LUZ ESPÍRITA
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 4 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:09 pm

Estive quase sempre completamente desperto, mas delirando sem cessar; só ao alvorecer senti aplacar-se um pouco o meu tormento. Sentia-me sem energia para me conservar de pé, faltando-me a precisa coragem para pesquisar esta ilha ou pedir auxílio a qualquer ente humano, pois de mim se apoderava um contínuo receio de ser reconhecido, preso e levado à presença de Peterhoff ou de um tribunal. Mais aliviado, porém, do sofrimento que me assediara durante a noite, pus-me em movimento, como as crianças que não sabem andar, ora roçando as pedras, ora firmando-me na palma das mãos.
Devia estar hediondo: os cabelos, impregnados d’água marinha e limo, estavam emaranhados e terrosos, como os de um defunto há muito sepulto; meu facto, qual vedes, estava já repugnante, fizera-se em rasgões por onde minhas carnes se dilaceravam nas arestas pedregosas em que me rojava: era um sáurio gatinhando por alcantis, sedento e faminto, com a língua a pender da boca, como a dos enforcados...
Encontrei, depois de algum tempo de doloroso trajecto, alguns vegetais num verdadeiro oásis mais além, e pus-me a devorar as folhas tenras, um pouco aciduladas.
Julguei fossem nocivas à saúde; mas que me importaria a vida se me extinguisse assim, involuntariamente? Que coisa poderia reter-me à Terra, sem família, sem tecto, sem nome, abandonado até pelos Invisíveis que me haviam prometido auxílio e protecção nos momentos mais acerbos da prova? Porque não procurar a morte — fendendo o crânio ardente nas lajes pelas quais me arrastava, ou me deixando rolar até ao Oceano? Haveria crime em pôr termo à miserável existência, eu que estava perdido para a sociedade, dilacerado de fome, de sede, de ódio, de desesperança? Já estivestes em circunstâncias assim, igual à minha, senhor ? Não! Que ventura a vossa! Que era eu então? O maior dos desventurados.
Eu que usava o nome de um morto — nome que dignifiquei por meio de honrado labor — via-me expulso do mundo, morto para a felicidade terrena, e, no entanto, a vida não me abandonara ainda: era um corpo sem nome, um desgraçado anónimo, um náufrago que não podia bradar por socorro, um cadáver insepulto que tinha fome e sede, receava um patíbulo, era, enfim, a Dor que se personificara em cima de um penedo para simbolizar, eternamente, todos os sofrimentos morais e físicos, no percurso dos séculos, no percurso de toda a Humanidade!
O padecimento que dizem suportar os entes que se acham fartos, num lar confortável ao abrigo das intempéries, por mais pungente que seja, não é nem arremedo, sequer, do que sofri durante noites e dias intérminos, nestes rochedos que, muitas vezes, me pareceram ter traçada a legenda do Inferno, de Dante Alighiéri: “Lasciate ogni speratiza ó voi ch’entrate!”
Porque me abandonara o abade, depois que me orientara a nadar para Este? pois que reconheci o timbre da sua voz amiga, quando lutava contra as ondas. Desobedecera-lhe eu nalguma ordem, sem o saber? Ignorava ele que não tentara contra a minha existência, mas que fugira ao crime, ao vexame, à ignomínia, quando me evadira do Devoir?
Pensando em tudo o que me flagelava a mente, quis chorar e as lágrimas não me afluíram aos olhos: é que tinham sido absorvidas, como o orvalho que caísse em placa metálica incandescente — apenas fiz um esgar, certamente horrível, pois todos os músculos faciais foram contraídos num rictos de loucura.. Uma gargalhada escarninha — a mesma que ouvira diversas vezes, até de envolta com o rumor das vagas — vibrou a meus ouvidos, motejando da minha dor, por me ver em tão aviltante conjuntura, transformado em herbívoro, quadrúpede, verdadeiro muar, mas com uma alma sensibilíssima, estuando de sofrimento inconcebível!
Seria ainda André, ou a própria rocha que estava zombando da minha dor? Como seria suave a morte ou a demência naqueles acerbos instantes!
Pouco a pouco, a serenidade de que carecia, para não cometer um ato de desatino, me voltou à mente...
Fitei o Nascente róseo como um dossel de gazes nacaradas, e era tão belo que esqueci, por momentos, as minhas agonias e infortúnios, alçando, então, a alma a Deus, em prece muda e vibrante. A risada mefistofélica, que não cessara de ouvir, estrídula e sarcástica, transformou-se bruscamente em prolongado gemido, que decrescia gradativamente, como sucede quando se chocam nos ares duas nuvens plenas de electricidade, produzindo um surdo clangor, que é repercutido em todas as outras, e depois vai diminuindo, diminuindo, nas mais longínquas, de segundo a segundo, parecendo arrastada pelo Espaço uma carreta de guerra, cheia de canhões que se entrechocam; mas, como se afasta velozmente, o seu ruído vai sendo cada vez menor, até que desaparece de todo...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:09 pm

Houve um colapso em todo o meu ser. Recostei-me a. uma laje, semicerrei as pálpebras e, então, ouvi este transcendente monólogo, que ecoou docemente na minha alma, qual cicio dulcíssimo da viração:
“— Aceitai a batalha como a procurastes e dela tínheis precisão, Pedro Ivanoviteh! Estais em momento de transição redentora, de transfiguração anímica, remindo tremenda dívida do passado, de quando éreis temido e sanguinário déspota, que ordenava açoitassem míseros prisioneiros em atroz pelourinho, arrojassem outros às ondas, dos píncaros de alcantiladas rochas, encerrados em bolsas de couro; decretáveis a reclusão de outros desventurados em infectas masmorras, até que expirassem exânimes, mas que tais desgraçados dilaceravam antes as próprias carnes para sugarem o sangue das artérias, a fim de lhes abrandar a ardência das gargantas afogueadas...
Vosso Espírito, que já tem progredido em séculos de amarguras, foi quem escolheu esta prova dolorosíssima, porém a única reabilitadora... Abandonai, pois, os pensamentos de rancor e de vingança; humilhai-vos e submetei-vos à Justiça Divina, que tendes evocado várias vezes e à qual vos entregastes; preparai vosso coração para perdoar aos vossos adversários — André e Peterhoff — vítimas da vossa perversidade de outrora, que as fizestes aos milhares.
Muitas vezes vosso sono tem sido perturbado pelos gemidos desses infelizes, os que ainda não vos perdoaram, e só deles vos libertareis por meio da lágrima, da humildade, da resignação... Sónia, um de vossos comparsas de delitos hediondos, é agora venturosa, pois terminou há pouco uma série de pungentíssimas expiações, e ainda a vereis mais bela e mais cândida que em sua infância. Coragem! Sus! Abri vossa alma à luz que desce em catadupas do Espaço até vós, Pedro!
Não desespereis! Sede valoroso e fazei uma rogativa pelo desditoso que zomba da vossa agonia, aquele a quem arrancastes a vida em mais de uma existência — André — para que sua alma se inunde de comiseração por vossos padecimentos, o qual acaba de ser retirado de vossa presença. Pensai nele sem ressentimento, para que possais usar para com o infeliz a caridade suprema — perdão — de que tendes também necessidade... Ele ouvirá vossos pensamentos impregnados de amor fraternal, sensibilizar-se-á por vossa prova de generosidade e mais tarde será aliado à vossa própria família, será amado pelos que adorais, terminando assim, para todo o sempre, a animosidade que existe entre ambos. O Amor esmagará a hidra do ódio. A luz vencerá as trevas.
Vamos, meu irmão, formulai a imprecação que, há muito, vosso Espírito já devia ter improvisado!”
Sentia-me aniquilar, mas, bruscamente, como que revigorado por um eflúvio celeste, fiquei genuflexo, olhar fixo no Levante de eloendro e ouro, suplicando ao Criador do Universo coragem para sair triunfante da prova decisiva que me fora imposta por Ele, a fim de ressarcir crimes abomináveis, e que tivesse misericórdia para com o desventurado André, fazendo que eu olvidasse os tormentos que a mim infligira, e assim pudesse perdoar-lhe...
Talvez tenha ficado em êxtase, senhor, pois me ajoelhara sobre calhaus agudos, que me lancearam as carnes, tingindo-as com o meu sangue, e não senti mágoa nenhuma senão quando despertei, parecendo que fora metamorfoseado em pedra, estátua de Ajax, — depois de vencido e impotente em sua cólera contra o céu — transformado em rocha como aquela em que me acho: — este Gólgota ignorado pela Humanidade, no qual minh´alma, sequestrada em corpo semi-dilacerado, sorveu até às fezes a taça de amargor...
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IV
“Desde esse dia, senhor — e já decorreu um mês que se passou comigo o que vos acabo de revelar —- notei que grande mutação ou revolução salutar se estava operando em meu íntimo. Já não tinha acessos de cólera. Uma resignação comparável à dos primeiros mártires do Cristianismo me adejou n´alma. Comecei a alimentar-me do suco de plantas que encontrava, de algumas ostras que apareciam na base dos rochedos meio submersos pelo mar, e sugava algumas gotas d’água que, por uma fenda aberta numa dessas grandes moles de pedra, fluem como lágrimas, que eu recebia na língua ressequida e, muitas vezes, enquanto as sorvia, tinha a impressão de que o granito também chora, por uma dor ignota, de que só Deus pode ter ciência; e ao passo que minhas lágrimas iam secando, absorvidas pela carne faminta, ele me ofertava as suas...
Não é essa linfa proveniente de um manancial. Tem origem nas terras silicosas mais próximas às muralhas de granito: a humidade é concentrada, não tem passagem nas pedras, é represada e filtrada e, por fim, sai pela primeira frincha que lhe dá passagem. Se deixar de chover, por alguns dias, não produzirá a fonte factícia nem mais uma gota de líquido. Era essa a minha ideia fixa, vendo a “Fonte das lágrimas”, como a baptizara, ir diminuindo dia a dia durante uma quinzena de canícula... Á noite acolhia-me a uma pequena gruta onde mal me podia conservar de pé. Fiz-me asceta, dominado por um poder estranho.
Pareceu-me que o organismo e o Espírito se aquietaram, saciados, enfraquecidos, mas convalescentes, em condições de restabelecimento.
Ficava, horas intérminas, do alvorecer à noite, sentado em uma laje, rememorando a existência desde o início, e, por vezes, julgava que o pensamento recuava séculos, numa evocação retrospectiva. Então, um estremecimento me sacudiu as carnes: tinha pavor de mim mesmo! Já não era mais o ser de outrora, quando pensava que era a vítima da injustiça social, dizendo no íntimo este pungente monólogo:
— Sempre me compadeci do sofrimento humano e só encontrei hostilidades, com raras excepções; nasci para ser bom e honesto e me tornaram um criminoso; humilhei-me ante os mais aviltantes insultos e só me revoltei quando vi que ia ser torturada a mais compassiva e nobre criatura que conheci — Sónia Peterhoff; suportei os vexames e as afrontas assacadas à minha dignidade, e só me exaltei para punir o ofensor do ídolo de minha adoração; procurei instruir-me, iluminar o Espírito com o farol da Ciência e tive de ocultar de todos o tesouro que possuo, como se fora usurpado a outrem; esforcei-me por ser digno da afeição do abade Francisco, e como é que, sem premeditação, querendo fugir ao abismo, neste me arrojei, inopinadamente?
Que génio do Mal se apoderou de mim no momento em que embebi no coração de André uma arma ferina?
Ai! senhor, até então eu assim pensava, convicto de que a perversidade humana concorrera para minha perdição; depois, porém, que o bondoso Invisível dissera que todos os meus sofrimentos eram produto de minhas indignidades perpetradas em existências tenebrosas, compreendi a integridade da Justiça Divina, achei suaves todas as dores que me haviam ferido e curvei-me perante Deus e a Humanidade... Nunca, até vir parar nesta geena, tinha tido sincero arrependimento por haver praticado um homicídio e só me flagelava o coração o remorso de ter feito uma vítima querida — Sónia, a mártir que me perdoara e morrera pronunciando o meu nome poluto; mas, desde que ouvi aquele doloroso gemido, como que partido das entranhas da Terra, houve uma completa evolução em minh´alma: arrependi-me de não ter sido mais espezinhado em casa dos Peterhoff: de não haver sofrido com mais resignação todas as amarguras, porque comecei a perceber que, em nossa vida, nos lances dramáticos e excruciantes que sucedem no seu decorrer, há o que quer que seja de indomável, de esmagador, de invencível, que constitui a punição do Alto, reconhecendo que é a Justiça de Deus que se manifesta com luminosidade, quando a engrenagem da Dor nos apanha pelas vestes rotas e, então, tritura, não os músculos e os ossos, mas o Espírito, a fim de que se depure, se transforme, progrida, torne-se imaculado e alvo, qual foco de neve...
A própria situação em que me achava obedecia a um plano deífico: via-me, pelos pedrouços, sem nenhum grilhão visível, mas sentia-me prisioneiro, eternamente, nestas muralhas graníticas...
Que força estranha aqui me acorrentava?
Porque não procurava a convivência dos homens? Para que fugira às leis sociais? Não seria preferível o cárcere, o vilipêndio, todos os tormentos, do que ter as vísceras devastadas por chamas incessantes?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:10 pm

Quando um princípio de revolta ia germinando em meu adito, cuidava ouvir, trazidas pelas auras, estas palavras:
“— Ainda não terminaste a reabilitação de muitos flagícios perpetrados na antiguidade, contra os imolados pela tua prepotência, Pedro!”
Uma vez, interroguei com voz trémula o Invisível:
—Foi, realmente, André Peterhoff uma das vítimas sacrificadas por minha perversidade, nos tempos idos?
—Sim. É mister esqueças o que ele te fez padecer, pois já o supliciaste barbaramente outrora!
—Tenho profunda compunção por haver delinquido, tirando-lhe a vida; arrependo-me por não ter sofrido com mais resignação as afrontas que me fez,
mas ainda me lembro do quanto padeceu a querida Sónia e sinto que ainda não perdoo de coração, que ainda não posso orar por ele com sinceridade...
Calou-se o ser imaterial. Senti-me abandonado e, nesse dia, minha tortura recrudesceu. A Fonte das Lágrimas, após alguns dias de estiada, secara por completo. Um descoroçoamento invencível me empolgou de todo. Deixei-me ficar onde estava, estirado num leito de lajes, e, como estava alvorecendo, por vezes encostava a língua às pedras para sugar algumas gotas de orvalho.
Bruscamente, tive um abalo nervoso e fui impelido a descer à praia. Sobre a areia que parecia pulverizada de prata, tão alva era, encontrei um grande caramujo, o mais belo que meus olhos já contemplaram. Parecia lavorado por egrégio escultor, níveo qual o alabastro, com alguns veios róseos, com incrustações de nácar, formando estrias e volutas graciosas. Um pensamento me absorveu por completo: como é que repugnante molusco, hórrido e sem um membro apreciável, pode aprender escultura, só comparável à dos grandes mestres? E elevei o olhar para o céu e exclamei:
— Deus, Artista supremo e inimitável, cuja sapiência admiro e exalço com alma fremente e ajoelhada, assim como não vos esqueceis dos mais obscuros e ínfimos seres, concedendo a todos um átomo da vossa inteligência inesgotável, lembrai-vos também de mim, deste infortunado Pedro Ivanovitch, e dai-me uma só fagulha do vosso amor, a fim de que, esculpido o meu Espírito pelo cinzel da Dor, possa ele ser digno de vós, tornar-se mais belo do que esta primorosa concha, que jamais meus olhos se fatigarão de contemplar!
Repentinamente, fui acometido de passageiro delíquio, pois desde a véspera não me alimentara... Começaram a torturar-me sede e fome indizíveis, com uma recrudescência espantosa. Com uma lasca pontiaguda de sílex consegui retirar da concha univalve e formosa o seu hediondo e repulsivo enclausurado, desejando ingeri-lo.
Pareceu-me ter retrocedido ao período terciário, estar transformado em troglodita dos tempos pré-históricos, quando todas as criaturas humanas, sem tecto, sem nutrição, saciavam os corpos descomunais triturando, crus, os moluscos e talvez os vermes...
Um desconforto indomável me dominou; não tive ânimo de consumar meu sacrifício, quando senti nos lábios o contacto frio e viscoso do hórrido animálculo, e fui atacado por uma ânsia convulsiva, supondo, por momentos, que fosse expelir pela boca todas as vísceras ardentes...
Estive assim, por algum tempo, em verdadeiro e indescritível flagelo; quando as vascas cederam, lavei cuidadosamente a maravilhosa obra-prima e sorvi algumas gotas d’água marinha.
A sede aumentou, tornou-se intensa e intolerável.
Comecei a rastejar pelas fendas do penedo em busca de asilo ou de qualquer nutrimento. Nesse dia deparei com a caverna que se tornou em habitação para mim.
Tornei-me, desde então, um homem primitivo. Tendo por moradia uma brenha, que se acha naquela mole, acolá, pouco distante, e que não tem dois metros de profundidade nem de altura, mas pode acomodar um homem melhor que as celas das antigas masmorras... as que, certamente, em prístinas eras, mandei construir para tormento dos semelhantes! Essa ideia me perseguia com insistência.
Em uma das cavidades existentes na gruta, contendo terra alagadiça — um alegrete em miniatura — medraram algum cogumelos, que devorei em poucos segundos.
A sede, porém, exacerbou-se sensivelmente.
Era um flagelo indizível a me devastar os órgãos internos. Estirei-me no solo saibroso que, certamente, talvez no período de transição, fosse coberto de águas marinhas, e pensei que houvesse soado, para mim, o extremo instante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:10 pm

Comecei a delirar novamente. Houve um momento em que me pareceu ver surgir, à entrada da caverna, um vulto feminino de roupagem alvinitente, e tive a intuição de ver a amada Sónia, baixada do céu onde se achava, para me cerrar as pálpebras para sempre...
Senti por ela a mesma veneração que sempre consagrei à Mãe do Nazareno.
Seria incapaz de tocar-lhe, sequer com os lábios.
Inaudita alegria — mesclada, entretanto, de incoercível angústia, devido à minha penosa situação — inundou minh´alma: podia, enfim, ter a meu lado a formosa e imaculada criatura que adorava desde a infância, sem ter que recear o knout de André, o ódio de Peterhoff! Era a felicidade suprema que o Omnipotente me reservara para lenir meus derradeiros instantes de agonia.. .
Podia, pois, morrer envolto na clâmide dessa ventura, que, por ser demasiada para o pobre pária que sou, nem ousara sonhá-la...
Não me banhavam a face macerada torrentes de lágrimas jubilosas, qual Jordão purificador, porque o organismo já não as produzia — consumido pela febre e parecendo arder em pira inextinguível, que ia aos poucos me crestando as carnes...
—És tu, enfim, querida Sónia? Vê quanto padeço! Roga a Deus que abrevie o meu martírio!
—Pobre e desventurado amigo! — ouvi, então, como se fora um cicio de brisa. Porque prolongas teu suplício, não perdoando aos adversários?
—Já não os abomino, Sónia; somente agora sinto pungir-me o remorso de haver ceifado a vida de André; mas, meu sofrimento é tão intenso que meus lábios e meu coração só lhes perdoariam sinceramente, se me dessem um copo d’água pura, não igual à que bebi hoje e mais me avivou os tormentos da sede...
Como é inútil para mim o Oceano, Sónia, de vez que, perto dele, não posso mitigar a tortura que padeço! Morro de sede junto dessa infinita massa d’água, que daria para saciar milhões de exércitos humanos! É o suplício de tântalo que me atormenta, Sónia!
Porque não fez o Criador — previdente em todas as maravilhas que elaborou — os mares com a linfa igual à dos rios, à dos regatos?
—Não é o teu corpo que está sequioso, Pedro; é a tua alma que se acha ávida do perdão divino: do perdão que aplacará a tua sede secular e vivificará a tua alma, tornando-a invencível! Esquece, pois, todos os sofrimentos originados pela crueldade dos nossos semelhantes, e a misericórdia celestial balsamizará todas as tuas dores físicas e psíquicas!
—Dá-me uma gota d’água, querida Sónia, e a tudo me submeterei, humildemente! Por Deus, eu te suplico, Sónia! Diz-me, porém, antes, se já estou ou não irremediavelmente perdido, se ainda não morri e não estou sendo atormentado nas Geenas, por todo o sempre, por uma coorte de Satanases!...
—Teu Espírito ainda está unido à matéria, desventurado Pedro! Hás de ainda ser feliz, imensamente feliz, pois o Criador não pune os precitos eternamente, como pensas!
Diz-me se perdoarás, no íntimo d`alma, a todos os que concorreram para que se cumprisse a Justiça Divina.
—Sim, se Ele me conceder umas gotas d’água que abrandem as chamas que me devastam as vísceras...
—Tu as negastes outrora, Pedro, às vítimas da tua prepotência; mas o Omnipotente, que é a suprema generosidade, vai aplacar tua sede... Promete, porém, perdoar a André e a todos os teus adversários, dos quais conseguirás libertar-te por toda a eternidade, se seguires os meus alvitres.
—Já não abomino a quem quer que seja, Sónia; sou um vencido, um miserável farrapo humano e tudo farei para merecer a misericórdia celestial.
—Está quase finda a tua expiação, meu pobre amigo: não desfaleças nos momentos decisivos! Abre a tua alma à luz do arrependimento e do perdão; reconcilia-te com os que te causaram fundos e cruéis sofrimentos, orando por todos os que te magoaram, e a bênção do Eterno descerá sobre tua fronte, como um halo tecido de raios estelares, cicatrizando as chagas feitas no teu sensível coração... Eu e tu, Pedro, praticámos outrora delitos hediondos; por isso, há séculos, para resgatá-los, temos padecido em comum, e separados, as mais cruciantes dores. Nossa afeição profunda e recíproca não teve origem nesta última existência, perdura em nosso Espírito há talvez um milénio e, por isso, quando sob o mesmo tecto, em condições bem diversas, nos reconhecemos, quanto te amei em segredo e como compreendia a pureza e intensidade do teu afecto, sentindo que ele era tanto mais veemente, quanto mais me esforçava por esmagá-lo no coração, ávido do teu amor!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:10 pm

Não mais lembremos, porém, o passado angustioso, e, sim, o presente:
prepara o teu Espírito para receber o perdão divino, o resgate de todas as tuas iniquidades... Tu te entregaste à Justiça do Sumo Árbitro do Universo e Ele quer a tua alma pura como a açucena, para nela fazer incidir um fulgor inextinguível, que é o apanágio e o troféu de conquista dos evoluídos...
—Obrigado, Sónia querida! Vieste trazer um raio de sol ao aljube em que padeço suplícios dantescos! Bendito sejas, piedoso arcanjo! Quanto me sinto venturoso por conseguir, enfim, pela primeira vez, poder confabular santamente contigo, sem constrangimentos, sem temer o azorrague dos teus parentes revoltados contra o mísero Pedro Ivanovitch!
Agora, teu pai é Deus e esse Pai não impedirá tua compaixão por mim...
Como o Eterno é bom e magnânimo, em haver permitido te aproximasses de mim nesta hora de inaudita amargura e recordasses a nossa imaculada afeição!
—Sim, Ele é a generosidade incomparável do Universo, mas, para conquistarmos a ventura que nossos espíritos anelam, há muito — uma indissolúvel e fraternal aliança — é mister os tenhamos acendrados pelas lágrimas, pela virtude, sem nódoa a mareá-los, a fim de que o galardão seja
adquirido por mérito e não por graça parcial e injusta...
—Obrigado por essas palavras, que me fazem aspirar à felicidade, a mim que me julgava, há muito, sofrendo perpetuamente as torturas do Averno... Vê, porém, quanto sofro ainda, minha adorada companheira de infância! Que coisa horrível a sede, minha Sónia!
—Bem o sei; mas é que já a infligiste a centenas de criaturas, meu amigo...
Vê como é recta e perfeita a Justiça Celeste: jamais fere os inocentes! Mas, adormece, Pedro: velarei por ti, suavizando os teus cilícios, até os derradeiros instantes desta existência. Já achei o repouso e tu o encontrarás também.
Perdoa-me ter-te recordado páginas sombrias do passado criminoso, para que pudesses compreender a inteireza das Leis Divinas. O Omnipotente vai mitigar tua dupla sede: a da alma e a do corpo!
Mais alguns dias de expiação e estarás livre, porque és o calceta do Senhor.
Já te eximiste da alçada dos códigos humanos. Bastas vezes, no decorrer de várias encarnações, quando eras déspota poderoso e vivias em palácios reais, esquecido da dor alheia, não sabias refrigerar, mas agravar a sede do nosso semelhante... No entanto, agora, és mais venturoso tendo por leito pedras, do que antigamente reclinado em coxins de púrpura, porque já te estás aproximando do Sempiterno... Em breve poderás procurar o convívio dos homens... que te não farão mais nenhum mal...
Estás quase liberto, Pedro. Dorme, agora. Repousa, meu irmão...”
Estaria delirando? Seria, realmente, a idolatrada Sónia que — à força de venerá-la nem ousara evocar-lhe o nome em dias de tribulações — baixando do Firmamento constelado, viera confortar-me, incutindo-me n´alma esperanças imperecíveis?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:10 pm

V
“Adormeci, após a visão consoladora... Quantas horas estive alheio à vida?
Não vos sei dizer.
Deixei de padecer: por algumas horas o Espírito despregou-se do seu ínfimo cárcere carnal e este, então, entrou em descanso; ficou em inércia tão absoluta, quase como a que empolga os mortos. Parecia-me ter esvaído para sempre, restando apenas a sensação de haverem pousado, sobre minha fronte gélida, duas mãos de pelúcia ou duas asas de arminho, sutilíssimas...
Quando despertei, ao entardecer, agitava a Natureza uma procela apavorante. O Oceano avolumara-se, arqueara o espinhaço qual pantera enraivecida e ameaçadora diante de contendor vigoroso; saíra do seu eterno calabouço e avançara até aos rochedos, como se sobre estes precipitassem exércitos líquidos, alucinados, bramidores...
Supus fosse assistir a uma guerra formidável, uma conflagração mundial dos elementos esparsos no Cosmos, movida pelo próprio Deus para que se aquilatasse qual a potência mais temível — a da água, móvel, crespa, atroadora, avassaladora; ou a da pedra, impassível, queda, rígida... Os vendavais, como Napoleão do Infinito, marechais supremos, entraram na batalha deslocando nuvens prenhes de chuva e electricidade, que se arremessavam umas às outras com o ruído clangoroso de metralhadoras titânicas! Soerguendo, a custo, a cabeça, pude enxergar o céu transformado em escombros, em abismos negros, como que desmantelado, derruído, onde nimbos sombrios vogavam vertiginosamente — caravelas desarvoradas pilotadas por audazes corsários, sobre as quais tripudiassem as serpentes de fogo dos coriscos, a divisa de suas flâmulas temerárias!
Pouco a pouco fui recobrando a noção da realidade; supus, entretanto, ter vivido um século naquela posição e naquela brenha; lembrei-me da prova tremenda por que estava passando; recordei a aparição que me abrandara as penas, e, quando olhei para a entrada da gruta, aclarada pelo momentâneo clarão de um relâmpago, deparei com o escultural caramujo que encontrara pela manhã, transbordante d’água fresca e hialina... Arrastei-me morosamente até ao local em que estava aquela preciosidade neptunina, sentindo um como dilaceramento interior ao menor esforço que fazia; tomei-a nas mãos febris com voracidade e sorvi o conteúdo de um só trago. Uma frescura balsâmica me desceu da garganta às entranhas, parecendo-me haver ficado repleto de orvalho. O coração e todas as vísceras se acalmaram como por encanto, cessando, por instantes, a tortura orgânica em que me achava até então, durante aquelas infinitas horas em que meu corpo, inerte e quase cadavérico, não perdeu de todo a vida, porque o Espírito ficou a rondá-lo, para que não entrasse em decomposição. Muitas vezes, porém, tive a vaga compreensão do que sucedera; julgava haver decorrido uma dezena de decénios, depois que deixara a convivência dos homens; supunha ter ouvido lancinantes gemidos, como se o penedo em que estava, subitamente vivificado, carpisse de um pesar inconsolável, ou talvez porque eu — o déspota amaldiçoado que, outrora, ceifara miríades de existências humanas! — lhe pesasse no dorso, qual Leviatã monstruoso, ciclópico; ou, então, talvez estivesse reproduzindo o lamento de todas as minhas vítimas, para que eu empreendesse nitidamente o sofrimento que já infligira ao próximo... Revezavam-se, pois, meus padecimentos físicos e morais: quando uns minoravam, outros se agravavam...
Acordei de todo, e, espreitando a Natureza convulsionada, tive a impressão de que o mundo estava sendo esfacelado, derrocado, esmagado por potência insuperável, que não poderia ser outra senão a do Altíssimo, chegando, assim, o derradeiro instante para todos os seres da Criação; e no entanto eu, anatematizado e expulso por toda a Humanidade, tinha de aguardar por milénios a sentença divina, naquela furna, solitário e desditoso...
Bruscamente me lembrei que, pela manhã, formulara solene promessa: se o céu me enviasse um gole d’água, perdoaria a todos os que me haviam molestado — era a permuta dalgumas gotas de linfa cristalina e frígida por outras de luz — as que se desprendem da alma, quando nos alçamos a Deus para perdoar aos nossos algozes; para que Ele também tenha misericórdia de nós e considere remidos nossos crimes...
Recordei-me de tudo, de todos os meus martírios morais e físicos; de todos os meus dias de inquietação passados no rochedo que ali vedes, e durante os quais em meu Espírito se passou o que quer que fosse de enigmático e inovador, que operou em meu ser profunda e indelével metamorfose, tornando-me outro ser... Em meu imo se implantara infinita ternura por todos os entes da Criação minh´alma iluminara-se por um clarão interior, desarraigara-se de todos os sentimentos ultrizes e de ódio, e, inesperadamente, julguei que a caverna se enchera de luminosidade luarina, irradiação estelar que partia do meu próprio coração fendido pela dor...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:11 pm

Sustive a concha com ambas as mãos, ergui-a acima da fronte, qual sacerdote na hora de consagrar a eucaristia, e, genuflexo, comecei a orar ao Soberano do Universo um lídimo solilóquio do meu Espírito com o que paira acima da Terra, das nuvens, no Éter onde fulgem os sóis e as nebulosas; e então, com veemência e humildade, implorei perdão para todos os meus delitos cometidos em transactas existências. Quando recordei André, as lágrimas que há muito me não golfavam dos olhos, afluíram ininterruptamente, deslizando-me pelas faces esmaecidas ... E tive uma visão longínqua: a de Jesus no Horto, sorvendo a taça de amaríssimas provas... Estaria esgotada a minha taça? Teria de libar mais fel?
“— Perdoa-me, André! — murmurei com tristeza e sinceridade, ressoando lugubremente a voz naquele âmbito de pedras.
Compadece-te do pobre Pedro Ivahoviteh, teu desgraçado companheiro de infância e colégio, que te arrancou a vida num assomo de insânia e tem sofrido muito, muito, resgatando em anos de árduas expiações, que parecem séculos, o seu bárbaro crime...
Eu também te perdoo, do âmago do meu ser, as dores e injustiças que tu e teu pai me causastes, a fim de que a bênção divina baixe sobre nossas almas, iluminando-as eternamente, e assim possamos, como irmãos queridos, iniciar existências profícuas e ditosas, viver com a consciência ilibada — a maior das venturas da Terra e do Céu!
Enquanto assim monologava com voz débil, mas com intensa contrição, deixei de ouvir o clamor das ondas, o ribombar dos trovões; enquanto a Natureza estava em peleja, em conflito com os furacões, passando-se nos ares fenómenos meteorológicos impressionantes, meu Espírito começou a entrar em bonança, sentiu uma irradiação estelar envolvê-lo docemente, e, quando cessei de suplicar ao Altíssimo, ouvi a mesma voz carinhosa que me norteia sempre nos momentos de tribulação:
“— Estás liberto, Pedro Ivanovith!
Amanhã poderás deixar este ergástulo de sofrimentos !
Acabas de consumar o ato mais belo e dignificador aos olhos de Deus — perdoar aos ofensores, aos que já te mortificaram, aos que já te arrancaram lágrimas em torrentes fecundas e remissoras!
Desprenderam-se de teus pulsos algemas incoercíveis que te acorrentavam à Dor, que te imantavam a este planeta tenebroso... Enquanto o ódio se lhe enjaula n´alma, o homem se vincula ao mundo dos prantos, afasta-se da Fonte do Bem — que é Deus — condena-se a viver nas trevas, a sofrer duras expiações, embrenha-se nas profundidades do Ilimitado, como aerólito que, desprendido duma estrela, começa a cair vertiginosamente, eternamente, no Oceano de Éter, do qual só Deus pode sondar a imensurável vastidão...
No momento em que perdoa, o Espírito susta a sua queda para o caos e começa a ascender à Umbela azul, onde se acham as constelações e o Criador; mergulha na luz, rompe as cadeias que o retinham na Terra, começa a ser norteado para o céu e para as venturas que não fenecem nunca, porque são amalgamadas com o ouro indestrutível da virtude, que tem por corolário a Perfeição.
Estás apto a deixar este planeta ou iniciar uma existência fértil em abnegações, em exemplos edificantes, na qual possas ser um semeador do Bem, suster no torvelinho do erro e das iniquidades os réprobos qual foste e norteando-os para o Omnisciente. Consumou-se, hoje, uma das tuas mais dolorosas e profícuas expiações. Estás redimido e com o Espírito acrisolado pelo sofrimento. Acabas de obter esplêndido triunfo espiritual, que te dará supremacia sobre todos os teus adversários, cuja animosidade não mais poderá atingir-te.
Estás liberto, Pedro Ivanovitch...
Repousa, agora, meu filho; teu leito, que é de pedra, vai transformar-se em arminho...”
Calou-se a blandiciosa voz amiga.
Por vezes enchi d’água pluvial a formosa e nívea concha, que, por momentos, tinha fulgurações de diamantes focalizados de sol, sorvendo-a com sofreguidão. Coloquei-a, depois, à entrada da caverna, que estava constantemente iluminada.
De onde lhe viria esse clarão permanente? Dos coriscos, que serpenteavam na amplidão? Do abade Francisco, que eu não via, mas cujo corpo astral devia ter revérberos de astro?
“Adormeci, talvez, por mais de um dia. A debilidade em que me achava era quase invencível e, por isso, quando despertei de novo, não tinha noção exacta do que se passara, nem forças para me erguer do lugar em que me achava estirado. Que sucedera ultimamente comigo? Sonhara? Confabulara com criaturas imateriais? Estaria livre, qual recordava ter ouvido?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:11 pm

Porque me sentia quase feliz, alma serenada, como se lhe houvessem retirado de cima uma avalanche de proporções descomunais que a esmagasse de muitos séculos?
Dormira apenas, ou estivera em letargia?
Que é que se dissolvera em meu ser?
Com esforço considerável comecei a inteirar-me da presente situação; Com esforço considerável comecei a inteirar-me da presente situação; achava-me quase exausto de forças físicas e mentais, depois daquele prolongado prélio em que lutara contra as ondas, contra a fome e a sede, que, há muito, me devoravam as entranhas; tinha sido tremendo o embate moral travado em meu íntimo e do qual tive a impressão de sair vencedor; não sabia, ao certo, se despertara num abismo, se deixará de existir fisicamente, se meu Espírito estava apenas atrelado a um cadáver de que não poderia separar-se, se o tentasse, ou se fora arrebatado ao Espaço... Parecia-me haver sido distanciado centenas de milhas, de toda a Humanidade, que, se a buscasse, ainda me julgaria um celerado; se voltasse ao seu meio, talvez me repelisse de suas habitações confortáveis e não se apiedasse de mim, como não se apiada dos cães famintos...
Eu, porém, não detestava a mais ninguém; sentia infinito enternecimento por todos os infelizes que padecem os rigores do frio e a falta do pão; meu desejo era levantar-me, tomar um cajado e sair de lar em lar, esmolando para repartir com os orfãozinhos, com os enfermos, com os que não têm tecto nem vestes para cobrir os corpos esqueléticos... Desejava abandonar os rochedos, mas ainda a eles me achava preso como por uma força estranha à minha vontade.
Subitamente, como não sucedia desde alguns dias, em que me pareceu ter estado com o pensamento fragmentado, carcomido, incinerado, devido ao suplício que me fora aplicado, lembrei-me da pequenina Sónia e da dedicada esposa... Já, certamente, estavam cientes do meu suicídio; vi-as, de roupagens negras, soluçantes, muito ao longe, qual visão fugitiva, mas nítida... Era mister renunciar à única, à derradeira ventura que poderia confortar minh´alma chagada — o regresso ao lar, que eu enlutara, para não o ver enlameado por Peterhoff... Não me sentia, porém, desgraçado; algo de dúlcido e inebriante invadiu-me o ser, como se um bálsamo divino se houvesse derramado em todas as minhas profundas úlceras; senti que jamais seria atingido pelo rancor leonino de Peterhoff, que desaparecera para sempre no extremo do horizonte, como o Devoir, que eu vira mergulhar-se nas sombras nocturnas; cessara por completo o gargalhar mefistofélico de André, cuja lembrança, então, me comovia e fazia com que meus olhos se aljofrassem de pranto. Perdoara-lhe?
Sim. E ele? Só Deus o sabe... O futuro me dirá.
Haveis de imaginar, certamente, senhor, que eu tenha sido vítima de contínua alucinação, devido ao excesso de padecimentos orgânicos e mentais por que tenho passado. No entanto, afirmo que, por mais intensos que tenham sido eles, todas as minhas faculdades anímicas estão ilesas.
Eu não estava em delírio quando ouvi, em liça renhida contra as vagas, aquelas assuadas estridentes que quase me ensurdeciam, parecendo o sibilar dos vendavais através das frinchas de muitas janelas de um castelo abandonado... Há quinze anos conheço o Oceano, estudo-o, compreendo-o e comparo-o, nas suas revoltas impotentes, ao nosso coração quando ferido por acerbas dores; mas nunca lhe ouvi rumor igual àquele que me zurzia o cérebro e fazia com que ficassem, erectos no crânio incendido, os cabelos húmidos de salsugem... Quando, depois, escutei aquela voz a me nortear para a direita, reconheci a de um ser amigo. Sobre os penhascos, torturado física e moralmente, sem ânimo nem forças para rastejar até onde vivem os homens, continuei a ouvir o mesmo gargalhar macabro, e, às vezes — não me julgueis um louco! — sentia-me arrastado pelas arestas das pedreiras, por uma potência estranha e incoercível, ficando com as carnes contundidas, gotejando sangue.
Outras vezes, quando adormecido por momentos, parecia-me estar sendo puxado sobre o saibro, era despertado rudemente aos repelões, como outrora em casa dos Peterhoff, e, no mesmo instante, compreendia que se havia estabelecido a meu favor uma intervenção celestial; que eram retiradas de meus cabelos mãos crispadas de ódio, e que meu adversário invisível era repelido por benévolo Protector, certamente o abade, que eu evocava em horas aflitivas. Cessavam então as assuadas, mas ouvia rugidos de cólera, que se afastavam rapidamente, até que se restabelecia o silêncio por completo. Desde que perdoara a André, senti-me calmo, liberto do seu influxo maléfico: ele me perdoara também, certamente, instruído pelos mesmos generosos mentores espirituais, que norteiam todas as almas para o Bem e para a virtude.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:11 pm

Estou convicto de que foi em obediência a uma determinação do Alto que fui arrojado a esta rocha, a esta verdadeira Tarpeia{48} de dor e de lágrimas, a fim de ressarcir inomináveis crimes. Não a aborreço, agora, porém, como nos momentos em que me vi só, aqui, esfaimado, sedento, angustiado... Bendigo os sofrimentos aqui experimentados.
Já não sou o mesmo ser de outrora, que execrava os que me mortificavam:
houve uma transição radical no meu Ego, após os martírios por que hei passado. Depois de ter querido, inúmeras vezes, atentar contra a própria vida, com a ideia fixa de me atirar ao mar, encontrei, finalmente, a paz que ambicionava; guiado por génios tutelares reconciliei-me com o Juiz Supremo, que me votara à dor para resgate de crimes hediondos.
Estou convencido de que, se me houvesse suicidado, meu sofrimento ter-se-ia exacerbado prodigiosamente; foi por meio de preces, de lágrimas, de padecimentos corporais e anímicos inconcebíveis, que consegui obter a misericórdia divina...
Era a luz do perdão celestial que me faltava para que, outrora, fosse venturoso; luz bendita que hoje me ilumina a alma, ainda vestida de carnes maceradas, quase chagadas...
— Estou livre! — eis a frase que meu Espírito repete, e sinto ser uma grande e consoladora verdade! Ainda permaneço, porém, nestes sítios, porque os amo, depois de muito os ter detestado...
Hoje, vibra em mim um hino incessante — um Hosana! — a Deus, à Suma Justiça. Uma compaixão imensurável por todos os que sofrem! A única amargura que há em meu coração é esta: ter de renunciar à felicidade de contemplar a minha pequenina Sónia; saber que jamais poderei oscular-lhe a bela fronte imaculada!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:12 pm

VI
Passaram-se alguns dias após o que vos acabo de relatar.
A Fonte das Lágrimas começou a manar água suficiente para me mitigar a sede; as rochas, em grande parte submersas nas ondas durante um intenso preamar, assim que houve vazante, me forneceram ostras, com as quais me alimentei alguns dias.
Senti-me um pouco reanimado e, com insistência, pensei abandonar o meu refúgio rupestre. Uma ideia, porém, me preocupava constantemente:
como me acolheria a sociedade — da qual ando banido há quase dois meses — quando a buscasse novamente? Acreditaria, ou não, houvesse caído de um navio? Iriam recomeçar meus temores? Uma tarde, tendo-me arrastado para longe da furna, avistei-vos próximo desta rocha em que nos achamos; depois, vós vos sentastes numa laje e vos quedastes em profunda meditação.
Orastes, talvez, em plena Natureza, porque houve um momento em que julguei divisar uma alma, um corpo diáfano e nebuloso, em lugar deste que ora contemplo o material — formado de ossos e de músculos...
Como já me habituei a confabular com os imateriais, não me assustei, antes procurei abeirar-me de vós. Tive a inabalável certeza de que sois um Espírito nobre, porque sabeis meditar, isto é, discretear com o céu, com as ondas, com as estrelas, com o Invisível, tal como aprendi a fazê-lo nestes dias inolvidáveis que aqui se escoaram. Vivo a sondar a alma humana, senhor. O homem, para ser conhecido, não deve estar em sociedade, onde aparenta alegria, dor, sentimentos altruísticos, dignidade, carácter, que, às vezes, não possui realmente.
Insulado, porém, sem saber que é observado, a máscara da face mostra-se tal qual é, reflectindo-lhe os sentimentos, que são a expressão da realidade:
unicamente, então, seu rosto exprime júbilo ou tristeza, que exista, de facto, no seu íntimo.
O egoísta, o usurário, não fixa ponto algum — fica com os olhos semicerrados, abrindo-os apenas para não tropeçar pelos caminhos; não fita o céu senão para verificar se chove ou faz sol; tem a alma concentrada nos bolsos, nas gavetas ou nos Bancos, onde deposita seus haveres; gesticulam quando calculem quanto lhe rendem os capitais; seu Espírito fica aferrolhado na carne, até que esta apodreça e, então, a Morte os leva perante o tribunal divino...
O homicida, o celerado, o larápio, o traidor, quando andam, voltam-se constantemente para a retaguarda e para os lados; não levantam o olhar do solo, temendo erguê-lo e defrontar alguma de suas vítimas; quando a sós, as fisionomias tornam-se hediondas; os pensamentos sombrios, que abrem vincos na fronte e se entrechocam no cérebro, como nuvens plenas de relâmpagos, fazem aprumar seus cabelos no crânio ardente; com as mãos crispadas como garras, revolvem a barba ou as comas hirsutas; não sabem meditar, mas cogitar em crimes praticados ou por praticar, de cenho contraído quais víboras no Inverno; os punhos estão sempre cerrados, ameaçadores; às vezes estremecem, estatelam os olhos como se estivessem prestes a cair num vórtice, ou como se ouvissem tropel ou gemidos de espectros vingadores...
O homem frívolo, sempre conjecturando deleites mundanos e festivais ruidosos, sorri alvarmente e logo o rosto fica inexpressivo, porque a alma borboleteia pelos salões ou pelos antros em que passa todas as noites; não tem, nunca, o Espírito integral, mas fragmentado, esfacelado — um pedaço em cada lugar de prazer... Olvida Deus e a Natureza.
Somente o justo, o observador profundo, o que cumpre austeramente seus deveres, o que tem a consciência recta e sã, possui atitude calma, quase estática, quando se acha isolado. Esquece-se de si mesmo, recorda os entes amados que lhe povoam a alma serena, pensa na Humanidade e deseja beneficiá-la; lembra-se de Deus, ama o Universo, quer cheio de trevas, quer inundado de sóis; seu olhar, como o de um condor equilibrado no espaço, divaga pela amplidão sidérea, tentando perscrutar os arcanos da Criação...
Conheci, pois, vossos sentimentos, antes de vos falar; não me iludi a vosso respeito, sequer um instante: sabia, antecipadamente, ter encontrado um Espírito nobre, incapaz de uma baixeza, admirador dos prodígios da Criação...
Antes de adquirir esta paz interior, só possuía uma ideia: esperar a vinda de uma criatura humana a estas paragens, e, à vista de quem tem casa, agasalhos, pão à farta, pôr termo à minha existência e ao meu suplício, deixando-me rolar desta rocha Tarpeia ao mar; no entanto, quando deparei convosco, já vencido por um poder divino, submisso às determinações do Alto, senti estranha emoção, as lágrimas se me derivaram dos olhos e escutei a voz dilecta dizer-me com insistência:
“— Confessa-lhe todo o teu passado!
Ele se compadecerá de ti.”
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:12 pm

Fui impelido, assim que trocámos as primeiras palavras, a confidenciar-vos todos os episódios da minha atribulada Via-crucis, todos os martírios por que hei passado; e agora que o fiz, apelo para os vossos sentimentos generosos:
meu aspecto é o de um desenterrado, de um lémure horripilante; mas não desconheceis a minha dramática existência e, por isso, sabeis que sou um malsinado, mas não um bandido — incapaz de vos ofender sequer com um vocábulo insolente, mesmo sabendo que, de posse de todos os meus segredos, fôsseis denunciar-me aos tribunais humanos...
Não tenho, porventura, padecido mais — sujeito ao aresto divino — do que Edmundo Dantes na fortaleza de If, ou alguém aprisionado nos subterrâneos infectos do castelo de Santo Ângelo?
Dizei-me: inspiro-vos ainda pavor e repulsa, como quando me vistes?
Aguardo vossa sentença, como se me achasse perante austero magistrado e fosse — como realmente sou — um réu confesso, mas contrito...”
—Quero abraçar-te longamente — respondi-lhe — antes de te proporcionar meus conselhos e meu auxílio!
—Não, meu senhor; devo estar hediondo e sórdido: minhas vestes manchariam as vossas!
—Enganas-te, Pierre; estás belo como jamais vi um ser humano — tu te transformaste a meus olhos, depois da tua dolorosa confissão, tal qual Jesus no Tabor, orando ao Pai celestial, apareceu aos atónitos e maravilhados discípulos...
Não é teu corpo esquálido e enfermo que eu desejo envolver num amplexo, e sim estreitar, de encontro à minha, a tua alma redimida, acendrada nas dores mais pungentes, vestida de luz apenas interceptada pelo ceno corporal!
O infeliz caiu prosternado a meus pés, sem ousar estender-me os braços, tentando oscular-me as mãos, o que não consenti. Inclinando-me para aquele misérrimo ser humano, consumido pelas vigílias e dissabores, beijei-lhe a fronte esmaecida e fria de mármore, afastando-lhe os cabelos hirsutos que, vistos ao lusco-fusco vespertino, me pareceram alvos como flocos de espuma...
Chorava o infeliz...
Quando o abracei, meus amigos, estranha emoção fez fremir-me a alma, pressentindo que, a partir daquele instante, forjara-se um elo misterioso ligando o meu destino ao de Pierre... Como? Porquê? Assim que o vi tranquilo, disse-lhe:
—Esta noite não dormirás mais sobre calhaus, pois terás abrigo em meu lar.
—Como caminhar até lá, senhor? Tornei-me quase um réptil, e tão debilitado estou, que, com pouco mais de trinta anos, já pareço um octogenário...
—Vim de charrete, que deixei pouco além do local em que nos achamos; irás, pois, com facilidade.
—Obrigado, senhor. Vossa família está prevenida? Ficará apavorada ao verme...—Vivo isolado, Pierre. Meus filhos — uma menina e um adolescente —
estão internados em colégios franceses. Sou viúvo. Os criados, realmente, ficarão amedrontados ao ver-te, mas te receberão fidalgamente, porque assim o quero...
—Obrigado. Seja Deus tão generoso convosco quanto tendes sido comigo!
Antes, porém, de partirmos, desejo ouvir vosso conselho amigo...
—Escuta, Pierre, o que tens a fazer: Peterhoff não mais te perseguirá, porque a justiça humana actual não estatui leis contra os mortos e tu já estás morto para ele; não deves, agora, tentar rever tua família, nem regressar à França; mas poderás ser ainda, como até aqui, bom pai e esposo dedicado. Depois de recobrares a saúde, eu te auxiliarei a partires para a América, onde trabalharás activamente e, sem que tua esposa jamais suspeite de sua procedência, enviar-lhe-ás, como amigo anónimo de Pierre, o fruto do teu labor.—Agradeço-vos a ideia que me alvitrais. Já havia imaginado partir para a América, onde está o sepulcro de Sónia, e lá mourejar para os entes queridos que se acham na França; mas, além de não possuir recursos pecuniários, sinto-me tão enfraquecido e enfermo que julgo a vida prestes a se me extinguir, agora que suponho resgatados muitos crimes prístinos.
—Enganas-te, Pierre, pois que, se Deus te conservou a existência após tantos sofrimentos corporais e psíquicos, é para viveres ainda longamente!
—Não, vós é que vos enganais. Ordenaram-me confessasse todas as tristes peripécias de minha existência, para que a dolorosa história do desventurado Pedro Ivanovitch fosse conhecida e servisse de salutar exemplo aos que delinquem... Sónia não me disse que os homens não mais me prosseguiriam, e que estou liberto, talvez para sempre? É a do corpo ou da alma, a liberdade que conquistei à custa de lágrimas de sangue?
—É para que se inicie uma outra era, talvez florida de róseas alegrias, em tua existência...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:12 pm

—Quem me fará venturoso, senhor, longe dos entes idolatrados, que infelicitei e me prendem o coração à vossa pátria?
—Queres viver aqui, administrando o que possuo, a fim de que possas mandar vir tua família?
—Oh! Seria a felicidade para mim, semelhante situação, mas isso é irrealizável... Sabeis porque, senhor ? Não tenho o direito de fruir tão grande ventura, eu, que tenho perturbado corações, semeando dissabores e lágrimas!
A esta hora, Catarina está coberta de luto e, se soubesse que ainda existo, enlouqueceria ou, em sua mente, medraria uma suspeita deprimente a meu respeito, fazendo-a duvidar da minha probidade, ela que, até hoje, me julga merecedor da sua pura afeição... Não posso, pois, aparecer-lhe mais, nem lhe escrever, porque, se o fizesse, seria forçado a declarar a verdade, a relatar-lhe meus erros e meu crime e, então, vendo ela o nosso nome para sempre desdourado, sentir-se-ia desditosa; seu afecto por mim talvez fenecesse e eu não deveria consentir que nossa adorada filhinha — anjo de candura e beleza! — me osculasse a mão poluta de homicida e trânsfuga... Seria demasiado suplício, para meu coração, assistir à derrocada da minha única felicidade terrena, na impotência de sustê-la...
Para evitar essa deplorável situação, prefiro o desterro, os maiores tormentos morais, a saudade esmagadora que me punge desde que saí do Havre! Renuncio, pois, ao derradeiro raio de ventura que a vossa magnanimidade fez baixar à minh´alma... Estou resolvido a partir para a América.—És severo em demasia para contigo, Pierre. Se tua esposa conhecesse, como eu, a tua vida, talvez sua afeição aumentasse... Não te lembres mais do passado e encara com estoicismo a tua actual posição. O essencial é recobrares a saúde profundamente abalada por penosíssimos reveses, que deixaram vestígios patentes no teu organismo.
—Dizei-me, senhor, se estais convencido de que eu vos falei a verdade.. .—Sim, tua narração é verdadeira, pois quem descreve os sentimentos qual o fizeste, deve possuir sinceridade e coração generoso; o bandido ou o hipócrita não sabem descrevê-los como o justo: tu me confessaste lealmente todos os transes da tua amargurada existência. Acolho-te em meu lar, sem receio de o fazer, e, assim fiques curado física e moralmente, partirás para onde te aprouver, e, com labor e economia, poderás adquirir um pecúlio para a encantadora Sónia, que, quando dele tiver ciência, julgará receber uma dádiva do céu. Irei levar-lhe, Pierre, e dar-te-ei notícias detalhadas da tua família...
— Quanto sois magnânimo! Quando fui impelido a narrar-vos minha vida, sabia, de antemão, que me não repeliríeis, pois foi Ele, o bom abade Francisco, que me não abandona nunca, quem me aconselhou fazê-lo... Os mortos lêem melhor nossos pensamentos do que os vivos, porque, para eles, as ideias transparecem no cérebro como se este fora de cristal, e aqueles de luz; outras vezes, nossa alma exterioriza-se da matéria e aparece-lhes desnudada, transparente. Então, todas as nossas máculas e virtudes lhes são patenteadas como, à noite, podemos ver no Espaço, a olhos nus, nimbos escuros e estrelas de ouro líquido que nele emergem, parecendo que o céu tem poros e transuda luz...
—És uma alma excelsa de filósofo e de visionário Pierre. Agradeço-te, e ao santo abade, o lisonjeiro conceito que de mim fazeis, através dos vossos espíritos translúcidos. Acompanha-me agora, meu amigo. Arrima-te assim a meu braço direito.
Desejo que, uma vez repousado, antes de partires cuides do meu jardim, pois já foste cultor de flores...
—Infelizmente, senhor... Porque não consentis oscule as vossas mãos?
—Porque a gratidão, Pierre, é também um ósculo, mais lúcido — não o recebemos nas mãos, mas na alma...
Já me osculaste expressando o teu reconhecimento pelo pouco que fiz por ti, dando-me a conhecer a odisseia da tua existência: meu Espírito já recebeu, pois, o casto beijo da gratidão de Pierre! Não careces beijar a destra que se estende para salvar um náufrago da vida, de quem não espera outra recompensa senão um olhar de Deus através de uma estrela, uma bênção radiosa que desce à fronte como um raio de sol de Primavera sobre uma flor...
Partamos, amigo. Estás liberto, já te disseram desvelados Protectores. O Rochedo das Lágrimas — qual chamarei, doravante, a esta pétrea região — vai ficar deserto agora...
—Virei aqui meditar e orar, e — quem sabe? — oscular estas lajes das quais, às vezes, supus ouvir a voz, os gemidos, crendo então, como os hilozoístas, que todas as coisas da Natureza são dotadas de alma e vida, para agradecer ao Omnipotente todas as redentoras torturas que aqui passei... Parece-me que Jesus ama o Gólgota e eu também quero imitá-lo...
Aqui, nestas agrestes penedias, quanta luz tem sido joeirada em meu Espírito! Aquela furna de onde me viste sair, rojando-me como bactéria colossal vinda de um sepulcro, já tem para mim o aspecto de um palácio de fadas, porque nela é que me veio ver a idolatrada Sónia, venturosa e vestida de luar; foi nela que recebi o perdão do Criador e os conselhos dos dedicados Invisíveis ... Seria bom que lá exalasse o derradeiro suspiro...
—Não pensemos em coisas lúgubres...
Depois da tua redenção, deves julgar-te ditoso e trabalhar na conquista de um tesouro para um anjo terrestre: — o que está chorando por ti, no Havre!
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 4 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:12 pm

VIII
Era noite cerrada quando chegámos a casa.
A presença de Pierre causou grande pavor aos criados. Ordenei a um deles que lhe desse um fato{49} e o instalasse num aposento onde houvesse todo o necessário à sua higiene e toilette. Quando um serviçal lhe foi levar a refeição nocturna, tão diverso o achou do que vira pouco antes, que, assombrado, custou a reconhecer aquele que julgara um espectro. Disse-me tê-lo encontrado chorando, o olhar erguido para uma nesga do céu, que aparecia através dos vitrais, qual uma tela de Rembrandt pincelada depois de haverem descoberto a mais bela das tintas, a que não existe na Terra — a tinta de luz, para pintar estrelas! Prantearia de saudade da gruta em que tanto sofrerá, vendo ao longe o Rochedo das Lágrimas? Ou estaria formulando uma prece?
Deus o sabe...
No dia seguinte ao de sua chegada, apareceu-me pela manhã, tão diverso do que era na véspera, que custei acreditar fosse o mesmo ser encontrado nas rochas. Um fato modesto, de lã Ultramar, era o seu trajo.
Escanhoado, com os cabelos aparados, tendo a palidez de um crucifixo de marfim, a fisionomia perdera o aspecto patibular que lhe surpreendera ao avistá-lo pela primeira vez. Ressumbrava tanta calma, tanta bondade e nobreza de sentimentos, que impressionara agradavelmente a todos quantos o viram.
Anoiteceu lagarta e alvoreceu borboleta. Pareceu-me possuir algo de translúcido, como o alabastro; traços delicados de escultura bizantina, que não revelavam um mujique, um homem afeito a trabalhos rudes, mas um idealista, um asceta habituado à contemplação e à prece... Não me surpreendeu, então, que a Sónia Peterhoff houvesse inspirado uma afeição inabalável...
Por alguns dias o deixei repousar e, depois, quando o vi em melhores condições morais, entreguei-lhe o jardim para que o cultivasse, ou, antes, para que tivesse uma distracção.
Havia em seu rosto uma expressão de melancolia permanente e uma palidez doentia, que me fizeram recear por sua vida. Interroguei-o, respondeu-me que se sentia apenas debilitado e nada mais.
A tarde ninguém o via. Saía vagarosamente e só regressava em plena
escuridão, quando o firmamento cintilava, como em apoteose, ou as sombras já o velavam por completo, envolvendo-o em crepe.
Uma vez o esperei e disse-lhe:
—Não te fatigues, Pierre... O relento do Inverno, que começa, pode alterar-te a saúde.
—Oh! senhor, habituei-me não ao relento, mas às intempéries, em mais de meio cento de dias de suplícios ...
—Esquece o passado... Faze por equilibrar a saúde!
—Não vos oculto o meu mais íntimo pensamento, meu mais secreto padecer: tenho-me ausentado do vosso lar generoso para voltar ao meu Calvário, para rememorar as amarguras que lá passei, e para agradecer ao Criador a paz de consciência que me concedeu desde então... Ouço o rumorejo das vagas e parece-me que é o coração da Terra, desfeito em lágrimas, que geme e desprende contínuos e eternos queixumes; vejo o Sol mergulhar no Ocaso; contemplo as estrelas e procuro adivinhar em qual delas Sónia se acolheu, como um colibri em ninho dourado e rutilante...
Passo algumas horas deslembrado da vida e, muitas vezes, parece-me que o rochedo, onde tanto sofri, se cobre de neblina, que, subitamente, se transforma em legião de seres incorpóreos, subtis, que me transmitem seus pensamentos; dentre todos destaco o vulto do abade, que se tornou de tessitura de Vésper, vestido de bruma radiosa. Ele palestra comigo, ajoelhado a seus pés, para o ouvir. Às vezes, confundo-o com o Cristo transfigurado sobre o Hermon...
Oh! quem me dera saber traduzir no imperfeito idioma humano tudo quanto tenho escutado nessas horas de êxtase! Quer acompanhar-me um dia, senhor? Quem sabe se vereis os meus amigos e compreendereis a sua linguagem sublime, vós, que sois uma alma nobilíssima? É mister, porém, desprender, exteriorizar o Espírito do seu envoltório material, e então vê-los-eis dentre a cerração nocturna...
—Sonhas, Pierre, quando vais ao rochedo...
—Benditos sonhos os meus, senhor! Deixo de sofrer e sou transportado ao céu...
—Um dia irei contigo...
Quando vier a Primavera e as noites não forem tão frígidas como as de agora, acompanhar-te-ei até ao Rochedo das Lágrimas...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Jan 12, 2023 8:13 pm

Passaram-se quatro meses que Pierre estava comigo.
Em torno dele surgiram diversas lendas: chamavam-lhe náufrago de um navio fantástico; desconfiavam fosse algum foragido de um paquete, quando levado a um presídio; supunham-no comparsa de algum corsário que, em momento de cólera, ordenara à maruja que o atirasse ao mar; diziam-no algum terrível criminoso que, depois de morto, tivesse novamente voltado ao corpo, que se tornava, dia a dia, mais pálido, quase marfíneo. Espreitavam-no em seus passeios vespertinos e afirmavam que, quando voltava ao rochedo, era de novo transformado em lémure. Muitos homens rudes dele se afastavam, persignando-se, julgando-o possuidor de algum influxo nefasto.
Só eu sabia a realidade e não no via através de ficções, pois conhecia todos os seus mais escusos sentimentos, e ainda não consentira que partisse para a América, como era seu intento, avisado por secreto augúrio.
Uma tarde, em que o vi sair em demanda do lugar favorito, não fora possível segui-lo, pois me retinham em casa deveres sociais a cumprir: haviam chegado de França alguns compatrícios com os quais eu confabulava amistosamente.
Pela primeira vez, esqueci-me de interrogar os criados se Pierre voltara, como nos outros dias, do passeio vespertino.
Ao erguer-me do leito, na manhã seguinte, soube que ele não regressara ainda...
— Certamente — conjecturei — não se lembrou de tornar a casa, tomado de transporte, como já sucedeu quando habitava os rochedos...
Passou a noite em cogitações transcendentes, fitando o céu estrelado, supondo ver o abade, e Sónia de vestes vaporosas, a seu lado...
Preparei-me para sair, e, em companhia de meus visitantes, partimos cedo, em demanda do local onde pensava encontrar Pierre. O véu das brumas já se havia feito em farrapos sobre as penedias e sobre o mar, que aparecia sereno, cintilante, quase sem ondulações, qual se fora um só imenso bloco de esmeralda, fundido aos raios solares, tornando-se líquido com reflexos de ouro...
Toda a Natureza era um — laus perene — de absoluta placidez, entoando ao Criador, como o que desprende a alma do justo em momentos de sincera comunhão com as regiões etéreas, e com a própria Divindade...
Chegámos ao lugar desejado e, por algum tempo, fizemos infrutíferas pesquisas...
— Quem sabe se Pierre foi acometido de um acesso de loucura e se atirou ao mar? — imaginei com o coração opresso.
Repentinamente, lembrei-me da caverna em que vi pela vez primeira o infeliz marujo do Devoir, que tanta impressão me causara, pois o julguei um facínora, um duende ou um desventurado, tal o aspecto desagradável que apresentava.
Dirigindo-me para a gruta, minha vista foi atraída para um ponto róseo, à sua entrada, como a me impelir àquele sítio um farol de nácar. Ao aproximar-me do limiar da caverna, verifiquei que lá fora plantada uma formosa roseira, na qual desabrocharam duas incomparáveis flores — duas somente, como almas gémeas — nascidas num só hastil esmeraldino. No solo, junto ao vegetal,
uma concha de dimensões anormais, de beleza mágica, parecendo feita de espuma rósea, petrificada.
Ajoelhei-me quase, para retirá-la de sobre a terra orvalhada e, depois, sondando o interior sombrio da lapa, deparou-se-me o cadáver de Pierre, não estirado no solo, mas sentado em uma laje, tombado para trás, com os cabelos prateados completamente revoltos, uma expressão de ventura estampada no rosto lívido, boca descerrada como se tivesse morrido conversando com algum ser invisível, braços pendentes ao longo do corpo, as extremidades dos dedos tocando a nevada areia que cobria o chão...
Sucumbira, certo, à ruptura de um aneurisma, de acordo com a ciência médica; deixara de sofrer, rodeado por amigos dilectos, confabulando talvez com o abade Francisco, ou Sónia Peterhoff... Eis o que penso até hoje. Tinha a placidez dos mártires cristãos gravada em suas nobres feições.
Uma intensa emoção me dominou a alma: estava morto o Pierre! Morto? Não, livre para sempre do ódio de Peterhoff; apto a cindir o Espaço e poder, ao lado de entidades queridas e puras, iniciar missões redentoras, tornar em realidade seus místicos sonhos do Rochedo.
Para que, pois, lamentar a liberdade de quem tanto padecera? Deus, quando faz volver a si um de seus filhos, como Pai extremoso, tem sempre onde o acolher. Muitas vezes, pois, choramos a partida de um ente amado, lastimando a ventura que encontrara alfim{50}, com o término de uma existência fértil em dores e amarguras.
Resignei-me com os desígnios divinos que decretaram tirar do meu humilde domicílio o pobre Pierre para, talvez, lhe dar ingresso em mundo feliz, onde fossem balsamizadas as suas mágoas acerbas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:02 am

Com lágrimas nos olhos, inclinei-me para o corpo inanimado e toquei, com as minhas, as suas mãos geladas. Naquele instante, lembrei-me de quanto desejara ele oscular minha destra, no dia em que o acolhi no meu lar... Quase senti remorsos por não lhe haver consentido que o fizesse... Fui eu, então, que lhe osculei a fronte marmórea.
—Eis aqui o único túmulo em que deveria ser encerrado este náufrago da vida — disse apontando o local em que nos achávamos.
—Não — respondeu um dos amigos, profundamente católico — é mais conveniente que este infeliz repouse em terra sagrada...
—Amigo — expliquei com amargura — sagrada é toda a Terra, porque a fez o Supremo Artista, o Santo dos Santos, o Divino Forjador de astros e planetas!
Não considerais inqualificável ousadia do homem — imperfeito e pecador — querer tornar melhor um quadrilátero de pó — um cemitério —- santificar o que foi feito por Deus? Quem lhe outorgou tal direito? Insana vaidade dos sacerdotes!
O Omnipotente elaborou este orbe, fê-lo sulcado de torrentes d’água, como o nosso organismo por artérias vitalizantes, e nem o Ural, o Danúbio, o Ganges, o Nilo, o colossal Amazonas tornam-no bendito: é mister que o homem estulto recolha um pouco de linfa e, com o hissope, borrife um pedaço de solo com algumas gotas, para que fique abençoado e sagrado! E, qual a vantagem que advém à alma com o ser o seu invólucro putrefacto inumado aqui ou além?
A terra abençoada pelos sacerdotes deixará de consumir as carnes que se desfazem em vermes? A alma que tiver o seu derradeiro estojo no fundo do Oceano ou em selva secular, sofrerá mais ou menos por isso, do que a daquele que a tiver num santuário humano, em necrópole abençoada por centenas de clérigos? Qual o influxo que exerce no Espírito a poeira em que se dilui um cadáver, se tem de ser julgado unicamente pelo Bem ou pelo Mal que praticou?
—Tendes razão, amigo — ponderou um dos compatriotas —, essas usanças seculares radicaram de tal sorte em nossa alma, que é mister intensa claridade penetre no seu subsolo, para melhor compreendermos a justiça divina e a estultícia humana...
Obrigado pela orientação que me destes! Vou pensar de modo diverso do que o fazia até há poucos momentos, a respeito do que serviu de tema à nossa amistosa palestra.
Há sempre na Terra alguns espíritos mais esclarecidos do que outros. Não repilamos, pois, as luzes que eles nos transmitem.
Concordo, agora, convosco. Obtenhamos permissão das autoridades locais para que este desventurado — que disseste amar tanto estes sítios, onde exalou o último suspiro — possa ser sepultado nesta caverna que ele embelezou de flores...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:02 am

IX
Pierre não fora inumado no lugar em que o encontramos morto, pois não obtivemos a necessária aquiescência das autoridades britânicas.
Repousam seus despojos perecíveis em humilde necrópole, que visito sempre, levando igualmente rosas para o sepulcro de minha adorada esposa.
Sobre este desditoso, até hoje não cessaram os comentários: pescadores e homens rústicos afirmam que ninguém mais poderá abeirar-se da gruta em que morreu, sem que se ouçam gemidos ou se depare uma cabeça de cabelos argênteos e eriçados, surgindo à entrada da lapa para impedir o ingresso de algum curioso...
Eu, porém, que nenhum receio tenho do marujo, conhecedor de toda a tragédia dolorosa de sua existência, convicto de que não baixará de paramos esplendecentes senão para o cumprimento de meritória missão, poucos dias após o passamento, por um crepúsculo formoso, lembrei-me de fazer uma prece por ele, no Rochedo das Lágrimas.
Aproximei-me, sem temor, da anfractuosidade em que fora encontrado sem vida o pobre Pierre. A roseira que ele plantara, sem ter sido regada durante uns dias, estava quase estiolada. Destaca-se das primeiras sombras, que inundavam a gruta, a concha nevirosada na qual Pierre desalterara a sede, ao mesmo tempo que imergiu a alma num oceano de paz...
Tomei-a nas mãos, sentindo os olhos marejados de lágrimas.
— Eis a suprema lembrança do desditoso Pierre! — exclamei.
Estive indeciso se a levaria comigo, ou a deixaria onde a encontrara.
A vacilação durou pouco: levei-a, depois de ter feito uma férvida rogativa por Pedro Ivanovitch.
Já era noite cerrada quando regressei. Acesa a lâmpada do gabinete de estudo, examinava a preciosidade que trouxera do rochedo, quando descobri
em suas volutas, um papel com diversas dobras. Retirei-o do lindo escrínio e pude ler, no silêncio de uma noite estrelada, em que o mar, muito calmo, quase não sussurrava, estes pensamentos que submeto à vossa apreciação:
MEDITAÇÕES - (Uma alma dentro de uma concha)

I
“Ouve-se o quérulo rumorejar das vagas, observa-se o seu eterno fluxo, as suas cóleras em hora de procela, sua majestosa serenidade quando reflecte o céu estrelado, onde flutuam arquipélagos de sóis; mas, ninguém suspeita que o Oceano é o coração da Terra que se liquefez e ainda pulsa, geme, soluça, sofre de uma dor incógnita, por um Bem perdido ou inatingido, qual o nosso, antes de ser devorado pelos vermes...”

II
“Assim como o vegetal germinado em terra sáfara se estiolaria à falta de zelo incessante, do rocio e da chuva, não despido das urzes que lhe medrassem ao pé e dos seixos que lhe atirassem os vagabundos; assim também o homem, para em seu imo vicejarem nobres sentimentos, carece do orvalho da lágrima, libertado dos acúleos do vício e das imperfeições, para que sua alma desabroche em flores, as únicas que Deus colhe nos páramos celestiais: — as virtudes e as preces!”

III
“O egoísta, em casa confortável onde a lareira nunca se apaga, só se lembra dos deleites que lhe proporciona o ouro, não cogita do sofrimento alheio, não o compreende, não fita nunca o céu, tem o seu ideal chumbado à terra, qual réptil que vive a rojar-se pelo solo...
Existe unicamente para si e para o mundo, de que parece fazer parte integrante, qual bloco de pedra que se não ergue voluntariamente do solo, por toda a consumação dos séculos...
Esquece a Humanidade e o Criador.”
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:02 am

IV
“O miserável pária, sem lar nem agasalho, fustigado pela fome e pelas invernias, deita-se nas lajes, às vezes sobre agudas arestas, e, como sobre sua fronte não há um tecto, o seu olhar incide no firmamento, contempla os astros embuçados em névoas, ou vestidos de luz inextinguível, seu pensamento vai além de todos eles, deslembra-se do que sofre na Terra para, como um raio de sol, cindir o Espaço, onde deseja aninhar-se: seu ideal concentra-se em Deus e no Infinito! Aspira, então, a usurpar o ouro das estrelas para edificar palácios, onde possa albergar os que não têm tecto, nem luz, nem pão...”

V
“O primeiro é verme — entranha-se na terra; o segundo, condor — alcandora-se no píncaro das serranias que tocam as nuvens. Um é salgueiro — pende os ramos para o pó; o outro, hera — nasce nas ruínas e busca o Sol, volve-se para o Céu!”

VI
“Quando o homem é ditoso, circundado de glórias, de flores, de conforto, não perquire os magnos problemas da existência, torna-se indiferente ao futuro que o aguarda Além-túmulo; absorvido pelas frivolidades mundanas, só se detém para olhar o que se passa ao redor de si mesmo, como se o seu raio visual atingisse unicamente poucos milímetros de âmbito; desconhece, às vezes, os próprios sentimentos; ignora se possui ou não a partícula imortal — a alma; restringe, enfim, todos os seus anelos aos gozos do Presente.
É um fantasma ao inverso dos outros — de carne e osso, sem alma, que vagueia pelos salões, cassinos, teatros, dominado por uma única aspiração — fruir todos os prazeres terrenos!”

VII
“Quando desventurado, porém, ou isolado das vaidades sociais, volve o olhar para o Infinito e os pensamentos para o seu íntimo, perscruta os próprios sentimentos e investiga as constelações; observa que, no mundo em que vive, tudo é falaz e perecível, e só Deus, a alma e seus atributos são eternos e indestrutíveis. Sonda então o pélago do porvir de que faz parte inalienável o seu Espírito imortal, deduz, por infalível matemática, que os enigmas transcendentes têm maior mérito que os ruídos dos festivais de duração efémera... É que a sua vista deixou de ser circunscrita a limitado horizonte, como a dos batráquios imersos nos pauis; não fita mais o limo em que palmilha, para se tornar penetrante como a da águia, e, então, devassa o próprio Espaço, onde se conglomera a poeira lúcida das nebulosas e dos sóis, aos quais poderá alçar-se um dia!”

VIII
“Há de, então, a Humanidade toda viver insociável, insulada? Não. Deve, na ventura, não esquecer o semelhante, nem o Criador; dedicar, por dia, uma hora à meditação e às preces, isto é, destinar alguns momentos para dialogar com Deus, alar-se ao Infinito...”

IX
“Quando a Terra foi elaborada, não teve outro intuito o Arquitecto Supremo, senão construir um outro degrau da escada ascensional da evolução humana, constituída de mundos, que começa nas trevas e termina nos astros...
Para a alma galgar cada um deles, os séculos desaparecem na voragem dos Evos: é que, não é o pé que se move para atingir um degrau, mas o Espírito que marcha lentamente, de orbe em orbe, e em cada um se detém para se acrisolar no cadinho da Dor, para adquirir conhecimentos úteis; decai e ergue-se muitas vezes à conquista da Perfeição — esta se não granjeia num momento, mas em milénios de lutas e de lágrimas...

X
“O ódio não atinge unicamente o execrado — volta, de ricochete, e fere o ser que o concebe: tortura mais a si mesmo que ao adversário.
É como se alguém ateasse fogo ao próprio coração, para que as chamas se propagassem ao de outrem; sofre mais o incendiário do que a vítima.
O ódio é o Inquisidor da alma que o alimenta; é uma procela de fogo dentro de um coração!”
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:03 am

XI
“O perdão é o olvido de injúrias, de gravames, de dores: é a bonança da própria alma generosa em que ele medra. Quem o recebe sente-se tranquilo; quem o dá sente-se no Paraíso. É um lume suave de santelmo, uma radiosidade estelar que substitui as chamas infernais, uma tempestade de orvalho que alonga as furnas abertas n´alma pelo alvião do ódio: é a bênção divina que refrigera o coração e fá-lo desabrochar em rosas de santas e imaculadas afeições, que se alam ao Céu e podem ser colhidas pelo próprio Sumo Floricultor do Universo...”

XII
“Quando amamos alguém que se torna o ídolo de nossos pensamentos, julgamos que o coração voa do seu ninho de ossos e pousa noutro seio; mas, quando nos apartamos do ser amado, volta ele ao seu primitivo albergue, porém, não é mais o que fora — forma-se de duas metades, uma com que nasceu, outra que permutou...
Eis a saudade: — é a partilha de uma Dor igual, a fusão de dois pedaços diferentes de corações fendidos, em luto...”

XIII
“A felicidade faz o homem esquecer que o aguarda um longo Futuro e só cuida do Presente, que se esvai como um sonho, com a celeridade de um meteoro. A desventura, ao contrário, faz pensar no porvir, prolonga cada segundo, transformando-o em dia, e este, em século...”

XIV
“Uma é alvorada — dura momentos; outra, é noite — dura horas. É à noite, porém, que no céu se acendem formosas estrelas, ocultas a nossos olhos, enquanto esplendia a luz solar...”

XV
“Assim a alegria, dourando a alma, eclipsa os astros mais radiosos, que a constelam nos instantes eternos da desventura: a resignação, a esperança numa existência venturosa extra túmulo, o desejo de se librar no Infinito, o desprendimento do que é material e efémero. Aproxima-se, desse modo, do Factor de todas as coisas, o refúgio e consolador dos desgraçados — Deus!”

XVI
“O benefício que a dor opera em nosso íntimo só é comparável ao do lapidário que afeiçoa o mármore — tira as arestas da alma, modela, dá-lhe os contornos belos e puros, transforma-a em escultura lúcida, digna de figurar na galeria divina, num certame do Artista Supremo!”

XVII
“Sofrer é sanear a alma neste Jordão purificador, de linfa mais alva que o diamante — a lágrima!”

XVIII
“Quando fitamos o Firmamento, à noite, parece-nos que ele está chorando luz... Quem sabe se as mais brilhantes estrelas não se formaram de todas as lágrimas de Dor do Universo, recolhidas em taças de ouro, transportadas ao Espaço, e, por isso, são elas as gotas do infortúnio, que acendram e iluminam as almas, como archotes eternos, norteando-as para o céu?”

XIX
“Onde existe a ventura? — no amor, na opulência, na juventude? Não. Somente na alma em que está Deus. Ele, somente, faz medrar a felicidade perene e sem jaça, e, quem não o compreende, quem não o conhece, quem não o tem na consciência tranquila e impoluta, não será ditoso na Terra nem no Ilimitado...”
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:03 am

XX
“Sei que pouco me resta viver — o coração está prestes a estourar no peito, a diluir-se em lágrimas de sangue... Abençoada morte, que é vida, pois, restituindo meu corpo exausto à Natureza, liberta-me o Espírito, restituindo-o ao céu!”

XXI
“Porque há benfeitores que não permitem lhes osculemos a mão generosa que estende aos desventurados com um óbolo precioso? É que imitam o Benfeitor Supremo que nos dá o orvalho, a luz, as flores, os frutos, o pão, as vestes, e paira tão alto como as estrelas, que não podem ser atingidas por um beijo, mas por um olhar ou uma prece... É a prece, pois, o ósculo da gratidão...”
*
* *
Aqui terminam as páginas de Pierre, que a morte interrompeu.
A concha primorosa que encerra, como pérolas, os frutos da sua meditação, conservo-a como o faria a valiosa relíquia. Ei-la, meu amigo. Muitas vezes a levo aos ouvidos, e, então, ouço algo qual o rumor de um coração pulsando sempre, oculto em seus meandros.
Pierre deixou um fragmento d´alma dentro deste maravilhoso caracol de neve e nácar: compreendo-a, amigo — sabe ela dialogar com a minha, algumas vezes!

FIM DO LIVRO III
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Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama - Página 4 Empty Re: Do Calvário ao Infinito - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:03 am

Livro IV - Procela e bonança

I

Não foi outorgada aos Invisíveis, por enquanto, permissão ampla de erguer o sendal que esconde à vista dos seres materializados o esplendor e a penumbra da vida do Além, senão no que concerne ao acrisolamento da alma humana.
No entanto, para elucidar algumas equações anímicas — até há pouco insolúveis — permitiu o Criador do Universo que, do Alto, dilúvios de luz jorrassem sobre este orbe. Então, muitas verdades transcendentes, que constituíam sigilo nas eras remotas, se tornaram conhecidas e patentes.
Não deveis, pois, estranhar que eu — que tanto me preocupei na última etapa terrena com o Além, possuindo já a rútila certeza de que o Espírito, após a transição impropriamente chamada morte, prossegue a sua trajectória, não somente nas estâncias planetárias, como nas siderais, através do Imensurável — reate a trama da narrativa do desditoso eslavo sepulto no solo da ilha de J..., continuando, desse modo, a sua surpreendente e trágica história, do ponto em que se achava estacionada, fazendo minhas as suas expressões, que me foram transmitidas por ele, após a minha desencarnação.
Leitores, um dia, talvez breve, conhecereis o mundo espiritual em que vivemos e laboramos; onde se acham os intangíveis amigos da Humanidade, e, então, vereis que aqui, onde nos encontramos, não há urbs{51} como as vossas, não há países e populações limitadas e circunscritas, às vezes pelas águas, pelas florestas, ou pelas serranias; mas abrangemos com a vista psíquica todo o orbe terráqueo, todo este planeta que baila veloz e eternamente em tomo de Apolo — qual falena enfeitiçada e atraída pelas chamas de lâmpada gigantesca — e, para nós, todo ele constitui um único viveiro de Espíritos, alguns encasulados na carne, outros libertos da matéria — os quais já não podeis mais ver, mas que, no entanto, adicionados às populações de todos os países geográficos que conheceis, as ultrapassam muitas vezes.
Os que não têm mais os músculos, por libré, livres ao vosso lado, como se fossem a vossa sombra, ou cindindo o Espaço — os que já possuem predicados psíquicos adquiridos em sucessivas encarnações, férteis em árduas pugnas — não ignoram o que se passa a todo o instante em vossos lares: episódios dramáticos, íntimos, dolorosos, que, às vezes, vós mesmos desconheceis em todas as suas minúcias, em toda a sua plenitude...
As muralhas, a caliça, a distância, são óbices à vossa percepção visual; nós, porém, os desencarnados, enxergamos através dos sólidos, transpomos as maiores longitudes com a celeridade de um meteoro, e, por isso, o que vos é vedado saber, o que vos parece despovoado, para nós é visível e repleto de miríades de seres animados ...
Não vos admireis, pois, que, tendo me interessado vivamente pelo drama da vida de Pierre, haja, auxiliado por ele e seus Mentores, reconstituído o que se passou em seu lar, após o desprendimento da sua alma, que teve por majestoso cenáculo o Rochedo das Lágrimas:
Transportemo-nos em pensamento retrospectivo a uma cidade francesa, à beira-mar, grande empório comercial do Antigo Continente, com elevada população laboriosa.
Não divagarei pela formosa urbs, aninhada perto das vagas de Calais e das torrentes do Sena, porque o que nos atrai não é uma aglomeração de casas, um conjunto de palácios e de jardins, mas aqueles que os habitam, ou antes, o que jaz oculto no escrínio carnal, a crisálida humana — a Alma!
É por causa desse átomo de Deus, dessa partícula do Infinito — misto de lume e de trevas nos que iniciam romagens planetárias — que aqui descem os agentes siderais desejosos de norteá-la aos páramos estrelados, de lhe ministrar ensinamentos que, fazendo-a desvencilhar-se da caligem que a ensombra, a transformem em luz, ab etemum{52}, e, assim, se torne apta aos grandes surtos através do Firmamento constelado, como, na Terra, um audaz condor, alcandorado nos píncaros da cordilheira, sonha mergulhar as asas no Espaço e jamais pousar no mesmo lugar de onde partira, onde teve o seu ninho rupestre.
Desçamos a vista a um modesto ménage{53}: uma saleta, uma alcova e outro compartimento para diversos misteres, dependências de uma habitação aprazível, pertencente a um polaco e sua família, que não é numerosa, pois consta ao todo de quatro membros.
Entra-se para a saleta por uma porta lateral, por uma pequena escada assente em estreita nesga da terra, onde há recipientes com diversas plantas floridas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:04 am

A casa é propriedade de um filho da desditosa Polónia, o qual cedeu, por módico aluguel, os três compartimentos já mencionados a uma jovem viúva francesa, costureira hábil que reside em companhia de uma pequenita de cinco anos primaveris, que prende a atenção de quem a vê pela meiguice e beleza arcangélica que possui, e está de acordo com a sua alma lirial, exilada, talvez, de um mundo ideal, do qual já foi banida a imperfeição e com o qual os poetas e os artistas sonham para produzir suas obras-primas.
Ali não há conforto, mas há higiene; não há júbilo, mas harmonia. Quem penetra naquele recinto tem a impressão de transpor um santuário, pois os pensamentos puros, emanados de seres impolutos, criam um ambiente que penetra a alma do visitante, como um suave perfume de cíclame{54}, e lhe dá paz, ideias de benevolência, inspira-lhe afeições imaculadas.
Penetremos, neste momento (o que faço por uma faculdade anímica retrospectiva, pois, então, ainda não tinha sido desmaterializado), como aves invisíveis, naquele sacrário humano: a mãe, que deve ter pouco mais de cinco lustros, está rigorosamente trajada de luto. Tem a fronte descoberta, muito alva e bela, como a das esculturas gregas; seus cabelos são dourados, num adorável penteado em que não há artifício, deixando alguns anéis, rebeldes à prisão que lhes dá sua possuidora, emoldurar-lhe o rosto alabastrino, com leves tons de púrpura; a estatura é mediana, bem proporcionada, de contornos venusinos, talvez um pouco descarnados, devido ao trabalho incessante e exaustivo a que se entrega, para auferir meios de subsistência para si e para a adorada filhinha.
É bela, mas de formosura casta, de Madona de Murilo, que infunde êxtase e muda veneração. A seu lado, brincando com um desconjuntado polichinelo, acha-se graciosa criança que apenas ultrapassa quatro róseos janeiros. É loura como sua mãe; possui, porém, o encanto seráfico dos seres pequeninos, que são um símile dos anjos fantasiados pelos mais egrégios artistas deste planeta. Tem as faces de rosa, cabelos áureos com laivos castanhos, em caracóis flexíveis, que se põem em gracioso movimento ao mais insignificante meneio da linda cabeça que engrinaldam.
Não cessam de se fitar os dois pulcros entes que se albergam sob o mesmo tecto; como estrelas engastadas no mesmo firmamento azul, transmitem uma à outra seus raios de luz, porque seus corações estão sempre sedentos de carícia e de aproximação.
Compreende-se, ao vê-las, que são dois seres profundamente ligados por elos afectivos, partes integrantes um do outro: a criança é o complemento, o desdobramento da jovem senhora, cuja alma se fragmentou, ou antes, fez desabrochar uma outra alma em flor.
Conversam, no momento em que penetramos na modesta saleta.
Ouçamo-las. É a criança quem fala:
—Já fez um ano que papai morreu?
—Não, filhinha; mas pouco falta.
Intensa melancolia velou-lhe o semblante ao proferir aquelas palavras.
—Morreu no mar, não foi?
— Sim...
A menina abandonou o boneco e foi postar-se diante da mãe carinhosa.
Fixou-a, com insistência, e murmurou, como se despertasse bruscamente de prolongado sono e desejasse inteirar-se da realidade que pressente dolorosa:
—Queria que me dissesses tudo, como foi que o papai morreu. Tenho tanta saudade dele, mãezinha!
—É justa a saudade do teu meigo coraçãozinho, Sónia; mas, não quero revelar-te o que só deves saber futuramente, para não amargar tua infância.
Deixa as lágrimas só para mim, querida filha! Estás na idade de folgar e eu não te desejo ver triste... Queres um retalinho para fazer outro facto para o polichinelo?
—Sim, quero aprender a costurar, para poder auxiliar a mãezinha.
A senhora teve os olhos mareados de lágrimas.
Suspendeu o trabalho por momentos, e, com os cotovelos apoiados no rebordo da mesa, onde se achava a máquina de costura, apoiou a fronte nas lindas mãos e, alheando-se ao que a circundava, começou a rememorar o passado não distante.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:04 am

Viu-se, na infância, privada dos pais, que quase não conhecera; depois, transportada à casa de uns velhos tios que a adoravam, recordou o tempo de colégio, a adolescência, em que se via requestada, admirada por todos, completando, afinal, a sua educação, quase primorosa, graças aos esforços e sacrifícios dos protectores.
Estremeceu ao lembrar-se do aparecimento de um merencório jovem, Pierre Doufour, muito insinuante, em companhia de seu pai adoptivo, um bom marujo britânico; recordou o noivado venturoso, sem sombra de desgostos, sem nenhum obstáculo à realização do seu primeiro sonho da juventude; depois, viu-se esposa, sempre à espera do regresso do consorte estremecido, aumentando gradativamente, com os receios da ausência e uma intensa saudade, o amor conjugal; viu-se mãe de adorável entezinho que, por escolha de Pierre, recebeu o belo nome de Sónia.
Repentinamente, o céu da sua bonançosa existência começou a encastelar-se de nimbos, pressagiando borrascas violentas: morreu, quase subitamente, a meiga velhinha que a criara e, poucos meses após, o rude, mas bondoso companheiro, foi-lhe no encalço, para o Além, porque, certo, suas almas eram inseparáveis, só achavam ventura reunidos, quer na Terra, quer na amplidão cerúlea. Desde então, começou a temer algo pelo esposo ... Porquê ? É que o pressentimento é um radiograma transmitido, ao Presente, das regiões misteriosas do Porvir...
A penúltima vez que o viu, não parecia o mesmo ser: visível tristeza se lhe afivelara ao semblante, qual máscara de alabastro; não sorria nem mesmo recebendo as carícias da filhinha, cada vez mais bela e vivaz. Sempre engolfado em preocupações constantes, abstracto, acabrunhado. Interrogou-o e a resposta foi:
—Não te aflijas, Ketty, pois meu regresso, agora, não me pode causar alegria, como antigamente, visto não ter encontrado mais, com vida, os adorados velhinhos que se foram para sempre, deixando-nos saudosos e inconsoláveis. .. Além disso, sinto-me um pouco adoentado.
—Porque não pedes uma licença ao comandante para que possas, com repouso e tratamento conveniente, cuidar da tua saúde?
—Não devo agora interromper meus labores, pois nos falta o concurso do bondoso tio Guilherme...
Vou fazer-te uma sincera confissão: a vida de marujo é a única que me convém! Apraz isolar-me da Humanidade em pleno Oceano, e, se pudesse viajar contigo e a nossa querida Sónia — meus dois únicos tesouros no mundo — seria infinitamente venturoso! Em terra não me sinto contente...
Parece-me que já estou aquático, Catarina!
Ela não quis insistir; observava, porém, que Pierre sempre amável e solícito, quando se achava em casa, estava continuamente imerso em cismas.
Na véspera da derradeira viagem, viu-o tomar nos braços a querida Sónia, oscular-lhe a face e os cabelos e, depois de a repor no soalho, debruçar-se à mesa e soluçar longamente...
Porquê? Pressentia a morte naqueles instantes? De que algo anormal lhe sucedera, não lhe restava a menor dúvida.
Vira-o acabrunhado, de retomo das duas últimas viagens, mas não tanto como da última vez. Então, começou a suspeitar que algum mistério tenebroso toldava a existência daquele homem, que parecia tão honrado quanto bondoso...
Ele afirmara sempre que era francês, mas não dissera nunca onde nascera, nem onde residia a sua família. Uma única vez aludira à perda dos pais, quando muito novo, e que fora criado em casa estranha, onde muito sofrerá.
Tinha, por isso, grande comiseração por todas as criancinhas órfãs, e seria capaz de se despojar do derradeiro soldo para socorrer um pequenito de luto, que lhe estendesse a mão mirrada...
Era um excelente homem, de elevados sentimentos e de cultura não comum para um marujo, mas, que existia algo de secreto em sua vida, não poderia deixar de coligir a bela Catarina. Uma vez, disse-lhe abruptamente:
—Amaste alguém antes de mim, Pierre?
—Não me interrogues, Catarina — murmurou, com os olhos repletos de lágrimas —, sobre o passado doloroso! Gozemos nossa felicidade presente e deixa-me olvidar o que já está consumado, e cuja recordação pungente é um suplício para mim!
Desde essa vez não o arguiu mais...
Ele era em extremo afável. Escrevia-lhe com frequência longas missivas em que lhe relatava belas descrições marítimas, a impressão do que via, a saudade que sentia longe dos que amava, fazendo-a acompanhá-lo, com a alma e o pensamento, através dos mares desconhecidos, para, assim, melhor prendê-la ao seu coração nostálgico e afectuoso. Às vezes, concebia projectos de economia, para poder passar folgadamente alguns meses no Havre, ao lado da filha e da consorte.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:04 am

Foi, porém, ao retornar de uma das viagens às plagas americanas, que ele se mostrou incomunicável, silencioso, devorado por um desgosto incoercível, que a ela também causara amarguras...
Na véspera da última partida, pressentiu-o entrar no quarto onde Sónia já se achava adormecida.
Espreitou-o de longe, cautelosamente.
Viu que se ajoelhou ante o pequenino e alvo leito da filhinha, osculou-lhe os cabelos como temeroso de beijá-la nas faces para não a despertar; depois, juntou as mãos em súplica ardente, sacudido por contínuos soluços... Seria uma despedida, ou algum vaticínio mortificante que o agoniava?
Quis inteirar-se da verdade, mas faltou-lhe o ânimo preciso para o inquirir...
Pierre era impenetrável e ela não queria magoá-lo com perguntas desagradáveis. Quem saberia expressar, ao certo, o que se passava em seu íntimo?
Talvez temesse ela se apoderar da realidade, ficar de posse do segredo do esposo bem-amado; segredo que pressentia, adivinhava real, mas do qual receava compartilhar...
Afastou-se, lacrimosa e cauta, para outro compartimento, até que o marido foi à sua procura, já acalmado da crise que tivera.
Ambos estavam profundamente pálidos, e, tendo tido, pela última vez, ocasião de trocar ideias, de transfundir suas almas amigas em mútuas confidências, não aproveitaram o ensejo que, in fine, o destino lhes concedera naquela existência, recalcando assim, no íntimo, os sentimentos que estuavam, desejavam patentear, mas que jamais os lábios chegaram a traduzir...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 13, 2023 11:04 am

II
Que acerbo pesar a mortificou ao vê-lo partir — para todo o sempre, na viagem da qual jamais regressaria — triste, cabisbaixo, com os cabelos prematuramente encanecidos! Nunca sentira por ele uma afeição tão forte e, pouco antes de lhe dar o último adeus, sugerira disporem de quanto possuíam, para que ela e Sónia o acompanhassem...
—Isso é um absurdo, minha querida! — disse-lhe em extremo emocionado.
Não te lembras do futuro? Se tal fizéssemos, quando voltássemos estaríamos reduzidos à miséria! Implora a Deus por mim e tem fé na Providência, que hei-de voltar, e resolvido a obter outra colocação, em terra...
—Pois não disseste que não podes mais viver senão sulcando os mares?
—Já mudei de pensar. Por ti e pela adorada Sónia farei todos os sacrifícios, sem constrangimento...
Depois partiu, sem voltar o rosto, para não vê-la abraçada à filhinha, compreendendo que lhe faltara o ânimo para o fazer, dominado por invencível amargura. Ela abafava os soluços com um lenço húmido de lágrimas. Não lhe saía da mente a visão da véspera: o marido prosternado diante do leito de Sónia, osculando-lhe os cabelos esparsos na almofada, para não despertá-la... Quis dizer-lhe repetidas vezes:
—Parece uma despedida eterna, meu Pierre!
Os soluços, porém, impediram-na de pronunciar aquelas palavras e a sua inquietação tornou-se obsidente, desde que o Devoir zarpara do Havre, pressentindo que jamais o veria... Nem ao menos lhe restava o consolo da companhia dos devotados velhinhos que a criaram...
Nunca sentiu tanto a falta dos seus desvelos. Chorou longamente, foi prosternar-se diante de uma efígie da Imaculada Mãe do Nazareno, suplicando-lhe se apiedasse dela e dos entes que amava, fazendo com que Pierre regressasse ao lar.
Decorreram alguns dias. Ele lhe escreveu de Brest — onde demorara um dia, antes de aproar à Inglaterra, itinerário que seguia sempre, para zarpar depois para o Novo Mundo — animando-a a esperá-lo, dizendo achar-se melhor... o que, podemos asseverar agora, não era a expressão da verdade.
Ela ficou um tanto tranquila e confiante no futuro, mas, decorridos alguns dias, doloroso pressentimento começou novamente a afligi-la. A alma tem augúrios que não iludem nunca.
Uma noite, teve um sonho que a entristeceu e acabrunhou: pareceu-lhe, em momento de perfeita lucidez, ver Pierre caído ao mar, debatendo-se com as ondas, bracejando desesperadamente. Despertou soltando um grito de pavor, sem saber o que fora feito do náufrago...
Não recebeu mais notícias do esposo, que no entanto prometera escrever-lhe de Liverpool. Aguardava o carteiro com indizível ansiedade e, vendo escoar o tempo sem que lhe fosse entregue a esperada missiva, ficava em desalento, não podendo mais conter lágrimas de inquietação.
A pequenina Sónia interrogou-a, imensamente inquieta:
—Porque choras tanto, mãezinha?
Sem responder à cariciosa arguição, tomava-a ao colo e osculava-lhe a fronte angelical.
Ai! esse martírio ignoto, que se passa em diversas regiões do globo terráqueo, em lares onde o infortúnio se aloja, é, às vezes, mais emocionante que as grandes tragédias que têm abalado, no transcurso dos evos, as colectividades... Esperar alguém, em dias sucessivos, longos como séculos, por notícias de um ser idolatrado, aquém ou além-mar, sem as obter; noites de vigília e pranto que ninguém vê, e, ao dealbar, erguer-se do leito onde se não repousa, onde visões terríveis, recordações e pensamentos desanimadores assaltaram um cérebro ardente, e, depois de uma ablução que não desvanece o vestígio das lágrimas, começar os labores diurnos, ocultando a todos a tortura que lhe oprime o peito; os sobressaltos, os tristes presságios, o desalento, os receios que germinam em uma fronte marmórea, durante intérminas semanas de agonia moral: haverá, no mundo, mais pungente drama do que esse?
Era o que se passava na residência de Pierre, com sua sensível esposa.
Parecia-lhe que os dias e as noites — das quais contava todas as horas — não tinham fim e que, jamais, teria notícias do ausente. Achava-se enferma, entristecida.
Um dia, ao amanhecer, quando mais intenso era o seu desassossego, bateram-lhe à porta. Vestiu-se à pressa e dirigiu-se à porta de saída. Abriu-a, trémula e apreensiva. Achou-se na presença de um desconhecido, de cinquenta anos presumíveis, robusto, tez bronzeada.
—É com Mme. Catarina Doufour que tenho a honra de falar? — interrogou o visitante.
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