LUZ ESPÍRITA
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 6 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 9:09 pm

— Ela mata só os gays. Estou livre dessa praga.
— Vai nessa. Quero ver você se deitar com um bissexual.
— Você tirou o dia para tentar acabar comigo, mas não vai. Eu quero meu dinheiro. Sou rica, já disse. Posso tudo. Dorothy levou o dedo em riste mais uma vez:
— Escute aqui, garota! Você nunca suou uma gota para fazer ou ganhar um dólar sequer. É um dinheiro ganho com muito suor, trabalho. Não vai ser gasto por uma dondoca doidivanas e amoral que pensa ser o centro do universo. Como se diz aqui neste país, você precisa comer o pão que o diabo amassou para ver se cresce.
Rachel fez cara de interrogação.
— Se não entendeu, não interessa — concluiu Dorothy.
Em seguida, seguiu-se um bate-boca em inglês, pesadíssimo, com agressões verbais as mais diversas. Dorothy voltou até sua mesa, abriu uma das gavetas, tirou uma nota de cem dólares e a entregou para a filha:
— Aqui está. É o que tem para trocar em uma casa de câmbio e se virar até o fim do mês.
— Que absurdo!
— Já lhe ofereci emprego, não quis.
— Trabalhar com você e a branqueia da Débora? Nunca. Compartilhar espaço com aquela negrinha da recepção? Jamais.
— Se esse é seu problema, vá arrumar emprego em outro lugar.
— Já disse, sou rica.
— Então vá caçar um marido rico, pentear macacos, sei lá.
Foi empurrando a filha até a porta e, ao fechar e ficar sozinha em sua sala, Dorothy disse para si:
— Meu Deus! Rachel não tem freio. Onde essa menina vai parar?
Rachel passou pela saleta da secretária-assistente, aproveitou que a moça estava entretida ao telefone, olhou ao redor, viu um cinzeiro de murano sobre o aparador e o apanhou.
A moça viu, tapou o bocal do telefone e alertou:
— Ei. Não pode levar nada daqui. O que está fazendo não é correto e...
Rachel fez um sinal com as mãos para a moça parar de falar.
— Cale a boca, escurinha. E, já que mummy me mandou pentear macacos, bem, se eu tivesse uma escova aqui na bolsa, até me sentaria ao seu lado para penteá-la. Mas não tenho estômago.
— O que está dizendo?— Nada. E começou a falar em inglês, enquanto saía:
— A jararaca tem bom gosto. Isso deve valer um dinheirinho. Vou vender na praia, inventar que trouxe de uma viagem que fiz à Itália, blá-blá-blá...
Colocou-o dentro da enorme bolsa e ganhou a rua, andou umas quadras e ficou pensativa sobre onde iria trocar a nota.
— Tem uma casa de câmbio logo ali na Visconde de Pirajá, só que a atendente é mulatinha e... — bum... deu um esbarrão no rapaz que vinha no sentido oposto. Ela quase foi ao chão.
Ela, irritada, ajeitou-se e bradou:
— É cego?
Ele, de pavio curtinho, replicou:
— Não tem noção de espaço? Acordou de bode?
— Sai pra lá, mother... — e soltou um palavrão em inglês, que Maurício entendeu muito bem.
Ele iria revidar, mas ela saiu apressada e, dois passos depois, deu um grito:
— Minha bolsa! Aquele negrinho safado pegou a minha bolsa!
Maurício, num átimo de segundo, correu na direcção em que Rachel apontou. Conseguiu alcançar o menino, tomou a bolsa das mãos dele. O rapazinho sumiu no meio da multidão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 9:09 pm

Maurício rodou nos calcanhares e alcançou Rachel, dando chiliques no meio da calçada, nervosíssima.
— É a bolsa. Consegui pegar de volta. Veja aí se está tudo em ordem.
Ela, sem graça, foi se acalmando. Conferiu.
— Está. Ainda bem. Aqui está a minha vida — referindo-se ao cinzeiro e à nota de cem dólares, obviamente. E, agora agradecida, sorriu e se apresentou: — Obrigada, me chamo Rachel.
— Maurício. Pelo jeito é gringa.
— O quê?
— Estrangeira. É turista?— Ah, não. Sou filha de norte-americana com brasileiro. Vivi quase toda a vida nos Estados Unidos. Meu pai morreu e vim para cá, viver com minha mãe.
— Ué? Sua mãe não é norte-americana e seu pai brasileiro?
— Sim.— Por seu pai ser brasileiro, ao morrer, você deveria morar com sua mãe, norte-americana.
Então, seria nos Estados Unidos.
Ela balançou a cabeça, movendo o rabo de cavalo com graça.
— Meu pai se mudou solteiro para lá, casou-se com minha mãe, depois eles se separaram e ela veio morar aqui. Uma longa história.
— Quase não tem sotaque.
— Meu pai fez questão de me ensinar o português. Hablo muy bien.
— Está falando em espanhol — ele riu.
— Faço isso para irritar as pessoas, principalmente minha mãe — ela consultou o relógio e perguntou: — Está indo para onde?
— Ia tomar um suco e encontrar amigos na praia.
— Eu preciso ir a uma casa de câmbio. Depois que me salvou do negrinho desalmado...
Maurício a corrigiu:
— Trombadinha. É o nome que damos a esses garotos sem eira nem beira.
— Que seja. Tenho de trocar uma nota de dólar — ela o mirou e sentiu que Maurício tinha algo semelhante a ela, talvez no modo de pensar, de ser, de agir e indagou: — Conhece bastante gente na praia?
— Tenho um bom círculo de amigos. Por quê?
Ela tirou o cinzeiro da bolsa e mostrou a ele.
— Trouxe isso da minha última viagem à Europa e gostaria de vendê-lo. Sabe se alguém se interessaria?
Ele riu alto.
— Sei. Isso veio de uma viagem da Europa. Assim, na sua bolsa?
— É.
— Um cinzeiro com esse peso? Eu te manjo, gata.
— Uma viagem recente que fiz com papai antes de ele falecer, coitado.
— De onde pegou esse cinzeiro? Vai, me diz. Vamos até a outra esquina. Lá tem uma casa de câmbio. Me conta um pouco de você e eu conto um pouco de mim. Acho que vamos nos dar bem, ser bons amigos.
— Sabe que também sinto isso? — concordou Rachel, sorridente. —- Vamos nos dar bem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 9:10 pm

Capítulo 40
Sílvia terminou o banho e foi até o guarda-roupa escolher o vestido que usaria para a reunião na casa de Leocádia. O dia tinha sido difícil. Trabalhara no mercado, saíra um pouco mais cedo e fora visitar a mãe. Era-lhe muito difícil ver Eustáquia naquele estado dementado.
Uma mulher que trabalhou tanto, quase a vida toda e agora termina assim, sem noção de nada à sua volta. É muito triste.
Ao mesmo tempo, momentos da reunião que tivera, meses atrás, em que Olavo se manifestara por meio de sua filha, a deixaram bastante abalada. Sílvia jamais poderia supor que Olavo houvesse morrido.
— Meu Deus! De que será que ele morreu? Como? Quando?
As perguntas borbulhavam em sua mente. Desde aquela noite, não conseguia tirar Olavo do pensamento. Era um misto de remorso com raiva e saudade, não saberia explicar bem o sentimento. Porque, quando o espírito dele se apresentou e ela teve certeza de que era o antigo noivo, tomou um susto. Primeiro, por saber que Olavo estava morto. Segundo, porque ele vinha pedir seu perdão.
— Ele me ama de verdade. Sempre me amou — uma lágrima escorreu pelo canto do olho. — Contudo, a vida me deu a terna presença de Ivan. Não digo que o ame com todas as minhas forças, mas é um excelente companheiro. Não podia ter sido mais feliz. É o companheiro possível, que pôde dar o que eu precisava, no momento certo, na hora certa. Isso é o que conta. Criou meu filho como se fosse dele, me deu Clarice. Não consigo ver minha vida sem Ivan e meus filhos. Minha família é esta! — ela afirmou e afastou os demais pensamentos com um gesto de mãos sobre a cabeça.
Terminou de se arrumar e, enquanto passava delicado perfume no pescoço, colo e pulsos, o telefone tocou. Era Fernando lhe contando as últimas novidades. Estava morrendo de saudades do filho.
— Está se alimentando? Não está dando trabalho aos seus tios? Tem certeza de que não quer voltar? Vai mesmo procurar trabalho no Rio?
Eram tantas as perguntas que, em determinado momento, Fernando precisou inventar uma desculpa qualquer e desligar.
Sílvia sentiu o peito oprimido:
— Meu menino está distante. Cada vez mais distante. Ele é o único elo que me liga, verdadeiramente, a Olavo. Olavo está morto. Fernando, talvez, não more mais perto de mim.
Meus dois amores se foram...
Clarice entrou no quarto.
— Oi, mãe. Acabei de chegar. O que foi que disse? Meus dois amores se foram? Cumprimentaram-se e Sílvia tentou ocultar o que sentia. Mudou completamente o jeito de falar e, abatida, comentou:
— Hoje fui visitar mamãe. Ela está tão alheia, não me reconhece. Perdi meu pai há alguns anos e agora minha mãe se foi. Viva, mas já se foi.
Clarice a abraçou com carinho.
— Vovó perdeu o gosto pela vida. Seu espírito recusou-se a continuar experimentando os desafios do dia a dia com alegria, coragem e determinação. Em vez disso, preferiu esconder-se.
Infelizmente, o corpo físico dela era e ainda é forte o suficiente para sobreviver. Enquanto a máquina física respirar, dona Eustáquia vai viver entre nós.
— Que final de vida mais triste!
— É um modo de ver. Não deixa de ser um bom aprendizado para o espírito. Embora o cérebro esteja deteriorando, o espírito, cansado de tanto fazer tudo para os outros, cobrar-se, exigir-se demais, para um pouco de atormentar-se, dando uma trégua.
— Não entendi.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 9:10 pm

— Vovó sempre foi uma mulher que trabalhou muito, fez tudo pela família.
— Sim. Não tenho o que reclamar dela. Nunca deixou faltar nada em casa.
— Ela fez tudo para você, para a casa, para os outros, para vovô, para o mercado. Não fez nada para ela. Não me lembro de ela ter ido uma vez sequer para a praia.
— Tinha de tomar conta do mercado.
— O trabalho deve ser realizado com prazer, moderação e alegria. Não podemos ser escravos do trabalho. Vovó vivia para o mercado, para as coisas do vovô, porque não podia faltar nada para ele nem para as coisas da casa. Nunca cuidou dela, do bem-estar dela, do corpo, da saúde. Nunca a vi fazer um programa cultural, um passeio, uma viagem. Ela nunca fez nada “para ela”. Entende?
— Começo a compreender.
— O espírito, cansado de dar toques, mostrar a ela que tinha necessidades, que a alma dela precisava de cuidados, de carinho, de atenção, decidiu freá-la. É como se dissesse: “Chega, não aguento mais. Você não me dá atenção. Então, não vai ter mais condições de dar atenção a nada nem a ninguém, vai perder a atenção, a noção das coisas, o senso de tudo”. E foi o que aconteceu.
— O médico disse que é genético. Não quero terminar assim.
— Somos capazes de fazer milagres com nosso corpo. Temos uma capacidade fantástica de mudar nossas crenças e atitudes. Ao fazer tais mudanças, nosso corpo também muda. E a genética também. De mais a mais, essas mudanças ajudam a mudar a maneira de morrer. Se você mudar seu modo de ser, se der mais atenção, cuidar mais de si, muito difícil será ficar doente. E, se ficar, com certeza não será esta, a qual vovó, infelizmente, acabou adquirindo, porque está cuidando de você. Percebe?
— Vou cuidar mais de mim.
— Deixe seu filho viver a vida dele. Fernando é adulto, tem responsabilidade. Eu também me formei, vou ser promovida no estágio. Está tudo bem. Você precisa cuidar do seu bem-estar.
— Sinto obrigação de ajudar seu tio no mercado. Afinal, o estabelecimento é da nossa família.
— Você gosta de trabalhar com tio Jamil?
— Não sei. Nunca me fiz essa pergunta. Sempre trabalhei porque achava que tinha de ocupar o lugar vago por Soraia quando ela se mudou. Por outro lado, também nunca quis depender do dinheiro do seu pai.
— Pois creio que está na hora de pensar no que deseja da vida. Não acredito que aquela sessão da qual participei tenha sido à toa.
— Como assim?
— Um espírito vem do nada e lhe pede perdão? Isso mexe com a gente, mãe! Não mexeu com você?
Sílvia sentiu um tremor pelo corpo, mas disfarçou.
— Claro que mexeu. Porém, são águas passadas. O passado se foi, ficou lá atrás, aonde pertence. Eu o perdoei. Está tudo certo.
Clarice aproximou-se e abraçou-a novamente.
— Eu sei que há mais coisas que, por ora, não quer me revelar.
— Por que diz isso?
— Porque, quando estava incorporada, senti muito amor vindo daquele espírito. Ele a ama muito. Estava arrependido, como se quisesse fazer um acerto de contas e seguir em paz. Deve ter havido algo muito forte entre vocês, mas não me interessa. Quero apenas que você viva bem consigo mesma. Tem muita coisa boa para fazer na vida, mãe.
— Você tem razão. Preciso repensar muitas coisas.
O telefone tocou novamente. Era Edwiges, a enfermeira. Eustáquia havia sofrido um ataque cardíaco. Tinha acabado de falecer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 17, 2024 9:10 pm

No hospital, Ivan preparava-se para mais um parto. Centenas de crianças tinham vindo ao mundo por meio de suas mãos. Já tinha passado por situações de risco, partos complicadíssimos, mas ele sempre levava a melhor. Sempre. Como costumava dizer ao seu time de assistentes, eles eram mais espertos que Deus. Naquela noite, tudo corria bem. Havia dois partos programados. O de Laura e o de Cláudia. As duas tiveram uma gestação excelente, nenhum problema que suscitasse alguma atenção especial na hora de realizarem o parto.
Como era costume nessa época, as duas optaram por realizar o parto cesariano. Laura iria para a sala de cirurgia às cinco da tarde, e Cláudia às sete da noite. Depois, Ivan deixaria o hospital e seguiria para casa.
— Quero chegar a minha casa e descansar. Hoje foi um dia cansativo — disse para si, depois de olhar para o relógio e se preparar para o primeiro parto.
Tudo correu bem. Laura deu à luz uma menina rechonchuda e cabeluda. A equipe médica o parabenizou, ele se sentiu o deus de sempre e foi para a sala dos médicos, dar uma descansada.
Às sete, novamente estava na sala de cirurgia e Cláudia entrou. Da maca, olhou para ele e pediu:
— Doutor, salve o meu filho. Por favor.
— Que é isso, Cláudia?
— Promete? Só quero que me prometa. Salve-o.
— Você está óptima. Exames óptimos. De onde tirou essa ideia mórbida?
— Sou espírita. Sonhei com minha mãe, já desencarnada, quer dizer, falecida para quem não é familiarizado com a doutrina.
— E o que tem?
— No sonho, ela me tranquilizou, disse que minha hora aqui no mundo está se findando. Meu objectivo, nesta vida, era superar alguns desafios, reconciliar-me com meu actual marido e dar à luz esse menino. Ele vai ser bem-criado. Tomás vai ficar abalado, mas daqui a seis meses, no máximo, vai se casar com minha irmã. Estava tudo programado no astral.
— Que ideia mais estapafúrdia, Cláudia! Devem tê-la medicado. Não diz coisa com coisa.
Ela agarrou o braço dele com força e, encarando-o, disse:
— Minha irmã vai criar meu filho, do mesmo modo que você criou o filho de outro. Afinal, não é o laço de sangue que conta, mas o amor que desenvolvemos por aqueles que criamos.
Ivan arregalou os olhos e quase teve um ataque apopléctico. A saliva sumiu e ele não teve articulação. Como Cláudia pôde saber tamanha intimidade? Como pôde dizer-lhe na cara algo que ninguém sabia, somente sua esposa e, quiçá, os cunhados? Ele começou a tremer.
Antes de voltar ao normal, Cláudia sorriu, beijou sua mão e uma enfermeira surgiu e, juntamente com um atendente, começou a empurrar a maca até a mesa cirúrgica. Logo, Cláudia estava anestesiada e Ivan um tanto alheio. Um dos assistentes perguntou:— Podemos iniciar os procedimentos, doutor?
— Sim — ele passou as mãos pela testa, como a espantar os pensamentos e começaram a cesárea.
Tudo foi muito rápido. Em alguns minutos, a pressão de Cláudia baixou, ela teve uma parada cardíaca. Enquanto Ivan retirava o bebê de sua barriga, estavam ali na sala mais dois médicos, tentando, inutilmente, reanimá-la.
A enfermeira pegou o bebê nos braços, levou-o até a incubadora. Os assistentes ficaram desolados. Ivan, em estado de choque. Deus o havia vencido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 9:47 am

Capítulo 41
Micaela era uma mulher mais simpática que bonita. Carregava sempre um sorriso nos lábios, estava sempre de alto-astral. Formada em Jornalismo, trabalhara nas redacções de importantes jornais do Rio.
Na época da ditadura, em razão de matérias contrárias ao regime vigente, fora presa, interrogada e, por intermédio da ajuda de Paulo, três dias depois de presa foi liberada, sem maiores esclarecimentos.
Depois disso, mudou de vida. Rapou o pouco dinheiro que tinha acumulado na poupança ao longo de alguns anos de trabalho e rumou para Londres, destino de nove entre dez jovens brasileiros no início da década de 1970. Ela se envolveu com um artista plástico, percebeu que tinha jeito com artesanato e passou a confeccionar bolsas com sobras de tecidos, brim, retalhos os mais diversos.
Voltou para o Brasil, passou a vender uma ou outra peça para amigos, na praia. O boca a boca se espalhou, ela ganhou fama, montou um ateliê em Ipanema e confeccionava suas bolsas e outros acessórios femininos. Muito articulada, conhecia um monte de gente e conhecera Dorothy em um dos eventos promovidos por Zuzu Angel.
A morte da estilista, ocasionada por um acidente suspeitíssimo — Zuzu batia de frente com os militares, pois seu filho Stuart fora morto nos porões da ditadura - fez com que Micaela e Dorothy se aproximassem e se tornassem grandes amigas.
Micaela, vez ou outra, produzia peças para algumas colecções de Dorothy. Às vezes, passava no ateliê da amiga norte-americana, não muito longe do dela. Colocavam o papo em dia, trocavam confidências, falavam da vida.
Na hora da despedida, depois de apagar o cigarro e bebericar seu café, Micaela abriu a bolsa, tirou um envelope e disse:
— Antes que eu me esqueça, deixe-me entregar isso para você.
— O que é?
— Sei que você é amiga querida, tenho liberdade contigo. Trouxe um currículo. Para apreciação. Não tem obrigação de nada. Também não prometi nada ao rapaz.
— Pode me passar.
— É o sobrinho de um casal amigo meu. Eu sou muito grata a eles. Gosto muito do Paulo, da Soraia. E o rapaz veio de São Paulo procurar emprego no Rio. Gostei dele. Moço simpático, energia boa. Dorothy sorriu.— Você com suas manias. Energia boa.
— É. Ele tem. Ainda duvida, não? Já absorveu tanto da cultura brasileira, mas ainda se nega a acreditar no mundo das energias, algo tão comum para nós.
— É conversa sua, de seus amigos doidinhos da praia. Não posso acreditar em algo que não vejo.
— Mas sente. Não sente arrepio quando entra em um lugar carregado, pesado? Não abre a boca quando se aproxima de uma pessoa baixo-astral?
Dorothy ficou pensativa.
— Pode ser. Nunca prestei muita atenção a esse fato.
— Pois devia. A captação das energias é um fato, mesmo que você não acredite nelas. E funciona pela lei da atracção, das afinidades. Pensou em coisas ruins, vai atrair situações e pessoas desagradáveis no seu caminho. O mesmo serve para as coisas positivas.
— Talvez precise — comentou, enquanto pegava o currículo das mãos de Micaela. — Quem sabe conhecer esse assunto me faça compreender melhor o que se passa na mente de Rachel?
Não sei mais o que fazer com essa menina.
— O que tem de fazer?
— Ela não tem limites. Destratou a minha assistente por causa da cor da pele.
Micaela levou a mão à boca:
— É absurdo. Onde já se viu, em plena década de 1980 ter preconceito?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 9:48 am

— Pois é. Nem quero falar sobre o assunto porque me desgasta. Não consigo separar as pessoas por cor de pele, sexo, enfim, gente é gente. E essa menina insuportável vive lá em casa como se fosse um hotel. Não consigo domá-la.
— Imponha suas regras.
— Faço o que posso. Ela me enfrenta.
— Enfrente-a também.
— Não quero partir para agressão, Micaela.
— Não estou me referindo a isso. Também não creio que agressão seja a solução. Mas você precisa se impor. Você é a dona da casa. Se Olavo a educou de uma maneira solta e inconsequente, não é problema seu.
— Às vezes, sinto uma pequena ponta de remorso. Quando saí de casa, anos atrás, algo muito maior me impediu de levá-la comigo. Eu não tinha condições emocionais. Nunca tive muito apreço por Rachel.— Não sou mãe, não posso me meter no assunto. Sempre afirmam que uma mãe ama igualmente seus filhos.
— Mentira! — exclamou Dorothy. — Uma grande mentira. Nascem do mesmo ventre, mas têm temperamentos diferentes. Logo, há mais ou menos afinidades com um ou com outro.
Não existe amor “igual”. Parecido, sim. Mas igual, nunca.
— Você e Rachel devem ter enrosco de outras vidas.
Dorothy fez uma careta.
— Bobagem.
— Acredito totalmente nisso. Como explicar as diferenças de raça, cor, sexo, orientação sexual, condições sociais, mortes prematuras, enfim, o jeito de viver e de morrer de cada ser neste planeta? Ninguém nasce, vive e morre da mesma forma. Todos nós somos únicos, riquíssimos em experiências, desde o mais ignorante ao mais sábio, do mais miserável ao mais rico, do mais bruto ao mais sensível. Se, ao morrer, tudo acaba, o ser humano se transforma em pó, e sua consciência se desmancha e desvanece, de que adianta ter passado por experiências, chorado, sofrido, amado, ter tido alegrias, momentos de felicidade, de tristeza...
Qual seria o objectivo de um indivíduo viver apenas um ano e outro viver mais de noventa? Não haveria coerência.
— Não há justiça no mundo. Muito pelo contrário. Eu estava lendo o jornal de hoje e, a cada página, um emaranhado de injustiças, tudo sem nexo.
— Você está presa à justiça dos homens. Estou falando da justiça divina, das leis universais, do que faz com que eu e você estejamos aqui, neste momento, conversando, enquanto o planeta gira em uma velocidade absurda em torno do Sol. Nada sentimos, parece que tudo está parado, que a Terra não se mexe.
— Isso é. Nunca pensei dessa forma. Para mim, a vida sempre foi nascimento e morte. Ponto final.
— Acredita que seu pai, por exemplo, homem dotado de extrema inteligência, não esteja, em consciência, em outra dimensão?
— Já sonhei com ele. Algumas vezes — falou Dorothy um pouco emocionada. — Nos momentos mais difíceis, ele sempre me aparece em sonho e me acalma.
— Porque a morte do corpo físico é somente uma transformação, uma passagem de um mundo para outro. Continuamos vivos, porque nosso espírito é eterno e todos nós estamos aqui para acertar contas, seja com os outros, seja com nossa consciência.
— Impressionante — surpreendeu-se Dorothy. — Tive uma discussão séria com Rachel outro dia e lhe disse que ninguém fica impune na vida, que teria contas a acertar.
— Viu só? Você tem uma mente espírita e nem sabia.
Dorothy sorriu.— Você tem um jeito peculiar de encarar a vida. Começamos o dia falando de nossa vida, tomamos café, entregou-me um currículo, falamos de energias e agora estamos falando de vida após a morte. Está demais da conta para mim.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 9:48 am

As duas riram e Micaela redarguiu:
— Tem razão. Fomos de oito a oitenta em um passe de mágica — ela consultou o relógio e considerou: — Preciso ir. Tenho uma cliente logo mais.
Despediram-se e, depois de sentar-se e redigir um memorando na máquina de escrever, Dorothy leu o currículo de Fernando.
— Hum, interessante. Já declinei três candidatos ao posto de gerente para a loja de Ipanema.
Aliás, aquela loja sempre me deu trabalho e trouxe problemas. Será que esse rapaz se sujeitaria a trabalhar em outro segmento? Vou chamá-lo para uma entrevista.
Quando Fernando entrou na salinha de Dorothy, ela levou a mão ao peito. Num primeiro momento, teve a nítida sensação de aquele rapaz ser uma espécie de Olavo repaginado, um pouco mais magro talvez; contudo, muito semelhante ao seu ex-marido quando o conhecera, anos atrás.
Não pode ser. Olavo não tinha 'parentes. Só uma tia solteira. O sobrenome dele vinha do tio inglês, Adams. Havia um Sousa no meio, pensou Dorothy, enquanto verificava o currículo e checava o nome completo de Fernando. O sobrenome não bate com o de Olavo. Só pode ser paranóia minha.
Fernando sorriu e segredou:
— Confesso nunca ter trabalhado no ramo de confecção.
— Embora o ramo seja diferente daquele com o qual está acostumado, a área administrativo financeira é praticamente a mesma. Não muda muita coisa.
— A senhora tem razão.
— Senhora, não. Por favor. Deixemos os formalismos de lado. Dorothy. Somente o nome.
— Tem acentuado sotaque.
— Sou norte-americana.
— Fala muito bem o português.
— Meu ex-marido era brasileiro. O actual também é brasileiro — ela aproveitou a deixa e indagou: — Já viveu no exterior? Tem parentes estrangeiros?
Fernando moveu a cabeça para os lados:— Nunca fui ao exterior. Tenho muita vontade de ir. Quem sabe, um dia. Adoraria conhecer os Estados Unidos.
— Um belo país — ela ajuntou.
— Tenho certeza de que vou gostar. Quero subir no topo do Empire State, em Nova York.
— Há prédios mais modernos e mais altos.
Ele concordou e redarguiu:
— Sou nostálgico. Quando garoto, assisti a um filme, Tarde demais para esquecer, em que o personagem interpretado por Cary Grant marca um encontro com Deborah Kerr no terraço do edifício. Ela não aparece, ele fica desapontado e, tempos depois, ao reencontrada, descobre que ela não foi ao encontro porque sofrera um acidente naquele dia e perdeu o movimento das pernas.
— É um lindo filme. AnAffair to Remember. Eu tinha acabado de me casar quando ele foi lançado nos cinemas.
— É também o filme preferido de minha mãe. Ela diz que o viu enquanto estava grávida de mim.
— Observei no currículo que você nasceu em abril de 1958.
— Sim. E, em relação à outra pergunta, minha avó, por parte de mãe — ele embargou a voz e pigarreou —, desculpe-me, ela faleceu faz três semanas, era filha de italianos e meu avô era libanês. Da parte de meu pai não sei ao certo, creio que espanhóis.
— O seu pai é vivo? — ela estava interessadíssima.
— Sim. Meu pai está vivinho! E minha mãe também, graças a Deus.
— E o que seu pai faz?
— Ele é médico. Minha mãe trabalha no mercado que já é da família faz anos. Tenho também uma irmã mais nova, enfermeira.
A conversa fluiu de maneira agradável. Dorothy simpatizou bastante com o rapaz. Independentemente de ficar impressionada com a semelhança física entre ele e Olavo, contratou Fernando para ser o gerente da loja de Ipanema.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 6 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 9:48 am

Capítulo 42
Fernando não cabia em si, tamanho contentamento. Também pudera. Passara por um período difícil. O dinheiro da rescisão estava chegando ao fim e ele não queria depender de ninguém. Ivan havia lhe proposto um empréstimo caso um novo emprego não surgisse, mas Fernando relutava em aceitar. Nunca dependera do pai. Por que iria depender agora, adulto, formado, com experiência?
Enfim, depois de passar por algumas entrevistas de emprego no Rio, veio a morte de Eustáquia. Ele, os tios, mais Maurício, muito a contragosto, cabe ressaltar, viajaram de carro para São Paulo. Ficaram três dias, dando conforto a Jamil e, principalmente, consolando Sílvia.
Fernando aproveitou o último dia para distribuir alguns currículos na capital paulista e, depois de matar as saudades com a família, retornou ao Rio com os tios e o primo. Poucas semanas depois da morte da avó, parecia que uma maré de sorte, bons ventos lhe sopravam novamente.
Ligou para os pais e contou a novidade. Sílvia, um tanto apática, ainda enlutada pela morte da mãe, parabenizou o filho e, novamente, sentiu aquele aperto no peito. Tinha certeza de que, agora, Fernando não mais voltaria para casa.
Ivan também congratulou o filho, sem muito entusiasmo. Depois do incidente no hospital, passou a questionar Deus, a vida, a morte. Queria retomar os estudos espirituais. Tinha muita vontade de conversar com Leocádia, comprar livros sobre vida após a morte, filosóficos, também que tratassem sobre reencarnação.
A morte de Cláudia, durante a cesárea, a conversa que ela tivera com ele antes de iniciarem os procedimentos cirúrgicos, tudo o deixara perplexo. Depois, tivera de encarar e dar a triste notícia ao marido dela. Outro golpe duríssimo. Não tinha sido fácil. Por conta de tudo, Ivan estava muito sensível naquelas últimas semanas.
Fernando desligou o telefone e abraçou novamente a tia.
— Eu não deveria comemorar com tanta efusividade. Afinal, nem faz um mês que vovó morreu.
Soraia passou a mão pelos cabelos dele, com carinho.
— Meu amor, não se martirize. Dona Eustáquia estava doentinha havia alguns anos. A morte dela era só uma questão de tempo. De mais a mais, a morte é um processo natural, faz parte.
Todos nós vamos morrer um dia, eu, você, seu tio, seu primo, seus pais. Tudo no planeta nasce, vive e morre num tempo determinado. Não deixe a tristeza contaminá-lo.
— Pelo jeito, voltou a estudar o espiritismo.— A espiritualidade como um todo. Os livros de Kardec me ajudam bastante, mas quero ampliar ainda mais meu conhecimento sobre as questões espirituais. Não quero mais perder a cabeça por causa do Maurício. Tenho aprendido que eu sou eu, e ele é ele.
— E precisou estudar tanto para chegar a uma conclusão tão óbvia, tia?
— Pois é. O fato é que ele é meu filho. Quando o assunto é entre mãe e filho, a coisa se complica, sabe? A gente mistura tudo, todas as emoções, os sentimentos. Vivemos as emoções de nossos filhos, queremos que eles sejam o que achamos que seja melhor para eles, dentro do nosso conceito de “bom". E, muitas vezes, o que desejamos não tem nada a ver com os gostos e anseios de nossos filhos.
— Entendo um pouco. Meu pai quis que eu seguisse Medicina. Lutei muito para me impor e seguir outra carreira, porque nunca gostei de nada ligado à área médica. Creio que hoje ele entende melhor a minha escolha, porque somos diferentes.
— Isso. Somos diferentes. Não é porque somos pais e filhos que devemos ser iguais. Somos semelhantes, pensamos de forma parecida, mas somos indivíduos, únicos. Devemos respeitar e enaltecer as diferenças, jamais tolhê-las.
— E o que tudo isso a tem ajudado em relação ao Maurício?
Soraia suspirou.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 6 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 9:48 am

— Eu gostaria que ele fosse como você. Que estudasse, trabalhasse, seguisse uma carreira, tivesse um rumo na vida. Mas ele é ele, tem o jeito dele, foi criado de maneira solta, irresponsável, tornou-se rebelde, acredita ser superior aos demais mortais do mundo porque é bonito, tem um corpo que chama a atenção. Ele tem outros valores e, sei, vai se machucar muito por conta dessas ilusões. Porque prender-se à beleza, vaidade, julgar-se melhor ou superior aos outros só cria mais ilusões e, quando a pessoa percebe, está patinando em um lamaçal porque só a desilusão é capaz de trazê-la de volta à realidade.
— O que quer dizer, tia? — o rosto de Fernando carregava um ponto de interrogação.
— Seu primo vai sofrer muito para se tornar uma pessoa de bem. E eu não poderei evitar que ele sofra.
— Não está sendo dramática?
— Não. Maurício não respeita nada nem ninguém. Quem age assim desrespeita a vida. E a vida responde na mesma moeda. Ela, a vida, sempre vai exigir um ajuste de contas, mais cedo ou mais tarde.
Fernando sentiu um calafrio. No mesmo instante, Maurício entrou em casa, carregando sua prancha, como de hábito. Esparramou areia pelo corredor, jogou a prancha de qualquer jeito na área de serviço, entrou na sala e jogou-se no sofá, com o calção molhado.
Soraia respirou e soltou o ar três vezes, levantou-se e foi para a cozinha.
— Vou fazer um suco, Fernando. Já trago.— Também quero, mãe — pediu Maurício.
Ela nada disse. Foi para a cozinha e Fernando disse:
— Estou muito contente.
— É? O que foi? Viu passarinho verde?
— Não. Arrumei emprego.
Maurício fez um gesto vago com a mão e, sem olhar para o primo, mirando o controle remoto em direcção à tevê, mudando os canais, indagou:
— Nossa! E está feliz por ter arrumado um emprego? Ficar enfurnado num escritório, de terno e gravata, ainda mais em uma cidade quente como o Rio? Eu passo.
Soraia voltou à sala trazendo uma bandeja com uma jarra e copos. Serviu Fernando. Depois, sentou-se e bebericou seu suco. Maurício a encarou sério:
— Não vai me servir?
— Não. Fiz o suco para o seu primo.
Ele a fuzilou com os olhos. Levantou-se e apanhou um copo. Depois se serviu.
— Não custava nada me servir.
— Você tem dois braços, duas pernas. Pode se movimentar.
— Fernando também -— ele retrucou.
Ela fez que não ouviu e deu continuidade:
— Seu primo vai trabalhar como gerente de uma das butiques mais sofisticadas do Rio.
— Butique? Isso não é coisa de mulher?
— Não — interveio Fernando. — Trabalho não é dividido por género, mas por competência.
— É — asseverou Soraia. — Deixe de ser machista. Que comentário mais preconceituoso!
Além do mais, seu primo vai trabalhar em Ipanema, bairro que você tanto adora.
Maurício encarou Fernando de cima a baixo.
— Trabalhar em Ipanema? Fala sério?
— É. Vou trabalhar lá. O salário é tão bom que me permite alugar um apartamento. Claro que não dá para alugar em Ipanema, mas em bairro próximo. Um conhecido me indicou um dois quartos bem em conta em São Conrado.
Maurício sentiu o sangue subir. Então o idiota vai trabalhar em Ipanema e morar em bairro nobre? E eu vou continuar aqui na Tijuca com meus pais?, pensou, no entanto, comentou, modificando o semblante:
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 6 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 9:49 am

— Pensa em morar sozinho?
— Claro.
— Não pensa em dividir despesas?
— Nossa, seria uma coisa muito boa, porque ajudaria a economizar. Como encontrar alguém que possa dividir despesas comigo? Não conheço muita gente no Rio. Precisa ser alguém em quem eu confie.
— Pois acaba de encontrar a pessoa certa.
— Quem?
— Eu — Maurício disse, mentindo descaradamente na sequência: — Também arrumei emprego como modelo, numa agência no centro. Acho que chegou a hora de eu cortar o cordão umbilical e seguir minha vida.
Fernando ficou surpreso com a novidade. Soraia levou a mão ao peito e quase engasgou com o suco. Pressentiu cheiro de confusão no ar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 9:49 am

Capítulo 43
Maurício pegou o telefone no corredor e o arrastou até o quarto. Trancou-se e discou. A empregada atendeu e passou para Rachel.
— Oi.
— Tudo bom, gata?
— Tudo. Mas necessitando de adrenalina. A vida anda muito sem tempero, como se diz.
Ele riu da maneira como ela falou e perguntou:
— Tem como pegar outro cinzeiro ou objecto?
— De onde?
— Sei lá. Quando nos conhecemos, não me disse que havia pegado o cinzeiro do ateliê da sua mãe?
— Foi.
— Pois bem. Não tem mais nada de valor ali? Um vaso, um quadro, alguma coisa que possa render bom dinheiro?
— O que está pensando em fazer? — Rachel estava animada. Adorava estripulias.
— Preciso de uma grana.
— Não sei se dá para pegar coisas lá. Minha mãe tem um olho clínico. Sentiu falta do cinzeiro.
Foi perguntar para a assistente e acredita que a negrinha safada deu com a língua nos dentes?
Disse à minha mãe que eu o roubei.
- E não foi isso o que fez?
— Foi. Mas a negrinha não podia ficar de bico calado? Odeio essa gente. Maurício nada disse.
Embora fosse danado, ardiloso e cheio de más intenções, não era preconceituoso, não via diferença nas pessoas por causa da cor da pele. Para não dar continuidade ao discurso de Rachel, foi directo:
— Podemos bolar um assalto.
— O ateliê tem alarme. Não acho que seja um lance inteligente assaltar o espaço de trabalho de minha mãe.
— Bom...
— Eu posso levá-lo a uma festa logo mais.— Que festa?
— Minha mãe foi convidada para uma festa, dessas com gente de grana, cheia de ricos, velhos, chatos. Eu passo longe disso, mas pensando no pouco que conheço de você e em sua necessidade de dinheiro... — Rachel levou o dedo ao queixo e depois concluiu: — A festa vai ser ideal.
— Ideal para quê?
— Para facturar, meu bem. Vou lhe apresentar umas velhas ricas e carentes. Você poderá lhes oferecer um pouco de carinho, em troca de um punhado de dinheiro. Pode ganhar bem mais do que vendendo cinzeiros ou pecinhas roubadas de ateliê. Pense grande, rapaz.
Maurício, do outro lado da linha, sentiu um friozinho no estômago, um estado de contentamento. Já estava acostumado com esse tipo de serviço.
— Você é fantástica, Rachel! Por que não pensei em usar meu corpo de maneira profissional?
Eu sou uma máquina de dinheiro!
— Já havia me dito que fez uns programinhas.
— Eu saí algumas vezes para ter dinheiro imediato, mas nunca pensei em me tornar um garoto de programa.
— Meu amigo, você pode se tornar um garoto de programa fino e sofisticado. Seu corpo atlético e bronzeado vale muito. Esse rostinho bonitinho vale bem mais que uma aplicação na poupança ou no overnight.
— Qual é o traje?
— Social despojado. Quanto mais desprendido de protocolo, mais elas gostam. Você tem bom gosto. Arrume-se, encontre-me na esquina do ateliê às oito e meia. O resto fica comigo.
— Está certo. Beijo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 9:49 am

Maurício desligou o telefone e suspirou, contente:
— Agora vou sair daqui deste buraco e morar na zona sul. E ainda terei chance de atrapalhar a vida do Fernando. Quanta coisa boa acontecendo ao mesmo tempo! Sou um cara de sorte!
A primeira semana de trabalho foi um tanto estafante. Fernando precisou adaptar-se à abertura e ao fechamento da loja, à contagem de dinheiro e cheques no caixa, ao controle de entrada e saída dos funcionários, monitorar o atendimento aos clientes, gerenciar estoque, actualizar-se com as informações dos seguranças à paisana nas imediações da loja. Era muita informação, novas rotinas, maneira de trabalhar, um outro universo para processar.
Mas ele estava indo muito bem. Dorothy passava na loja todos os dias, na hora do almoço e no fechamento. Conferia com Fernando o borderô, os valores pagos, recebidos, as contas em geral. Estava satisfeita. Na outra semana, ela teve de fazer uma viagem com Nelson para uma das fazendas dele, no interior de Goiás. Precisavam comprar e vender um lote de terras e era necessária a assinatura do casal. Dorothy aproveitou para descansar uma semana ao lado do marido e deixou o ateliê aos cuidados de Débora. Ela foi designada para passar na loja todos os dias, ao menos na hora do fechamento.
Passava das oito, os funcionários estavam se preparando para fechar o estabelecimento e Débora entrou. Eles a cumprimentaram e ela perguntou por Fernando. Apontaram para a saleta ao fundo da loja. Ela agradeceu, bateu na porta e entrou.
Ao vê-lo, ficou surpresa. Fernando era-lhe muito familiar. Alguém conhecido, um parente, talvez. Até lembrava seu pai, em retratos que a mãe ainda preservava do passado.
Fernando sorriu e indagou:
— Em que posso ajudá-la?
Ela gostou do sorriso e da maneira simpática com a qual ele a tratou. Sem saber que ela era filha de Dorothy, comentou:
— Vim apanhar o borderô de pagamentos.
— Ah. Sei. Você trabalha no ateliê. Dorothy me disse que estava de viagem e que... é....
— Débora.
— Isso mesmo — ele lembrou-se. — Débora, que viria acompanhar o fechamento da loja nesta semana.
— Pois aqui estou.
— Muito prazer. Eu sou o Fernando.
— Eu sei — ela estendeu a mão e o cumprimentou: — Prazer. Débora.
— Sente-se — indicou uma cadeira ao lado dele. — Estou finalizando a contagem dos cheques.
— Estou intrigada.
— Com o quê?
— Você não tem ligação com a família de Dorothy, tem?
Ele riu. Sem saber que Débora era filha de Dorothy, disse:
— A dona da loja me perguntou isso na entrevista. Queria saber se eu tinha parentes no exterior, na América do Norte. Enfim, não sei o porquê. Será que lembro algum parente dela?
— Creio que sim.
— Você conhece bem a Dorothy? Débora sorriu, matreira.
— Conheço muito bem. Trabalhamos juntas há anos. Você está gostando do serviço, deste emprego novo, gostou da Dorothy?
— Estou adorando. E Dorothy é a melhor chefe que tive até hoje. É firme, decidida, mas um encanto. Estou aprendendo muito com ela.
— Modéstia de sua parte dizer que está aprendendo com uma mulher. Ainda mais em uma terra em que os homens se sentem inferiorizados quando chefiados por mulheres.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 9:49 am

— Não vejo dessa forma. Nunca separei pessoas por sexo, género, condição social, cor de pele. Para mim, gente é gente. O que vale é o carácter.
— Tem uma visão diferente de outros homens.
— Eu não me baseio nos outros. Eu tenho opinião própria. Aprendi que cada um tem seu jeito de ser, de se comportar. Cresci em uma família com descendentes de italianos e libaneses.
Tenho um tio homossexual e não o amo menos por isso. Ao contrário, aprendi a respeitar e apreciar as diferenças.
Débora fora agradavelmente surpreendida. Desde que chegara ao Rio, tinha saído com um ou outro rapaz, mas nada sério. Achava-os superficiais, até tolos. As conversas giravam em torno de política - o país estava vivendo tempos de amnistia -, futebol e ela também notara que os homens tinham um olhar machista em relação à mulher. Em plena década de 1980, Débora era obrigada a escutar pérolas do tipo “quero uma esposa que cuide de mim, da casa e dos filhos”, “desejo uma mulher que seja só minha e me respeite” ou um que, logo no primeiro encontro, perguntou se ela sabia lavar, passar e cozinhar. Débora nem ficou sentada dois minutos na mesa do bar. Apanhou a bolsa e saiu, rumo ao calçadão, aturdida com tamanha pergunta cretina.
E agora estava à frente de um homem bonito, aparentemente sensível, com uma conversa agradável, que pensava de maneira parecida à dela. Sorriu.
— Eu também aprendi desde cedo a apreciar e a respeitar as diferenças. Minha mãe me ensinou que ninguém é mais ou menos que ninguém. As pessoas têm capacidades e habilidades distintas, apenas isso.
— Sua mãe é uma mulher sábia. Adoraria conhecê-la.
— Um dia eu o apresento a ela — riu novamente.
— Por que ri?
- Por nada. É que você se parece com meu pai, quando jovem. Pena que ele está morto. Caso contrário, eu o traria até aqui para fazer as devidas comparações!
- Ufa! – ele passou a mão pela testa. – Estava ficando preocupado. Imaginei que meu pai poderia ter pulado a cerca. Mas, como disse que seu pai já morreu, fico tranquilo.— Por quê?
— Porque meu pai está mais vivo do que nunca.
— Hum. Bom, preciso pegar o borderô — ela consultou o relógio e considerou: — Está tarde.
E estou morrendo de fome. Você tem compromisso? Mora perto?
— Não. Moro na Tijuca.
— Um pouco longe.
— A esta hora, de ônibus, não demora tanto. Estou quase fechando o aluguel de um apartamento em São Conrado. Se tudo correr bem, até semana que vem eu me instalo nele.
— Que óptimo! Então, vamos?
— Vamos. Também estou com fome.
Fernando terminou os afazeres e logo estavam sentados em um charmoso restaurante nas imediações. Fernando contou sobre sua vida até chegar à operação recente para retirada do apêndice e o último emprego.
Débora, por sua vez, também discorreu sobre sua vida, desde o nascimento nos Estados Unidos, sobre o pai brasileiro, a separação dos pais, sobre a relação boa com a mãe e sobre Rachel.
Ele enrugou a testa e espremeu os olhos:
— Ah, então você estava me testando!
—Eu?!
— Claro. A filha da dona! E eu nem percebi.
— Eu ia contar, mas a nossa conversa tomou um rumo tão agradável lá na loja. Não achei apropriado. Pelo menos, naquele momento.
— Sei, sei.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 9:50 am

— É verdade.
Fernando pousou sua taça de vinho sobre a mesa e as costas de sua mão encostaram nas de Débora. Os dois sentiram um choquinho.
— Ui! —- comentou ela. — Que coisa!
— Electricidade pura.
— Você lembra tanto o meu pai! Desculpe eu bater tanto nesta tecla. Parece obsessão, mas não é. Vou procurar uma foto dele lá em casa. Antiga. Tenho certeza de que, ao vê-la, você vai me entender.— Se você diz, eu acredito.
— É impressionante essa semelhança!
— Há pessoas que se parecem sem ser parentes. Veja o caso de atores que se caracterizam para representar determinados personagens que marcaram a história. Quantas actrizes já fizeram Marilyn Monroe e ficaram com a “cara” dela?
— Mas foram produzidas. Você se parece naturalmente com meu pai. Sem tirar, nem pôr.
— Pode ser o efeito do vinho.
— Sim, pode.
— Seu pai era de onde?
— De São Paulo. A família era metade brasileira, metade inglesa, creio. Ele foi estudar nos Estados Unidos, conheceu minha mãe, se casaram. Não se deram muito bem. Eu era muito pequena quando se divorciaram.
— Uma pena quando não conseguem levar a relação adiante.
— Criamos expectativas, queremos que a relação dure, perdure por toda uma vida, sem enxergar o fato de que tudo na vida, até nós — apontou para os dois ao mesmo tempo —, tem prazo de validade.
— Nós, seres humanos, temos prazo de validade. Mas querer determinar uma relação? É começar acreditando que ela já vai acabar. Pensar assim é meio caminho para que ela não dure.
— Engano seu — protestou Débora, bebericando seu vinho. — Os objectos têm prazo de validade, os animais, as construções, os bichos, as árvores, até as estrelas morrem. Pode acontecer de um relacionamento durar por toda uma vida? Pode. É regra que todos tenham de seguir essa linha de raciocínio, ou seja, durar para sempre? Não. Há pessoas que se dão bem convivendo com uma única outra por longos anos.
— É? — ele a encarou de maneira enigmática e Débora prosseguiu:
— Há pessoas, contudo, que precisam trocar mais experiências, conviver com mais pessoas, daí terem alguns relacionamentos ao longo da vida. São pessoas que precisam encontrar, digamos, vários amores.
— Tem uma maneira peculiar de enxergar a vida, os relacionamentos.
— Talvez tenha aprendido cedo demais a encarar a realidade das relações afectivas. Meus pais se separaram com poucos anos de casados, eu era muito novinha. O meu pai era mais volúvel e minha mãe era mais centrada, focada no trabalho, na realização profissional.
— Tem saudades de seu pai?
— Para ser sincera, não sei.— Como não?
— Porque convivemos muito pouco. Eu cresci longe dele e, ao atingir a adolescência, tentei uma reaproximação, mas nos falávamos apenas duas ou três vezes ao ano, por telefone. Eu raramente o vi. Ele cuidava da minha irmã caçula. Também vivemos separadas. Agora que ele morreu, estamos tentando conviver. Rachel não é uma pessoa fácil.
— Qual era o nome do seu pai?
— Olavo.
Conversaram mais um pouco.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 8:19 pm

Depois de terminada a refeição e de pedirem a conta, caminharam pelo calçadão e Débora quis levar Fernando até em casa.
— Imagine, não se dê ao trabalho.
— Por quê? Não disse que respeita as diferenças e que homens e mulheres são iguais em tudo?
— Entendi a sua jogada — ele riu.
— Quero ver se o seu discurso é da boca para fora ou se é para valer. Essa será sua prova de fogo. Então, venha, meu carro está estacionado logo ali, do outro lado da calçada do ateliê.
Entraram, Débora deu partida e foram trocando impressões sobre a cidade, a vida, sobre eles mesmos até chegarem à Tijuca. Assim que desceu do carro, despediram-se com um beijo no rosto.
Fernando entrou no predinho dos tios com o coração leve, sorriso fácil. Débora rumou para a zona sul sentindo uma agradável sensação no peito, como nunca havia sentido.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 8:19 pm

Capítulo 44
Passava das onze quando Fernando entrou no apartamento. Um abajur iluminava parcialmente a sala. Paulo roncava a sono solto na poltrona. Soraia assistia ao jornal nocturno.
Sorriu ao ver o sobrinho.
— Chegou tarde. Mas está com um ar bom.
— Ar bom! Essa tirada é óptima, tia.
— Sim. Parece que está andando nas nuvens. O que foi? Conheceu alguém?
Ele sorriu e sentou-se no canto do sofá. Soraia levantou as pernas para ele se sentar e as encaixou sobre as coxas de Fernando.
— Tia, conheci.
— Sabia. Eu tenho bom faro para romances.
— Para com isso. Nada de romance. Eu só conheci uma moça. Muito legal, por sinal. Gente fina.
— Gente fina. Agora eu vou dizer que essa tirada é óptima. Eu te conheço, Fernando, como a palma de minha mão.
— Não vou negar que é moça bonita. Bem bonita. Estrangeira, mora aqui não faz muito tempo.
— Uma gringa. Mal chegou ao Rio e se envolve com uma gringa.
— Ela é filha da minha patroa, tia.
— Não entendi.
— A Débora é filha da dona da loja.
— Você e a filha da dona... — Soraia deu uma risadinha. — Você começou rápido!
— Pare com isso, tia. Eu não imaginava que ela era filha da dona. Foi tudo tão mágico. Deixe-me lhe contar.
Fernando passou a relatar os acontecimentos, desde o encontro na loja até passarem pelo jantar, conversas diversas.
— Parece que tiveram afinidade logo de início.
— Sim — confirmou Fernando. — O mais engraçado é que ela jura que eu me pareço com o
pai dela.— Como assim?
— Não só a Débora. Esqueci de lhe dizer. A mãe dela, Dorothy, quando me entrevistou, perguntou se eu tinha algum parentesco com o ex-marido dela. Depois, agora, no jantar, Débora não parava de afirmar que eu sou idêntico ao pai dela quando jovem.
— Explique-me melhor — Soraia sentiu o coração bater forte e ajeitou-se no sofá. Encarou
Fernando com seriedade: — Essa dona da butique é a estilista amiga da Zuzu Angel, não?
— Ela mesma. Por quê?
— É norte-americana, se não me engano.
— Sim.
— Casada com brasileiro? — Soraia estava começando ajuntar os nós do passado, com certo receio.
— É. Ele é empresário, dono de fazendas. O seu Nelson vive em Goiás e Dorothy aqui.
Soraia sentiu certo alívio.
O pai não se chama Olavo, ainda bem. Estava começando a ficar atormentada, pensou ela, mas disse: —A Débora não sente saudades do pai vivendo em Goiás, tão distante?
Fernando fez um gesto com as mãos:
— Não, dinda. Nelson é o padrasto da Débora.
— E o pai biológico? É norte-americano? Sabe o nome? Onde vive? — Soraia levou a mão à boca para evitar fazer mais perguntas. Estava indagando demais. Precisava controlar a ansiedade.
Fernando nada percebeu e respondeu, com naturalidade:
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 8:20 pm

— Ela me disse que o pai morreu. E que também era brasileiro.
— Sabe o nome? — insistiu ela.
— Olavo.
Soraia só não caiu porque estava sentada. O coração começou a bater descompassado e ela se sentiu mal. Fernando percebeu a alteração de estado e perguntou, assustado:
— Aconteceu alguma coisa, tia?
— Um mal súbito. Por favor, vá até a cozinha e me traga um comprimido para dor de cabeça e um copo com água cheio de açúcar misturado. Por favor.
— É para já. Fernando levantou-se rápido e correu até a cozinha. Soraia cutucou Paulo, que dormia a sono solto. Ele mastigou a saliva e acordou, encarando-a:
— O que foi, meu bem?
— Precisamos conversar no quarto.
— Agora?
— Assim que Fernando for para o quarto dele. Assunto urgente. Creio que um terremoto está prestes a estremecer nossa vida.
Paulo arregalou os olhos e passou a mão nos lábios. Notou que Soraia estava branca como cera e sentiu que o assunto era grave. E era.
A notícia deixou Sílvia em estado de choque. Depois, mais calma, embora com a voz levemente trémula, ela perguntou a Soraia, de novo:
— Ele disse que o pai da moça se chama Olavo?
— Hum, hum. Afirmativo.
— E o nome da mãe é Dorothy?
— Eu já sabia que o nome da chefe do Fernando era Dorothy, mas jamais associaria esse nome ao Olavo. É um assunto tão distante e, para mim, particularmente, estava morto e enterrado.
— Parece que ressuscitou — emendou Sílvia. — Só pode ser obra do diabo. É muita ruindade da vida Fernando aproximar-se da mulher que tirou Olavo de mim e, pior, gostar de uma mulher que não pode.
— Não vou discutir sobre a ruindade de Olavo ter sido tirado de você, porque discordo. Ele foi embora porque quis, fez tudo de cabeça pensada. Você que não comece a inventar que ele fora seduzido pela gringa, Sílvia. Não queira dar uma de louca.
— Tem razão. É que ainda às vezes vem uma ponta de raiva desse passado.
— Perdoe a você, ao Olavo e à Dorothy. Pensei que já tivesse acabado com isso na sessão feita na casa de Leocádia.
— Sou humana, ainda dou minhas escorregadas.
— Está certa. Não vou julgá-la, minha irmã de coração. Mas sabe que não havia pensado sobre Fernando gostar da meia-irmã? Não pode.
— É. Coitado. Ele não pode se apaixonar por essa moça.
— E o que faremos, Sílvia? Quer que eu proíba seu filho, adulto, de namorar? Não tenho como evitar!— Estou tão nervosa! O que fazer?
— Contar a verdade, ora.
— Nem morta! — exclamou Sílvia, em alto tom.
— Problema seu. Se a vida criou essa situação, é porque está na hora de Fernando conhecer a verdade. Você não tem o direito de esconder a verdade dele.
— Tenho.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 6 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 8:20 pm

— Não tem, Sílvia. O seu problema é a vaidade. Está com medo do que Fernando vai dizer, pensar, sentir a seu respeito. Está com medo do que Clarice venha também a pensar. Está com medo da reacção dos outros, não está querendo saber o que pode ser melhor para seu filho.
Muito triste essa postura mesquinha.
Sílvia, do outro lado da linha, deixava as lágrimas escorrerem livremente.
— Soraia, o que fazer?
— Converse com Ivan. Duas cabeças pensam melhor que uma.— E vou dizer o que a Ivan? Que Fernando está prestes a descobrir a própria origem?
— Diga a seu marido que Fernando está a ponto de descobrir quem é seu pai biológico. Diga a Ivan que Fernando está trabalhando para a ex-mulher de Olavo, tem contacto diário com a meia-irmã e está se apaixonando por ela. Ivan vai entender a gravidade e pensar em algo.
— Está bem. Vou falar com ele.
Desligaram o telefone. Soraia passou a mão nos cabelos. Paulo, deitado na cama, indagou:
— E agora? Tem mesmo certeza de que Fernando está próximo da verdade?
— Sim, meu bem. Fernando está prestes a descobrir quem é seu verdadeiro pai. E a chefe, Dorothy, é a chave.
Maurício, que acabara de entrar em casa, tinha passado pelo corredor naquele exacto momento. A porta do quarto dos pais estava entreaberta, pois Soraia havia puxado o telefone do corredor para dentro do cómodo. Deixara a porta semiaberta para que o fio do aparelho pudesse passar.
Eles estavam tão atarantados que nem perceberam Maurício atravessar o corredor. Ele atravessou, entrou no quarto pé ante pé. Fez o possível para não fazer barulho. Fernando dormia na cama ao lado. Ele se despiu, mergulhou debaixo das cobertas e mordiscou os lábios:
— Uau! Tio Ivan não é pai do mala sem alça. Claro, estava na cara que Fernando não é de nossa família. Por isso nunca o suportei. Ele é bastardo! E por que a mãe disse que Dorothy é a chave? Chave de quê? Preciso conversar com Rachel sobre isso. Aí tem coisa. Coisa boa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 8:20 pm

Capítulo 45
Assim que Fernando alugou o apartamento em São Conrado, Maurício o convenceu a dividir o aluguel e as despesas.
— Você vai me pagar como? — quis saber Fernando.
— Descolei emprego fixo em uma agência de modelos. Vai ter cachê todo mês. Fique sossegado, vamos rachar tudo, meio a meio.
— Se você garante, então pode ficar com o segundo quarto. Seria meu closet, mas eu me aperto e ajeito tudo no meu.
Maurício sorriu e agradeceu, contudo, ao entrar no quarto e fechar a porta, rosnou:
— Idiota. Está me dando o closet como quarto. Humilha-me toda vez que pode. Isso não vai ficar assim. Quando encontrar Rachel, vou tirar a limpo essa história da sua bastardice. Ah, como vai ser bom descobrir algum podre da sua vida, deixar você constrangido de alguma forma, vê-lo sofrer...
Duas horas depois, Maurício encontrou Rachel na praia.
— Gata, eu a procurei por toda a cidade, o mês todo! Onde esteve?
— Fui fazer uma pequena viagem. Estou de volta. Algo urgente?
— Você precisa me ajudar a entender um assunto — e contou sobre o que escutara da mãe.
Rachel franziu o cenho e considerou:
— Tem certeza do que ouviu?
— Absoluta.
— Meu pai não teve amantes. Eu me lembro de tudo. Fazia marcação cerrada em cima dele.
Depois, quando estava maior, deixava ele sair por aí, mas também porque eu queria sair.
— Não. Essa história de seu pai é mais antiga. Meu primo tem vinte e cinco anos.
— Espere aí.
— O que foi?
— Você disse que seu primo tem vinte e cinco anos? — indagou Rachel.
— Sim, por quê?
— Porque minha irmã também tem vinte e cinco anos. Será que são gémeos separados no nascimento?— Seria maravilhosa uma notícia dessa, mas não creio. Acho que seu pai pulou a cerca antes ou logo que casou com sua mãe.
— Só pode ser. Deixe que eu vou descobrir.
E não deu outra. Do jeito espevitado que tinha, Rachel chegou e esperou pela mãe. Mal
Dorothy entrou, ela perguntou, de supetão:
— Papai teve um filho antes de se casar com você, sabia?
— De onde tirou essa ideia estapafúrdia?
— Um passarinho me contou.
— Um passarinho bobo — Dorothy considerou.
— Bem esperto, eu diria. Tem um rapaz que é a cara do papai quando jovem circulando pelas ruas do Rio. Já o chamaram de Olavo Júnior. Um amigo meu me disse. Parece que é um paulista e trabalha para você.
Dorothy procurou manter-se firme. Sabia que Rachel a estava provocando.
— Você soube da semelhança física de meu novo funcionário com seu pai. Está me provocando.
— Não. Faz tempo que não passo na loja, desde que sua empregada negrinha me acusou de roubar objectos.
— Que você roubou, eu sei — Dorothy a olhou séria. -— E pare de se referir a Estela como negrinha. Ela é uma pessoa.
— Negra —- completou Rachel.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 8:20 pm

— Você ainda vai se dar muito mal.
— Não vem ao caso — Rachel desconversou e prosseguiu: —As boas e más-línguas afirmam que esse funcionário é filho do papai. Melhor checar o passado dele. Não custa nada. Não tem um elo dele aqui no Brasil, um amigo para confirmar ou desmentir essa história?
— Não vou me preocupar com isso — Dorothy não estava mesmo preocupada.
Rachel foi mais incisiva:
— Bom, as más-línguas declaram que seu funcionário está de amores pela Débora. Se esse moço for filho do papai, eles não poderiam namorar, né?
— Quanta besteira! Vou me deitar que ganho mais.
Dorothy saiu e a deixou falando sozinha. Rachel sabia que perturbara a mãe:
— Conheço essa mulher. O que Maurício escutou tem um fundo de verdade. Mummy ficou desconfortável com o comentário. Vou descobrir e investigar mais a fundo essa história. Dorothy entrou no quarto e quedou pensativa:
Que eu saiba, Olavo não teve filho fora do nosso casamento. Só eu...
Maurício, obviamente, tinha mentido para Fernando. Não estava trabalhando em agência de modelo coisa nenhuma. Depois que Rachel o levara a uma festa repleta de ricos e importantes, ele se dera bem com as coroas, despertando-lhes interesse sexual.
Sem constrangimento algum, passou a sair com mulheres mais velhas e cobrar um bom valor para lhes fazer companhia, agrados e coisas mais. Logo correu o boca a boca e ele tinha, digamos, compromissos, todas as tardes. Não marcava nada para o período da manhã e gostava de ter as noites livres para sair com amigos, gastar o dinheiro com roupas caras, restaurantes e cogitava dar entrada em um carro último tipo. Estava doidinho para adquirir um Escort XR3 conversível, amarelo, igual ao do amigo Duda Guinle, que aparecera na praia dirigindo um e deixando os amigos de queixo caído.
Naquele dia, porém, havia marcado de sair com Rachel. Fazia um tempo que não se viam. Ele havia terminado de passar agradável tarde com uma ricaça do Flamengo. Ganhara um bom dinheiro e fora contemplado com um extra.
— Eu sou o máximo! — disse para a própria imagem, reflectida no espelho, enquanto espalhava colónia nos braços e no peito.
Fernando acabava de chegar. Passou pelo pequeno corredor e avistou Maurício.
Cumprimentou-o e, antes de entrar no quarto, ficou parado na soleira do banheiro.
— Está perfumado. Vai sair com alguma gatinha?
— Nada. Não quero saber de envolvimento algum. Só farra.
Fernando notou o relógio de marca sobre a pia e a pulseira de ouro que Maurício terminava de colocar no pulso. Questionou:
— O trabalho de modelo está lhe dando bom dinheiro, mesmo. Vejo que está gastando bem
— apontou para o relógio.
— É. Tenho beleza acima da média, fazer o quê? Faço mais fotos, ganho mais.
— Não tem nenhum trabalho que vai sair em jornal, revista?
— Por enquanto é só fotografia para catálogos de empresas — mentiu. — E, se tudo der certo, vou desfilar. Passarela dá muito dinheiro.
— Fico contente que tenha arrumado algo que lhe dê prazer.
— Você não tem ideia de como me dá prazer, primo!
— Que bom.— Vai sair?
— Vou. Eu e Débora estamos nos acertando, creio. Vou levá-la para jantar. Coisa rápida, afinal, amanhã tenho de acordar cedo.
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Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar - Página 6 Empty Re: Acerto de contas - Marco Aurélio/Marcelo Cezar

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 8:21 pm

— Hum. Eu preciso ir — Maurício afastou-se e deu um tapinha nas costas de Fernando.
Pensou: Hoje eu vou desvendar essa história do bastardinho. Ah, vou.
Saiu e, minutos depois, encontrou Rachel na entrada do restaurante.
— Está lindíssimo. Melhorou muito na aparência desde a última vez que nos vimos.
— Segui seu conselho. Comecei o novo trabalho e estou levando a sério.
— Dando consolo às senhoras carentes. E arrancando o dinheiro delas.
— Claro! Dinheiro e joias, quando possível. Já ganhei este relógio e também esta pulseira de ouro — mostrou o pulso. — O que fazer se sou sedutor nato?
— Você não vale nada.
— Nem você! Fiquei sabendo que saiu com aquele director de tevê.
Ela riu, maliciosa.
— Foi. O pior é que dormi, literalmente. O fulano não fez nada. Só me beijou e plaft, caiu do lado e dormiu. Ainda bem. Velho asqueroso.
— E por que saiu com ele?
— Considero a chance de conseguir alguma coisa na tevê. Eu sou bonita, gostosinha, falo bem o português, também sou fluente em inglês. Posso fazer papéis de estrangeira, falar com sotaque se quiser. Preciso de dinheiro.
— Faça como eu.
— Já fiz. Não é meu melhor campo de actuação. Prefiro conseguir dinheiro de outra forma.
Juntar sucesso, fama e dinheiro seria perfeito para mim.
— E seu fundo fiduciário? Você ganha uma boa mesada, Rachel.
Ela bufou, irritada.
— A mão de vaca da minha mãe fez o fundo limitar minha retirada. Três mil dólares mensais.
Como uma mulher como eu pode viver com três mil dólares por mês no Rio de Janeiro de 1983? Impossível! Loucura. É querer me fazer sofrer.
— Tem razão.
— O fundo tem milhões, milhões — ela fez um gesto expressivo com os dedos da mão. — E eu apenas posso retirar essa mixaria.— Conspiram contra nós. Se há outras vidas, como minha mãe costuma afirmar, acho que cometemos alguns desatinos. Não é possível. Por que sofremos tanto?
— Argh! — Rachel pronunciou algo indecifrável. — Estou cansada de ouvir essas bobagens.
Para mim só existe esta vida. E eu quero vivê-la intensamente, com dignidade. Para tal, preciso de dinheiro. E vou consegui-lo, com fundo ou sem fundo.
Entraram no restaurante, pediram uma mesa, sentaram-se, fizeram o pedido e, assim que o garçom se afastou, Maurício indagou:
— Conseguiu descobrir mais alguma coisa sobre a história de seu pai?
— Não. E você, trouxe a foto do seu primo?
— Sim — Maurício sacou a foto do bolso e mostrou a ela. — Esta foto foi tirada há alguns meses, num almoço de família. Fernando é este...
Rachel nem o deixou terminar de falar e apontou para o rosto do primo, com olhos arregalados:
— Meu Deus! Não tenho mais dúvidas. Esse moço só pode ser filho do meu pai!
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Capítulo 46
Sílvia andava de um lado ao outro do mercado. Jamil, que já o havia fechado, acendeu um cigarro e lhe entregou:
— Fume. Está nervosa.
— Não, obrigada. Não quero cigarro, bebida, nada. Estou aflita e nada será capaz de arrancar essa angústia de dentro de mim.
— Agindo dessa forma, só vai piorar as coisas.
— Porque não é você quem está passando por uma situação tão delicada. Se a verdade vier à tona, posso perder meu filho para sempre, Ivan pode perder Fernando para sempre. E muito grave.
— Está fazendo um grande drama, uma tempestade em um copo d’água.
Sílvia o encarou um tanto rancorosa. Jamil prosseguiu:
— Sou o irmão que sempre esteve ao seu lado, em todos os momentos. Quando engravidou, estive ao seu lado para enfrentarmos juntos o que viesse. Não a abandonei jamais. Por isso, não me olhe com essa cara, com esse ar de irritação.
Ela sentiu vergonha e o abraçou, chorosa:
— Perdão. Não tive a intenção. Desde que entrou em minha vida, foi a pessoa que mais esteve ao meu lado, um irmão de verdade. Eu só tenho a agradecer por ter tido você em meu caminho. Desculpe.
Jamil a tranquilizou, passando delicadamente as mãos pelos cabelos sedosos e castanho-claros dela. Sílvia tremia de quando em vez.
— A aflição só atrapalha, porque, pensando dessa forma, você não acredita que a vida esteja fazendo o melhor para todos. Tente permanecer no positivo, mesmo que, por ora, as coisas não andem bem.
— Tem razão — ela disse e, ao se desfazer do abraço, lamentou-se: — Pensei que este assunto jamais viesse à baila. Nunca imaginei que um dia fosse precisar enfrentar essa realidade.
— Enfrentar a verdade, quer dizer.
— Sim. Estávamos bem confortáveis. Eu e Ivan, quero dizer. Esquecemos o passado.
Deixamos tudo lá atrás.— Não acredito que tenham esquecido o passado, mas varrido o assunto para debaixo do tapete.
— Acha mesmo?
Jamil fez sim com a cabeça.
— Se tivessem resolvido bem a questão, Fernando teria crescido sabendo a verdade, sem problemas. Mas vocês optaram por esconder o passado, como se os fatos tivessem acontecido da maneira como sonharam e não como eles ocorreram. O processo de se perder nessas ilusões gera medo, desconfiança, expectativas negativas no indivíduo. Por mais que tente esquecer o que, de fato ocorreu, sempre ficará a possibilidade de um dia ter de enfrentar a verdade. E, quando a visita da verdade chega, sem avisar, nos pega de surpresa.
— Eu não esperava, Jamil. Juro. Ao descobrir que Olavo estava morto, julguei que o caso estivesse, literalmente, enterrado. Ora, se o pai biológico de Fernando não está mais vivendo entre nós, por que lhe contar sobre sua origem? Não vi necessidade.
— Você não viu, contudo, a vida... — ele suspirou e finalizou: — A vida viu que é chegado o momento de a verdade ser exposta. É o acerto de contas.
— Não gosto da maneira como fala.
— Pois é. E você não vai perder a compostura. É uma mulher de classe, inteligente, articulada.
Não entre nos pensamentos dramáticos que a cabeça tenta lhe pressionar. Aquiete seu coração. Tudo vai se resolver.
— Assim espero.
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Sílvia abraçou-o novamente. Não percebeu a presença de Adélia, ali perto. Estava acompanhada de outro espírito em forma de mulher, Alaíde. Mulher com aparência na casa dos quarenta, corpo bem-feito, cabelos castanhos e cacheados naturalmente que iam até metade das costas. Tinha a pele alva, os olhos de um profundo azul e os lábios se destacavam pela tonalidade vermelha de batom. Vestia um conjunto de blusa e saia em tons escuros, contrastando com a pele alvíssima.
De trejeitos delicados, indagou:
— Por que Sílvia ainda se deixa levar pelos dramas do mundo? Passamos por tantas lições, tantos desafios. Aprendemos tanto e agora, quando mais precisa ficar em equilíbrio, se deixa levar pelas ideias de seu aparelho mental conturbado.
— O problema é a cabeça. Se ela deixasse de pensar um pouco na situação e sentisse o que fazer, teria uma ideia mais clara de como conduzir a situação de forma positiva — interveio Adélia.
— Agradeço muito a disponibilidade para me deixar vir até aqui. Sabe o quanto gosto de Sílvia. E de Ivan também. Estava na hora de se permitirem viver uma união mais estável, equilibrada.— A presença de Olavo na vida deles sempre causou desatinos, por assim dizer.
— Não tanto — esclareceu Alaíde. — São espíritos que caminham juntos há muitas existências, todavia, nas últimas três experiências terrenas, Olavo e Sílvia deram um mau passo no tortuoso caminho da paixão. Depois de séria conversa no astral, em última passagem terrena, decidiram que não se relacionariam nesta encarnação, como marido e mulher.
— Mas ela engravidou dele.
— Porque Fernando se dispôs a vir fosse por intermédio de Olavo ou de Ivan. No passado, os três foram irmãos: Fernando, Ivan e Olavo. Fernando era o irmão que se mantinha no fogo cruzado, acalmando os ânimos dos outros dois, que estavam sempre se pegando, brigando, discutindo. Dependendo das escolhas que Olavo fizesse, os três poderiam se reencontrar nesta vida e manter boa relação de amizade, superando em muito as animosidades do passado.
— Sinto por Olavo não ter feito a melhor escolha — lamentou Adélia, entristecida.
— Não existe a melhor ou pior escolha. O espírito sempre vai escolher o melhor para si.
Olavo, conscientemente ou não, optou por situações que fossem convenientes para seu próprio crescimento. Nada está errado. Agora, refazendo-se no mundo espiritual, terá a chance de rever conceitos, ideias antigas, pensar diferente e, quem sabe, em outra oportunidade, ter condições de conviver melhor ao lado de Sílvia e Ivan.
— Hoje cedo passei pelo posto de tratamento e cuidados. Olavo está bem melhor. Ainda atormentado, mas melhor.
— A perturbação vai durar um pouco mais — esclareceu Alaíde. — Não se vai de uma hora para outra. Embora Olavo tenha vindo para cá há um tempo, ainda tem dificuldades para aceitar a nova realidade e desfazer-se de crenças há muito cristalizadas. O processo de recuperação dele ainda será longo.
— Vamos dar um passe calmante e revigorante em Sílvia? Ela precisa.
— Sim. Aproveitamos e limpamos a aura de Jamil.
As duas ficaram ao lado de Sílvia e lhe ministraram um passe calmante. Sílvia não as viu ou notou, mas sentiu agradável sensação de bem-estar. Em seguida, fizeram uma limpeza energética em Jamil.
E, terminados os passes, partiram.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 18, 2024 8:21 pm

Capítulo 47
Maurício saiu com uma senhora que beirava os cinquenta e havia se divorciado fazia pouco tempo. Iara era uma mulher vibrante, simpática, benquista na sociedade, porquanto fazia doações altíssimas a instituições e associações.
Ela vivia na ponte aérea e, como não gostava de holofotes e era bem reservada, procurava não se envolver com homens conhecidos, pois poderia gerar fofocas, matérias para revistas de celebridades etc. Descobrira que, saindo com rapazes novinhos e anónimos, podia criar qualquer história, desde um sobrinho distante a um assistido das instituições às quais fazia suas doações.
A mídia não a incomodava e ela se divertia. Conhecera Maurício em uma festa, simpatizou com ele e queria torná-lo companhia fixa. A princípio ele declinara o convite, mas, conforme as cifras aumentavam, a resistência diminuía, e Maurício passou a sair com Iara praticamente todos os dias.
Houve o convite de passar dois dias em São Paulo. Ele adorou a ideia. Vieram animados e, ao chegar à capital, hospedaram-se em um hotel de luxo nos Jardins.
Na primeira tarde, Iara o dispensou porque tinha cabelos, pés e mãos marcados no salão de beleza e passaria a tarde toda na função.
— Pode ficar com a tarde livre — informou, enquanto caminhavam pelo shopping. — Mas nada de flanar pela cidade. Meu motorista poderá levá-lo aonde quiser e “ai” de você se aprontar comigo.
— Fique tranquila. Vou visitar minha tia.
— Tia, sei.
— Verdade. Pode acreditar, Iara.
— É tia, mesmo? Não me engane.
— O motorista pode conferir endereço e tudo. É minha tia. Não vou ser idiota e aprontar na sua cara.
— Está certo. Pode ir. Quero você aqui de volta às seis. Em ponto.
— Pode deixar.
— Tome — ela tirou algumas notas da bolsa e as depositou na mão dele. — Compre uma camisa e calça novas. Quero você bem bonito hoje à noite. Vamos jantar e dançar no Gallery.
— Sério?
— Comporte-se e terá tudo o que quiser — falou e piscou de forma maliciosa. Maurício lhe deu um selinho e saiu, sorridente. Dobrou o corredor, entrou em uma loja, comprou uma camisa, uma calça. Pagou e depois, em outra loja, comprou uma blusa para Clarice.
— Tenho certeza de que ela vai adorar o presente.
Chegou com o motorista na porta da casa de Sílvia e pediu:
— O senhor pode dar uma volta e retornar daqui a meia hora.
— Sim.
Maurício abriu o portãozinho, passou pelo jardim e bateu na porta. Estava entreaberta. Ia chamar pelo nome da tia, mas escutou vozes vindas do andar de cima. Eram vozes alteradas.
Ele as identificou como sendo de Sílvia e de Ivan.
Pé ante pé, Maurício subiu os degraus e parou no último. Dali escutava a conversa com perfeição. A porta do quarto dos tios estava entreaberta e dava para escutar nitidamente.
Sílvia estava nervosa. E exigia de Ivan:
— Você tem de tomar satisfações. Não podemos, em hipótese alguma, permitir que Fernando continue trabalhando naquela loja, ou mesmo que continue tendo contacto com essa família. Não pode. Tentou falar com Dorothy?
— Ligo e ela não retorna. Deixei vários recados.
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