode me dar uma forcinha?
— O que é?— Meu sobrinho está à procura de emprego. É um óptimo gerente administrativo.
— Não seja por isso — e, virando-se para Fernando, disse: — Eu tenho alguns amigos empresários, conheço gente que trabalha em banco, em tudo quanto é ramo, enfim... façamos assim — ela retirou um cartão da bolsa e o entregou a ele: — Você prepara seu currículo e, quando tiver feito uma meia dúzia de cópias, me liga e marcamos para você entregá-los para mim. Eu poderei distribuir, com o maior prazer.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 5 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 9:08 pm

— Nossa, muitíssimo obrigado!
— Imagine. Tenho uma dívida eterna de gratidão com seu tio Paulo. Se não fosse ele, eu estaria morta.
Fernando arregalou os olhos e ela prosseguiu:
— É. Dez anos atrás fui presa pelos órgãos da ditadura. Se não fosse o seu tio mexer uns pauzinhos, eu estaria enterrada em uma vala, em cemitério clandestino. Mas deixemos a história para lá -— Micaela abraçou Soraia com ternura. — Sabe que você e Paulo sempre vão morar no meu coração. Se puder ajudar seu sobrinho, vou ajudar. Com o maior prazer.
Despediram-se. Soraia comentou, convicta:
— Algo me diz que você não vai mais voltar para São Paulo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 9:09 pm

Capítulo 39
Dorothy folheava o jornal do dia, colocando-se a par das notícias do país e do mundo. Virou a página e fez uma careta:
— Argh! Sempre as mesmas notícias trágicas. Será que não há notícia melhor? — apanhou o caderno de Cultura e sorriu ao ler: “Hoje estreia a Rede Manchete de Televisão”. — Mais uma emissora de tevê. Que coisa boa! Tomara que apresentem programas de qualidade para a população.
A secretária entrou na sala e anunciou:
— Dona Dorothy, sua filha Rachel está na saleta, fazendo um escarcéu. Gritou com deus e o mundo. Exige falar com a senhora imediatamente.
Dorothy girou os olhos nas órbitas.
— Gosh! Meu Deus! Essa menina não dá sossego. Mande ela entrar, vai.
A assistente fez sim com a cabeça e saiu. Um minuto depois, Rachel entrou na sala. Usava um vestido tomara que caia, cabelos presos num rabo de cavalo e sandálias de dedo. No braço, uma bolsa de praia, enorme, sem contar chapéu e óculos escuros sobre a testa.
— Mummy, oi.
— O que deu em você? Que mania é essa de ter chiliques?
— Não tive nada. O problema é ser atendida na recepção por aquela negrinha — Rachel fez uma careta. — Onde pensa que está com a cabeça?
— Não entendi o comentário. A mim, parece um comentário idiota.
— Bem, mummy, sabe que eu não tolero gente de cor. Se nasci branca, é porque tenho de conviver somente com pessoas de pele branca. Não gosto dessa mistura de raças, como ocorre neste país. Um horror!
Dorothy levantou-se, aproximou-se de Rachel. Com o dedo em riste, disse, indignada:
— Não sei o que seu pai lhe ensinou, mas percebo que não lhe mostrou como respeitar as diferenças, que somos todos, neste planeta, pessoas. Apenas pessoas. A cor da pele é só uma característica, mais nada. Comporta-se como pessoa ignorante. Aliás, todo preconceituoso, para mim, é ignorante.
Rachel respirou fundo e prosseguiu:
— É meu direito não gostar dessa gente.
— É meu direito pedir para você se retirar daqui, agora. Não tolero gente estúpida e atrasada. — Está me confundindo com um negro. Daqui a pouco, talvez seja capaz de se separar de Nelson e... — ela levou o dedo ao queixo e falou: — Amancebar-se com um escurinho. Isso não vou tolerar, além do mais...
O tapa veio de supetão. Dorothy encheu a mão e acertou em cheio o rosto da filha, impedindo-a de proferir mais asneiras. Rachel levou a mão ao rosto e afastou-se, incrédula:
— Nunca encostou o dedo em mim. Como pode?
— Não sou a favor da violência; contudo, você deveria ter levado uma boa surra quando começou a falar esse monte de besteiras. Eu cortaria o mal pela raiz.
Os olhos de Rachel estavam cobertos de cólera.
— Vai se ver comigo.
— Juro que deveria haver leis que impedissem ou que punissem pessoas como você, que só fazem mal ao convívio humano.
— Não há lei. Eu falo o que quiser.
— Não é bem assim. Você pode escolher, sim, o que dizer, à vontade. No entanto, terá de arcar com as consequências de suas escolhas. Todo mundo tem de acertar contas com a vida, uma hora ou outra.
Ela gargalhou.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 5 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 9:09 pm

— Acerto de contas? Fala sério! Neste mundo não existe acerto nenhum. E, além do mais, sou capaz de denegrir sua imagem no mercado apenas para ver suas vendas sofrerem abalo.
— É uma ameaça? Eu pago um profissional para atestar que é doente da cabeça. Eu a interno num sanatório. E a sociedade se livra de um ser preconceituoso e atrasado como você. Aliás, eu a transformo em uma pária da sociedade.
— Está bem. Chega. Não vou mais brigar. Não vim aqui para falar sobre raça — e mudou o tom: —Afinal de contas, que história é essa de bloqueio das minhas contas? Acabei de chegar do banco e a transferência do exterior não veio. Quase bati na gerente.
— Você não tem modos. Parece um animal não domesticado. Não sei o que seu pai fez com você esses anos todos, mas modos não lhe deu.
Rachel fez um muxoxo.
— Não foi o que perguntei, no entanto, como quero ficar em paz, vou responder o seguinte: meu pai, ao menos, me deu carinho e amor, algo que você não soube me dar.
— Sempre a tratei muito bem. Não cobre de mim o que não tenho a oferecer.
Rachel a encarou com desdém.— Se fosse possível escolher a mãe, você jamais estaria na minha lista. Enfim, creio que estamos empatadas no quesito “gostar”.
— Não. Você não gosta de mim. É diferente. Eu gosto. Só não a amo como você idealizou. E também não imagino as ideias que seu pai colocou na sua cabeça a meu respeito.
— As piores possíveis, pode ter certeza. Não só ele, como alguns parentes com os quais tive contacto em nossa terra natal — ela balançou a cabeça num gesto gracioso, movendo o rabo de cavalo e prosseguiu: — Não vim também para fazer terapia de família. Quero saber o porquê de minha remessa não ter chegado. Pode verificar isso agora com o banco?
— Isso é uma ordem?
— Entenda como quiser.
Dorothy meneou a cabeça de forma negativa, soltou um longo suspiro. Novamente encostou o dedo no nariz da filha:
— Escute aqui. Você já recebeu, semana passada, o dinheiro do mês.
— Acabou. Liguei para os administradores do fundo e exigi que enviassem uma quantia extra.
Descontando a burocracia tupiniquim, deveria chegar entre ontem e hoje. Não chegou.
Infelizmente, preciso da sua ajuda.
— O dinheiro só sai uma vez por mês. Nem mais, nem menos. É regra do fundo fiduciário. Vai ser assim até você morrer, daqui a muitos anos, solteira, casada, viúva, com ou sem filhos.
Rachel sentiu o sangue subir pelas faces.
— Isso não pode! Eu sou rica! Podre de rica! Não posso viver com essa merreca que pinga mensalmente na minha conta. Chega a ser cruel!
Dorothy riu.
— Você é patética. Uma garota mimada, que nunca fez nada na vida e não sabe valorizar nada, tampouco dar valor a nada nem ninguém. Pelo contrário, é racista, preconceituosa, estúpida. Por isso acredita que deva ser tratada como a rainha de Sabá.
— Rainha de onde?
— Além do mais é burra. Não estudou, não aproveitou as benesses do dinheiro, não correu o mundo e absorveu conhecimento. Só quis saber de farras, sexo, cigarro e vai saber quais outras drogas experimentou. Nem quero saber. E tem mais: tem essa doença nova na praça, matando um monte de gente. Tome cuidado com quem você se deita.
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