LUZ ESPÍRITA
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 19, 2024 7:38 pm

—- Ela está nos evitando. Por quê?
— Não sei.
— Ela se lembra de você. Esteve com ela, anos atrás. Tem alguma coisa errada...
— Vai ver ela nem sabe ao certo. Não sei, Sílvia, há tanta dúvida.
— Não há. Sabemos que não. Temos de afastar nosso filho daquela família. Pronto.
— De que vai adiantar? Afastá-lo não vai resolver o problema.
— Por ora, vai.
— Sílvia, escute. Não vê que precisamos encarar os fatos? Nunca quisemos olhar de frente para esse caso. Sempre acreditamos que jamais teríamos de lidar com assunto tão delicado, principalmente quando voltei dos Estados Unidos convicto de que Olavo não deveria saber a verdade.
— Por isso mesmo. Se Olavo não deveria saber a verdade e está morto, por que agora deveríamos despejar todo o passado sobre as costas de Fernando? Para quê?
— Tem ideia do que pode estar acontecendo? E se ele estiver mesmo namorando essa moça?
Não percebe que Fernando está namorando a própria irmã? Sílvia, isso é muito grave.— Melhor trazê-lo para São Paulo. Arrumamos um emprego para ele aqui. Jamil disse que o coloca para administrar o mercado. Faremos qualquer coisa.
— Tudo bem. Mas e se ele estiver gostando dessa moça? O que vamos dizer a ele? Olha, Fernando, você não pode namorá-la porque ela é sua irmã.
— Deixe de ser sarcástico!
— É a alternativa que me resta, Sílvia. Você não está raciocinando direito. Está se deixando levar pela emoção, pelas ideias da cabeça. Seus pensamentos estão tumultuados. Não pode viver assim.
— Vivo como quero.
— Não pode exigir que seu filho viva como você quer. Está sendo mesquinha e arrogante.
— Eu?!
— É. Fica com o discurso de que está querendo o bem da família, quer me proteger, proteger o nosso nome e tudo o mais, mas, na verdade, nem está aí para os sentimentos do nosso filho.
Nem quer saber o que Fernando sente. Está agindo feito Olavo. Nunca pensei que você chegasse a esse ponto. Estou desapontado.
Ele apanhou a carteira e as chaves sobre a cómoda.
— Aonde vai?
— Preciso de ar. Respirar. Não quero ficar em casa.
Maurício desceu os degraus de forma rápida, ganhou a rua e, na calçada, encostou o portãozinho e tocou a campainha. Quis parecer que estava chegando naquele momento. Ivan abriu a porta e surpreendeu-se ao vê-lo. Após cumprimentá-lo, indagou:
— Algum problema no Rio?
— Não, tio. Vim filmar uma campanha publicitária aqui na cidade. Volto amanhã. Resolvi dar uma passadinha para vê-los e também para ver a prima.
— Clarice só vai chegar no comecinho da noite. Sua tia está lá dentro. Eu preciso sair. O hospital me chama.
Assim que Ivan entrou no carro e partiu, Maurício considerou:
— Hospital, está bem. Mente muito bem, tio. Deve ser coisa de família. Todos nós mentimos muito bem! Agora tenho a constatação: Fernando é mesmo o bastardinho. Então ele é filho do ex-marido de Dorothy. E, sem saber, está namorando a meia-irmã. Isso é óptimo! Preciso arrumar um jeito de destruí-lo com essas informações. Mas como?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 19, 2024 7:39 pm

Capítulo 48
A vida sempre procura nos dar a chance de renovar ideias, mudar posturas, fazer com que possamos enxergar pontos fracos que atravancam nosso caminho rumo a um dia a dia mais harmonioso e feliz. Cada um tem o direito de escolher o que é melhor para si, sempre.
Todavia, quem cultiva a maledicência não pode viver em paz, da mesma forma que quem não distribui simpatia não pode ser querido.
Por essa razão, é imperioso entrar em seu coração para se conectar ao seu mundo interior e sentir o que seu espírito deseja, porquanto ele tem tudo o que você precisa para viver melhor.
Rachel, infelizmente, não queria ter esse contacto. Acreditava que o mundo devia jogar-se aos seus pés. Ela era a pessoa mais importante do mundo e não media esforços para fazer valer os seus desejos e caprichos. Dessa forma, só atraía antipatia e energias pesadíssimas que se colavam constantemente à sua aura, sem que ela percebesse.
Passou por Fernando e o empurrou, pronunciando palavrões em inglês desnecessários de ser traduzidos. Deixou o rapaz sem graça e, na sequência, apanhou um vestido no mostruário e entrou no provador.
Uma vendedora simpática e negra veio atendê-la, mas foi tratada feito lixo. Rachel a xingou de todos os nomes possíveis e imagináveis. Débora, que acabava de chegar para apanhar os cheques e dinheiro do caixa, aproximou-se e a repreendeu:
— O que pensa que está fazendo?
— A loja é da mamãe. Portanto, é como se fosse minha. Posso fazer o que bem entender.
Como podem admitir crioulos? Essa gente de pele escura só afasta a clientela.
— Aí é que você se engana. Você e essa mania de se sentir superior.
— Sou. Gente branca é superior. Odeio os negros.
— Por que não vai se tratar? Precisa de um analista. Esse jeito de falar e atingir as pessoas ainda vai lhe trazer problemas.
Rachel elevou os ombros.
— Não estou nem aí. Branco e preto não se misturam. Está errado.
— Errado é seu comportamento idiota.
— Idiota é você — vociferou Rachel.
Débora suspirou. Sabia que não adiantava conversar com a irmã. E falou:
— Você disse bem, a loja é da mamãe. Portanto, não pode entrar aqui feito uma estúpida e tratar os funcionários dessa maneira também estúpida.— Gentinha. Gentalha. Não suporto esse povo. Adoram tocar na gente, agarrar, dar beijinho.
Querem logo ser amigos, ter intimidade. Que nojo! Tenho de colocá-los em seus devidos lugares.
— Antónia só estava tentando ajudar.
— Não quero ajuda de ninguém, ainda mais de uma vendedora com essa cor — enfatizou, referindo-se à cor da pele da moça.
Débora abriu e fechou a boca sem poder articular som, tamanha indignação. Antónia passava por elas, ouviu o comentário e pôs-se a choramingar, indo para o fundo da loja. Fernando foi até ela.
— Você é uma das pessoas mais desprezíveis que conheço — disparou Débora.
— Os seus comentários não me atingem — devolveu Rachel — atirando o vestido em direcção à irmã e batendo o salto em direcção à saída. — Esta loja é uma porcaria. Boutique bem vagabunda. Depois que trocaram de gerente, parece que ficou pior.
— Saia daqui antes que eu lhe encha de sopapos.
Ela gargalhou.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 19, 2024 7:39 pm

— Você, Débora? Vai me peitar? Essa é boa. Eu acabo com você em um minuto — os olhos de Rachel pareciam arder em chamas.
Débora deu um passo para trás. Sentiu medo. Rachel fez uma careta, ajeitou a alça da bolsa no ombro e saiu da loja. Da calçada, fez sinal e tomou um táxi. Fez uma cara de desgosto. O motorista era mulato. Deu o endereço e, assim que pagou e desceu em frente ao prédio onde morava, respirou aliviada.
Passou pelo porteiro sem cumprimentá-lo, porque ele era serviçal e, na cabecinha dela, empregados não devem lhe dirigir a palavra. Empurrou a faxineira, que quase tomou um tombo e pegou o elevador.
O porteiro ajudou a moça a se reequilibrar.
— Menina abusada. Está bem?
— Estou. Ela é sempre assim, esse nojo. Senti tontura quando passou por mim. Tem entidade grudada nela, seu Elias.
— Cruz-credo, Dalva. Jura?
— Tem. Essa menina é ruim, atrai companhia tão ruim quanto ela. Se não melhorar o jeito de ser, vai se dar muito mal.
O porteiro fez o sinal da cruz. Ao chegar ao andar, Rachel entrou no apartamento e decidiu ir directo para seu quarto.
Passou pelo corredor e notou a porta da suíte de Dorothy entreaberta. Deu uma espiada e viu a mãe, de costas, falando ao telefone com Nelson:
— É verdade, meu bem. Dizem que o moço é a cara do Olavo quando jovem. Eu tenho certeza de que ele engravidou a namorada brasileira e nada me disse porque, se eu soubesse, não nos casaríamos.
A conversa continuava com Dorothy ora esclarecendo Nelson, ora escutando ou fazendo perguntas. Foi nesse ponto que Rachel se interessou. Esticou a orelha avançando a porta, para dentro do cómodo. Dorothy dizia:
— O quê? Não. Imagine. Esse boato de que, caso se confirme que o rapaz seja mesmo filho de Olavo, esteja namorando a irmã, não tem fundamento. Ao menos para nós dois, que sabemos a verdade sobre Débora. Ela não é filha de Olavo, portanto, pode namorar esse rapaz, seja ele filho ou não de Olavo e...
Rachel arregalou os olhos e correu até seu quarto. Encostou a porta e ficou perplexa, mas por pouco tempo.
— Hum, sabia que aquela lambisgóia não podia ser cem por cento minha irmã. Tinha de haver um erro, alguma coisa que justificasse tanta diferença entre nós duas. Agora sei. Mamãe pulou a cerca. Só que eu não vou contar nada ao Maurício, senão perde a graça, acaba o show. Ele está louco para se vingar do primo, armar alguma cena. E eu quero ver o circo pegar fogo!
Novo encontro entre ela e Maurício ocorreu dali a dois dias, depois de assistirem ao show da Blitz, no Circo Voador. Assim que se sentaram em um boteco na subida da Lapa e fizeram os pedidos, Maurício perguntou:
— Tem alguma coisa para me dizer? Descobriu algo?
— Nada — mentiu. —- E você?
— Nem te conto! Meu primo é mesmo filho do Olavo, quer dizer seu pai, ou seja, é seu meio-irmão.
— Não pode ser! — ela fez um esgar de incredulidade. — Então meu pai tinha uma amante?
— Não. Deixe-me contar o que deve ter acontecido.
Maurício explicou a Rachel sobre o envolvimento da tia com Olavo, a possível gravidez etc.
— E está namorando a minha irmã? Quer dizer, a irmã dele também? Não pode — Rachel salientou, evitando a risada.
— Não, claro que não! É incesto. Um absurdo. Estou pensando numa maneira de acabar com a moral e dignidade do Fernando na frente das pessoas. Destruí-lo, sabe? Fazer com que as pessoas sintam asco dele, raiva, nojo.— Como?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 19, 2024 7:39 pm

— Espalhando ao mundo que ele namora a irmã. Isso não chocaria a todos?
Ela riu bem-humorada.
— Claro. Chocaria até mesmo os mais liberais. Incesto é algo que não cola bem. As pessoas não aceitam. Ainda mais nesta sociedade católica e tacanha como a de vocês.
— Pois é. Estou esperando um grande evento para anunciar a descoberta. Parece que sua mãe vai apresentar a nova colecção de verão em uma mansão no Alto da Boa Vista.
— Quem te disse isso?
— Fernando comentou por alto. Ele disse que uma dondoca da sociedade vai oferecer a residência dela para um coquetel com desfile no jardim e ao redor da piscina da casa. Se isso se concretizar, vou jogar na cara dele que namora a irmã, na frente de todos, da mídia.
Imagina o escândalo?
— A relação entre mim e minha mãe não está das melhores. Por isso, Dorothy não vai me convidar. Pode crer.
— Fique tranquila. Tenho meus contactos — ele sorriu. — Tenho certeza de que uma cliente com quem vou sair, daqui a uns dias, tem ou consegue os convites.
— Vou adorar — ela vibrou, sabendo que toda a confusão seria esclarecida logo mais.
Contudo, o que importava para Rachel era a confusão, o cheiro de perturbação no ar. Ela gostava disso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 19, 2024 7:39 pm

Capítulo 49
Fernando e Débora estavam cada vez mais próximos. Desde que Dorothy voltara de viagem não mais buscava os cheques na loja de Ipanema. Débora fazia questão de passar por lá todas as noites. Aproveitava para papear e, em seguida, os dois saíam para jantar.
Naturalmente, a amizade evoluiu para namoro. Soraia estava desesperada e não sabia como agir.
— Paulo, temos de impedir esse namoro.
— Como? Só se dissermos a verdade.
— Não cabe a mim fazer isso. Prometi a Sílvia guardar segredo. Quem tem que revelar a verdade é ela e Ivan.
— Quanto mais demoram, mais o menino se deixa apaixonar. Imagine o que pode acontecer quando ele descobrir a verdade!
— Pode ser duro, mas ele saberá que não vai poder namorá-la.
— Tudo bem, mas será que vai perdoar você, a mim, ou aos pais? Fernando pode querer nos ver pelas costas.
— É um risco.
— Que eu não quero correr. Amo demais esse menino — afirmou Soraia.
— Sim — ele a abraçou. — Tenho certeza de que tudo vai se esclarecer da melhor forma.
— Não sei, Paulo. Algo em meu peito diz que não. Sinto um aperto, uma sensação ruim.
— Bobagem. Desde que voltou a estudar, a se interessar novamente pelos estudos espirituais, anda com sensações, intuições. Não acha que está fantasiando?
— Não. Você bem sabe que não. Há uma resistência muito grande de sua parte em aceitar que o mundo espiritual existe, por achar que tudo acaba com a morte. Sei que a morte de Herculano ainda lhe causa um sentimento de dor.
Paulo afastou-se e virou-se de costas para ela. Debruçou-se na janela da sala e mirou um ponto indefinido da paisagem. Logo em sua mente vieram cenas de sua amizade com Herculano, da adolescência, dos tempos que andavam juntos e aprontavam com as meninas.
Herculano era um tremendo de um irresponsável, mas Paulo o amava como se fosse seu irmão. Eram unha e esmalte, estavam sempre grudados, e Paulo compreendia o porquê de o rapaz cometer seus excessos. A mãe de Herculano morrera no parto dele. O pai, por isso, tornara-se homem frio e distante.
Casara-se novamente seis meses depois e, com a nova esposa, tivera mais dois filhos na sequência.
A nova família era o enlevo do pai. Herculano tornara-se um estorvo. Era como se ele fizesse parte de uma outra vida, de um outro mundo. Toda vez que o pai o encarava, lembrava-se da falecida e atirava em sua cara:
— Você a matou. Se não nascesse, ela estaria aqui. Talvez eu teria os dois filhos que tenho hoje com ela. Você não serve para nada. Só serve para eu me lembrar da desgraça que me causou.
Essa frase e outras, do mesmo teor, eram ditas quase diariamente ao garoto. Obviamente, Herculano cresceu perturbado, meio fora da cerquinha. Rebelde com causa, aprontava todo tipo de traquinagem para tirar o sossego do pai. Passou a fumar aos doze e a beber aos treze.
Aos vinte, já era praticamente um alcoólatra, embora não admitisse.
Paulo o conhecera durante o exame de admissão para o ginásio. Tornaram-se amigos inseparáveis. A mãe de Paulo, dona Dirce, acolhera Herculano como filho querido e procurava dar a ele um pouco de carinho, algo que o menino jamais recebera na vida.
E assim ele foi levando a vida. Até a festa de formatura na companhia de Paulo e Soraia, a bebedeira, o acidente... Paulo não se conformava até hoje de ter ficado bêbado, ter desmaiado, não ter podido ajudar o amigo, socorrer o rapaz que morrera.
Depois brigaram e, algum tempo depois, Herculano morreu num acidente aéreo. Nunca pôde dizer ao amigo que o amava. As cenas vieram misturadas com alegria e muita tristeza e uma lágrima escapou pelo canto do olho.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 19, 2024 7:40 pm

— Se existe mesmo vida além da vida, por que Herculano não veio me visitar? Por que ele não apareceu em sonho?
— Não sei — Soraia respondeu, meio sem jeito.
— Já se passaram mais de vinte anos e nada. Nada. É como se ele tivesse sumido, sugado por um buraco negro.
Soraia o abraçou pelas costas. Encostou a cabeça em seu ombro e disse, de maneira carinhosa:
— Não sabemos os desígnios da vida, meu amor. Não sei como a vida trabalha, como nascemos e morremos. Sei que vivemos muitas vidas a fim de ampliar nossa consciência, para que possamos aprender a valorizar as coisas boas, nos tornar pessoas boas, ter uma vida boa.
Também acredito que temos contas a acertar, seja com nossa consciência ou com pessoas próximas com as quais não nos demos bem. Além do mais, se a vida fosse somente esta, única, por que Herculano teria nascido sem mãe? Por que fora privado do amor materno? Por que sofreria, segundo suas palavras, os abusos verbais e físicos do pai? Por que teve de passar por experiências tão dolorosas? Para quê? Para morrer jovem, sem aproveitar a vida e de forma irresponsável? Paulo girou o corpo e a encarou:
- Não foi irresponsável.
— Os anos passaram, mas a história não mudou. O fato é que Herculano, sendo um pobre coitado ou não, foi irresponsável. Tirou a vida de uma pessoa. Atropelou um rapaz e não prestou auxílio. Você pode defender seu amigo, sentir saudades, amá-lo e tudo o mais. No entanto, não se esqueça de que ele foi responsável por um desencarne.
— Fala de uma maneira, como se ele fosse um assassino.
— Não foi muito diferente.
— Você diz que nada acontece por acaso. Se assim fosse, o rapaz iria morrer de qualquer jeito.
— Não se esqueça de que, se pensar dessa forma, o livre-arbítrio perde a finalidade. Cada um é responsável por suas escolhas e terá de responder pela consequência delas. Herculano, mesmo morto, teria de arcar com a própria consciência. Porque o ajuste, o acerto de contas com a vida precisa ser feito, de um jeito ou de outro.
Ele arregalou os olhos. Soraia prosseguiu:
— Sei que amava muito seu amigo, mais até que sua família, Paulo. Mas, convenhamos, o que Herculano fez com aquele rapaz foi desumano.
— Ele morreu em seguida. Então, ficou tudo certo. Ele ficou quite com a vida.
— Se você não acredita em nada, por que ele ficaria quite? Qual seria a necessidade?
Paulo sentiu uma pressão na cabeça. Não soube o que responder. No mesmo instante, sentiu uma imensa saudade do filho.
— Queria tanto abraçar o Maurício. Faz um tempo que não o vejo.
Soraia meneou a cabeça para os lados.
— Fugindo do assunto. Mas tudo bem. Agora quer saber do filhão que ama de paixão. Talvez tanto quanto amava Herculano.
Falou e saiu da sala, indo para o quarto. Paulo quedou-se pensativo. Era a primeira vez que fazia comparação do sentimento que nutria pelo filho e do que sentia por Herculano. Parecia ser o mesmo. Paulo sentiu um estremecimento pelo corpo. E perguntou-se:
— Como posso amar igualmente duas pessoas?
No quarto, Soraia deitou-se na cama e ligou a tevê. Passou pelos canais e parou no que transmitia a novela das seis da tarde. Era o último capítulo de Pão-pão beijo-beijo. Como toda novela termina com final feliz, Soraia, emocionada, não conseguiu impedir que algumas lágrimas escorressem livremente, borrando a maquiagem.
Foi o momento certo para que o espírito de Raul se aproximasse e lhe desse um passe calmante. Logo ela sentiu um soninho e cochilou. Tão logo adormeceu, Soraia sonhou com ele.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 19, 2024 7:40 pm

— Raul, quanto tempo! — ela o abraçou com efusividade.
Assim que desfizeram o abraço, ele contou:
— Não tem ideia de quão feliz estou por estar aqui.
— Você sabe, estou com uma sensação ruim, parecida com a que tive quando meu pai estava para morrer. Não gosto de ter esse sentimento, pois é prenúncio de que algo desagradável está prestes a acontecer.
— Você tem sensibilidade, por isso a intuição é forte — Raul a puxou delicadamente pelo braço e, num instante, estavam sentados num banco, em volta de belo jardim.
O cheiro de jasmim fez Soraia fechar os olhos e aspirar o perfume delicado. Ela suspirou profundamente e Raul disse:
— Sabe, Soraia, nestes anos que estou aqui nesta dimensão, estudando, vivendo novas experiências, aprendi que a fonte do saber, essência da vida, está realmente dentro de nós.
Deus, sem sombra de dúvidas, fala por meio dela e nos faz perceber o que precisamos para suprir nossas necessidades. Por isso, valorize a intuição.
— Sim. Sei disso. Mas, às vezes, não consigo discernir, saber ao certo o que é a intuição.
Confundo-a com os sensos da alma.
— A intuição é a mais perfeita forma de conhecer a verdade, é a capacidade de a alma sentir as energias e ver além do mundo material.
— Então — ela levou o dedo ao queixo, pensativa — seria o mesmo que dizer que a intuição é a maneira como meu espírito dá os recados, mostra a verdade das coisas?
— Isso mesmo. É por aí. E, se ligar-se a ela, vai se dar muito bem, porque a intuição jamais falha.
— Falando dessa forma, o que sinto é verdadeiro. Algo ruim está para acontecer — insistiu ela.
Raul procurou tranquilizá-la.
— A vida faz tudo certo. É uma pena que nos custe perceber.
— O que quer dizer com isso?
— Logo você vai saber. Por ora, o que importa, é que tudo caminha como deve ser. Você tem melhorado bastante em relação ao controle de seus pensamentos. Sabe separar melhor o que é seu do que não é. Consegue lidar melhor com as provocações de Maurício. — Agora que mora com Fernando, longe de casa, parece que nosso relacionamento está um pouco menos conturbado.
— No fundo, você gosta dele. É chegada a fazer pirraça, não gosta de dar o braço a torcer.
— Eu?!
— Sim. Não me venha com esse ar de santinha do pau oco. Sou seu amigo, quero-lhe muitíssimo bem, por esse motivo posso lhe dizer a verdade sobre você. Não é uma pessoa fácil de lidar, Soraia. Lembra-se de como era seu relacionamento com Sílvia, na época em que seu pai se casou com Eustáquia?
— Eu era jovem, havia perdido minha mãe fazia pouco tempo.
— Nada justifica uma personalidade arredia, pronta para atacar o outro com o intuito de aborrecer, afrontar, desconsiderar. Sei que Sílvia também fez por merecer, mas você foi uma pessoa difícil. Mudou sensivelmente quando me conheceu.
Ela levou a mão ao peito.
— Aquele acidente não sai até hoje do meu pensamento. Eu quis ajudar você, Raul. Sabe disso. Agora mesmo estava conversando com Paulo sobre o acidente, sobre Herculano. Aliás, por onde ele anda? Desde sua morte, não temos notícias dele.
Raul sorriu de maneira maliciosa.
— Ele anda por aí.
— Está bem? Recuperou-se?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 19, 2024 7:40 pm

— Digamos que está se recuperando. Ainda carrega, em seu íntimo, uma culpa jogada para debaixo do tapete em relação à minha morte. Mas a vida, sábia, sempre nos apresenta a conta. De algum modo, Herculano tem confrontado o assunto. Torço para que tudo ocorra de forma inteligente e que ele não tenha de colher sofrimento mais à frente.
— Queria vê-lo. Não sinto mais tanta raiva assim. Creio que hoje, se ele estivesse na minha frente, eu teria mais compaixão. Já não o acusaria.
— Verdade?
— Falo sério. Eu mudei, Raul.
— Sim, claro que mudou.
— Poderia tentar localizá-lo?
— Verei o que posso fazer — desconversou.
— Obrigada.
— Agora vamos, está na minha hora de partir. Você precisa despertar porque Paulo virá acordá-la para o jantar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 19, 2024 7:40 pm

Capítulo 50
A vida foi estruturada para a nossa evolução. Todavia, ainda em estágio de aprendizado e crescimento, entramos facilmente na ansiedade e aflição. E tal estado nos deixa emocionalmente destruídos.
Nada acontece sem uma razão justa. Por esse motivo, a vida acaba por juntar as pessoas de acordo com as necessidades de entendimento que elas têm, para que possam aprender umas com as outras.
Não foi diferente com Rachel e Maurício, dois espíritos ainda presos às ilusões do mundo. Ela, cuja última encarnação foi vivida no sul dos Estados Unidos, durante a época da Guerra da Secessão, defendia ardentemente o uso da mão de obra escrava como opção ideal para o crescimento económico do país. Morreu alguns anos depois da guerra e passou quase um século no mundo espiritual, entre acertos com desafectos e, principalmente, com a própria consciência.
Foi-lhe dada nova oportunidade, inclusive, de reencarnar no mesmo país, a fim de envolver-se em campanha por igualdade e direitos civis para a comunidade afrodescendente.
Embora não nos lembremos, os fatos do passado estão em nosso inconsciente e se reflectem em nossos sentimentos no presente. Rachel cresceu, teve a oportunidade de modificar seu jeito de ser e pensar, envolver-se em movimentos que assegurassem o fim da segregação racial, contudo, permaneceu firme na crença de que a cor da pele diferencia as pessoas e, portanto, os membros de raça negra devem ser tratados de forma distinta; para Rachel, infelizmente, os negros eram inferiores aos brancos.
Sorte dela viver em um tempo em que a discriminação por cor, raça, orientação sexual ou classe social não era repudiada como actualmente. Se Rachel tivesse esse tipo de comportamento lamentável nos dias de hoje, já teria sido presa ou estaria com vários processos judiciais sobre os ombros, além de colocada à margem da sociedade.
Rachel tinha, como todo mundo tem, o direito de pensar o que bem entendesse em relação a tudo e a todos, mas precisava aprender a regra básica de convívio em sociedade: o respeito ao próximo, a consideração por todo tipo de diferenças, afinal, todos nós somos semelhantes, porém indivíduos, trazendo dentro de si particularidades que devem ser valorizadas e, acima de tudo, respeitadas; jamais devem ser desprezadas.
Maurício, por sua vez, continuava preso na ilusão de que o mundo deveria fazer suas vontades para que ele se sentisse bem e feliz. Ele já vinha, havia algumas encarnações, tendo chances de vivenciar situações nas quais pudesse descobrir por si só e entender que apenas o auto-apoio seria capaz de torná-lo uma pessoa de bem consigo próprio e com a vida.
Assim como Rachel, ele não queria mudar e, mais uma vez, tinha a responsabilidade de disciplinar a vaidade, encarar seus pontos fracos e tornar-se seu melhor amigo. Não percebia que a vida o havia aproximado de Rachel para, juntos, aprenderem a modificar a maneira de ser e ter a chance de viver melhor consigo mesmos e acertando as contas com as pessoas ao redor. Não compreendia, tampouco notava, que a vida manda os desafios e é melhor enfrentá-los com coragem e positivismo do que lamentar.
Ele estava prestes a experimentar novo desafio para modificar seu jeito mesquinho e arrogante de ser. Em outras palavras, a vida estava a ponto de lhe apresentar a conta. Como reagiria? Impossível precisar.
Vivemos hoje em um mundo no qual devemos dar as mãos uns aos outros e ensinar a nossos filhos que todos os seres merecem compreensão, carinho e, acima de tudo, respeito. Só assim é possível construir um mundo efectivamente mais equilibrado, justo e melhor para vivermos em paz e harmonia.
E estava na hora de Rachel e Maurício aprenderem a respeitar as pessoas e a se olhar com amor, mesmo que tivessem de pagar um preço alto para atingir tal objectivo.
Estavam em outubro. Dorothy iria apresentar a colecção de verão dali a três semanas, perto do fim do mês. O evento seria realizado na mansão de uma grande amiga, no Alto da Boa Vista.
Era uma casa linda, cravada em meio a um terreno repleto de vegetação nativa, coisa rara. O local era tão deslumbrante que vez ou outra servia de cenário para um comercial ou cena de novela de tevê.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 19, 2024 7:41 pm

Emília estava acostumada com esse vaivém de câmaras, luzes e gente apressada andando para todos os cantos dos jardins e em volta da piscina. Ela mal ficava hospedada na casa. Vivia a maior parte do tempo com o marido austríaco em um palacete na cidade de Salzburgo, às margens do rio Salzach.
Ela adorava clima com baixas temperaturas e vinha raríssimas vezes ao Brasil. Geralmente encontrava-se com Dorothy fora do país. No entanto, em uma conversa telefónica com a amiga, ao saber da nova colecção, ofereceu a casa como cenário e dispôs-se a vir passar uns dias e matarem as saudades.
Emília era uma pessoa boníssima, de coração puro. Nascida e criada no meio da nata carioca, jamais se deixou contaminar pelas afectações que o dinheiro e o poder podem causar a determinadas pessoas. Era elegante, fina e cativava as pessoas, de porteiro de prédio a reis e imperadores, pela simplicidade com que se expressava. Resumindo, era, como se diz nos dias de hoje, uma fofa, um doce de pessoa.
Fernando havia solicitado a ela, em segredo, que, no fim do evento, sem grande alarde, aproveitando tão somente o cenário, o local onde estariam, iria oficializar o relacionamento com Débora, pedindo-a em noivado e, na sequência, a mão dela para o padrasto, Nelson.
Diante disso, Dorothy, muito à vontade, fez o convite:
— Se vai ser algo tão importante, por que não convida seus pais para o evento?— Meus pais?
— É, Fernando. Seus pais. Eles poderiam participar, assistir ao desfile de moda e, depois que os convidados se forem e ficarmos somente nós, ou seja, eu, Nelson e Débora, seus pais e sua irmã, celebramos o noivado. Emília já me deu autorização e, inclusive, vai nos agraciar com um jantar.
Ele sorriu, emocionado.
— Mesmo? Sinto-me nos ares. Nunca imaginei que você me permitisse trazer meus pais para o evento.
— Por quê?
— Não queria misturar negócios com vida pessoal.
— Não tem nada a ver. Além do mais, você vai se tornar parte de minha família. Quero muito conhecer seus pais — afirmou ela mais na curiosidade em conhecer de perto a antiga namorada de Olavo.
Fernando, sem nada perceber, devolveu:
— De certa forma, seremos agora uma grande família. Tem razão. Vou ligar hoje mesmo, convidá-los e providenciar as passagens. Poderão ficar em casa. Meu primo mal dorme lá. E, mesmo que durma, ficará no sofá.
— Quero somente sua família. Nada de parentes — ela foi clara.
— Pode ficar tranquila. Não vou abusar.
— Nem vou chamar Rachel. Ela é impertinente e intragável. Não se dá bem com Débora. Por que chamá-la? Não faz sentido.
— Você é quem sabe.
Passava das oito da noite quando o telefone tocou e Ivan atendeu.
— Pai. Quanta saudade!
Ivan se emocionou. Sem deixar transparecer, devolveu, num tom natural:
— Filho, como está?
— Melhor, impossível. Aqui está tudo indo muito bem.
Conversaram bastante, sobre vários assuntos, trabalho, negócios, política e, de repente, veio o inesperado, quando Ivan indagou:
— Quando vem nos visitar?— Você virá me visitar. Aliás, você, mamãe e Clarice.
— Não estou entendendo.
— Pai, lembra-se do meu namoro com a Débora, filha da dona da loja?
Ivan remexeu-se nervosamente no sofá.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 11:17 am

— Sim, lembro — disse numa voz fria.
— Então. As coisas evoluíram, sabe?
— É?
— Sim. Eu vou pedir Débora em noivado. E, para tanto, quero vocês aqui, no dia do pedido.
Ivan gaguejou, pigarreou. Sílvia entrou na sala naquele momento e perguntou se estava tudo bem. Fernando, do outro lado da linha, fazia a mesma pergunta.
Ivan encarou Sílvia de forma atónita. Apontou para o telefone afirmando ser Fernando. Ela não entendeu direito e apanhou o gancho e encostou no ouvido:
— Filho, o que aconteceu?
— Eu é que pergunto. Estava falando com o pai e ele começou a tossir. Está bem?
— Aparentemente, sim. O que estavam conversando?
— Tenho uma óptima notícia.
— Qual?
— Vou ficar noivo!
— Noivo?
— Sim. Vou pedir a mão de Débora. Logo vamos nos casar e...
Fernando só escutou o gancho batendo com força no chão. Chamou a mãe, o pai e nada.
Sílvia caiu sobre o próprio corpo, desfalecida. Ivan não sabia o que fazer.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 11:17 am

Capítulo 51
Passado o susto inicial, Ivan andava de um lado para o outro da sala. Sílvia estava impaciente.
— O que vamos fazer? Ligar de volta e contar tudo?
— Não. Isso, não. Precisamos contar toda a verdade, cara a cara.
— Fernando vai nos odiar.
— Melhor nos odiar do que casar com a irmã.
Sílvia cobriu o rosto com as mãos.
— Que horror! Como a vida pôde me punir? Por que temos de passar por isso?
— Não sei, mas temos de revelar a ele a verdade. Acabou.
Clarice entrou em casa naquele instante. Ouviu as últimas palavras de Ivan e quis saber:
— Revelar qual verdade, papai?
Ivan estancou o passo e ficou imóvel, sem saber como reagir. Sílvia levantou-se e a abraçou:
— Chegou cedo.
— Mesmo horário. O meu turno não mudou por esses dias.
— Então, perdi a noção das horas — mentiu, encarando Ivan e fazendo sinal com os olhos, suplicando para que ele inventasse algo e pudesse convencer a filha.
— Papai e você estão nervosos. Sinto isso. O que foi?
— Seu irmão vai ficar noivo — revelou Ivan. — Ficamos surpresos. A verdade é que eu fiz uma poupança para Fernando e para você, separadas, a fim de presenteá-los quando estivessem prestes a se casarem.
Ela sorriu.
— Que coisa mais linda! E querem fazer surpresa, é?
Sílvia adiantou-se em dizer:
— Sim. Por isso estávamos aqui discutindo. Não seria prudente, por agora, revelar ao seu irmão essa novidade, de que ele tem um bom dinheiro para ganhar.
— Fomos convidados para o evento — contou Ivan, escondendo a aflição. — Próximo sábado.
Vamos passar o fim de semana no Rio.— Que óptimo! Terei tempo para trocar o dia de trabalho com alguma colega. E poderei ver o Maurício. Sinto que ele precisa de mim.
— Você gosta dele, não? — indagou Sílvia.
— Gosto. Muito.
A viagem foi tensa. Sílvia e Ivan pisaram no chão do Santos Dumont com o coração batendo forte. Clarice notou o estado alterado dos pais e acreditou que, de certa forma, estavam emocionados em virtude do noivado do irmão.
Além do mais, dotada de extrema sensibilidade, estava mais ligada a Maurício. Sonhara com ele na noite anterior. Embora não se recordasse do sonho, acordou com uma sensação ruim no peito. Tinha certeza de que algo ruim estava por acontecer. Não quis compartilhar esse sentimento com os pais porque sabia que Sílvia, principalmente, ficaria nervosa com qualquer comentário aterrorizante.
Tomaram um táxi rumo a São Conrado. Naquele dia, a loja de Ipanema não funcionou em virtude dos preparativos da colecção. Fernando já havia subido ao Alto da Boa Vista no comecinho da manhã e encontraria os pais no apartamento, perto da hora do almoço.
Passariam a tarde juntos e, na sequência, iriam para o evento.
Assim que Sílvia o viu, correu a abraçá-lo e desatou a chorar. Fernando nada entendeu.
Clarice simplesmente disse:
— Mamãe está carente de você.
Débora terminava de se arrumar para a grande noite. Havia colocado um vestido de alças finas, sandálias, deixou os cabelos, naturalmente ondulados, soltos e jogados para trás, que se moviam com graça sobre os ombros quando ela andava.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 11:19 am

Assim que terminou de se maquiar, encontrou Dorothy na porta do quarto, observando-a com ternura.
— Há quanto tempo estava me observando?
— Fazia um tempinho — confessou Dorothy.
— Mamãe, que coisa! Parece que me vê como uma menininha.
— Sempre vai ser minha menina — disse, enquanto caminhava até próximo da penteadeira e tocou delicadamente os cabelos da filha.
— Estou muito feliz, mãe. Gosto muito do Fernando.
— Gosta mesmo?— Quer saber? Estou apaixonada.
— Isso é tão bom! Fui apaixonada duas vezes na vida.— Uma vez pelo papai e outra pelo Nelson.
Dorothy abriu e fechou os olhos. Tinha uma vontade imensa de revelar a verdade à filha. Mas o que dizer? Que Olavo não era seu pai? Que Débora fora fruto de uma impulsividade, de um gesto tresloucado dela? E, ainda por cima, revelar que a loucura aconteceu durante a lua de mel? Qual seria o melhor jeito? Ou haveria um jeito de contar sem que Débora a condenasse?
Dorothy tinha profundo amor pela filha. Temia que Débora pudesse afastar-se dela ao saber a verdade sobre sua concepção. Todavia, era chegada a hora da verdade. Logo as pessoas saberiam sobre a paternidade de Fernando. Poderia haver uma grande confusão, gerar constrangimentos. Dorothy não queria saber de nada que pudesse afectar o equilíbrio emocional da filha.
Por conta disso, decidiu que era a hora de revelar a Débora a verdade. Segurou as mãos dela com delicadeza, abaixou-se, encarou-a e falou:
— Preciso lhe confidenciar algo.
— O que é?
— Antes, porém, gostaria que não me julgasse. E soubesse que eu a amo acima de tudo. Você é a pessoa mais importante do mundo para mim.
— Sei disso. Eu também a amo muito. Sempre estivemos juntas.
Dorothy sentiu leve estremecimento pelo corpo. Uma emoção que há muito não sentia.
— Quando eu engravidei de você...
Rachel entrou no quarto naquele momento.
— Que cena mais bonitinha! Mamãe e filhinha. Estão de segredinhos?
Dorothy meneou a cabeça para os lados. Exalou um longo suspiro de contrariedade.
Levantou-se.
— Depois conversamos, Débora. Como se diz, entrou boi na linha.
— Engraçadinha — rebateu Rachel. — Não posso participar dos assuntos de família? Também sou parte da família.
Dorothy não contou nada a ela. Encarou Débora e comentou:
— Depois da festa conversaremos melhor. A sós.
— Está bem. Dorothy a beijou na testa e, quando estava para sair do quarto, passou por Rachel, que lhe perguntou:
— Por que não gosta de mim?
Dorothy virou o corpo, apoiou-se no batente e asseverou, olhos firmes:
— Não é questão de gostar ou não gostar. Não temos afinidades.
— Você não gosta de mim! — exclamou.
— Quem está afirmando é você. Eu nunca disse isso.
— Nem precisa. Basta ver a maneira como me trata.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 11:19 am

— E por acaso você, Rachel, me trata bem? Desde sempre, quando vinha, mesmo raramente, passar férias comigo, me destratava. É você quem nunca gostou de mim.
— Papai me falou que você preferiu Débora a mim.
— Quer saber a verdade?
Rachel a encarou e esticou o queixo para a frente:
— Quero.
— Uma mãe nunca ama igualmente seus filhos. Quem afirma que ama está mentindo. As afinidades e diferenças contam. Além do mais, depois que sua irmã nasceu, eu não queria engravidar.
Débora levantou-se e tentou contemporizar:
— Mamãe, o momento não é para esse tipo de assunto. Hoje é uma noite especial.
— Mas Rachel exige, quer uma resposta que a satisfaça. Vou lhe dar. E acabar de uma vez por todas com essa picuinha entre nós.
— Não se meta, Débora — vociferou Rachel. — Quero ver o que ela — apontou para a mãe — tem a me dizer.
— Pois bem — contou Dorothy. — Eu não queria mais ter filhos. De repente, me vi grávida.
— Por que não abortou? Seria mais fácil. Teria resolvido seu problema.
— Até cogitei. Mas seu pai queria muito ter um menino. E me convenceu a manter a gravidez.
Com o tempo, a barriga crescendo, também acalentei o sonho de ter um homenzinho na família.
— E se decepcionou quando vim ao mundo.
— Não sei se esse seria o termo correto. Você nasceu com a pele escura, porquanto o cordão umbilical se enrolara no pescoço. Pensei que tivessem me dado a filha errada. Rachel teve um ataque:
— Não sou escura! Sou branca. Eu sou branca, entendeu?
— Calma — Débora tentava contemporizar.
Dorothy balançou a cabeça.
— Acho que é por essa razão que sempre tive um pé atrás com você. É uma menina superficial, fria, presa a conceitos racistas, selecciona suas amizades pela cor da pele e condição social, não pelo carácter. Você nasceu torta. Vai morrer torta.
— Mas vai ter de me aturar até completar trinta anos. Depois, pegarei todo o meu dinheiro no fundo e vou cair no mundo. O meu sonho é nunca mais ter de olhar para a sua cara — e encarou Débora com chispas de ódio — e tampouco para a sua. Vou me ver livre das duas para sempre.
— Assim seja — concordou Dorothy. — Se eu pudesse, adiantaria o dinheiro, mas não posso, não está sob minha alçada. Teremos de nos aguentar por mais alguns anos. Que o convívio seja pacífico.
— Quero sair daqui desta casa — Rachel foi incisiva.
— Eu estava pensando nisso — concordou Dorothy. — Logo Débora vai dar um rumo na vida dela. Daí nossa convivência vai se tornar, de fato, insuportável. Assim que passar o evento, semana que vem, irei procurar um apartamento para você sair daqui e tocar a vida.
— Eu quero escolher.
— Não. Quem dita as regras sou eu. Eu vou pagar seu aluguel. Eu escolho — virou-se para
Débora e finalizou: — O motorista nos espera. Está na nossa hora.
Assim que ela saiu do quarto, Rachel, explodindo de raiva, alfinetou Débora:
— Vai mesmo ficar noiva? Tão fora de moda.
— Esse é um problema meu. Cuide de sua vida — falou e saiu do quarto.
Rachel mordiscou os lábios, irritada, e afirmou:
— Hoje, a noite promete! Vou acabar com você, irmãzinha.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 11:19 am

Capítulo 52
Passava das nove da noite quando Maurício apareceu na portaria do prédio onde Rachel morava. O porteiro o anunciou e ele subiu. Assim que entrou no apartamento, assobiou:
— Uau! Que espectáculo! Parece apartamento de novela.
— Meio cafona. Exagerado. Meu estilo de decoração é bem distinto do de minha mãe. Sou mais básica.
— Eu gostei.
— Você não veio aqui para apreciar a decoração de casa. Conseguiu os convites?
Ele passou a mão na testa.
— Pensei que fosse mais fácil, mas consegui. Tive de passar a tarde toda com uma coroa pavorosa, decadente, lá em Copacabana — e tirou do bolso do paletó dois convites. — Aqui estão. Para entrar no evento de sua mãe.
— Perfeito. Você até que está bem-arrumadinho.
— Preferia estar melhor. Não pude me arrumar em casa. Meus tios e minha prima estão hospedados lá.
— A priminha do coração está aqui? — ironizou.
— Não gosto que faça piadinhas em relação a Clarice. Ela é uma óptima pessoa. Aliás, é a única pessoa no mundo que presta. Eu a defendo com unhas e dentes.
— Nossa! Parece discurso de apaixonadinho.
— Nada a ver. Eu tenho um sentimento especial por ela desde pequeno. Só isso.
— Está bem. Quer me enganar? Ou se enganar?
— Não estou entendendo, Rachel.
— Seus olhos brilham quando fala nessa Clarice. Nunca notou?
— Não tem como ver meus olhos quando falo.
— Bobo.
— Vamos. Pelos meus cálculos — ele consultou o relógio — o evento está quase na metade.
— E eu roubei as chaves do carro de Débora. Ela e a megera da minha mãe foram ao evento com motorista.— Quer que eu dirija?
— Por favor. Não sei dirigir nesta cidade.
— Mas veja só: vamos até o evento, eu falo na frente de todo mundo que Fernando e Débora são irmãos, saímos de lá e sumimos por uns dias.
— Não podemos voltar para casa neste fim de semana. Sabe disso.
— Está tudo certo. Outra “amiga” com quem saio de vez em quando me emprestou a casa de veraneio que tem na praia da Macumba, no Recreio dos Bandeirantes.
— Onde fica isso? No Rio?
Maurício riu com gosto.
— Sim. Fica aqui no Rio. O Recreio fica logo depois da Barra da Tijuca. É longe, afastado, deserto. Você vai curtir. As praias também são desertas.
— Tudo bem. Vamos.
Rachel abriu a bolsinha que carregava sob o braço e dela tirou um molho de chaves. Entregou-o a Maurício. Assim que entraram no carro, ela murmurou:
— Maurício acha que vai criar um grande estrago, pobrezinho. Eu só não conto a ele a verdade sobre minha irmã porque quero ver mummy constrangida na frente de um monte de gente. Apenas isso.
Maurício perguntou:
— O que está falando?
— Nada. Estava pensando alto. Como a vida é curta. Por isso, devemos aproveitá-la ao máximo!
Sílvia suava frio. Ivan, mesmo nervoso, tentava tranquilizá-la.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 11:19 am

— Calma.
— A noite vai ser uma tragédia. Grega! Como posso me acalmar?
— Não sei, mas estou aqui, ao seu lado. Sou seu marido.
— Meu coração está tão apertado! Será que não é melhor falar com Fernando agora? Contar tudo a ele?
— Do jeito que as coisas estão, creio que o melhor seja esperar acabar o evento e, antes do jantar, chamar Fernando, Dorothy e Débora para uma conversa.— Por que será que Dorothy não quis falar connosco? Se nos reuníssemos antes, poderíamos ver uma estratégia em conjunto, pensar em algo.
— Não sei — ajuntou Ivan. — Eu tentei. Ela nunca retornou as nossas ligações.
— Estranho. Tudo estranho. E agora vamos nos encontrar, cara a cara, em uma situação tão desagradável!
— Você está certa — concordou Ivan. — Vamos conversar agora.
Ele se levantou de supetão do sofá e, quando ia dobrar o corredor, esbarrou em Fernando.
— Pai, que bom vê-lo! Olha, me ligaram do evento. Houve um problema com a entrega das flores, a funcionária que cuida disso não chegou ainda, está presa no trânsito. Eu preciso correr até lá imediatamente.
— Eu e sua mãe queremos...
Fernando nem o deixou falar. Interrompeu-o, enquanto corria de um lado para o outro:
— O motorista vai levá-los às sete horas. Clarice chega do salão pronta, é só se vestir e vocês sobem para nos encontrar. Não vai ter erro. Preciso ir. Beijo.
— Mas...
Inútil falar. Antes de Ivan finalizar a frase, Fernando já havia saído. Ele encarou Sílvia e concluiu:
— Agora é tarde.
Os convidados não paravam de chegar. Embora fosse um evento de porte médio, a elite carioca estava lá, além de grande parte da mídia: emissoras de tevê, rádio, jornais e revistas.
Todos estavam ansiosos para ver a nova colecção de verão de Dorothy.
Sílvia, Ivan e Clarice chegaram perto das oito da noite. Fernando veio recepcioná-los e os apresentou a Débora e Nelson. Houve empatia imediata entre ela e Sílvia.
— A senhora é muito mais jovem do que eu imaginava.
— Tive Fernando muito novinha, aos dezanove anos.
Nelson os cumprimentou e pediu licença para ajudar Dorothy. Débora cumprimentou Ivan e Clarice. Também sentiu grande empatia pela moça. Era como se fossem conhecidas de longa data. Depois, voltou a comentar com os três, dirigindo o olhar a Sílvia:
— Seu filho, por incrível que pareça, é a cara do meu pai.
— É mesmo? — quis saber Clarice. — Como assim? Seu pai não é o Nelson? — Não. Eu apresento Nelson como pai, mas na verdade é meu padrasto. O meu pai mesmo morreu há um tempo.
— Sinto muito — lamentou Clarice.
Débora fez um gesto com a mão e completou:
— Depois eu lhe mostro uma foto de meu pai, quando jovem. Você vai ver a semelhança entre ele e seu irmão.
Sílvia estremeceu e apoiou o braço em Ivan. Fernando nada notou e puxou a namorada para o lado.
— Precisamos ir. Roberta não veio. Estão precisando de nossa ajuda nos bastidores.
Débora foi simpática:
— Fiquem à vontade. Depois do desfile voltaremos a nos ver e teremos tempo para nos conhecer melhor. Trarei minha mãe para lhes apresentar. Ela está na casa, conversando com a dona, acertando alguns detalhes do jantar — e, virando-se para Clarice, comentou: — Você vai achar impressionante a semelhança entre Fernando e Olavo, meu pai.
Saiu de braço dado com Fernando e sumiu entre os convidados.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 11:19 am

Clarice encarou a mãe e perguntou:
— Esse nome não me é estranho. Por acaso tem a ver com aquele espírito que frequentou a sessão de Leocádia?
Ivan sorriu para a filha:
— Tem como conseguir um copo de água para sua mãe? Ela não está passando muito bem.
Enquanto isso, na capital paulista, Jamil e Leocádia estavam no saguão do aeroporto à espera de João Carlos, que vinha de longa viagem ao exterior e, por ora, ficaria um bom tempo no país.
— Quem sabe, agora, podem decidir morar juntos? — perguntou Leocádia.
— Não sei. Seu filho é muito independente. Sempre viveu sozinho, viajando para cima e para baixo, muito dono de si. Não sei se gostaria de, a essa altura da vida, dividir o mesmo tecto comigo.
— João Carlos sempre foi auto-suficiente. Nunca precisou apoiar-se em ninguém, mas isso não quer dizer que ele não sinta vontade, neste momento de vida, de viver ao seu lado morando sob o mesmo tecto. Noto que você está com medo e justifica o jeito de ele ser para não tomar atitude.
Jamil corou.— Não. Eu sou dono de mim. Sei o que quero.
— Será? — ela o desafiou. — Sempre viveu em função de algo ou de alguém. Nunca viveu para si. Sempre fugiu para não cuidar de você.
— Não é verdade.
— Claro que é. Deu um passo importante na vida, namorou meu filho, mas manteve uma relação distante, fria até. Pensa que João Carlos viaja a todo momento por quê? Porque você não dá a ele a chance de estarem juntos. Sempre há algo que impeça você de ficar mais tempo com ele: é o mercado, o medo de o mundo saber sobre suas escolhas, a sua mãe quando estava viva...
— Alto lá! Eu me dediquei a cuidar de Eustáquia porque a amava. Nem era minha mãe de sangue. Mas eu a amava.
— Sim, contudo, usava a doença dela para ficar longe de meu filho. Quantas vezes João Carlos quis lhe fazer companhia no casarão, dormir lá, cuidar de Eustáquia? Você nunca permitiu.
Jamil ruborizou.
— Não pegava bem. Eu não saberia como agir. Minha mãe estava ali ao lado...
— Sempre os outros na frente. Você em último lugar. Se continuar agindo dessa forma, vai perder meu filho.
— Não diga uma coisa dessas, nem por brincadeira!
— Mas é verdade.
— Estamos juntos há mais de vinte anos.
— O tempo não diz nada. O que importa é a qualidade da relação. Você está cem por cento entregue a ela? Lembre-se do que eu lhe disse uma vez.
— O que foi?
— Se você não valorizar o que tem, vai perder.
— João Carlos me ama.
Uma leva de passageiros começou a sair pela porta de desembarque e, dali a alguns minutos, João Carlos apareceu. Como sempre, elegante, trajando um blazer azul-marinho, calça cáqui e mocassim. Embora viesse de voo internacional com mais de dez horas de duração, os cabelos estavam impecavelmente penteados para trás, e o bigode, levemente prateado.
Leocádia estendeu os braços.
— Saudades, menino.
Ele a abraçou com efusividade.— Adoro quando me chama de menino. Rejuvenesço dez anos.
Em seguida, abraçou Jamil. Não foi um abraço caloroso.
— Como está? — indagou.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 11:20 am

— Bem. Melhor agora. Estava morrendo de saudades.
João Carlos tomou a valise com uma mão e enlaçou a cintura de Leocádia com outra, caminhando para a saída do aeroporto. Jamil foi um pouco atrás.
— Gostaria de jantar. Estou com fome — pediu João Carlos.
— Vamos a um restaurante óptimo que inaugurou nos Jardins — interveio Jamil.
João Carlos fez sim com a cabeça e, quando Leocádia entrou no carro, ele sussurrou no ouvido de Jamil:
— Precisamos ter uma conversa séria. Ainda hoje.
Jamil estremeceu.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 11:20 am

Capítulo 53
O desfile começou pontualmente às oito e meia da noite. Jovens de ambos os sexos deslizavam por uma passarela iluminada por lâmpadas piscantes e coloridas que ia do jardim e passava por cima da piscina, ao som de música dançante da época.
Os convidados estavam sentados em cadeiras dispostas nos dois lados da passarela. Logo começou o espocar dos flashes e, a cada modelo apresentado, uma salva de palmas.
Maurício e Rachel entraram no evento sem maiores problemas. Apresentaram os convites e se sentaram em uma das últimas fileiras. A agitação e o entusiasmo das pessoas eram tantos que eles mal eram notados.
Terminado o desfile, sucesso total, servido o coquetel, os convidados foram se retirando e, às onze da noite, a casa estava pronta para o jantar de noivado.
Emília havia solicitado aos seguranças para dar uma geral na residência, nos arredores e assegurar que somente ali estivessem, além dela, Dorothy, Nelson, Débora, Fernando, Sílvia, Ivan e Clarice.
A mesa de jantar estava preparada para oito convidados, incluindo Emília, obviamente.
Fernando fizera questão de que ela, como anfitriã, se sentasse à cabeceira da mesa. E, generosíssimo, pediu para que Nelson se sentasse na outra. Assim, Fernando, Débora e Dorothy ficariam de um lado; Sílvia, Ivan e Clarice, do outro.
Houve uma pequena tensão no momento em que Sílvia e Dorothy se encontraram. Assim que Débora as apresentou, Sílvia tremeu a mão.
Dorothy percebeu o estado dela e, fora de seu costume, decidiu abraçá-la.
— É um prazer conhecê-la.
— O prazer é meu.
Dorothy cumprimentou Ivan e, antes de se sentarem à mesa, os chamou para uma saleta reservada.
— Nós dois? — indagou Sílvia, apertando a mão de Ivan.
— Sim — afirmou Dorothy. — Precisa ser agora. Vai ser rápido. Vocês vão entender e ficar aliviados. Por favor — e fez sinal para passarem para a saleta.
Assim que fechou a porta atrás de si, Dorothy sorriu para Ivan:
— Você não mudou muito nesses anos.
— Você também não. Parece que não foi tanto tempo assim.— É. Também acho — virando-se para Sílvia, confidenciou: — Sempre tive curiosidade em saber sobre você.
— Por quê?
— Porque foi — ela calculou as palavras e explicou, com delicadeza —- uma pessoa importante para Olavo. Além do mais, você e ele trouxeram Fernando ao mundo.
Sílvia engoliu em seco. Ivan remexeu-se na cadeira e cruzou as pernas.
— E como pode permitir que nossos filhos fiquem noivos? — indagou Ivan, atónito. — Você sabe que Fernando é filho de Olavo. Portanto, ele não pode se casar com Débora!
Sílvia notou o semblante calmo de Dorothy e teve um estalo. A frase veio de maneira natural:
— A não ser que...
Dorothy completou:
— Débora não seja filha de Olavo?
Sílvia e Ivan se entreolharam sem saber o que dizer. Estavam boquiabertos.
— Depois, com calma, explicarei melhor a vocês sobre como engravidei de Débora. Por isso nunca impedi que ela e Fernando namorassem.
— E por isso não quis atender minhas ligações — ajuntou Ivan.
— Não queria falar nada antes de estarmos todos juntos.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 11:20 am

— Você nos deixou aflitos. Estávamos morrendo de medo. Quase contamos a Fernando toda a verdade e...
A conversa foi interrompida por um burburinho que foi crescendo a ponto de Emília entrar na saleta, atónita:
— Dorothy, sua filha Rachel está na sala acompanhada de um rapaz e estão falando barbaridades para Débora e Fernando. O que está acontecendo?
Saíram todos em disparada para a sala. Rachel e Maurício tripudiavam sobre Fernando e Débora. Ele, olhos arregalados, não sabia como agir ou articular palavra. Ela, prostrada numa poltrona, a mão cobrindo o rosto, chorava copiosamente.
Maurício falava com os dedos apontados na direcção de Fernando:
— É isso, cara. Não posso te chamar de primo porque não é meu parente, é filho de um desconhecido. É filho do pai dela — apontava para Débora.
Nelson interveio:
— Não é nada disso.— Claro que é — sustentou Rachel, mesmo sabendo a verdade. — Eles são filhos do mesmo pai. São irmãos.
Maurício prosseguia:
— Sabia que um dia seu castelo iria afundar.
Fernando, uma lágrima no canto do olho, indagou:
— Por que tem tanto ódio de mim?
Maurício não soube responder, mas sentiu prazer imenso em ver Fernando naquele estado, fragilizado.
Rachel ria divertida:
— Incesto! Dois pervertidos!
Dorothy invadiu a sala, irritada.
— Como entrou aqui?
Rachel sorriu:
— Mummy! — e, ao ver Sílvia logo atrás, exultou: — E a outra! As duas mulheres de Olavo.
Juntas. Que família mais exótica!
O tapa veio rápido e certeiro - plaft! - Rachel sentiu a ardência no rosto, e o sorriso sumiu.
— Doeu.
Dorothy lhe deu novo tapa.
— Eu devia ter trazido você para morar comigo desde pequena. Iria educá-la de forma adequada. Mas agora é tarde. Você não tem mais conserto. É uma pessoa desprezível.
— Nunca poderá se ver livre de mim. Sou sua filha. Vai ficar amarrada comigo até eu completar trinta anos.
— Saia daqui, ordinária. Agora!
Enquanto isso, Ivan partiu para cima de Maurício:
— Quem pensa que é, fedelho? Como pôde criar uma situação tão constrangedora como essa?
— Não é verdade? Vai me desmentir, titio? — ele riu de forma sarcástica: — Meio titio. Será que Clarice é sua filha?
O soco veio certeiro. Maurício cambaleou para trás e caiu sobre a mesinha atrás de si, derrubando abajur e outras peças.
Clarice meneava a cabeça e fitou o primo, desolada:— Por que fez isso, Maurício? Por quê? Eu gosto tanto de você! Por que quer tanto destruir minha família?
Maurício tinha pensado em tudo, excepto que a situação poderia ferir Clarice profundamente.
Sentiu uma dor bem maior do que a do soco que o tio lhe dera. Passou os dedos pelo lábio ensanguentado e teve vontade de abraçá-la, beijá-la, pedir-lhe perdão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 8:44 pm

Foi naquele momento que Maurício teve um lampejo de lucidez.
— Perdão, Clarice. Não sei por que fiz isso. Nunca quis magoar você.
Rachel o puxou pelo braço.
— Vamos. Os seguranças estão vindo para nos pôr para fora, à força. O nosso tempo aqui já acabou.
Ele se levantou com ajuda dela, passou por Clarice, passou a mão pelo braço dela e Clarice baixou os olhos. Maurício sentiu uma dor como nunca havia sentido antes na vida.
A um canto da sala, Adélia e Alaíde assistiam a tudo.
— Será que esse rancor entre Maurício e Fernando pode chegar a termo, findar? — perguntou Adélia.
— Maurício desprendeu toda a raiva que guardava em seu subconsciente. Ele ainda guardava na memória celular fatos de um passado recente, mais precisamente de duas encarnações anteriores a esta, em que desejava ardentemente se casar com Clarice e fora impedido por Fernando, porque era fanfarrão, boémio. Tentaram fugir, viver o amor deles, mas Fernando, implacável, os perseguiu e os encontrou. Clarice foi levada para um convento e confinada numa clausura até morrer, física. Maurício morreu de amor, cheio de ódio contra Fernando.— Então, o que acabamos de ver, foi como se Maurício ainda estivesse preso a esse passado.
— Sim. Em seguida, Maurício regressou ao planeta, mas por pouco tempo. Desencarnou jovem. Todavia, esse passado, pelo que vejo, está sendo limpo. Os acontecimentos que estão por vir vão mudar toda a dinâmica da família — ajuntou Alaíde.
— Estou preocupada com Rachel. Não sei se ela está preparada...
Alaíde sorriu, bondosa:
— Ninguém está, Adélia. Por isso, estamos aqui.
— Vamos limpar as energias do ambiente?
— Sim. Mas precisamos ser rápidas. O tempo urge, porque logo teremos uma grande tarefa que vai exigir muito de nós.
Enquanto elas higienizavam o ambiente, com gestos delicados com as mãos, Dorothy, Nelson, Sílvia e Ivan procuravam tranquilizar os filhos, contando-lhes a verdade sobre a origem de cada um. Embora surpresos com o relato, Débora e Fernando se sentiram aliviados de poder se amar sem impedimentos. O resto, bem, o resto, aos poucos, eles iriam absorver com o tempo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 8:45 pm

Capítulo 54
A vida funciona de maneira prática. Ela faz com que você experimente o que acredita e descubra a verdade, arrancando o véu da ilusão, que só machuca e nubla a mente. É por essa razão que cada indivíduo atrai as próprias experiências para seu processo de evolução.
Rachel e Maurício não conseguiam entender que só o amor consegue fazer com que as coisas caminhem bem. A raiva, o ódio, a implicância e a indiferença não funcionam, só trazem problemas. E eles tinham acabado de criar uma situação propícia para encararem um problemão.
Assim que entraram no carro, ele deu partida e saíram do casarão mudos. Desceram o Alto da Boa Vista e depois Maurício tomou a Estrada da Gávea Pequena.
Rachel ligou o rádio e finalmente quebrou o silêncio. Começou a rir:
— Ai, ai. Você é apaixonado pela priminha.
— Não.
— É, sim. Ficou sem graça.
— Gosto demais da Clarice. Apenas isso.
— É amor, idiota.
— Não me chame de idiota.
— Claro que chamo. Fez papel de otário.
Maurício não entendeu.
— Eu?! Papel de otário?
— Sim.
— Acabei com meu primo. Destruí a família. Ele e sua irmã nunca poderão se casar. E me diz que fiz papel de otário? Está louca?
Rachel não parava de gargalhar.
— Fez, sim.
— Pela primeira vez na vida me sinto vingado! Fernando teve o que merecia e agora quero ver como minha mãe vai encará-lo — gesticulava e mexia uma das mãos, enquanto a outra cuidava da direcção.
Rachel foi incisiva:— Idiota, sim. Sabe por quê? — ele meneou a cabeça e ela falou: — Vou lhe explicar. Claro que seu primo pode se casar com a minha irmã.
— Cometendo incesto? Claro que pode. Seria um soco no meio do estômago da moral da família.
Ela continuava a gargalhar.
— Eles não são irmãos.
Maurício estava concentrado na condução do veículo, calculando as freadas no momento de fazer as várias curvas. Não prestou muita atenção, ou não concatenou direito as ideias. Apenas indagou, sem virar-se para Rachel:
— O quê?
— Não escutou? É isso mesmo. Eles podem se casar porque não são irmãos.
— Claro que são. Fernando é filho de Olavo, que, por sua vez, é seu pai e de Débora.
— No! — ela fez um gesto gracioso com o polegar para baixo. — Não, não. Eu e Fernando, sim, podemos ser filhos de Olavo. Mas a Débora não é.
— Não estou entendendo.
— Débora não é filha de Olavo.
— Ela é sua irmã! — ele protestou.
— Sim, bobinho, mas por parte de mãe. A Dorothy pulou a cerca, ou seja, a Débora não é filha de Olavo. Se não é filha dele, nada impede a minha meia-irmã de namorar ou casar com Fernando.
— Você sabia disso? — Maurício questionou enquanto fazia nova curva, agora com o suor escorrendo pela testa.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 7 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 8:45 pm

— Claro.
— Por que não me falou antes?
— Para ver o circo pegar fogo. Só por causa disso. O seu espectáculo já terminou e teve um curto efeito. A essa altura — ela consultou o relógio — minha mãe já deve ter contado a verdade aos pombinhos.
— Então...
— Então foi você quem fez papel de otário! Mil vezes otário!
A cabeça de Maurício começou a dar pontadas nas laterais. Seu ódio foi nublando a visão e, na curva seguinte, deixou escapar as mãos da direcção. Rachel gritou, mas era tarde. O carro perdeu a estabilidade, chocou-se na mureta do lado contrário e capotou diversas vezes. Adélia e Alaíde ali estavam. Espíritos abnegados e acostumados ao resgate de indivíduos em situações delicadas, foram atraídas para o local do acidente tão logo tinha acontecido.
O cheiro de pneus queimados no asfalto se fazia presente quando Alaíde, mãos delicadas, tocou a testa de Rachel. Com o impacto da batida, seu corpo fora arremessado com violência para fora do carro. Rachel teve morte instantânea.
Assim que sentiu o delicado toque na testa, Rachel abriu os olhos perispirituais. Seu corpo astral se desprendeu facilmente do corpo físico, e ela, atordoada, balbuciou algumas palavras desconexas, entre o inglês e o português.
Alaíde a tomou nos braços e piscou para Adélia. Desvaneceu no ar e, em seguida, Adélia aproximou-se do veículo capotado. Estava de ponta-cabeça e Maurício estava preso às ferragens, desacordado.
Ela também lhe tocou a fronte, imantando nele energias revigorantes. Maurício abriu os olhos e vislumbrou uma luz. Em seguida, com muita dor, perdeu os sentidos. Não saberia dizer, mais à frente, se vira uma entidade ou se a confundira com as luzes da ambulância que tinha acabado de chegar.
Tão logo os bombeiros retiraram seu corpo das ferragens, deitaram-no sobre a maca e Maurício foi conduzido até o hospital mais próximo.
Minutos antes do acidente, Débora e Fernando ainda estavam absorvendo doses cavalares de verdades acerca da própria vida, ora emocionados, ora desapontados.
Depois de escutarem as histórias de Sílvia e Dorothy, os jovens deram-se as mãos e saíram da mansão em silêncio. O motorista já os esperava e Débora deu sinal para ele os levar para a casa de praia que a mãe emprestava de uma amiga em Cabo Frio.
— Não quero voltar para casa hoje, tampouco amanhã. Preciso respirar sozinha, longe de casa — ela admitiu.
— Sinto a mesma vontade — confessou ele. — Não estou com vontade de conversar com meus pais — Fernando pigarreou e tentou se corrigir —, quer dizer, agora não sei mais nada.
Parece que minha vida foi uma farsa o tempo todo.
— No seu caso, seus pais tomaram essa decisão porque tal atitude salvou a reputação de sua mãe. De mais a mais, meu pai tinha acabado de se casar com minha mãe. Se quer saber, a atitude de sua mãe foi digna. E de seu pai, mais ainda.
— Ivan não é...
Débora o interrompeu:— Jamais diga uma coisa dessas. Ivan foi, é e sempre será seu pai. Olavo nunca participou de sua criação. Não é justo, a esta altura da vida, rebelar-se contra aqueles que o criaram e lhe deram amor desde o nascimento.
— Eu sei, mas...
— Mas nada. Sílvia e Ivan são dignos de consideração e respeito. Sei que está mexido porque a verdade caiu como um furacão sobre nossa cabeça. Contudo, somos adultos e, mais importante, nos queremos bem.
— Você ficou chateada com sua mãe. Por que eu não posso ficar com os meus pais?
— Porque é diferente. Seus pais esconderam a situação por um motivo justo. Minha mãe escondeu minha origem por vaidade. Meu pai foi enganado!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 8:45 pm

— Tem razão. E o que pretende fazer?
— Por agora? Nada. Quero ficar ao seu lado, somente eu e você, mais ninguém.
— Tem raiva de sua irmã?
Débora meneou a cabeça.
— Não. Rachel sempre foi uma menina problemática. Papai, quer dizer, Olavo, a criou de forma muito solta. Ela se transformou em uma menina rebelde, sem limites. Se causou algum prejuízo, foi a si mesma. Rachel não tem amigos, não se dá bem com ninguém. Creio que participou dessa armação toda apenas para me ver fragilizada por alguns instantes.
— Ela me parece uma pessoa bem superficial.
— Que vai precisar aprender a lidar com determinadas questões de vida de maneira firme.
Maurício, seu primo, precisa de tratamento psicológico, diria até espiritual. Ele não está bem.— É, por mais que fale, eu não tenho ódio dele. Não sei por que, mas, quando estava todo rancoroso na sala, me atirando palavras vis, senti como se já tivesse feito o mesmo com ele.
Não sei explicar.
— Uma espécie de déjà-vu, de volta ao tempo?
— Não sei ao certo. É como se já tivéssemos vivido algo parecido. Por mais que Maurício tenha tentado me derrubar, no fundo, gosta de mim.
— Se não gostasse, não se importaria.
— Isso é.
Débora tomou a mão de Fernando entre as suas. Finalizou com carinho:
— Não quero mais falar na família.
— Eu também não. Estou muito interessado em você, em nós, em nosso futuro.— Eu também.
Beijaram-se longamente e, duas horas depois, estavam em Cabo Frio, sozinhos, apaixonados e felizes.
Sílvia e Dorothy ainda conversavam sobre o passado, falavam sobre Olavo, começavam a trocar experiências de vida quando a notícia chegou. Como o carro estava no nome de Débora, a polícia foi primeiro até o casarão.
Sílvia quis saber:
— Como eles estão?
— Muito mal —- foi a curta informação dada pelo policial.
Sílvia sentiu um frio na espinha. Fez uma prece ao seu jeito, direccionada ao sobrinho e, na sequência ligou para Soraia. Foi Paulo quem atendeu:
— O que foi, Sílvia?
— Maurício bateu o carro e está hospitalizado.
Paulo deu uma risadinha.
— Não pode ser — ele caminhou com o aparelho telefónico até perto da janela da sala, dedilhou a cortina da janela para o lado e olhou para a calçada. — O carro está estacionado lá embaixo. Não receberam trote?
Sílvia acreditou que Paulo não a tivesse escutado bem. Queria repetir, mas Ivan pegou o fone da mão dela e falou com firmeza:
— Paulo. É sério. Maurício bateu o carro e está no hospital. Parece que corre risco.
Soraia entrou na sala nesse instante. Viu a expressão no rosto do marido e, antes de ele despencar na poltrona, agarrou o telefone.
— Alô.
— Oi, Soraia. É Ivan.
— O que aconteceu?
— Maurício sofreu um acidente. Anote o endereço do hospital para o qual ele foi levado.
Soraia anotou e, enquanto se arrumava para sair com Paulo, o jovem espírito de Raul estava atrás deles, dando-lhes força e sustentação. Iriam precisar. Das duas coisas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 20, 2024 8:46 pm

Capítulo 55
Rachel abriu os olhos e, ao ver a figura de Olavo, à sua frente, sorriu:
— Papai! É você mesmo?
— Sou. Estou aqui para ficar ao seu lado. Ficarei até lhe darem alta.
— O acidente foi feio, eu sei. Pensei que fosse morrer.
Olavo sorriu sem graça. Adélia entrou no quarto e Rachel mudou a expressão.
— Quem é você?
— Amiga de seu pai.
— Não me lembro de meu pai ter amigos de cor — ela aumentou o tom de voz, irritada.
— Por quê? Seu pai agora tem amigos coloridos? Quais cores? Brancos, pretos, amarelos, azuis, verdes?
Olavo interveio:
— Rachel, para seu bem, melhor se acalmar.
— Eu?! Acalmar-me? Com essa mulher ao seu lado?
— Sim. Porque, se alterar seu emocional e desequilibrar-se, não terei como mantê-la ao meu lado. Você será levada imediatamente para um lugar afim com suas energias, um lugar cuja vibração seja muito parecida à que você emite. E, confesso, não é das melhores.
Ela esfregou os olhos e continuou:
— Como é que é? A minha vibração não é boa? Por acaso, é pior que dessa preta — apontou para Adélia.
— Essa preta, como você diz de forma desdenhosa e preconceituosa, foi quem a trouxe do acidente, depois que... — ele parou de falar, temendo o pior.
— Depois que o quê? Não vá me dizer que fiz transfusão de sangue e recebi o sangue sujo dela. Só me faltava!
Adélia sorriu, fez sinal para Olavo se despedir de Rachel. Ele aproximou-se da moça e tocou seu rosto:
— Desculpe. Em vida terrena, dei o melhor de mim, fiz o melhor que pude. Ninguém dá o que não tem. Se você foi criada de forma solta, deveria ter aproveitado e olhado tudo como bênção, por não ter um pai repressor e ter a chance de se transformar em uma pessoa melhor.
Mas usou o excesso de liberdade para se tornar uma pessoa mesquinha, superficial e, mais uma vida, presa no preconceito. Você não quis melhorar.
— O problema é meu. Faço da minha vida o que bem entender.— Faz mesmo — ele concordou, abaixou-se e a beijou no rosto. — Preciso ir. Não sei quando vamos nos ver de novo. Saiba que você vai estar sempre no meu coração.
Olavo despediu-se e saiu do quarto. Rachel fez uma careta.
— Idiota. Mil vezes idiota. Que discurso mais meloso! Sempre foi um frouxo. Não foi à toa que mamãe pulou a cerca...
Ela teve um lampejo e mirou Adélia:
— Serviçal, venha cá e me diga. Sofri um acidente feio, pensei que tivesse morrido. Agora encontro meu pai. Isto é sonho, não é? Porque eu sinto meu corpo — ela se apalpava — e estou lúcida.
— Sim. Você, consciência, não morreu. Só o corpo de carne, o físico, que foi para a casa do chapéu. Seu corpo ficou muito machucado e a impossibilitou de continuar a viver no planeta, por ora.
Rachel gargalhou.
— Sei. E agora devo satisfações a uma negra. Quem é você?
— Sou a médica responsável por esta ala.
— Tá. Médica? Eu não quero ser tratada por você. Me chame um médico, de preferência alto e louro.
— Você não toma jeito, mesmo. Aqui temos compaixão, só que tudo tem limite. O desrespeito não é tolerado. Gente como você não pode ficar neste posto de tratamento, tampouco seguir caminho ao lado de seu pai. A sua energia é muito baixa.
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