LUZ ESPÍRITA
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 3 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 10:03 am

Paulo não notava esse apego excessivo entre a esposa e o sobrinho, de tão paranóico que estava com os cuidados excessivos e absurdos com Maurício. Até a relação íntima entre o casal, por um momento, esfriou.
— Não estou gostando muito desse vínculo tão forte entre Soraia e Fernando. Já viu como ele fica quando ela o deixa em casa? Duas horas de choro. É muito dengo — observou Sílvia.
— Deixe o menino. Eles se adoram — devolveu Ivan.
— Não é você quem tem que fazê-lo aquietar-se. Não vê o trabalho que dá. Além do mais, esta casa é grande demais, estou cansada.
Ivan a olhou por cima dos óculos. Nunca vira Sílvia lhe falar de maneira tão ríspida.
— O que está acontecendo?
— Nada — ela bufou. — Não está acontecendo nada.
— Como não? Você está uma pilha de nervos.
— Não. Eu só me casei porque não queria ser achincalhada pela sociedade, você caridosamente aceitou casar-se comigo. Viemos morar numa casa boa, mas grande, em um bairro ao qual ainda não me adaptei. Meu filho, que seria meu alento, está mais apaixonado pela tia do que por mim. Isso quer dizer que não nasci para ser amada. Estou farta, Ivan. Estou cansada...
Ela se deixou cair sobre uma cadeira e começou a chorar. As lágrimas corriam sem cessar.
Ivan não sabia ao certo o que fazer. Num primeiro momento a olhou de maneira perplexa, pois nunca vira Sílvia perder o controle.
Em seguida, sensibilizou-se. Ele também estava sentindo um grande vazio. Viviam como um casal, tinham um filho adorável, mas faltavam amor, carinho e sexo. Eles estavam naquela casa representando o papel de marido e esposa, porém, no dia a dia, viviam como dois amiguinhos, irmãos. Ele também não sabia o que fazer, como proceder.
Ivan até tinha ido, algumas vezes nesses pouco mais de três anos de casados, a casas de prostituição para saciar seu desejo sexual. Deitar-se ao lado de Sílvia era um martírio. Não poder tocá-la era algo terrível para ele.
De certa maneira, compreendia o que se passava com ela. Foi até a cadeira, abaixou-se e tocou nos braços dela.
— Entendo como se sente. Fizemos o que achamos melhor, para o momento, no entanto, percebo que não estamos felizes.
— Não, não estamos.
— O que sugere? O desquite?
Ela o olhou de forma surpresa:
— Desquite? Gostaria que nos separássemos?
— Não é isso. Apenas percebo que está infeliz. Talvez, se eu a deixasse livre, quem sabe encontraria alguém que pudesse amar de verdade...
Ela o interrompeu:
— Com um filho a tiracolo? Neste país? Está louco, Ivan? Uma mulher desquitada com filho não serve para nada. Eu só serei abordada por outros homens casados à procura de aventura.
As minhas amigas deixarão de me visitar, com medo de que seus maridos possam se interessar por mim. Infelizmente, eu não tenho forças para enfrentar a sociedade. Não sou como outras mulheres à frente do nosso tempo. Queria ser mais forte, mas não sou.
— Então, o que posso fazer?
Ela o encarou e nada disse. Mas pensou: Você poderia deixar de me olhar como amiga e me ver como mulher. Será que não lhe desperto o interesse?
Ivan percebeu um brilho diferente nos olhos dela. Teve vontade de beijá-la, de levá-la para o quarto, de amá-la.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 10:03 am

Entretanto, veio-lhe a imagem de Olavo. Era seu melhor amigo e não tivera conhecimento de que tinham se casado. Ele se sentia na obrigação de conversar com Olavo, de colocar tudo às claras. Quem sabe, depois de uma conversa...
Ivan reflectiu, levantou-se e pigarreou:
— Bom, faremos o seguinte: eu vou viajar. Duas semanas.
— Para onde?
— Fui convidado para participar de um seminário sobre novos caminhos da obstetrícia em Nova York. O hospital vai cobrir todas as despesas.
— Por que não me falou antes?
— Soube ontem — ele mentiu, porque, na verdade, Ivan havia recusado o convite. E, surpreso, revelou: —Agora, pensando melhor, creio ser óptima oportunidade para estender a viagem e encontrar-me com Olavo, conversar com ele cara a cara e resolver a questão.
Ela estremeceu.
— Conversar com Olavo? Contar sobre nós?
— Claro. Ele precisa saber que nos casamos.
— E vai lhe falar de Fernando?
— Depende do rumo da conversa. Sabe que não gosto de mentiras.
— Omitir não é mentir.
— Tem razão. Não quero pensar nisso. Contudo, preciso conversar com ele.
— E posso ir junto? Gostaria de encará-lo.
Ivan sentiu uma ponta de ciúme que não deixou transparecer. Fez de tudo para ocultá-la.
— Por quê? Qual é a necessidade? Vai perguntar por que ele a trocou?
— Ivan!
— É. Vai querer se humilhar na frente dele? Perguntar por que ele preferiu outra? Por que preferiu a fortuna e abdicou do amor? Ora, Sílvia, faça-me o favor!
— Desculpe-me. Não pensei nisso. Não queria irritá-lo.
Ivan percebeu que havia subido o tom.
— Perdoe-me. Sei que é um assunto entre você e ele. Entretanto, de certa forma, somos casados. Sei que, entre nós dois, vivemos uma farsa, mas para o mundo sou seu marido. Não gostaria de vê-la sofrer.
Ela se sensibilizou. Ao menos ele leva em consideração o que sinto, pensou, emocionada. E indagou:
— Mesmo que eu não me encontrasse com Olavo, aproveitaria a viagem. Não é todo dia que se tem a oportunidade de viajar ao exterior. Vai com quem?
— Eu e mais três colegas do hospital.
— As esposas vão acompanhá-los?
— Não. Somente nós, os médicos. Além do mais, se me fosse permitido levar a família, demoraria para tirar os documentos de Fernando. A viagem é longa.
— Por mais que não queira me recordar, mas já recordando, Olavo levou mais de vinte e cinco horas para chegar aos Estados Unidos.
— Muita coisa mudou em três anos, Sílvia. A Varig está com um Boeing 707, operando voo sem escalas entre Rio e Nova York. Agora são nove horas de viagem.
— Que bom! E vai partir quando?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 10:03 am

— Dentro de quatro dias — Ivan a olhou e disse, sincero: — Espero que reflicta sobre sua vida nesses quinze dias.
— Eu vou. Preciso.
— Quando eu voltar, vamos ter uma conversa definitiva. Não quero que sejamos duas pessoas infelizes. De mais a mais, Fernando não merece dois pais amargos e tristes, amuados dentro de casa, insatisfeitos, carrancudos, sem saber amar ou, pior, quem amar.
Ele saiu da cozinha. Sílvia quedou reflexiva:
— Ivan tem razão. Preciso repensar a minha vida, a de meu filho. Gostaria de conversar com Jamil, mas ele talvez não me entenda. Vou ligar para dona Leocádia. Sinto-me à vontade para conversar com ela. Esperarei Ivan viajar e, assim que partir, vou ligar e marcar uma visita.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 10:04 am

Capítulo 18
Ivan partiu em uma quinta-feira. Era um grupo de três médicos mais ele. De São Paulo, o grupo tomou a ponte aérea para o Rio. Ali, já havia um carro esperando-os para levá-los até o Galeão, de onde partiria o voo da Varig, logo mais à noite.
Durante o voo, não deixou de pensar na conversa que tivera com Sílvia, no que desejava conversar com Olavo e o que seria de sua vida dali para a frente. Ivan sentia um friozinho na barriga. Estava apreensivo.
Chegou a Nova York, hospedou-se com os amigos em um agradável hotel, próximo da Times Square, e tiraram o dia para passear. No outro dia iniciaram a participação no seminário, que durou exaustivos oito dias.
Os médicos retornaram ao Brasil. Ivan tomou um trem para Boston. Havia avisado Olavo de sua ida e ficara surpreso em saber que o amigo tinha uma filha. Olavo, por sua vez, animado, comentara com Dorothy sobre a vinda do amigo brasileiro e providenciaram um jantar para recepcioná-lo.
Ivan foi para a estação de trem, apanhou um táxi até o hotel, tomou um banho, arrumou-se, comprou flores e chocolates para Dorothy, uma boneca para a pequena Débora e uma garrafa de vinho para Olavo.
Chegou pontualmente às oito da noite e foi recebido com um caloroso abraço pelo amigo.
Olavo estava mais gordo, um pouco mais calvo. Atrás dele, Dorothy vinha arrastando-se, carregando uma barriga imensa. Foi simpática e o cumprimentou em bom português:
— Como vai, Ivan? Prazer em conhecê-lo.
— Prazer é meu. Não tenho como estender a mão. Estou carregado de lembrancinhas para vocês.
— Mas que cavalheiro. Entre, por favor. Sinta-se à vontade.
Ele entregou os presentes para Olavo. Em seguida, tirou o chapéu e o casaco.
Olavo o mirou de cima a baixo:
— Você está muito bem. Não mudou nada. Aliás, mudou. Está mais jovial. Bonito. O que foi, casou?
Ivan deu uma risadinha.
— Casei — mostrou a aliança no anelar esquerdo.
Dorothy o encarou e foi puxando-o até a sala de estar.— Você é um tipo interessante. Eu me casaria com você.
— Dorothy! — protestou Olavo. — Isso são modos? Mal conhece meu amigo.
— Você anda tão rabugento — e, virando-se para Ivan, afiançou: — Eu não queria outro filho, juro. Ele insistiu que desejava um casal. Confesso que, embora sob protestos, vou ter este filho, mas estou fechando a porteira. Fim. Este é o último. Ou última — concluiu, em inglês.
Ivan riu.
— Você é divertida. Minha esposa iria adorar você.
— Não conversamos mais desde que vim para cá — ajuntou Olavo.
— Você veio estudar, casou-se em seguida. Nunca mais tive notícias suas nem de sua tia. Fui procurá-la e me informaram que a casa havia sido vendida.
Olavo baixou a cabeça, fingindo tristeza.
— Tia Emma morreu há dois anos. Coração fraco.
— Sinto muito. Não fiquei sabendo.
— Morreu aqui nos Estados Unidos. Como tinha dupla nacionalidade, decidimos enterrá-la em Boston. Por meio de procuração com um advogado da família, vendi a casa dela em São Paulo. Aluguei os outros imóveis.
— Poderia ter entrado em contacto comigo para ajudá-lo com a burocracia. Afinal, eu continuo morando em São Paulo.
— Preferi não entrar em contacto. Sabe que deixei o Brasil e quis cortar todos os laços — falou de maneira que Ivan entendesse estar se referindo a Sílvia.
Dorothy havia se levantado para ir à cozinha buscar taças para tomarem o vinho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 10:04 am

— Pois deveria. Fomos amigos por toda uma vida. Não sei por que não escreveu, não ligou.
Por que essa distância toda, Olavo?
— Não consigo deixar de pensar em Sílvia — ele não estava mentindo, pois nos poucos anos de casado percebera que não amava Dorothy.
Ivan tentou controlar o ciúme. E retrucou:
— Se não consegue, por que não escreveu para ela se desculpando, ou melhor, explicando os motivos pelos quais se casou com outra?
— Tive medo. Fiquei inseguro.
— Olavo, você destruiu o coração de Sílvia. Ela ficou sem chão.
Ao ouvir aquelas palavras, Olavo sentiu agradável sensação de bem-estar. Era como se a tristeza de Sílvia lhe fizesse bem. Então ela o amava! Isso significava que ela jamais se envolveria com outro homem. Pensando dessa forma, numa possível separação de Dorothy, o caminho estaria livre, e Sílvia, esperando por ele. Tudo melhor do que o imaginado.
— Tudo passa. As mulheres são muito dramáticas. Tenho certeza de que Sílvia chorou um pouquinho e, casta como é, nunca mais vai se envolver com homem nenhum. Ela só teve a mim. Garanto que nunca mais vai ter prazer com outro. Eu tenho o dom de enfeitiçar as mulheres. Fazer o quê?
Ivan teve vontade de avançar sobre o amigo e lhe dar uma bofetada. Ou uma surra. Para ele, Olavo não estava nem aí com os sentimentos de Sílvia. Tratava-a como se fosse um objecto de sua afeição, de seu prazer, como se ela fosse uma coisa, não uma pessoa.
— Você não está respeitando os sentimentos dela. Não imagina o que ela passou.
— Mulheres, mulheres. São todas iguais. Chiliques, choros, gritinhos. Garanto a você que, se eu aparecer lá e sussurrar duas palavras em seu ouvido, ela abre as pernas para mim, de novo.
Ivan ficou rubro e levantou-se com o punho cerrado para socar Olavo. Dorothy entrou na sala com as taças.
— Vamos beber e comemorar. Você é muito bem-vindo em nossa casa.
— Obrigado.
Ivan pegou a taça, bebericou o vinho e então vislumbrou a grande chance de se vingar de Olavo. Com classe, sem precisar partir para a agressão.
Dorothy quis saber:
— Você tem filhos?
— Sim. Um menino de quase três anos.
— Que coincidência! Nossa filha também tem dois aninhos.
Ivan tirou a carteira do bolso do paletó e dela sacou uma foto, mostrando-a a Dorothy.
— Que lindo! Como se chama?
— Fernando.
Dorothy repetiu, sem sotaque, e prosseguiu:
— Bonito nome. É de origem germânica. Vem de Ferdinand. Algo como “aquele que ousa viajar”. Há um escritor e poeta português muito famoso com este nome, Fernando Pessoa.
— Você sabe muita coisa sobre nosso idioma.
— Tive de aprender. Olavo me escambulhou — ela trocou as letras, de forma graciosa — e eu, como adoro desafios, aprendi na marra. Quero que Débora e, quem sabe, este — deu um tapinha na barriga — aprendam o português. Eu já o ensino a Débora. O pai vai ensinar este aqui.— Acho óptimo o filho falar dois idiomas.
— Eu tenho um ateliê de costura em sociedade com uma amiga. Logo vamos expandir nosso negócio. Quem sabe eu não chegue com minha grife ao Brasil?
— Ela sonha alto — interveio Olavo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 10:05 am

— E por que não? Eu tenho dinheiro, não tenho medo de arregaçar as mangas e trabalhar.
Aprendi desde cedo a valorizar o trabalho, diferente de certas pessoas.
Olavo a fulminou com os olhos.
— Eu também gosto de trabalhar.
— De trabalhar uma maneira de gastar nosso dinheiro, isso sim. Esse aí — baixou o tom de voz para Ivan — só quer saber de farra. Um dia eu me canso dele, dou um pé e quero ver o que sobra. Ele acha que meia dúzia de casinhas da tia e um punhadinho de joias podem sustentar os excessos dele. Está perdido. Só se dá bem quem tem mérito. Olavo está bem longe disso.
Ivan mexeu a cabeça para cima e para baixo. Teve uma óptima impressão de Dorothy. Era voluntariosa, mas era uma mulher que sabia o que queria e tinha os pés no chão. Percebeu isso quando Débora entrou na sala choramingando:
— Quero ficar com vocês.
— Não, filhinha. Mamãe já explicou para você. Lugar de criança, a esta hora, é no quarto.
— Mas eu quero.
— Não tem querer. Tem de obedecer. Depois subo para lhe contar uma historinha para dormir. Pode ser?
— Pode.
Chamou a babá.
— Mary, Débora não deveria estar aqui. Leve-a já para os aposentos. Mais tarde eu subo para lhe contar uma história de ninar.
— Desculpe, senhora.
- Venha, dê um beijo no papai e no tio Ivan. Hora de dormir.
A menina fez sim com a cabecinha, beijou o rosto de Olavo, depois, graciosamente, beijou o rosto de Ivan e subiu abraçada à babá.
- Você pode tudo, a sua filha não pode nada.
- Ela pode, mas dentro das regras. Tudo dentro dos limites.
— Você e seus limites.- Porque eu sou a dona desta casa — enfatizou. — Eu mando aqui. Quem não estiver contente que se mude. Inclusive Débora. Quando estiver maiorzinha e não estiver satisfeita com as regras da casa, eu a deixo ir para um internato.
— Tem o coração duro — protestou Olavo.
— Não. Tenho rédeas curtas. Eu amo minha filha, mas aqui ela vai seguir as minhas regras.
Não vou deixar que ela faça consigo o que fiz com meu pai. Nem morta!
Ivan sorriu e, quando já estavam sentados para jantar, enquanto Dorothy lhe servia o prato, perguntou:
— Qual é o nome de sua esposa?
Ivan sorriu de forma maliciosa e encarou Olavo:
— Sílvia. Minha esposa se chama Sílvia. Olavo a conhece.
Olavo tossiu com a bebida. Ficou rubro. Dorothy virou para o marido enquanto terminava de servir a comida no prato:
— Você era amigo dela, meu bem?
Olavo limitou-se a ciciar um sim. E teve uma vontade imensa de avançar sobre Ivan.
Durante o jantar, animado por Dorothy, Ivan percebia Olavo gesticular “maldito”, “desgraçado”, “você me paga” e outras palavras mais pesadas.
Ao se despedirem, Olavo fez questão de levar a esposa até o quarto, pois Dorothy estava, de
fato, muito cansada, pelo estado avançado de gravidez.— Deixe-me no quarto de Débora. Eu prometi a ela contar-lhe uma historinha antes de dormir.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 10:05 am

Depois de deixar a esposa no quarto da filha, Olavo desceu as escadas feito um tufão. Saiu e bateu a porta. Chegou ao jardim e deu um empurrão em Ivan.
— Que história é essa de casamento com a Sílvia? Diga que falou só pra me provocar, diga...
— Não. Eu me casei com ela. Você a deixou, ela ficou arrasada. Eu a consolei, nos aproximamos, casamos. Temos um filho. Somos muito felizes. Ela me ama.
O soco veio de forma inesperada. Ivan sentiu o corpo ser arremessado para trás e os óculos se perderem por entre o gramado. Caiu no chão e sentiu na boca o gosto amargo de sangue.
Olavo estava possesso.
— Desgraçado! Maldito! Você me traiu pelas costas.
— Eu?! Você foi o canalha da história.
— Fiz o que tinha de fazer, ora.— Está certo. Sempre arrumando justificativas toscas para aliviar sua consciência. Sempre.
Faz isso desde garoto. Aliás, continua agindo como um moleque. Trocou Sílvia por um punhado de dólares. Não foi capaz, ao menos, de lhe enviar uma carta, revelar o porquê do rompimento. O que você fez com ela não tem perdão.
Olavo fez menção de partir para cima, mas Ivan foi rápido e lhe acertou um chute no meio das pernas. Olavo uivou de dor e caiu de joelhos. Com a visão meio embaçada, Ivan conseguiu lhe acertar um murro no meio do rosto.
— Isso é para você nunca mais se referir a Sílvia da maneira como fez há pouco. Aliás, nunca mais quero que pronuncie o nome dela. Se voltar a falar, eu quebro seus dentes, acabo com sua raça, entendeu? Espero que nunca mais a gente se veja. Nossa amizade termina aqui.
Adeus.
Enquanto Olavo se recuperava da dor e Ivan tacteava o gramado à procura dos óculos, Dorothy olhava tudo pela fresta da cortina do quarto da filha, com a janela aberta. Ouvira tudo e compreendera o suficiente para entender que Olavo se casara com ela por dinheiro. Só por causa do dinheiro.
— Você vai ver, Olavo. Eu estava arrependida por ter cometido um deslize. Agora, sinto-me vingada. Você não vale nada. Só não me divorcio por causa da Débora e dessa criança que você me obrigou a ter. Mas o nosso casamento termina aqui.
Esperou-o subir para o quarto. Demorou. Olavo entrou em casa, esperou passar a dor, colocou um saco de gelo no nariz, bebeu um copo de uísque para aplacar sua ira. Subiu e, ao entrar no quarto, Dorothy estava na cama, com as costas amparadas por travesseiros e almofadas.
— Que cara é essa? Não vejo a hora de a criança nascer. Mulher grávida me irrita. Fica muito sensível.
Ela o encarou com desdém:
— Assim que isso nascer — apontou para a barriga e fez uma careta —, eu vou me separar de você.
— Se o seu pai deixar.
— Meu pai não manda em mim, Olavo. Ninguém manda em mim.
— O dinheiro manda — ele riu nervoso.
— O dinheiro manda em você, seu patético. Eu já sou rica. Além do mais, eu trabalho. Não quero acumular fortunas.
— Se separar-se de mim, vai perder muito.
Ela soltou um palavrão bem típico e retrucou:— Não estou nem aí. Nunca tive medo de trabalhar. Toda a nossa fortuna foi feita com o suor de muito trabalho.
— Filhinha de papai.
— Não. Sou teimosa, quero as coisas do meu jeito. Luto pelo que quero. Não confunda as coisas. Você tem medo de ficar pobre, agarra--se aos bens que sua tia deixou como se eles fossem imprescindíveis para seu bem viver. Nunca juntou dinheiro. Sempre viveu à custa dos outros. Sanguessuga!
— Só não bato em você porque está com esse barrigão.
— Se encostar um dedo em mim, eu mato você, Olavo. As leis daqui são diferentes. Cuidado comigo.
Ele sentiu medo no olhar e na maneira com que Dorothy lhe dirigiu aquelas palavras. Afastou-se, decidiu sair do quarto e desceu para o escritório, encheu outro copo de uísque e afundou-se em uma poltrona, triste e amargurado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 10:05 am

Capítulo 19
Era quase meio-dia quando o táxi parou na porta de casa. Ivan saiu do carro e Fernando brincava no jardim sobre um cavalinho de madeira. Ele abriu o portãozinho e abraçou o filho com amor:
— Eu o amo, meu filho. Papai o ama mais que tudo.
O menino retribuiu o abraço.
— Saudade do papai.
— Eu também senti muito a sua falta. Agora nada mais vai nos separar. Nunca mais.
Soraia apareceu na pequena sacada e acenou:
— Que bom que chegou, Ivan! Estávamos morrendo de saudades. Ele se desfez do abraço e Fernando voltou a brincar com o cavalinho de madeira. Enquanto olhava o filho com olhos marejados, quis saber:
— Sílvia está em casa?
— Sim. Acabou de tomar banho. Está se arrumando. íamos dar uma volta até a praça.
Ivan aproximou-se e a cumprimentou. Abraçou-a de uma maneira que Soraia nunca sentira antes. Ela percebeu que ele estava muito emocionado.
— Aconteceu alguma coisa?
— Muita. Depois vamos conversar. Agora preciso ter uma longa conversa com Sílvia.
— Pelo jeito, o encontro com seu amigo — ela fez questão de enfatizar — não foi dos melhores.
— Não. Tivemos um grande desentendimento. Mas foi bom. Aliás, foi óptimo, porque depois de encontrá-lo cara a cara eu descobri o que quero de minha vida daqui para a frente e, mais importante, o que quero com sua irmã e Fernando.
— E o que é?
— Quero cuidar da minha família.
— Gostei de ver. Homem de atitude. Isso mesmo. Cuide do que é seu.
Ivan sorriu e pediu:
— Pode me fazer um favor?
— Claro.— Você poderia levar Fernando para passar o resto do dia na sua casa?
— Levo sim. Só que eu e Sílvia estamos quase prontas para sair e...
Ele a interrompeu:
— Não. Desculpe estragar o passeio de vocês. Seria pedir muito para ficar com ele até amanhã?
— Não, claro que não. Sabe que ele tem caminha lá em casa, roupas, brinquedos... mas por quê?
— Preciso de um tempo a sós com Sílvia. Eu tenho muito o que conversar com ela. Chegou o momento de colocarmos nosso casamento nos trilhos. Preciso que ela não tenha preocupações com filho, nada. Quero que tenha atenção somente para o que vou dizer a ela. Entende?
— Sim. Acho que estou entendendo o que quer.
— Por favor.
Soraia captou a mensagem e sorriu maliciosa:
— Claro, cunhado. Se fossem outros tempos, eu estaria morta de ciúmes, mas agora, feliz ao lado de Paulo e louca de paixão pelo seu filho e pelo meu, acho que chegou o momento de você e Sílvia passarem do estágio de amiguinhos para o de marido e mulher. De facto consumado.
Ele a abraçou e a beijou no rosto com carinho.
— Obrigado, Soraia. E, sei que é tarde para lhe dizer isso, mas eu nunca lhe dei motivos para gostar de mim, tampouco insinuei algo. Nunca alimentei esperanças afectivas e...
Ela o silenciou com os dedos nos lábios.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 10:05 am

— Hoje, mais do que nunca, sei disso. Era insegura, achava-o interessante, o amigo de meu irmão que estava sempre em casa. Era um referencial, um tipo interessante para eu poder exercitar o sonho de paixão, a possibilidade de um namoro, uma troca de beijos, esses anseios típicos de adolescente. Projectei em você um modelo de homem que pudesse se interessar por mim. Apenas isso.
— E minei suas expectativas.
— Eu criei um monte de ilusões. A sorte foi Paulo ter aparecido. Claro que, depois do acidente, tornei-me uma pessoa mais centrada, que valoriza mais a vida.
— Ainda se arrepende de não ter prestado socorro ao rapaz que foi atropelado, não?
— Confesso que, às vezes, tenho pesadelos com aquela noite. Eu não devia ter aceitado a ideia de Herculano. Ele estava agitado, nervoso. Paulo estava bêbado, não tinha condições de opinar ou concatenar os pensamentos. Eu estava em choque.— Como médico, consegui saber que o rapaz fora encaminhado para a Santa Casa, sofrera ruptura de algumas vértebras. Se sobrevivesse, ficaria paraplégico, ou tetraplégico.
— Mas se fosse socorrido, Ivan, ele teria a chance de estar vivo, não importa como. É isso que me corrói.
— Passou.
— Não — uma lágrima escapou pelo canto do olho de Soraia. — Não passou e nunca vai
passar. É por essa razão que eu mudei meu jeito de encarar a mim e a vida, tenho um profundo amor pelo seu filho e, claro, também pelo meu — disse mais para não ficar estranho ela afirmar que amava mais o sobrinho do que o filho.
— Não me convenceu. Ama mais a meu filho que ao seu.
— Não me envergonho. Gosto do meu filho. Não sei explicar, mas às vezes não consigo ficar perto dele. Já falei com Leocádia. Ela, aliás, tem me ajudado muito.
— Não só a lidar com os sentimentos em relação a Maurício, mas também a lidar com a culpa em relação ao acidente, a maneira de enxergar a vida depois da morte...
— Sem dúvida. Além de me ajudar a não me sentir culpada; afinal, eu não estava na direcção, Leocádia me mostrou que a certeza de que permanecemos vivos depois da morte, mantendo a individualidade juntamente com o somatório de tudo quanto aprendemos nesta e nas vidas passadas, conforta e nos estimula a buscar conhecimento em todos os dias da nossa vida.
— Ainda resisto — ele sorriu.
— Mesmo depois do que aconteceu comigo no dia de seu casamento? Mesmo depois de Ivete aparecer...
— Não quero falar sobre esse assunto.
— Está certo. Você agora precisa tratar de outro assunto — Soraia sorriu.
Ela saiu e pegou Fernando no colo, com carinho.
— Vamos sair com a titia?
— Oba! E o cavalinho?
— Vai junto — ela apanhou o brinquedo. — Vou comprar sorvete e depois vamos lá para casa. Quer dormir comigo, hoje?
— Quelo!
— Óptimo. Então vamos nos despedir do papai.
Ela se aproximou e Ivan beijou o menino no rosto.
— Vá com Deus, meu filho—e, virando-se para Soraia: — Obrigado.— Não há de quê. Torço por vocês.
Entraram no carro, ela acomodou o sobrinho, deu partida e logo Soraia sumia na primeira esquina.
Ivan entrou com a mala e a deixou na sala, fechou e trancou a porta de casa. Subiu as escadas e encontrou Sílvia sentada na banqueta em frente à penteadeira, penteando os cabelos ainda molhados.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 3 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 10:05 am

Ela abriu largo sorriso ao vê-lo. Levantou-se feliz:
— Bem que escutei vozes lá embaixo e deduzi ser você. Que bom que voltou!
Abraçaram-se e, quando Ivan a beijou nos cabelos e no rosto, Sílvia sentiu algo diferente.
Ivan a encarou, emocionado:
— Esta viagem me fez descobrir algo incrível.
— Sério? O quê?
Ele respirou fundo e declarou, encarando-a:
— Eu a amo.
Sílvia engoliu em seco e sentiu as pernas bambas. Ivan a tomou nos braços e, antes de ela articular som, ele a beijou com ardor. Sílvia, por sua vez, entregou-se àquele beijo sem pestanear.
Naqueles dias, ela havia reflectido muito sobre sua vida, seu namoro com Olavo, sobre o rompimento inesperado, a dor da separação, a mágoa, a falta de uma conversa definitiva entre eles, depois a surpresa da gravidez, a proposta de vida a dois com Ivan e os novos sentimentos que ele, Ivan, vinha despertando nela.
Estava a ponto de ter uma conversa séria e abrir seu coração assim que ele voltasse de viagem. E agora estava ali, ouvindo a declaração pela qual tanto ansiava escutar.
Depois do beijo, ela se afastou e, ainda nos braços dele, asseverou:
— Eu também o amo. Creio que sempre o amei, desde o dia em que nos casamos.
Ivan nada disse. Abraçou-a com força e a beijou várias vezes nos cabelos, no rosto, nos lábios.
Em seguida, pegou em sua mão e a conduziu gentilmente até a cama, despiram-se e tiveram momentos inesquecíveis de amor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 8:51 pm

Capítulo 20
Leocádia ligou para Jamil e lhe fez o convite:
— Sei que trabalha muito. Sem você, esse mercado não funciona — ela riu. — Mas é por uma boa causa.
— Sei, Leocádia.
— Não poderia nos acompanhar?
— Quando será?
— João Carlos chegará na segunda, vai estar cansado, eu sei. Muitas horas de voo. Por isso, pretendo oferecer o jantar na terça--feira, às nove da noite.
— Complicado, Leocádia.
— É por uma boa causa. Faça um esforço. Você mal sai para se divertir. Vai ser bem interessante.
— Está certo. É começo de semana, o movimento é mais fraco. Eu converso com meu pai.
Posso também conversar com Soraia. Embora esposa e mãe, quando tem um tempo livre, vem para me ajudar.
— Você vai gostar.
— Está querendo me arrumar compromisso, isso sim.
— Pode ser. Minha intuição diz que você precisa conhecer João Carlos antes que ele saia por aí, leve e solto.
— Eu vou. Terça que vem, às nove da noite. Levo alguma coisa?
— Sua linda presença. Está de bom tamanho.
Jamil desligou o telefone com um largo sorriso. Eustáquia o cutucou e indagou:
— O que foi? Viu passarinho verde?
— Não, por quê?
— Está com uma fisionomia diferente. Conheço essa cara.
— Não entendo.
—Apaixonado. Cara de apaixonado.
— Imagine, dona Eustáquia.— Conheceu alguém?
— Não.
— Mentiroso — disse e logo foi atender a uma freguesa antiga da casa, de quem gostava muito.
Jamil balançou a cabeça para os lados.
Cara de apaixonado, eu? Não conheci ninguém. Quer dizer, Paulo me levou ao apartamento de seu amigo Eduardo, na São Luís, o tal que reúne um monte de gente para jantar. Não gostei muito e não me senti bem. São divertidos, concordo, mas gostam de criticar os outros, falar mal desse ou daquele, criam separações entre ricos e pobres. Não, eu não pertenço a esse universo. Queria tanto encontrar alguém comum, um homem igual a mim, mesmo tendo ainda dificuldade de me aceitar como sou...
Ele ficou ali, matutando os pensamentos, quando Ivan entrou no mercado, cumprimentando a todos e, em seguida, aproximou-se dele.
— Seu afilhado está com saudades.
— Sei, estou em falta com ele. O mercado está tomando muito de mim. Queria trazer
Fernando aqui, mas Soraia não deixa. Ela está com ele todos os dias.
— Agarrou-se ao sobrinho de forma que Sílvia também anda enciumada. Só está mais calma por conta da gravidez.
— E como está ela? Muito enjoada?
— Não. Vai bem. Está calma, tranquila. Nossa menina vai ser calma e tranquila, um anjo. Pode apostar.
— Ah, vai me dizer que, mal Sílvia engatou o segundo mês de gravidez, você sabe que vai ser pai de uma menina?
— Intuição. Aprendi com meu avô. Quando sua irmã estava grávida de Fernando, eu sabia que ela iria ter um menino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 8:51 pm

— Se aposta em sua intuição, por que tem resistência em se abrir ao entendimento espiritual?
— Não quero. Não gosto — o semblante de Ivan mudou.
— Sei. Tem medo de entrar em contacto com o mundo dos mortos. É isso?
Ivan sentiu um arrepio pelo corpo.
— Não gosto de tocar nesse assunto.
— Porque logo pensa em Ivete.— Pois é. Desde aquela cena inusitada na festa de meu casamento — ele divagou, enquanto mirava um ponto distante, depois voltou a si —, confesso que fiquei muito abalado. Frequentei algumas reuniões na casa de Leocádia, mas não me sentia à vontade. Não é um assunto que me faz bem.
— Porque lhe revela a verdade? O que o assustou tanto a ponto de ficar tão na defensiva?
— Nada.
— Como nada, Ivan? Eu sou seu amigo. Eu o conheço. Sei que houve alguma coisa que o assustou.
Ivan mordiscou o lábio. Olhou para os lados e puxou Jamil até o canto do balcão.
— Promete que guarda segredo?
— Sim.
— Recorda-se da noite da minha festa de casamento, de quando Soraia estava tomada pelo espírito de Ivete?
— Claro que me recordo.
— Sua irmã afirmou, quer dizer, Ivete falou por meio de sua irmã que eu a tinha enterrado com o anel. Ninguém sabe dessa história.
— Que história?
— Assim que o padre terminou de rezar e os familiares iniciaram os preparativos para fecharem o caixão, eu, num ato de desespero, arranquei a aliança de noivado de minha mão e a coloquei entre as de Ivete. Ninguém percebeu. Acreditaram que eu havia me aproximado porque queria dar o último adeus.
— Isso prova que Soraia estava mesmo com Ivete ao seu lado.
— Tenho medo de ela voltar, de querer que eu cumpra a promessa. Agora que eu e sua irmã estamos vivendo nosso amor em toda sua plenitude, eu não gostaria de ter dissabores.
— Ivete jamais poderia atrapalhar vocês, mesmo que quisesse. O amor de vocês é maior que tudo. Quando duas pessoas estão ligadas nesta sintonia, muito dificilmente a influência que vem de fora os afecta. O bem é sempre poderoso. O mal é ilusão, uma bobagem. Não tem força.
— As vezes sinto um pouco de medo. Essa é a verdade.
— Sabe, com minhas inseguranças a respeito de mim mesmo, do que sinto, tenho percebido que o medo faz com que nos liguemos em uma faixa de negatividade. Quando estamos no negativo, abrimos campo para que o negativo dos outros, do mundo, também possa nos tocar, invadir nosso espaço. Quanto menos importância dermos à negatividade que nos cerca, mais fortes nos tornaremos e menos vulneráveis ficaremos a esse tipo de assédio, seja de pessoas ou de espíritos. No fim das contas, é tudo a mesma coisa.— É só eu ficar com a cabeça boa, manter bons pensamentos e nada de ruim vai me atingir?
— Depende do que você classifica como bom ou ruim, Ivan. É relativo. Mas, se mantiver bons pensamentos, estiver sempre com uma mente voltada para boas atitudes, bom humor, alegria, e procurar viver sempre cultivando os valores nobres do espírito, composto de um conjunto de sentimentos e qualidades, como bondade, generosidade, honestidade, carácter, amizade, auxílio a quem precisa...
— Procuro manter esses valores em mim e transmiti-los ao meu filho.
— Você já pratica a espiritualidade, Ivan.
— Sério?
— Sim. A verdadeira espiritualidade é viver no bem, com disposição, alegria, bom humor, e encarar tudo na vida de forma leve, até divertida. Quem vive dessa forma é uma pessoa espiritualizada, porque está vivendo com o espírito, ligada à alma.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 8:52 pm

São pessoas que enxergam sempre algo de bom, de belo no outro; nunca apontam um dedo acusador ou julgador para quem quer que seja; aceitam e respeitam as diferenças e procuram conviver em paz com seus semelhantes. Juro que estou me dedicando a ser assim. — Então — ele levou o dedo ao queixo — eu sou um espiritualista!
— Por certo. Não precisa frequentar um lugar específico para se tornar um. Um espiritualista se revela por meio de atitudes, não importa o lugar que frequente.
— Você tem o dom de me clarear as ideias. Sou grato por tanta coisa -— Ivan deu a volta no balcão e abraçou-se a Jamil. — Obrigado por tudo. Você é um grande amigo.
Jamil emocionou-se. Fora tomado de surpresa. Ivan prosseguiu:
— Amigo e cunhado. E também compadre. Não se esqueça de que Fernando é seu afilhado.
Desejo que ele se espelhe nos valores do padrinho.
Jamil enrubesceu. Ivan prosseguiu:
— Não fique assim. Eu o conheço e sei o que vai em seu coração. Não se preocupe. Não o condeno e jamais vou julgá-lo por ser o que é. Muito pelo contrário. Vou educar meu filho a ser um homem sem preconceitos. Fernando vai amá-lo como você é e vai encarar todas as formas de amor de maneira natural, porque vamos mostrar a ele que toda forma de amor vale a pena, que a maldade está na cabeça de quem vê, não na cabeça de quem pratica.
Jamil o abraçou com força.
— Obrigado, Ivan. Você é como um irmão para mim. Não tem ideia de como seu apoio e o de Paulo são importantes para mim, da mesma forma como Sílvia sempre foi uma grande amiga.
Soraia também me entende e me aceita, embora nunca tenhamos conversado abertamente sobre meu jeito de ser. Só tenho um pouco de receio em relação a eles — apontou o queixo na direcção dos pais, do outro lado do balcão.
Ivan olhou para trás e sorriu.— Dona Eustáquia é mulher vivida, à frente de seu tempo, jamais o condenaria.
— Mas meu pai...
— É, seu Faruk não receberia bem a notícia de que você não lhe dará netos. Mas conversando com jeito, sem imposições...
— Como assim?
— Jamil, seu pai tem idade, é um homem com convicções formadas. Sei que é muito importante que as pessoas o aceitem como você é, mas também precisa se colocar no lugar do seu pai. Ele vem de uma geração diferente, criado de maneira muito rígida. Não pode esperar dele uma compreensão daquilo que ele não teve condições de poder entender. Para que enfrentá-lo e fazer com que engula você do jeito que é? Devemos também respeitar os outros.
— Não quero viver uma mentira. Se eu conhecesse alguém, gostaria de ter uma vida a dois sem esconder essa relação de minha família.
— Concordo. Você está preparado para enfrentar o mundo?
Jamil titubeou e admitiu, sem jeito:
— Ainda não.
— Tem muita coisa para você processar e, quando estiver firme em seus propósitos, poderá tratar do assunto de uma maneira mais lúdica com seu pai. Se amanhã aparecer alguém que valha a pena, apresente como amigo, um grande amigo. Deixe seu pai tirar suas próprias conclusões. Faça tudo de maneira natural, sem provocações. E assim a vida estará trabalhando para que o melhor aconteça.
— Para quem?
— Ora, para você, para seu pai, para o relacionamento de vocês dois, para o bem e a harmonia da família. Se você mesmo diz que devemos estar de bem com a gente... Agora é hora de praticar o que declara.
— Tem razão, Ivan. Não adianta dar conselhos e falar sobre espiritualidade sem pôr em prática. Algo me diz que semana que vem eu vou começar a praticar...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 8:52 pm

Capítulo 21
A pequena Rachel sugava o peito da mãe com sofreguidão. Dorothy ajeitava o corpinho do bebê para que ficasse mais à vontade para mamar. Esther estava abismada:
— Ela não para de mamar! Vai sugá-la todinha!
— Estranhíssimo. É o meu bebê, todavia, há momentos em que não suporto ficar ao lado dela. Há algo entre nós, não sei explicar. É muito esquisito.
— Esquisito como?
Dorothy deu de ombros.
— Às vezes, não sei explicar o que sinto. É chocante escutar, mas, se pudesse voltar atrás, não a teria tido.
— Não teria engravidado, quer dizer.
— Teria abortado.
Esther, embora mulher à frente de seu tempo, chocou-se. Não saberia explicar, naquele momento, se o choque fora com o que ouvira ou por conta da naturalidade com que Dorothy pronunciara tais palavras.
— Parece não gostar da sua filha.
— Não é isso. A minha relação com Débora tem se fortalecido a cada dia que passa. Sabe, se tivesse de escolher entre ela e este bebê — apontou para Rachel, ainda sugando seu peito —, nem hesitaria. Ficaria com Débora.
— Creio que não esteja no seu juízo perfeito. Acabou de dar à luz.
— Sei o que estou dizendo, Esther. É minha amiga, sabe tudo sobre mim. Por que mentiria para você? Não posso sentir por Rachel o que sinto por Débora.
Dorothy falava enquanto uma lágrima escorria pelo canto do olho. Ela falava da pequena Débora com tanto amor que Esther, mais pragmática, sentiu uma ponta de emoção.
— Imagino como deve ser difícil ter ideia clara sobre esse sentimento em relação aos filhos.
Não sei se agiria como você.
— Nunca quis ter filhos?
— Eu tentei engravidar com meu ex-marido. Tentamos durante mais de três anos, sem sucesso. Oliver era estéril. Quis adoptar. Eu não tive vontade, acho mesmo que não nasci para ser mãe.— Não sente vontade quando me vê amamentando?
— Não. Gosto de crianças. Longe de mim — ela riu alto.
— Mas vive grudada com Débora. Pede sempre para eu levá-la comigo ao ateliê.
— Débora é um caso à parte. Aos três anos já sabe a diferença entre náilon e algodão. Ela tem tino para moda. Será a herdeira natural nos negócios.
— Ainda é criança. Depois cresce, conhece alguém e muda a maneira de ser.
— Não. Débora é diferente. Ela tem um pouco da sua teimosia, só um pouco. É delicada, elegante. Puxou isso do refinamento francês, veio do pai...
Dorothy a interrompeu:
— Não faça mais esse tipo de comparação, tampouco esse comentário!
— É uma brincadeira.
— Eu a censuro. Nem brincadeira. É sério. Ninguém sabe e nunca saberá sobre esse deslize que cometi.
— Ela pode muito bem ser filha do Olavo.
— Não é. Eu sei, eu sinto. Não há como provar, por ora, mas eu me lembro da marca de nascença que o tal gerente tinha em uma das nádegas. Débora nasceu com a mesma marca na nádega. É prova incontestável.
— É. Débora tem alguns traços seus e nada de Olavo.
— Se conhecesse — ela baixou o tom de voz — o rapaz com quem me deitei em Paris, saberia que os olhos e o nariz de Débora são iguaizinhos aos dele.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 8:52 pm

— Só você, Dorothy. Só você!
Eu nada. Não quero que esse segredo jamais seja revelado. Você é a única pessoa da face da Terra que sabe da verdade. Olavo vai morrer sem saber que foi traído na lua de mel.
— Que disparate!
— Ele me provocou. Levou a pior. Paciência. Mas olha o que dei a ele de presente — olhou para a pequena Rachel.
— Não é a coisa mais linda do mundo? — emendou Esther.
Dorothy nada disse. Ficou quieta, mirando um ponto indefinido do quarto. Esther preferiu ficar calada e, assim que a bebezinha terminou de mamar, pegou-a no colo.
Rachel era uma bebezinha linda. Gordinha, cabelos castanhos, bem parecida com Olavo, ou com os traços da família dele. O dado interessante é que, ao nascer, fez Olavo sentir-se o pai mais feliz do mundo. Ele demonstrava verdadeira paixão por Rachel e tratava Débora com mais secura. Era como se, no escaninho da alma, algo dizia a Olavo que a primogénita, a bem da verdade, não era sua filha legítima, e isso causava-lhe estranheza...
Em Paris, na lua de mel, na noite em que brigara com Olavo, Dorothy deitou-se com o gerente do hotel. Ela tinha certeza de que engravidara dele naquela noite, porque tinha acabado de entrar no período fértil e, depois desse encontro, foi ter intimidades com Olavo um mês depois, já em Boston.
Ele até gostava da menina. Tinha carinho pela filha, mas, quando Rachel veio ao mundo, seus olhos voltaram-se, tão somente, para a pequena. Débora fora completamente ignorada pelo pai.
A sorte da primogénita era Dorothy ser uma mãe presente e Esther estar sempre por perto. A menina vivia mais na casa de Esther do que na sua.
Cresceria uma menina delicada, inteligente, sensível, que sabia e entendia ter sido preterida pelo pai, mas, mesmo assim, jamais tivera alguma demonstração de mágoa ou irritação em razão da diferença de tratamento.
Débora era um espírito lúcido, que passara por muitos perrengues ao longo de muitas vidas e agora estava colhendo os frutos de seu amadurecimento. Era mérito dela. Só dela.
Ela entrou no quarto e, ao ver Rachel no colo de Esther, aproximou--se e Rachel começou a chorar. Não havia peito, abraço, afago, nada que a fizesse parar de chorar. Esther tentou ajudar, ninando-a, mas não obteve sucesso.
Até que Débora encostou na mãe e disse, do nada:
— Ela não gosta da gente.
— Imagine! — discordou Esther.
— Ela não gosta de mim nem de mamãe. Nunca vai gostar.
Esther achou o comentário estranho, mas, desesperada com o choro que não parava, não articulou ideia e entregou Rachel de volta para a mãe.
Débora aproximou-se, passou a mão pelos cabelos de Rachel:
— Irmãzinha está nervosa porque não queria voltar.
— O que foi que falou? — quis saber Esther.
— Estou com sede. Quero água.
Dorothy meneou a cabeça para os lados e, enquanto segurava Rachel, pediu:
— Leve-a para baixo e lhe dê água. Vou ficar mais um tempo com Rachel e colocá-la no berço.
Esther assentiu e saiu com Débora. Ao se ver sozinha com a filha, Dorothy perguntou:
— Por que esse sentimento estranho em relação a você? Ela não saberia explicar; contudo, havia uma série de questões inacabadas entre ela e Rachel.
Em última vida, Dorothy e Rachel tinham sido irmãs. Até que se davam relativamente bem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 8:52 pm

Depois de passarem pelos horrores de uma guerra e perderem os pais, Rachel, com medo de ficar solteira e sem dinheiro, casou-se com o noivo de Dorothy, deixando a irmã arrasada. No astral, depois de um bom tempo, sensibilizada com o estado precário em que encontrara a irmã, Dorothy ofereceu-se para ajudá-la, de alguma forma. Rachel precisaria ficar mais um tempo entre amigos espirituais e, depois de estar em melhores condições emocionais, poderia regressar como filha de Dorothy.
Foi o que aconteceu. Rachel, meio a contragosto, retornou e causou, no espírito de Dorothy, sentimentos contraditórios, adormecidos por causa da reencarnação. E, logo mais, elas seriam separadas. Cada uma precisaria viver longe, por um tempo e, mais à frente, voltariam a se reencontrar.
As duas nem tinham ideia de que a vida funciona como se fosse um computador, tendo as leis divinas como programa. As nossas atitudes colocam as variáveis e o programa determina em que condições teremos de viver para alcançar os objectivos da evolução.
As impressões do passado ficam armazenadas no inconsciente, como se estivessem em um arquivo; contudo, não significa que elas se repetirão.
Nossos pontos fracos reflectem o que ainda ignoramos. Dorothy e Rachel precisariam de paciência e entendimento para viverem bem uma com a outra. Será que conseguiriam? Só o tempo seria capaz de mostrar...
Às nove horas em ponto, Jamil tocou a campainha do belo casarão na avenida Angélica. Uma simpática empregada veio atendê-lo.
Ele entrou, entregou o chapéu e o sobretudo. Em seguida, foi levado até uma saleta onde algumas pessoas conversavam, animadas. Leocádia, linda, trajando um vestido azul-noite, veio recepcioná-lo. Jamil lhe entregou o belo arranjo floral:
— Espero que goste.
Ela aspirou o delicado perfume das rosas e agradeceu:
— Adoro rosas. Acertou em cheio. Venha, deixe-me apresentá-lo aos nossos amigos.
Leocádia o apresentou a algumas pessoas conhecidas do cenário artístico, amigos, uma condessa que estava de passagem pelo país e, mais ao canto da saleta, bebericando uma taça de champanhe, estava João Carlos.
O rapaz estava de costas e, quando ela o cutucou e o filho voltou o rosto para cumprimentar Jamil, houve ali um certo estremecimento, um reconhecimento de almas. O tempo parou por milionésimos de segundos. Ambos se encararam e mantiveram os olhares, fixos, sem piscar.
Jamil estendeu a mão e João Carlos a segurou com força. Disse com voz rouca, grave:— João Carlos.
— Prazer. Jamil.
— Minha mãe me falou muito a seu respeito.
— Bem ou mal?
Leocádia interveio:
— Vou deixá-los à vontade até a hora de servir o jantar.
Ela saiu sem cerimónia e João Carlos ofereceu uma taça de bebida para Jamil.
Era um homem alto, da mesma altura que Jamil, cabelos alourados, bigode, óculos quadrados que o deixavam com ar sério, embora fosse alguns anos mais jovem que Jamil. Os dentes eram perfeitamente enfileirados e o sorriso encantador. A voz era grave. Era um homem bem bonito.
— Obrigado — Jamil agradeceu ao pegar sua taça de champanhe. Bebericou e comentou: — Fazia tempo que eu não bebia.
— Fuma?
— Não. E você?
— De vez em quando. Tem alguma objecção?
— De modo algum — respondeu Jamil.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 8:53 pm

João Carlos sacou do bolso da camisa o maço de cigarros e acendeu um. Tragou e soltou uma baforada para o alto. Continuaram encarando-se de forma a sustentarem o olhar, sem o desviar. Jamil perguntou:
— Quanto tempo pretende ficar aqui no Brasil?
— Antes de chegar, pensava em ficar por um tempo, mas agora, não sei, pode ser que queira ficar mais, talvez em definitivo...
Jamil sentiu o rosto ficar vermelho e sorriu. Bebericou um pouco mais de champanhe e logo entabularam agradável conversa.
Ao final do jantar, quando os convidados se retiraram, Leocádia entrou no carro da condessa.
Jamil foi o único a ficar na escadaria do casarão.
— Para onde vai sua mãe?
— Ela vai dormir na casa da condessa. Vão trocar figurinhas. A condessa volta para a Itália daqui a dois dias e mamãe vai lhe fazer uma lista de compras!
Os dois riram.— Ela nem se despediu direito de mim — resmungou Jamil. — Só fiquei eu aqui na casa. Acho que está na hora de eu ir também. Amanhã é dia de trabalho, acordo cedo.
— Não quer esticar, ficar até mais tarde?
— Adoraria, mas hoje não dá.
— E se dormir aqui e acordar na hora de ir trabalhar?
— Dormir? Aqui?
— Sim. Minha mãe saiu e não voltará. Os empregados vão se recolher e dormem na edícula, fora da casa. Você é meu convidado e pode subir.
— Bom, não sei...
João Carlos foi directo. Pegou na mão de Jamil e quis saber:
— Quer dormir comigo esta noite?
Jamil não pensou duas vezes.
— Quero. Claro que quero!
João Carlos o puxou pela mão e subiram as escadas em silêncio, com o coração batendo descompassado. Aquela noite de lua cheia e céu estrelado foi inesquecível para os dois.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 8:53 pm

Capítulo 22
Fernando terminava de ler a última linha:
— ...e foram felizes para sempre.
— Isso mesmo, meu lindo. Felizes para sempre — ajuntou Soraia.
— Eu leio. Sei ler.
— Claro que sim. Lê. Escreve seu nome. Já sabe o alfabeto, tabuada. Vai entrar no primeiro ano antes do permitido por lei.
— Não pode —- objectou Sílvia. — Ele tem apenas cinco anos. Só vai para o primeiro ano aos sete.
— De jeito algum. Vou conversar com o padre Sanchez. Ele adora o Fernando. Ele me disse que é um dos alunos mais inteligentes do prezinho.
Sílvia sentiu uma leve ponta de indignação e ciúme:
— Como assim? Falou com padre Sanchez sobre a educação do meu filho? — ressaltou.
— Sim. Depois que deixei o mercado para me dedicar à família, você decidiu trabalhar com Jamil. Foi escolha sua, ninguém a forçou. E não teve mais tempo para cuidar do seu filho como se deve. E da sua filha, diga-se de passagem.
— Como se atreve, Soraia? Eu cuido muito bem dos meus filhos!
— Só afirmo que passo mais tempo com Fernando e, ultimamente, também com Clarice.
De fato, desde que Soraia decidira tornar-se esposa e mãe, vinte e quatro horas por dia, Sílvia decidiu trabalhar no mercado e ajudar a mãe e Jamil. A princípio dedicava meio período ao trabalho, depois ia para casa cuidar do lar e das crianças. Clarice mal tinha acabado de completar um aninho e necessitava de cuidados.
Ivan, um tanto contrariado, por fim acatou a decisão da esposa e concordou que ela fosse trabalhar com a família. Afinal de contas, embora Sílvia sonhasse em se casar, ter filhos, constituir família e tal, não estava em seu sangue ser dona de casa, diferentemente do desejo de Soraia. Ela gostava do trabalho, de sentir-se útil, independente, ganhar o próprio dinheiro.
Contratara uma empregada para cuidar da casa e também uma babá. Clarice, embora saudável e delicada, não se dera bem com a babá. Chorava bastante. Só se acalmava ou nos braços do pai, ou nos braços da tia.
A solução foi deixá-la mais tempo com Soraia, que adorava as crianças e cuidava delas com mais enlevo que do próprio filho. Ela já era apegadíssima ao sobrinho-afilhado e agora tratava Clarice como se fosse a filha que não tivera. Também se dedicava ao seu filho; contudo, Maurício, com quase três anos, já notava a diferença de tratamento que a mãe dispensava a ele e ao primo.
De certo modo, inconsciente ou não, Maurício desenvolvia uma antipatia natural por Fernando. Era uma mordida aqui, um puxão de cabelos ali, um pontapé sem motivo...
Ninguém percebia, mas nascia ali um processo de “odinho” que só cresceria ao longo dos anos.
Sabemos que a afinidade é um processo de troca. Na medida que você dá, você também recebe. Maurício não recebia a devida atenção da mãe. Às vezes, corria aos braços da tia. Sílvia o cobria de beijos, carinhos, mas não estava presente, não lhe dava atenção a todo momento, porque trabalhava muito.
Ao longo do tempo, para não se sufocar nesse vácuo de falta de amor, nessa carência afectiva, Maurício passou a devotar extremo carinho à pequena Clarice. E também, ao longo dos anos, desenvolveria pela prima uma ligação de afecto muito forte, colocando a prima num pedestal.
Se alguém a destratasse, acabava por conhecer o lado mais sombrio de Maurício, pois ele se transfigurava, tornava-se a pessoa mais irascível do mundo, somente para proteger a prima contra tudo o que julgava ser ruim para ela.
Depois de ter consciência de tudo isso, Sílvia levou o dedo ao queixo:
— Tem razão. Eu me sinto insegura, mas você está certa. É mais mãe do que eu. Soraia pegou Fernando no colo e pediu para que ele se despedisse da mãe.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 3 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 8:53 pm

Assim que ele beijou Sílvia no rosto, ela o colocou para dormir. Em seguida, puxou-a pelo braço e, delicadamente, saíram do quarto.
Já na sala, Soraia asseverou:
— Não há necessidade de se sentir insegura. Você está realizando o que sua alma almeja.
Queria casar, ter filhos, mas também estudar, trabalhar.
— Meus filhos são muito pequenos. Não poderia deixá-los.
— E quem disse que os deixou? Creio que está sendo um tanto dramática.
— Clarice mal completou um ano.
— Contudo, ela não gosta muito dos braços da mãe...
Sílvia iria falar algum palavrão, mas Soraia foi rápida:
— Desculpe-me, mas é a verdade. Clarice sempre chora quando está muito tempo em seus braços. Já notou? É questão de afinidade.
— Não. É porque estou longe dela. É porque meu leite secou. Quanto ao leite não há o que eu possa fazer; no entanto, se eu ficar mais tempo ao lado dela, quem sabe se acalma? — Não. É característica do espírito. Ela vai bem com o Ivan. Deve ser algum parente do passado dele.
— Depois que passou a se interessar pela espiritualidade, tudo para você gira em torno de espírito e energia. Não acredito que nossa vida seja pautada por esse universo.
— Pautada, não. Todavia, não podemos negar que são elementos que fazem parte do nosso cotidiano, nos influenciando vinte e quatro horas. Se não estudarmos esses fenómenos, não os entendermos, ficará difícil manter equilíbrio emocional e seguir uma vida com bem-estar.
— Diz tantas coisas, mudou tanto depois que passou a frequentar as reuniões na casa de dona Leocádia e também algumas reuniões do Círculo Esotérico, mas tem dificuldade em se relacionar com Maurício.
Soraia a encarou de maneira séria:
— Eu sei disso. Conversei com Leocádia a respeito.
Então admite que tem dificuldade em relacionar-se com seu filho! Sabia!
— Nunca neguei. Desde a concepção. Tive uma gravidez difícil, com muito enjoo, sonhos pavorosos. Depois, quando ele nasceu, havia alguma coisa estranha entre nós.
— Estranha como?
— Não sei explicar. Talvez um dia eu entenda, ou não. Mas, se ele veio ao mundo como meu filho, é porque eu o aceitei e devo amá-lo. Estou tentando, à minha maneira. Não posso e não vou seguir regras e obrigar-me a amá-lo.
— Você faz diferença no tratamento com Fernando. Pode magoá-lo.
— O que fazer? Vou esconder o que sinto pelo meu sobrinho? Não posso, Sílvia. É mais forte que eu. É como se Fernando fosse meu filho... — uma lágrima escapou pelo canto do olho.
Soraia limpou o rosto com as costas da mão e continuou: — Eu o amo muito. Não sei dizer. É um amor puro. Por isso não entendo como uma mãe afirma amar igualmente seus filhos. Não é possível. Sempre haverá um com quem ela terá mais afinidades e outro com quem o santo não vai bater.
— O amor é o mesmo.
— Não é — objectou Soraia. —- Posso lhe garantir que não é. E, de mais a mais, um filho não é propriedade nossa. Veio para o mundo em um processo único de evolução. Veja eu e você.
— O que tem?
— Não nos dávamos nada bem. Quando nos vimos à primeira vista, quase nos digladiamos.
Sílvia riu.
— É verdade. Não fomos muito uma com a cara da outra.— Pois é. Com o tempo, cada uma foi entendendo melhor a outra, percebendo e aceitando as diferenças, respeitando o jeito de ser. Hoje somos amigas. Amo seus filhos como se fossem meus. Você ama o meu como se fosse seu filho. E isso é o que basta. O resto não importa.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 3 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 14, 2024 8:53 pm

— Acredita que meus filhos vão crescer sem cobrar de mim uma presença maior porque trabalho?
— Ao contrário. Terão orgulho porque você batalha, trabalha, ajuda nas despesas, vai dar-lhes um bom exemplo de vida digna.
— Falando assim, você me acalma. Sinto que mamãe, seu Faruk e Jamil precisam muito de mim no mercado. Você poderia...
Soraia a interrompeu:
— Não! Definitivamente, não. Eu não nasci para trabalhar fora. Fui e sou talhada para ser dona de casa, adoro cuidar do lar, cozinhar, fazer compra no mercado, ficar no pé da empregada, levar as crianças à escola. Sabe que, se pudesse, teria mais três filhos, embora tenha sempre afirmado que bastaria ter um apenas. O nascimento de Fernando me fez mudar de opinião. E, infelizmente, depois que Maurício nasceu, não pude mais gerar filhos.
— Houve o problema com os ovários. Uma pena.
— Tudo é para nosso crescimento. Eu me forçava a ser uma pessoa que não era, exigindo de mim uma maneira de viver que não era a melhor para mim. Depois que decidi seguir os anseios de minha alma, tudo mudou. Então, vá trabalhar, realize-se à sua maneira, e eu me realizo ao meu modo. Seus filhos serão bem cuidados e seremos felizes.
As duas abraçaram-se com amor e não notaram uma energia que as envolvia, cheia de carinho e ternura, abençoando e fortalecendo o elo afectivo entre Sílvia e Soraia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 11:18 am

Capítulo 23
Dorothy estava radiante. Sua colecção de vestidos e saias fora aceita para participar de um desfile de uma conhecidíssima loja de departamentos em Nova York. O evento ocorreria dali a seis meses e havia muito ainda o que fazer: contratar manequins, importar tecidos, pensar nos acessórios e, se o desfile fosse sucesso - e seria —, ela e Esther seriam contratadas para vender com exclusividade para essa cadeia de lojas.
— É tudo o que mais quero — exultou ela, excitadíssima, enquanto acendia o cigarro e soltava as baforadas para o alto.
— Eu também, eu também — concordava Esther. — Se nos tornarmos exclusivas dessa loja, nosso nome será projectado internacionalmente. Ficaremos famosas. E poderemos cruzar o Atlântico, invadir as maisons de Paris!
— C est une grosse opportunité et on va déchirer!
Dorothy falou em francês algo como: É uma grande oportunidade e vamos arrasar, o que deixou Esther de queixo caído.
— Continua com seu francês impecável! Anda praticando?
— Um pouco. Tenho comprado exemplares de revistas de moda. Eu as leio amiúde. É a maneira que encontro para não explodir quando estou em casa.
— Mal fica na sua casa. Tem passado mais tempo aqui em casa, quer dizer, no ateliê.
— Nos raros momentos em que preciso voltar, perco a paciência.
— Como está a pequena Rachel?
Dorothy fez uma careta.
— Insuportável. É intragável.
— Você era intragável quando pequena. Certa vez me revelou que...
Dorothy a interrompeu:
— Não. É bem diferente. Eu fui uma criança de génio forte, porém obediente. Débora é obediente, nunca me deu um pingo de trabalho. Nós nos damos muito bem. Mas Rachel parece que veio ao mundo para me tirar do sério.
— Como pode afirmar isso? Ela mal completou um aninho!
— Sei. Um aninho e já noto seu temperamento explosivo. Não posso chegar perto e começa a choradeira. Só sossega no colo do pai. E Olavo é muito mole. Ele vai estragar essa menina. Já estou vendo o futuro. Ela não vai ter limites, fará o que vier à telha.— Como você.
— É diferente, Esther. E há algo que preciso lhe confidenciar.
— Conte.
— Rachel não pode chegar perto de Mary, minha empregada, que abre um berreiro. Fecha o semblante e encolhe os bracinhos. Recusa--se a ficar com Mary.
— Ela é tão boa, tão amável. Débora a adora!
— Pois é. Não sei... Algo me diz que Rachel não gosta de Mary por causa da cor da pele. Mary é negra.
— Que absurdo! Como pode afirmar uma sandice dessas? Rachel é uma menininha. De onde tirou essa ideia?
— Não sei — Dorothy mordiscou o lábio, reflexiva — mas algo dentro de mim diz que o facto de Mary ser negra faz Rachel odiá-la. Sinto isso.
— Você e suas ideias estapafúrdias.
— Espero que sejam. Não gostaria de ter uma filha racista. Vivemos uma época em que a segregação racial está sendo posta em xeque. Muitos de nós não querem mais viver essa separação. Nunca tive preconceito. Para mim, não importa a cor da pele, somos todos semelhantes e devemos nos respeitar.
— Também penso assim — concordou Esther. — Mas pensar que sua filhinha não queira estar na presença de Mary por causa da cor da pele, isso é demais da conta.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 11:18 am

— Espero estar errada, sabe? É a primeira vez que luto com meus sentimentos para sentir de outra forma. Só que algo aqui dentro — apontou para o próprio peito — afirma que não estou enganada.
— Um motivo para tê-la ao seu lado e educá-la a não ter preconceito.
— Não sou ligada a assuntos místicos, mas acho que esse sentimento já vem do espírito. Só a própria pessoa pode mudar seu jeito de ser. Eu sempre fiz o que quis, mas de maneira consciente, fiz o que quis de bom para mim, mas sem machucar ninguém. Nunca fiz nada que prejudicasse o outro.
— Sem contar a maneira como engravidou de Débora — Esther era directa, não tinha papas na língua e acabou dando outro rumo à conversa.
— Isso não é maldade. Não fiz de maneira deliberada. Estava irritada, possessa, mal. Acabei me deitando com o gerente do hotel. Aqueles poucos minutos de sexo resultaram em gravidez. Não creio ter feito mal a ninguém. Muito pelo contrário. Fui digna. Tive minha filha, mantive a honra de meu casamento e, o mais importante, a honra de meu marido. Nunca ninguém saberá nada.
— Olhando por esse lado, tem razão.— Além do mais, Olavo agora vive jogando na minha cara que se casou comigo por conta do meu dinheiro. Isso, sim, é maldade. Ele não foi um homem digno. Não respeitou meus sentimentos.
— Você o amou?
Dorothy foi franca:
— Sim. Num primeiro momento, eu o amei. Acreditei piamente que poderíamos ter uma boa vida juntos. Senti que esse latino poderia ser caliente, quente, diferente da frieza norte-americana. Quis crer que haveria amor, compreensão, amizade, uma vida diferente ao lado de um homem também diferente, vindo de outra cultura, com outros valores. Ele se mostrou mesquinho, pobre de espírito. Como já lhe disse, eu me senti vingada por ter feito o que fiz.
Não sinto um pingo de remorso por ter engravidado de outro.
— Não sente vontade de contar a ele sobre Débora? De esfregar na cara dele que ela não é filha legítima?
— Não. Por mais raiva que eu sinta dele, eu amo minha filha. Não vou e não quero prejudicá-la.
Esther a abraçou e afirmou:
— Você tem carácter. É uma pimenta, um furacão. Nunca vi mulher mais determinada na vida, mas é digna. Eu me sinto privilegiada por ser sua amiga.
Dorothy sentiu uma lágrima escapar pelo canto do olho.
— Você também é a única amiga que tenho de verdade. É como uma irmã para mim.
— Por que não se separa dele? Não acha que agora está mais do que na hora?
— Não queria magoar meu pai. Ele é muito tradicional, republicano. Na família de Mister James Chandler nunca houve uma mulher divorciada.
— Você é infeliz.
— Estou infeliz. É um estado de espírito. Logo passará, e, de mais a mais, papai está doente.
— Sério? — Esther perguntou com surpresa e tristeza na voz.
— Sim. Ele pensa que me engana; contudo, Molly, nossa governanta, que está cuidando da casa desde antes de eu nascer, me confidenciou que ele não estava dormindo bem, acordava tossindo, chegou a pegar lenços com sangue no banheiro. Fui visitar o médico dele e descobri.
Papai está com câncer no pulmão. Não tem mais de três meses de vida.
Esther levou a mão à boca:
— Meu Deus! Ele não vai ver o desfile?
Emocionada, Dorothy asseverou:— Não. Tenho certeza de que não vai. E, uma coisa lhe garanto: se ele morrer antes do desfile, eu vou pedir o divórcio.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 11:19 am

— E as crianças?
— Já decidi tudo aqui — Dorothy levou a mão à cabeça. — Vou pegar Débora e vamos nos mudar para Nova York.
— E Rachel? Ela é pequenininha e...
Dorothy a cortou com amabilidade e deu de ombros:
— Confesso que não a amo o suficiente. Ela tem afinidades com o pai. Ele que a crie. Eu fico com uma filha, Olavo fica com outra. E assim a vida segue.
Três semanas depois daquela conversa, o estado de saúde de James agravou-se, ele foi internado e, passados alguns dias, faleceu. Depois de realizado o funeral e acertada a partilha dos bens — ele deixara quase tudo para a filha e deixara bom dinheiro para as netas, depositados em um fundo fiduciário —, Dorothy foi para casa, pegou algumas roupas, depois entrou no quarto de Débora e também fez o mesmo, separando algumas peças de roupa da menina. Ajeitou tudo em três malas.
— Para onde vamos, mamãe?
— Para bem longe, uma cidade linda, onde tem muita gente, muito movimento.
— Vai ter neve?
— Sim.
— O Papai Noel mora lá?
Dorothy sorriu.
— Não, meu bem. Ele não mora lá, mas você poderá lhe escrever cartinhas pedindo os presentes de Natal. O polo Norte, onde o Papai Noel mora, fica mais perto daquela cidade do que desta onde estamos.
— Então vamos mudar já.
— Claro.
— Papai vem junto?
— Não. Papai vai tomar conta dos negócios que o vovô deixou. E também vai tomar conta da Rachel. Vamos eu e você. Só nós duas — ela se abaixou e abraçou Débora, sussurrando em seu ouvido: — A mamãe ama você.
Desceram as escadas e deram de cara com Olavo na porta principal, segurando Rachel nos braços. A menina dormia em seus braços, com o rostinho deitado em seu ombro.
Ele quis saber, num tom de voz baixo para não acordar a pequena:— O que é isso?
— Eu e Débora vamos embora.
— Você não pode.
— Claro que posso.
— Você pode se divorciar de mim, mas não pode levar minha filha assim, do nada. Vou contratar o melhor advogado de família. Você vai ver a briga que...
Dorothy levou a mão até os lábios dele. Chamou Mary e pediu para que ela levasse Débora até o carro. Assim que a menina saiu com a empregada, que também iria com elas, Dorothy aproximou-se dele e, encarando-o, assegurou, em voz baixa:
— Não vai fazer nada.
— Eu gritaria, daria um tapa em você! Mas estou com a nossa filhinha. Aliás, não pensa nela?
Como pode separar duas irmãs? Desmantelar uma família?
— Não me importo. Não quero criar Rachel. Eu nunca a desejei. Foi você quem a quis. Você me forçou. Eu jamais teria outro filho.
— Por que não abortou?
— Por remorso. Ou porque quis que você tivesse um filho de verdade.
Olavo fez um ar de interrogação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 11:19 am

— Não estou entendendo.
Dorothy chegou mais perto, tão perto que ele podia sentir o hálito doce e quente dela.
— Eu lhe dei Rachel porque ela é a única filha que tem.
— Como?
— Débora não é sua filha.
Dorothy rodou nos calcanhares e saiu, fechando a porta atrás de si, sem fazer barulho. Olavo tremia e só não caiu porque segurava a pequena Rachel nos braços. Conseguiu, a custo, arrastar-se até o sofá da sala e sentar-se. Deitou a filhinha ao seu lado e levou as mãos à testa.
— Não pode ser. Ela falou isso para me irritar, para me tirar do sério. Não pode ser!
Essa dúvida atormentou Olavo por muito tempo, até o dia em que Débora, muitos anos depois, já na faculdade, ligou para ele a fim de fazer uma pesquisa e perguntar ao pai o tipo sanguíneo dele.
— Não pode ser, papai.
— Por quê?— Eu sou tipo B. Se mamãe é O e você é A, eu deveria ter o tipo A ou O, jamais B.
Olavo desculpou-se, mentiu afirmando que se enganara e, depois de desligar o telefone, chorou muito. E a vida seguiu. Dura, mas seguiu.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Mar 15, 2024 11:19 am

Capítulo 24
Muitos anos depois...
Soraia acordou naquela manhã de segunda-feira com uma sensação agradável no peito. Não vinha dormindo bem desde a noite de sexta. Mas nesta última, porém, tivera um sonho maravilhoso.
Nesse sonho, um jovem de bela aparência aparecia e tocava em seu corpo:
— Soraia, acorde.
Ela abria os olhos, olhava ao redor, percebia estar em seu quarto e, quando sentada, notava o corpo físico adormecido na cama. Via Paulo, seu marido, deitado ao seu lado e o perispírito dele dormindo alguns centímetros acima do corpo físico.
— O que está acontecendo? — indagou, ainda sonolenta.
— Você está numa espécie de sonho. Seu corpo físico dorme, mas seu espírito continua acordado.
Ela se apalpou, perplexa.
— Sinto meu corpo. Como pode?
— O que está sentindo é seu corpo espiritual. Como se fosse um segundo corpo, ou uma segunda pele que protege o espírito ou alma.
Meio desconfiada, ainda sentada na cama, Soraia mirou o rapaz de cima a baixo.
— Quem é você? Eu o conheço?
— Somos amigos. Você já me sentiu por perto algumas vezes. Não se recorda?
— Difícil me lembrar de algo que não vejo, apenas sinto. Posso confundir com pensamentos, com minha própria mente.
O rapaz sorriu.
— Tem razão. Mas tem estudado tanto sobre os assuntos espirituais nos últimos anos!
Acreditei que este encontro pudesse lhe causar menos surpresa.
— Na teoria é uma coisa, já na prática... — ela se levantou e, aproximando-se, quis saber: -— Quem é você, mesmo?
— Raul. Um amigo.
— Seu rosto me é familiar.— Eu a acompanho faz alguns anos.
— Há muitas vidas?
— Não. Nossos caminhos se cruzaram há pouco tempo. Eu lhe sou muito grato.
— Por ter feito o quê?
Uma lágrima escorreu pelo canto do olho. Emocionado, Raul a abraçou, com ternura. — Por você, só tenho gratidão. Você foi um anjo bom que, infelizmente, chegou tarde em meu caminho. Mesmo assim, sou-lhe eternamente grato pela sua intenção. O que quis fazer por mim foi de uma dignidade ímpar.
— Não estou entendendo.
— Nem precisa.
Soraia também sentiu certa emoção. Sentiu-se muito bem ao lado do rapaz. Era um moço de feições suaves, olhos levemente puxados, amendoados, lábios finos, dentes perfeitos, cabelos vastos e alourados. Vestia uma roupa comum, tipo camiseta e calça jeans, calçava chinelo de dedos. Na garganta usava um colar de contas.
— Você me faz bem.
— Eu sei, querida. Porque só quero o seu bem-estar. Eu prezo muito pelo seu equilíbrio emocional.
— Tenho vivido bem, ultimamente. Por que estamos tendo esta conversa, este sonho?
— Porque mudanças estão por vir. Claro que todos têm arbítrio e, por meio dele, podemos mudar nosso destino. Todavia, por meio das probabilidades, temos condições, do lado de cá, de saber mais ou menos como certas situações irão se desenrolar.
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