LUZ ESPÍRITA
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O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama

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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:26 am

O solar de Apolo
Zilda Gama

pelo Espírito Victor Hugo

(ROMANCE MEDIÚNICO)


1.ª PARTE -
O SOLAR DE APOLO

LIVRO I
O solar de Apolo
Convido-te, amável leitor, a participares comigo de uma incursão no passado. Volvamos as páginas da História e remontemos ao século III da nossa era. Detendo-nos no longínquo ano de 195, vamos encontrar na Grécia um rico proprietário de terras chamado Plotino Isócrates, homem de 42 anos. Vivia ele em seu castelo, situado nas vizinhanças de Sicione, pequena cidade do Peloponeso, às margens do Golfo de Corinto. Em sua juventude seguira a carreira das armas, mas, tendo casado moço ainda, resolveu dar baixa do serviço activo, para dedicar-se exclusivamente à família, e foi residir com os seus numa vasta propriedade que lhe adviera por herança, de seu pai, não longe de Corinto e de Atenas. Chamava-se o imóvel Solar de Minerva e ficava situado em região acidentada, mas de grande beleza panorâmica. A esse tempo, a erosão ainda não transformara as montanhas helénicas em desertos e, de longe, o verde profundo das oliveiras e dos loureiros confundia-se com o colorido ameno dos bosques naturais, onde o leão, hoje extinto, caçava javalis e infundia terror aos camponeses.
Nessa época, o cristianismo, já assaz difundido, era tolerado nas províncias do Império Romano, de que a Grécia fazia parte. O culto dos deuses todavia, era a religião principal e só foi abolido mais tarde, em consequência de um edito de Justiniano. Os santuários de Delfos e Elêusis, onde se praticava o mediunismo, então chamado profetismo (de profeta, falar outrem), gozavam de gerais favores, sendo muito procurados os seus oráculos. Não eram raras as pessoas que praticavam as duas religiões e recorriam tanto aos bispos como às pitonisas. Foi somente no século seguinte que o cristianismo se tornou a religião oficial e o culto dos deuses abolido.
Aliando-se aos imperadores, de cujos banquetes passou a participar, o alto clero romano em pouco tempo abandonou o nome de "Igreja Cristã" para adoptar o de "Igreja Católica", embora continuasse a utilizar o nome e a figura de Cristo. Não demorou muito e a Igreja conseguiu que fosse proibido o ensino da filosofia e da mitologia. As escolas de Atenas, onde leccionavam os neoplatónicos, foram então fechadas, juntamente com todos os santuários pagãos, e uma noite pesada desceu sobre o mundo, a qual ficou sendo conhecida como a Idade Média, ou a Noite de Mil Anos.
Havia quase vinte anos que Plotino Isócrates e família residia no seu feudo. Seu temperamento pertinaz e autoritário levava-o a obter êxito nas tarefas que empreendia, de modo que sua presença impulsionou grandemente o progresso daquelas terras. O ex-militar guardara da antiga profissão o porte erecto e o desembaraço do homem acostumado a mandar. Atingira a plena maturidade e só agora as primeiras cãs revelavam-lhe que se aproximava a velhice. A despeito da sua natureza voluntariosa, Plotino Isócrates era inclinado à bondade e ao perdão, e assim frequentemente se encontravam em choque, na sua consciência, os seus sentimentos e as medidas de rigor que se julgava obrigado a adoptar.
Emérita Kondilais, esposa de Plotino, fora jovem de notável beleza. Abeirava-se dos 36 anos, conservando porém a pureza de linhas que na adolescência a tornara conhecida em Atenas. Vivia para os dois filhos, Anália e Samuel* aquela com dezoito e este com 17 anos.
A primeira década da vida conjugal decorrera relativamente feliz; ultimamente porém, os desentendimentos entre os esposos eram mais frequentes, devido em parte ao génio ciumento de Plotino, que não permitia que sua esposa se afastasse de casa a não ser em sua companhia. A situação agravara-se desde que viera fixar residência nas imediações, um antigo companheiro de armas de Plotino, chamado Argos Zenóbio, que também aspirara à mão de Emérita. Argos, pouco mais moço que Plotino, era totalmente diferente deste, que se diria talhado para a vida familiar. Amava aquele a aventura e a vida social, em aras das quais havia sacrificado a vida despreocupada que levava na residência paterna, vizinha da de Plotino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:27 am

Durante muitos anos esteve desaparecido, somente regressando quando os seus pais morreram para tomar posse do imóvel que lhe coubera por herança. Sua volta repentina, causou justificada preocupação em Plotino, pois este não ignorava que as aspirações de Zenóbio haviam sido correspondidas por Emérita, só não resultando em casamento por motivos independentes da vontade de ambos. Efectivamente, Argos Zenóbio era uma figura de bela aparência, alto, desenvolto, e simpático no falar. Teria agora 40 anos, mas continuava alegre, conversador, risonho, amando o vinho, o jogo e as mulheres, com as quais se mostrava liberal. Fora a seu tempo considerado um dos melhores "partidos" para as moças casadoiras de Atenas e de Corinto, sendo bem recebido em todas as rodas. Sua popularidade crescera com a vitória obtida nos Jogos Ístmicos, quando na idade de 20 anos arremessara o martelo à distância de meio estádio, derrotando os melhores atletas de toda a península. Aos 21 anos, após brilhante curso na escola de armas, ingressou no exército como comandante de um corpo de lanceiros. Depois, de algumas campanhas, e não podendo se esquecer da formosa Emérita, resolveu casar-se, mas, demorando-se em acção contra os remanescentes de uma tribo rebelde, ao voltar já a encontrou casada com seu amigo e camarada Isócrates Plotino. Regressou então à caserna e aos combates, mais temerário que nunca, tendo sido ferido várias vezes, algumas com gravidade. Entediando-se por fim da vida militar, pediu licença por prazo indeterminado, saindo a correr mundo. Seu valor, atestado por inúmeras cicatrizes, sua inteligência, cultura e variada aptidão, abriam-lhe todas as portas e ele pôde percorrer sem dificuldade todos os países que encontrava em seu caminho.
Chegando ao império de Nipango, além do qual só se avistava o mar sem fim, de onde surgia o sol, travou amizade com alguns samurais, cujo idioma, ao qual curiosamente faltava a letra "I", facilmente aprendeu. Após alguns anos de permanência entre aquele povo exótico, e chegando-lhe notícias da morte de Zenon e da ascensão de Anastácio, seu amigo, ao trono da Grécia, associou-se a alguns mercadores e armando poderosa frota, para enfrentar os piratas que infestavam os mares, regressou do oriente carregado de sedas, pérolas e especiarias, que vendeu em Alexandria com lucro fabuloso. De volta à pátria, sentiu-se atraído pela agricultura, decidindo-se a residir no solar dos seus avoengos, limítrofe ao de Plotino. Secretamente porém, seu desejo era rever Emérita, cuja lembrança não lhe saía da memória. Oficialmente, as relações entre os dois vizinhos eram as melhores possíveis, embora ambos adivinhassem que algo se interpunha entre eles. Plotino particularmente, conhecendo a audácia do seu antigo camarada, sentia-se inquieto e suspicaz ao meditar no celibato de Argos pensando sempre se entre as suas causas não estaria o amor por Emérita. Na sua imaginação, desfilavam todas as possíveis consequências do regresso do rival. E meditava na sorte dos seus filhos se alguma tragédia se verificasse. Anália e Samuel eram duas almas nobilíssimas e amorosas que os deuses da Fortuna haviam ligado ao seu coração de pai. Não se diriam crianças pois. Mesmo nos verdes anos demonstravam tanta sensatez e compreensão, que Plotino e Emérita muitas vezes se guiavam pelas opiniões dos filhos. A educação de ambos fora esmerada e abrangia o canto, a poesia e a música, para cujo fim Plotino contratara competentes e idóneos professores. Em consequência, os convites para os raros saraus do castelo eram muito apreciados pelos moradores da herdade, cuja única distracção à noite, era ouvir os menestréis com suas bandolas, e eles nem sempre apareciam naquelas cercanias.
Se bem que invejada pela maioria das mulheres de suas relações, Emérita não se resignava à vida reclusa, própria dos solares medievais. Culta e bela, apreciava as relações sociais e desejaria estender seu círculo de amizades. Plotino, todavia, não lhe permitia visitar os parentes nem conversar com estranhos, a não ser em sua companhia, e como raramente fizesse visitas, a nossa castelã se sentia isolada e triste.
Uma tarde, ficando sós à mesa, após o jantar, servido em amplo e florido salão, Emérita se dirige ao consorte dizendo-lhe com inflexão de voz suave e melancólica:
— Plotino, embora eu viva em um ambiente de sinceras afeições, cercada pelo teu carinho e pelo amor dos nossos filhos, sinto como um vácuo na minha existência.. .
Nada me falta, materialmente, mas às vezes invade-me uma intensa nostalgia e parece-me estar encerrada num cárcere, dourado é verdade, mas sem liberdade. Gostaria de viver em sociedade, assistir a festas e reuniões, trocar ideias. Vocês, homens, podem passar os dias calados, entretidos com questões de filosofia, cujo alcance e utilidade nos escapam. Porém, nós, mulheres, precisamos nos ocupar de coisas mais práticas e para isso não é preciso perder longas horas meditando. Importa mais ter com quem conversar. Se permanecesses sempre a meu lado, eu não me sentiria tão isolada, mas frequentemente te ausentas e eu passo as horas apreensiva, sem poder me distrair, afastada de todos os meus parentes e das minhas amigas...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:27 am

Emérita suspirou e calou-se. Plotino respondeu:
— Compreendo o que queres dizer. Foste criada em Atenas, em convivência com pessoas cultas e inteligentes e não te resignas a viver no meio de camponeses, que só sabem falar do tempo e das colheitas. Deves convir, no entanto, que a vida não pode se constituir apenas de prazeres e diversões. No transcurso da nossa existência atravessamos três períodos distintos: infância, adolescência e maturidade. Em cada um deles pensamos de maneira diversa e temos preocupações diferentes. A época dos folguedos termina com a adolescência. Ao constituir um lar, o homem e a mulher entram na maturidade. Vivem não já para si, ou para realizar os próprios sonhos, mas para os filhos. O casamento é o fim do sonho, quer matando-o, quer tornando-o realidade. Feliz aquele que torna o sonho realidade. Mais feliz quem faz da realidade um sonho, trabalhando com heroísmo e abnegação em prol do seu ideal. E haverá mais nobre ideal do que criar e educar os filhos, incutindo-lhes bons hábitos e fazendo deles, por seu turno, pais e mães exemplares? Esta é a fase em que nos encontramos, Emérita. É a fase dos encargos penosos, das responsabilidades, dos sacrifícios, das lutas e sublimidades ignoradas. Precisamos renunciar aos prazeres mundanos e votar-nos incansavelmente ao trabalho. Não vês que a própria natureza indica essa missão aos pais, dando-lhes nesse período maior robustez física?
Agradeçamos aos deuses o muito que nos têm dado, poupando-nos a vida no meio de tantas guerras, enfermidades e perigos e permitindo-nos criar os filhos da nossa carne e da nossa alma entre a abundância e o conforto. Quantos trabalham mais do que nós e vivem miseravelmente, em meio às maiores privações! Se é certo que a filosofia ainda não explicou satisfatoriamente o problema da origem da vida, a finalidade da nossa existência me parece clara: trabalhar, progredir, física e espiritualmente. Após haver reflectido maduramente sobre a desigualdade dos seres e o sofrimento dos inocentes, penso que a razão está com os egípcios e os hindus, que atribuem essas diferenças ao mérito dos indivíduos em anterior encarnação. Esse pensamento também goza da simpatia dos nossos maiores filósofos.
Meu professor era partidário da teoria reencarnacionista e sustentava que a palingenesia devia ser entendida como nova vida na terra e não no empíreo. Não fazemos jus ainda a habitar entre os imortais. Cuidado, pois, Emérita, para não seres castigada pela tua ingratidão e obrigada a: reencarnar sob as vestes de uma serva ou de uma escrava.
Um rápido sorriso emoldurou o rosto formoso da interpelada e ela ponderou:- Não precisas fazer ironias, Plotino. Não me queixo da sorte, mas acho que tenho o direito de procurar melhorá-la. Ademais, creio não ter proferido nenhuma heresia, pois se uns preferem a vida rural, outros optam pela citadina. Estou entre estes. Muitos castelões possuem casas na cidade, onde passam o inverno ou se hospedam quando vão fazer compras, rever parentes ou simplesmente descansar. Por que não poderíamos nós fazer o mesmo? Corinto dista menos de meia jornada deste solar. Por outro lado, saindo- se daqui de manhã, pode-se chegar a Atenas antes de anoitecer.
Portanto, não seria preciso delegares a terceiros a administração desta propriedade.
Além disso, Anália está em idade de casar e seria cruel privá-la de escolher noivo entre as classes cultas. Samuel também, apesar dos bons professores, está um perfeito campónio, tímido e calado.
Emérita escondeu o rosto com as mãos e pôs-se a soluçar. Plotino, imerso em profundas cogitações, manteve-se silencioso. A esposa prosseguiu:
- Tu achas que a mulher que se casa deve se tornar prisioneira do próprio lar, sem outras aspirações que as de ser escrava do marido e dos filhos?
Plotino, que a princípio se sentiu tocado com as lágrimas da esposa, respondeu com energia:
- Classificas de escravidão a vida que levas em minha companhia e os sacrifícios que fazes em favor dos nossos filhos? Bem vejo que não me amas e que a felicidade dos teus filhos está em segundo lugar na ordem das tuas preocupações. Sentes-te ainda atraída por divertimentos já impróprios da tua idade. Rodeada de atenções e do amor daqueles que exporiam a vida para salvar-te, ficas enfadada e suspiras pelas falsas amizades dos salões. Ignoras acaso a corrupção que lavra nas cidades? Não vês que uma noite de encantamento, entre risos e danças, vinhos e música, prepara, às vezes, dias de lágrimas? Confundindo a felicidade com o prazer, por ignorarem que aquele é um estado d’alma e este uma sensação passageira, muitos têm trocado a paz de espírito pelo prazer do corpo, e tarde reconhecem que saíram perdendo. Feliz é aquele que, com o corpo chagado, tem a consciência tranquila e sente que cumpriu o seu dever. Estou inteiramente de acordo com Aríston o grande filósofo de Quio, cujos ensinamentos infelizmente não gozam da popularidade que merecem. Ele prova irretorquivelmente que a felicidade só pode ser encontrada na virtude e nunca no prazer. Infelizmente, a trégua que Roma impôs às nossas discórdias internas está nos custando cara demais.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:27 am

Actualmente, a caça ao gozo é a lei do romano e está se tornando também a nossa. Os deuses são desprezados e as nossas mais santas festividades, como a comemoração da vinda de Baco à terra, e as saturnais, degeneram em regabofes abjectos, indignos de serem descritos. Tu viste que aqui mesmo na festa da vindima, tivemos que restringir a distribuição de vinho porque as bancarrotas, a pretexto de exprimirem o seu júbilo, se entregavam a excessos de toda ordem. Quantas mães, após participarem de tais festividades, abandonam os seus lares para seguir algum aventureiro, cujas promessas valem tanto quanto eles mesmos e que as abandonam na primeira esquina? Não. Emérita. Uma verdadeira esposa e mãe não troca o modesto lar, onde vivem os seres que a amam, para divertir-se na companhia de pessoas levianas e irresponsáveis... Que ventura maior haverá para um coração materno do que permanecer no pequeno reino em que é rainha de outros corações amantes?... Que glória maior para uma senhora honesta do que abandonar os festejos mundanos para dedicar-se à sua família, ajoelhada à beira de um leito onde um filho dorme ou geme enfermo, entoando uma canção ou uma prece? Não há prazeres que excedam, aos do sacrifício pole ente amado. Uma carícia infantil é recompensa bastante para a verdadeira mãe e paga com juros todos sofrimentos passados.
- Mas eu já me sacrifiquei por muitos anos, Plotino.
Enquanto os nossos queridos filhos eram pequenos, nunca hesitei me imolar, mas agora a situação é diversa e não mais razão para permanecer neste isolamento atroz. Tu vais frequentemente à cidade, revês amigos, conversas com estranhos, mas eu nem a Sicione vou. Não permites que se contratem jograis e se não fosse a companhia das esposas dos professores, creio que eu já teria enlouquecido nesta solidão.
Plotino ouviu-a consternado. As ideias expostas por Emérita espantavam-no. Nunca a supusera tão leviana e infantil. Um mundo desabava no seu interior. Após alguns instantes de silêncio murmurou:
- Tuas palavras são para mim uma revelação. Preciso meditar na extensão delas. Amanhã te darei a minha decisão. Emérita acrescentou:
- Não sou eu apenas que penso desta maneira. Anália e Samuel também desejariam tomar parte em folguedos sociais, como um derivativo para as fadigas do estudo e a reclusão deste solar. Se não se queixam é para não magoar-nos, mas a juventude pede alegria e distracções.
- Não sou do teu parecer, respondeu Plotino com veemência. Não me consta que eles desejem participar das alegrias mundanas, antes dão-se por contentes com o conforto e o carinho que lhes são proporcionados aqui. Acho muito condenável o hábito assaz difundido de se permitir aos jovens frequentarem bailes e festividades ruidosas, cujo único objectivo é o gozo material. O espírito nada tem a lucrar com a excitação dos sentidos causada pelos contactos de jovens de sexo diferente e sei de muitos que contraíram graves enfermidades ao se retirarem de tais festas.
- Mas não te lembras de que já desfrutaste a juventude, sem os resultados nefastos que hoje receias?
- Justamente por isso. Falo por experiência própria. Conheço os riscos a que estão sujeitas as moças inexperientes, pois muitos jovens não têm escrúpulos e abusam das oportunidades que se lhes oferece para seduzi-las. Quantos amigos meus, confundindo amor com licença, faltavam com o respeito devido às namoradas e se vangloriavam da prática de actos que os degradavam!
- Querias então que não houvesse nenhum entretenimento social? Só vês o lado mau das coisas. Para ti todas as festas são pecaminosas. Nem os deuses podem preencher os teus padrões de virtude. A ser como desejas, todos passariam a vida encarcerados em seu próprio lar, como se vivessem em estado de luto permanente!
- Não! O abuso não tolhe o uso. Aprovo as festas familiares rigorosamente seleccionadas e mesmo os festejos públicos com que a nação possa celebrar os seus triunfos e suas glórias. Mas desaprovo as grandes reuniões, onde se forjam idílios insensatos e a ruína de lares venturosos. Intimidades só se permitem aos íntimos. Acho muito mais agradáveis os pequenos convescotes, onde todos se conhecem e se estimam, porque seus pais também foram amigos. Neles reina a cordialidade, o júbilo, a naturalidade, o respeito, único ambiente em que pode surgir o verdadeiro amor. Foi num meio assim que te conheci, namorei e pedi em casamento. Surpreende-me portanto tua nova concepção do que é correto. O que é direito apenas em parte, para mim é miado por inteiro. Não posso admitir que os consortes, cujas responsabilidades não lhes consentem o menor desvio no cumprimento do seu dever de pais, deixem os seus entezinhos queridos entregues a fâmulos inconscientes! Quantas desditas têm tido erigem no descaso das mães! Os irracionais revelam maior compreensão do que certos pais e não abandonam um momento sequer seus filhotes indefesos. Acumula remorsos quem troca o dever pelo prazer. A mãe digna desse nome não pode mais pensar em futilidades, nem diversões e gozos, longe de seu lar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:27 am

— Mas, Plotino, nossos filhos já estão crescidos, não necessitam mais de vigilância nem desse excesso de carinho, que só tem cabimento na infância. Alguma vez me achaste em falta para com a minha obrigação? Há quase vinte anos que só vivo para eles, não pensando senão neles, aceitando resignada este encarceramento cruel, e o louvor que me reservas é esta humilhante reprimenda? Quem te ouvisse falar, diria que eu sou uma mãe desnaturada e que não tenho noção do meu dever!
Emérita levantou-se agitada, com os olhos marejados de pranto. Isócrates redarguiu:
- Enganas-te ainda. Nossos filhos estão numa idade em que seus actos têm influência decisiva nos seus destinos. Mais do que nunca precisam eles do nosso desvelo e assistência. Precisamos dar-lhes exemplos salutares pois que eles têm os olhos voltados para os que lhes deram a vida. A infância reclama auxílio material; a juventude exige-o também espiritual. A falta de um conselho oportuno, do uma justa intervenção materna, tem levado muitas moças a no enamorarem de indivíduos que depois as levam a perdição e até à morte.
Emérita não se deu por vencida. Vendo que seus argumentos não demoviam o esposo das suas concepções, resolveu apelar para o seu sentimento, pois o coração tem razões que a razão desconhece. Foi assim que, sentando-se novamente, segurou a mão do esposo e disse-lhe em tom de voz terno e melancólico:
- Plotino, se soubesses o que significa para uma mulher viver dezanove anos segregada, sem amigas, sem parentes, sem uma confidente com quem conversar de igual para igual; sem ir a teatros, sem assistir a jogos; vendo e revendo todos os dias as mesmas fisionomias; ouvindo pela centésima vez a mesma história, certamente serias mais indulgente para comigo. Não me julgues mal, meu querido. Não quero demover-te dos teus princípios rectilíneos, que são também os meus. Apenas, sinto-me cansada, exausta, nervosa e preciso me distrair um pouco, sair, rever o mundo. Falei em festas mas não faço questão de frequentá-las. Basta-me ir uma ou outra vez ao teatro ou a um concerto. Quando eu ficar bem voltarei ao Solar de Minerva. Concedes?
Mas o antigo guerreiro, espicaçado pelo ciúme, era insensível a todas as formas de persuasão e respondeu inflexível:
- Não precisas mais fingir, Emérita. Por tuas palavras, tarde conheço os teus verdadeiros sentimentos! Via-te resignada e nobre, com a aparência de quem está satisfeita com a sorte que lhe coube. A mulher que ama o seu esposo e seus filhos, sente-se feliz só na companhia deles. Somente agora percebo que possuí o teu corpo, mas não o teu coração, que está longe de mim. No entanto, fiz tudo quanto estava ao meu alcance para tornar-te ditosa. Minha preocupação de todos os instantes desde que nos casamos, tem sido aumentar o conforto desse lar, velando para que nada lhe falte material ou moralmente. Escravo prazeroso do amor que te dediquei, tenho vivido exclusivamente para ti e os filhos que me deste. Abandonei a carreira das armas para estar mais tempo ao teu lado. Recusei os cargos públicos que me ofereceram para não ter outras preocupações que não fossem as da tua felicidade. Grande engano o meu! Só hoje compreendo quantas censuras havia em teu íntimo contra mim. Mas, se não me amavas, porque me aceitaste como esposo? Não eras obrigada a unir-te com quem te desagradava. Se eu fosse dado a estroinices e loucuras, talvez me amasses. Tenho visto mulheres suspirarem por quem as abandona; adorarem a maridos que nada lhes dão a não maus tratos; tanto mais fiéis quanto mais traídos. Como não me vês jogando, bebendo ou me divertindo fora de casa, não me dás valor. Aceitaste os encargos do lar como um castigo, mas a vida que te agradava era a dos salões, onde reina a hipocrisia e a ostentação, a vaidade e a corrupção!
Emérita Kondilakis ficou alarmada. Seus grandes olhos tristes fitavam o esposo com espanto.- Plotino, como podes ser injusto a esse ponto?! Não envenenes o sentido das palavras que eu profiro! Tomemos nossos filhos por desempatadores desta questão e verás que a tua acrimonia não tem razão de ser. Amo-te como sempre, meu querido.
Não suspeites mal onde ele não existe. Não me faças sofrer mais do que eu já tenho sofrido.
Emérita inclinou a cabeça sobre a mesa e desatou em choro convulso. Plotino retrucou;- Ou as palavras mudaram de significado ou eu perdi o senso. Dizes que a tua vida aqui é um colar de sofrimento, que te sentes como uma escrava e prisioneira e não queres que eu me veja na posição de algoz a supliciar-te implacavelmente? Manifestas o desejo de frequentar festividades mundanas, justamente na idade em que tais actos perdem o interesse, e queres que eu te dê razão?
Onde estão teus tormentos? A qual pedido teu deixei de atender? Referes-te aos jograis. Então pretenderias que eu desse ingresso em nosso lar a esses vadios, apenas para ouvi-los contar anedotas ou dizer graçolas? Falas em ir morar em Corinto como se ignorasses a corrupção que lavra nessa cidade, ponto de ter se tornado proverbial a riqueza dos seus lupanares, e pretendes que eu te leve para lá?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:28 am

Declaras que os anos que viveste em minha companhia, velando pelos seres amigos que te rodeavam solícitos, foram anos de sacrifício, e queres que eu me julgue amado?
- Para todas as distracções são criminosas. Como prescindes de divertimentos, pensas que todos podem fazer o mesmo? Pois eu te digo que gosto de reuniões sociais e não vejo nenhum mal nisso. Gosto de conversar, rir, folgar. Nada me pesa na consciência para viver acabrunhada.
- Que queres dizer com isso? Como deverei interpretar as tuas palavras, se as reuniões familiares que realizamos neste castelo de vez em quando, e em que há danças e recitativos, músicas e narrações, são para ti como se não existissem? Emérita, a sabedoria ensina que a ventura terrena só pode ser conquistada com sacrifícios, com desvelos e com o austero cumprimento de todos os deveres morais. Uma coisa é certa, e o exame atento da natureza o revela; o objectivo da vida não é o gozo material mas sim o aperfeiçoamento espiritual. Através da luta pela vida, Deus aperfeiçoa as formas e desenvolve o espírito, tendo em vista uma beleza cada vez maior e mais completa. Ao gozo que nos degrada é preferível o sofrimento que fortifica. Nossos maiores filósofos sustentaram essa tese após longos estudos e observações, confirmando-se assim quanto ensinara Orfeu, o grande e divino filho de Deus que entre nós habitou. Considerando a semelhança de sua doutrina com a do famoso Cristo Jesus, que estou estudando ultimamente, convenci-me que foi o próprio Orfeu quem renasceu entre os judeus, pois um simples carpinteiro não poderia praticar os milagres que dele se contam. Só o rigoroso e inflexível cumprimento do dever nos abrirá as portas das mansões onde residem os imortais e eu estou decidido a alcançar essa graça. Libertos de todas as fraquezas terrenas, faremos jus aos paramos celestiais. Não tentes pois, dissuadir-me de seguir o meu caminho nem esperes que eu te ajude a errar.
- Achas errado cultivarmos as relações sociais depois de consorciados? Devemos afastar-nos da convivência dos seres amigos e da sociedade, como se fôramos condenados à prisão?
- Devemos afastar-nos do que nos desvia da virtude e a sociedade moderna está por demais corrompida para que possamos conviver com ela sem nos contaminarmos.
Jamais oferecerei minha filha nas feiras de vaidades. Quem quer uma esposa virtuosa vai procurá-la numa família virtuosa e não em centros de prazer. O segredo da resistência dos judeus a todas as tentativas de extermínio, tem sido o culto da família.
Não há júbilo maior do que dos lares virtuosos, onde o respeito e o amor geram a simplicidade e a cordura, a modéstia e a paciência, a paz enfim. Pensas que as festas aliviam os nervos? Não há criatura mais nervosa do que a mulher que se prepara para uma festa ou regressa dela. De várias sei que mandavam supliciar as suas servas porque a túnica não lhes caía bem, ou porque o penteado demorava.
- Pelo que que expões, a mulher que casa deve dizer adeus ao mundo e à sociedade e levar uma vida que pouca diferença faz da existência das sacerdotisas.
- Sim, desde que haja necessidade! A maternidade é um sacerdócio, e talvez o mais sagrado que existe, porque é conferido pelo próprio Deus Supremo. Assim foi, é e será o consumação dos séculos._ Por essa teoria, Plotino, os casamentos vão rarear, pois nem todas as criaturas humanas nasceram com vocação para o... claustro.
- Tanto melhor para a humanidade porvindoura, pois as jovens que se aliarem aos que lhes consagrarem afecto, educarão os filhos em sãos princípios. Mas não penses que possam os homens furtar-se às leis da natureza. O casamento é uma delas. Outra lei é a da justiça, segundo a qual os actos maus produzem maus resultados. O sofrimento aguarda os que se desviarem da recta senda do dever. Ora, se podemos escolher entre o bem e o mal, porque optaremos pelo mal, que acarreta a dor e a desgraça? Há alguns que aprendem de boa vontade; outros que só o fazem constrangidos pelos castigos. A quem devemos imitar? Futuramente os pais relapsos serão julgados pelos tribunais terrenos, com severidade. Casar-se com a preocupação exclusiva de melhor gozar a vida, abandonando ao acaso os entezinhos que concebeu, constitui um crime nefando, que deveria ser punido com rigor pelas leis sociais.
Infelizmente a maioria dos homens acha maior prazer no vício do que na virtude.
Imperfeitos que são, por vontade própria,, desculpam-se alegando que assim nasceram e acusam Deus de não os ter criado perfeitos, como se Deus os obrigasse a praticar o mal. O mal sempre há de gerar o mal para castigo dos maus. Habitamos o mundo que merecemos e se fôssemos transportados para um mundo de seres imaculados e perfeitos, sentir-nos-íamos envergonhados e constrangidos como mendigos introduzidos numa sala onde se realiza um banquete. Esta é a verdade. Emérita.
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O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama Empty Re: O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:28 am

Aproveitemos pois, a nossa rápida passagem pela face do planeta para burilar nossa personalidade, a fim de que o nosso espírito possa gozar da felicidade reservada aos eleitos.
Nesse momento entrou Anália, que se acercou dos pais e, beijando-os carinhosamente:
- Vejo que a despeito dos longos serões, assunto não vos falta. Isto é sinal de que os anos passam, mas papai e mamãe continuam enamorados. Como é agradável vê-los assim unidos como dois pombinhos. Os dois melhores pais do mundo.
E assim falando, acariciava os cabelos de Plotino e Emérita, revelando pelo tom de voz os tesouros de ternura do seu coração. Seus longos cabelos anelados caíam-lhe graciosamente pelas espáduas, emoldurando um rosto de rara beleza. A harmonia existente entre a perfeição das formas e a superioridade do espírito que se adivinhava, atraía a atenção de quem a contemplava. A presença da jovem serenou a disputa entre os cônjuges, que acolheram satisfeitos suas palavras joviais. A seguir, deu entrada no salão, um simpático adolescente, cujos modos calmos revelavam maturidade espiritual.
Aproximou-se dos pais a quem abraçou, e sentou-se sem dizer palavra. Fez-se um instante de silêncio, que o jovem interrompeu, dizendo:
- Se é segredo o que faláveis, eu me retiro.
- Não, filho, respondeu Plotino. Pelo contrário, foi bom chegares, porque se tornava necessária a tua presença.
- Alguma preocupação, meu pai?
— Sim, meu filho. É um assunto importante, que interessa a nós todos, porque as suas consequências são incalculáveis.
- Que dissestes, paizinho? interpelou-o a donzela, acercando-se do progenitor e fitando interrogativamente a mãe emudecida.
- Prestai atenção ao que vou perguntar e respondei-me com inteira lealdade: Já pensastes em abandonar este solar, por achá-lo enfadonho e sem atractivos?
- Nunca! responderam os dois jovens a uma voz.
Plotino olhou significativamente para Emérita, que se mantinha silenciosa, agastada com o rumo que o esposo imprimia aos acontecimentos.
Samuel prosseguiu:
- Porque não estaríamos satisfeitos, se aqui se acha tudo quanto amamos na vida:
nossos queridos e bondosos pais? Convosco desejamos prosseguir enquanto nos quiserdes em vossa companhia, pois não saberíamos viver sem a vossa afeição e os vossos carinhos. Porque nos perguntais isso? Não vedes a alegria que sentimos ao vosso lado?
- Duvidais do nosso amor, queridos pais? inquiriu Anália com os olhos cintilantes.- Eu vos agradeço a sincera confissão, meus filhos adorados! Vossas palavras me recompensam de tudo quanto tenho sofrido por vós. Tudo tenho feito e continuarei a lutar para tornar-vos venturosos. Vossas palavras me cumulam de felicidade e por elas me considero eternamente grato, mas compreendo que deveis ter aspirações de venturas terenas, como a constituição dos vossos lares e a conquista da felicidade!
- Sim, querido pai, tornou Samuel, como todos, nós também temos esses ideais, mas não vos preocupeis por enquanto, pois o que nos estiver destinado pela Providência Divina, virá ter às nossas mãos.
- Bem, meu filho, louvo as tuas expressões! Bem sei que não temes o futuro, capacitado de que as leis do Criador não podem ser fraudadas e que Ele, que tudo sabe e provê, não se esquecerá de ninguém na partilha de bens de que regurgitam suas mãos. Como vós, tenho confiança no Criador, a quem o grande filósofo hebreu Jesus, dá adequadamente o nome de Pai. Ainda hoje meditava eu numa das suas frases geniais, recolhida pelos seus discípulos, na qual ele nos aconselha a não nos preocuparmos demais com o quo havemos de comer e de vestir. Numa imagem formosa, lembra que Deus veste os pássaros e as flores com maior beleza do que os reis podem vestir-se e conclui acertadoramente que o que importa é seguir as rectas veredas da justiça, pois, em o fazendo, tudo o mais nos será dado de acréscimo.
- Justamente o que pensamos, querido pai! Exclamou o adolescente.
Anália ajuntou:
- Nossa vida aqui decorre feliz. Desde que nascemos, nunca nos faltou nada. Acho tão bonito este lugar! Temos tudo que se precisa para viver: frutas, flores, cereais, iguarias saborosas, campo e montanha, terra e mar. Que mais poderíamos desejar se temos também o amor e o carinho daqueles que nos deram o ser?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:28 am

- Muito bem, respondeu Plotino, contente com o que ouvia. Quero porém que me elucidem sobre o seguinte: não desejais frequentar festividades sociais, participar de entretenimentos nocturnos, amados filhos?
- Depende da vossa vontade, meu pai! respondeu Anália, pois se tendes vos privado de ir a festas ruidosas por amor dos vossos filhos, agora, se vos aprouver, poderemos acompanhar-vos. Para nós será um óptimo ensejo de conhecer a sociedade humana. Se surgirem decepções, lamentaremos o ocorrido e voltaremos a viver como até agora, neste reduto encantador. Tenho curiosidade de assistir uma festa importante, para saber o efeito que vamos sentir, eu e Samuel!
- Quereis então, filhos, ir ao Solar de Apoio no próximo sábado? Recebi atencioso convite do seu proprietário, o valoroso Argos Zenóbio, que festeja o seu regresso à pátria, após longa e fortunosa ausência.
- Se quiserdes nos levar, papai, respondeu Anália, iremos com prazer. Será a nossa primeira aventura social, a nossa primeira experiência em cerimónias festivas.
Mas, porque está tão triste e lacrimosa a nossa adorada mãezinha?
* * *
No dia seguinte, depois do jantar, que decorreu com desusada animação, mostrando-se reservada apenas Emérita, Plotino reuniu a família na sala de música, que servia também de biblioteca, e assim lhes falou:
— Queridos filhos, atendendo a um pedido de vossa mãe, vou quebrar os princípios por que tenho me norteado em vossa educação e conduzir-vos a alguns lugares aprazíveis, a festividades brilhantes. Penetrareis um mundo que ainda não conheceis. Travareis relações com pessoas de todos os matizes morais e isto vos servirá de valiosa experiência. Até aqui tenho evitado o contacto daqueles que vos possam causar dano. Agora, que o vosso espírito está formado e sabeis distinguir o bem do mal, estais aptos a vos conduzir em todas as situações e eu vos levarei a lugares onde melhor podereis conhecer a humanidade e mesmo a vós próprios. Quero ver como vos conduzireis.
— Amado pai — disse Samuel, — ensinastes-nos a prezar o bem acima de tudo, em qualquer situação; mostrastes-nos a beleza sublime que existe no culto fervoroso e humilde das virtudes; nossa escolha já está feita; não é mister novas experiências; ou dar-se-á que duvidais dos vossos filhos e do amor que eles vos consagram?
— Tesouros de minh'alma! falou Plotino com arrebatamento, não duvido de vós, mas como já falei, é preciso que haja situações propícias para que possam ser revelados os verdadeiros pendores de cada criatura. Vou explicar melhor o que desejo, esperando ser bem compreendido por todos: aqui, sob a vigilância paterna, fostes criados e educados. Tudo foi feito para vos fazer compreender que a felicidade reside na virtude; mestres foram trazidos que vos mostraram os fundamentos divinos da moral e as razões que nos aconselham a optar pelo bem; mandei ensinar-vos a música, o canto, a poesia, a oratória como outras tantas fontes de beleza e de momentos felizes. Até hoje, nunca soubestes o que fosse um desejo contrariado ou uma privação, Precisais agora pôr em prática o que aprendestes.
Teoricamente estais armados para vencer a luta que vos aguarda. Mas, como vos comportareis em face das provas que só a vida apresenta? Confio em que triunfareis.— Querido pai, exclamou Anália, perplexa com as palavras que ouvia, realmente nossa vida tem decorrido até aqui descuidosa e fácil. Do mundo só conhecemos este recanto ditoso. Tendes razão em querer saber se ao defrontar as dificuldades naturais da vida, saberemos nos conduzir convenientemente. Isto vem confirmar o que me foi dito há pouco tempo, por um oráculo, em uma das nossas reuniões de estudo do cristianismo. O nume tutelar que falou pela boca da pitonisa aconselhou-nos a que permanecêssemos firmes na prática do bem, pois que dias chegariam em que seríamos submetidos a prova. Aguardo serenamente as lutas que o destino me oferecer.
Inspirados pelas vossas palavras, paizinho, haveremos de vencer!
Plotino estreitou ternamente nos braços os dois filhos, dizendo:
- Deus vos abençoe meus filhos, pelas alegrias que me dais. Sinto-me mil vezes compensado dos trabalhos e apreensões que me causastes involuntariamente com as vossas traquinadas inocentes e as enfermidades que vos assaltaram no infância. Um dia sabereis o que é o sofrimento dos pais que amam verdadeiramente os seus filhos ao verem seus pequeninos corpos tremerem de febre, sem que eles possam atalhar o mal, cuja a causa na maioria das vezes se ignora.
Continuarei ao vosso lado, assistindo-vos com a minha experiência e os meus conselhos, sempre que o solicitardes. Mas penso que não será necessário interferir, pois bem conheço os nobres sentimentos de ambos. Estamos portanto, de acordo:
frequentareis as reuniões mundanas e sereis apresentados à sociedade que se diverte.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:28 am

Dirigindo-se à esposa, que se mantinha silenciosa, perguntou:
— Estás satisfeita, Emérita?
— Só tenho que aprovar as tuas deliberações.
— Não, quero ouvir a tua opinião sincera. Não sou nenhum déspota familiar.
Desejo que a nossa vida doméstica transcorra em ambiente de concórdia e não de opressão! Quero que todos manifestem lealmente os seus pensamentos!
— A minha vida, na sua mais bela fase, disse Emérita com desalento, já está encerrada. É-me indiferente hoje, permanecer aqui ou além. Já gostei muito de festas, na mocidade, mas agora a idade me afugenta dos folguedos sociais. Todavia, não serei "desmancha-prazeres".
— Não te compreendo, interrompeu Plotino com o olhar fulmíneo, ainda ontem me pedias para ir a festas e hoje dizes que te é indiferente ir ou não?
— Mudei de opinião. Mas se achas que não devemos fugir ao convívio humano, nem isolarmo-nos egoisticamente neste solar, então iremos.
Samuel e Anália entreolharam-se atónitos e, antes que o progenitor usasse da palavra, o jovem ponderou:
— Mãe querida, não queremos contrariar-vos. Aceitamos prazerosos o alvitre de papai, porque pensamos que contava com a tua aprovação. Uma vez porém, que não vos agrada a perspectiva de tomar parte em folguedos, permaneçamos neste bendito solar, onde temos sido tão felizes.
— Não, meu filho. Teu pai já decidiu levar-vos a divertimentos. Aproveitai, portanto. A mocidade passa depressa e se não conhecerdes a felicidade agora, é pouco provável que venhais a encontrá-la mais tarde, ou num céu que ninguém sabe se existe!
— Bem, disse Plotino, conciliador. Façamos uma experiência: aceitemos o amistoso convite de Argos Zenóbio para a festa que ele oferece aos vizinhos e em breve, reunidos novamente neste mesmo local, externaremos as nossas opiniões relativamente às impressões colhidas.
— Querido paizinho, aduziu Anália atemorizada, não seria melhor desistir de experiências que podem criar a desarmonia entre nós?
— De modo nenhum, minha filha. Sempre haverá meio de nos esquivarmos a futuros convites se as opiniões de todos aqui não foram unanimemente favoráveis.
E dando a entender que considerava o caso resolvido:
— Todos vós fareis as compras necessárias para uma apresentação condigna.
Escolhei o que houver de melhor em trajes de gala, sem cogitar dos gastos que isso possa ocasionar. Esmerai-vos, para que não fiquemos em posição vexatória nos salões do maravilhoso castelo. Argos Zenóbio não é homem de meias medidas e tudo indica que o espectáculo excederá às mais optimistas previsões. Muitas críticas eram feitas a Zenóbio, durante o tempo que servimos juntos no Exército, pelo seu elevado padrão de vida e excessiva riqueza dos jantares que oferecia aos amigos. Ora. se isso ocorria quando seus meios de fortuna eram ainda limitados, como não será agora, depois que se tornou rico como Creso? Preparai-vos a capricho, para não fazermos má figura.
— Paizinho, interveio Anália, não sei o que eu estou sentindo, mas já não tenho vontade de ir a festas. Eu havia pedido à mamãe que me apresentasse à sociedade, como é costume entre nós, mas agora que a minha aspiração se realiza, minha alma se conturba e o meu maior desejo seria evitar essa experiência, que talvez nos traga dissabores em vez de alegria!
— Não sejas pessimista, minha filha, disse Emérita. Os pensamentos agourentos atraem, maus espíritos, que procuram convertê-los em realidade.
— Nada receies, minha filha, acrescentou Plotino sorrindo, que é que poderia acontecer de mal num baile? Tomarmos cuidado para que o frio da madrugada não prejudique os vossos organismos no trajecto da volta. Perdi uma irmã em consequência de enfermidade contraída na saída de uma festa. O seu desaparecimento, em verdes anos, imergiu a nossa casa em dor inconsolável e acabou por levar ao sepulcro minha amorosa mãe. Conhecendo o perigo, poderemos evitá-lo. Um carro fechado nos transportará e todos levarão seus agasalhos. Finda a palestra, foram descansar. Os dias que se seguiram, foram absorvidos pelos preparativos, e o castelo, normalmente silencioso, apresentava estranha animação. Fâmulos apressados cruzavam as suas dependências em todas as direcções.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:29 am

Hábeis costureiras foram contratadas, ao mesmo tempo que era providenciada a compra de finíssimos linhos, tules preciosos, sedas, jóias modernas, e mil outras coisas indispensáveis a uma indumentária de gala.
Chegavam notícias do Solar de Apolo que confirmavam as previsões de Plotino sobre a grandiosidade do espectáculo preparado por Zenóbio. Operários sem conta eram empregados na reparação do solar e restauração dos seus jardins. Dizia-se que emissários de Zenóbio percorriam o Peloponeso à procura de artistas, músicos, bailarinos, cantores e acrescentava-se em tom faceto que Zenóbio despachara um liberto com a missão de escalar o Parnaso e contratar as próprias Musas por qualquer preço!
Somente Emérita mantinha-se desinteressada e por vezes, os filhos lhe faziam arguições amistosas, que eram respondidas evasivamente. Dir-se-ia que ela se encerrara em si própria, absorta em alguma grave preocupação que não desejava comunicar a ninguém.
— A mãezinha já conhece o senhor do Solar de Apolo? interrogou Samuel, fixando-lhe o olhar atento.
— Sim, murmurou ela soturnamente. Ele foi aluno do meu falecido pai, de quem depois se tornou amigo. Meu progenitor admirava-lhe as qualidades pessoais, embora fizesse restrições sobre o seu carácter, pois, dizia, não basta a uma pessoa ser inteligente e corajosa, é preciso que aplique esses predicados para o bem. E aos que desculpavam os defeitos de Zenóbio em consideração às suas qualidades, respondia sempre: uma bela inteligência não justifica um mau carácter. A esse tempo, habitávamos em Atenas e meu bondoso pai leccionava na Academia dos peripatéticos, assim chamados porque os professores dão as aulas passeando com os discípulos. Plotino e Zenóbio estudaram juntos e foi nas festas de formatura que vim a conhecê-los. Ambos se enamoraram de mim e quase surgiu uma briga entre eles, porque papai favorecia Plotino. Mamãe se admirava de que duas pessoas de génio tão diferentes como Zenóbio e Plotino fossem tão amigos e declarava: é a primeira vez que eu vejo a virtude de braço com o vício. Os dois seguiram a carreira das armas, mas cada qual foi para o seu lado. Ao partir, Plotino me pediu em casamento. Depois de reflectir, respondi-lhe afirmativamente por carta e pouco depois, realizamos nosso consórcio. Mais tarde, também Zenóbio, que se tornara um belo oficial, apresentou-se como candidato à minha mão. Quando soube que eu já estava casada, ficou desapontado e regressou às fileiras, onde se destacou como hábil guerreiro. Ele era belo, mas prepotente e voluntarioso. Deus queira que tenha mudado de temperamento, para seu bem e para o bem dos que estão em contacto com ele.
- Não aprecio indivíduos com tais característicos morais! exclamou Samuel.
— Nem todos pensam dessa maneira, meu filho. Muitos dos seus companheiros apreciam-no e pensam de igual modo. Vários colegas tomavam-no por modelo, pois é imponente, másculo, opulento, instruído e sabe dominar os que o cercam como se fora um xeque.
— Também não gosto de pessoas assim, disse Anália, o homem autoritário é geralmente um tirano, e espalha o sofrimento por onde passa. Já não tenho mais desejo algum do ir ao Solar de Apolo. O melhor é nos conservarmos afastados de semelhante personalidade. Não prevejo nada de bom numa festa cujo ofertante é arbitrário e pode altercar com algum convidado e entender de mandar prendê-lo ou matá-lo!
— Não, minha filha, isso ele não fará, nem imagines tamanha loucura, pois Argos apenas convidou amigos e pessoas de elevada condição social.
— Mamãe, tudo se pode esperar de uma pessoa tirânica. O nascimento, ou seja, o nome da família, a educação recebida, o dinheiro abundante, não constituem entraves ao seu despotismo, antes o favorecem. Pedirei a papai para desistir de nos levar a essa festa, cuja antevisão está me causando sérias apreensões.
— Não! Não! disse Emérita, com energia não manifestada até então. Agora é tarde para voltar atrás. Deixemos que as coisas sigam o seu curso.
* * *O Solar de Apolo, um tanto distante do que pertencia a Plotino, era mais amplo, tinha sido edificado no alto de uma colina, como só iam ser os castelos medievais, com o objectivo de não só proporcionar melhor vista para todos os lados, como oferecer melhor defesa em caso de assédio. O acesso era feito por uma larga estrada sinuosa que terminava numa ponte levadiça, ao pé de grossas muralhas de pedra. Aos peões o caminho era encurtado em vários trechos por lances de escalinata. As torres dos ângulos; cobertas em ponta, projectavam-se a altura impressionante, o seu recorte no céu produzia, à distância, mirifico efeito. A coloração clara das pedras empregadas na construção atenuava o efeito opressivo daquela massa granítica. Concorriam para alegrar o ambiente, os jardins, um bem cuidado pomar e os tufos de flores que aqui e ali medravam nas seteiras e barbacãs. Penetrava-se no solar por um amplo portão chapeado de ferro, normalmente aberto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:29 am

Uma rua interna, calçada com grandes pedras, circundava o jardim interior e havia neste, uma fonte de mármore representando uma ninfa sentada junto a um cântaro caído, de onde fluía a água.
Nas noites festivas, eram acesos inúmeros archotes e lanternas, que resplendiam nas trevas, favorecendo a aproximação dos convivas. Um farol era aceso na torre de vigia, cuja luz era vista das costas da Ática, do outro lado do golfo.
Raiou finalmente o dia ansiosamente aguardado pelos nossos personagens.
Plotino dava as últimas ordens para que tudo estivesse pronto à hora da partida.
Nenhum esforço fora poupado para que a sua família se apresentasse condignamente trajada na faustosa cerimónia. Emérita e Anália, louras, de cabelos anelados, haviam escolhido uma roupagem de seda azul-safira, que combinava com a cor dos seus belos e grandes olhos. Um cinto de prata, incrustado de finas pedrarias realçava o talhe esbelto das duas criaturas, que não se diria mãe e filha. Samuel por sua vez, extremamente semelhante ao progenitor, era de porte elevado, tez morena, olhos negros e expressivos, revelando sempre uma certa melancolia, que se tornava patente a todos.
— Estás doente, meu filho? interpelou-o Plotino, quando a família se achava reunida quase à hora de partirem. — Não, querido pai, estou perplexo por ter de experimentar uma desconhecida emoção, indo ao castelo de vosso amigo Argos Zenóbio, sobre cujo procedimento as opiniões divergem. Eu preferiria que não nos levásseis ao Solar de Apolo, concluiu o jovem, fitando-o com visível amargura.
Emérita, que era supersticiosa, preocupada com os pressentimentos do seu filho, empalideceu subitamente e disse:
- Não fales assim Samuel, porque atrai infelicidade, Aposto que amanhã bendirás as horas felizes que vamos viver. Estas emocionado porque é a primeira vez que vais a uma festa importante!
- Deus vos ouça, mãezinha, respondeu Samuel, que a seguir acrescentou sorrindo algo a contragosto: Vejam como são as coisas: mamãe, que a princípio não queria ir, parece que é a única que está realmente alegre, tanto que está mais bonita e animada do que Anália. Nunca vos vi tão bela, minha mãe. Pena é que não estejamos todos com a mesma disposição de espírito, pois vejo papai e Anália meio tristes e adivinho que de bom grado renunciariam o divertimento.
- Pelo que ouço, falou Emérita com ironia, já fostes contaminados pelo pessimismo de Plotino, para quem a alegria pecado mortal. Para vós todos a vida consiste apenas na ingestão de alimento e no trabalho, sem nenhum momento de despreocupação que suavize as agruras da existência. Só profetizais decepção e tormentos, do berço tu mulo, sem nenhum fugaz encanto para o coração.
- Somente agora decifro as razões da tua perpétua melancolia! exclamou Plotino com a voz alterada por secreta angústia. Como soubeste dissimular por tanto tempo os teus verdadeiros sentimentos, que hoje explodem!
- Jamais te disse que não apreciava festas! Foi numa festa que me conheceste, e continuo a achá-las encantadoras, replicou Emérita arrogante.
- E quando estavas num baile, deleitada pela música, pelas iguarias saborosas e entre o entusiasmo esfuziante dos demais convivas, não te assaltava uma sensação de futilidade e hipocrisia?- Não, absolutamente. Se formos raciocinar assim, tudo nesta vida é fútil e inútil porque tudo acaba num túmulo. Se a perspectiva de morrer já é de si tão triste, esqueçamos que a morte um dia cortará o fio da nossa existência e vivamos alegres e despreocupados, tanto quanto possível. Há quem ame o silêncio e a monotonia da vida doméstica, com as mesmas dificuldades e as mesmas lutas de sempre, mas eu não acho que o véu de noiva seja mortalha.
- Estou surpreendido com as tuas revelações, Plotino. Vou de assombro em assombro! Tuas palavras são de um coração árido, desprovido de sentimentos afectivos, em que predomina o egoísmo. Nunca imaginei que tivesses um coração insaciável, ávido dos falsos e corruptos prazeres mundanos. O lar para ti é um castigo, uma prisão! A companhia dos seres que te amam, é monótona, sem atractivos. Não só me ofendes, como ofendes a Deus com a tua ingratidão, pois graças à protecção das mensageiros da sua caridade, jamais tivemos um dissabor profundo, e temos sido poupados pelas desditas, tão comuns no mundo em que vivemos. Que mais querias tu, Emérita?! Não profiras mais essas queixas insensatas e injustas, pois Deus pode te castigar fazendo-te conhecer a verdadeira desgraça!
— Quem não deve não teme e eu não ofendo a Deus quando sustento que temos o direito de procurar alegrias lícitas, em convivência com os seres amigos.
— Mamãe, exclamou Samuel, fitando-a com dolorosa surpresa, estou vos desconhecendo! Eu pensava que não tivésseis outras preocupações senão o nosso lar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:29 am

Agora começo a perceber que vós, sempre compassiva e meiga, tendes outras aspirações, que o vosso mundo não é apenas o nosso, ideais esses que não se coadunam com os do nosso afectuoso pai!
— Eis o erro que todos cometeis: lar, sinónimo de prisão e isolamento. Mas, por que? porque uma mulher sensata, mãe de família há de se enterrar viva entre as quatro paredes do lar?
— Porque a verdadeira ventura terrena deve pairar na tranquilidade das habitações honestas, no aconchego dos entes queridos, falou o jovem com desconhecida eloquência.— Eu desconheço estas expressões em teus lábios, Samuel! disse-lhe a progenitora fitando-o surpresa. Dir-se-ia que estudaste bem as lições com teu pai, para que as transmitisses com fidelidade, como se já tivesses a experiência de um ancião!
— Lamento o vosso equívoco, querida mãe, porque considero papai nobre demais para transmitir-me pensamentos que viessem causar-vos pesar. Mas a verdade é que a razão está com ele.
Anália, que aguardava um ensejo para desviar o debate, interveio:
— Deixemos de discussões, pois a nossa união é a nossa força e a nossa riqueza.
Vamos, isto sim, ver se não falta nada, pois está chegando a hora da saída.
Uma carruagem tirada por quatro cavalos ajaezados com apuro, viera postar-se à porta. Mais algumas recomendações ao mordomo e Plotino Isócrates acompanhado da esposa e dos filhos, tomou lugar na viatura, que se pôs em movimento.
Sentado em frente à Emérita, Plotino pôde examiná-la bem. Nunca a vira tão bela, ou nunca ela lhe parecera tal? perguntava a si mesmo. As recentes disputas haviam servido para verificar quanto a amava ainda, e mesmo, que a amava cada vez mais. Sentia-se apaixonado, sofredor e angustiado com o pensamento de que não era correspondido. Ali estava, fria e arrogante, mas bela como uma rainha, aquela que era há muitos anos a sua quase exclusiva preocupação terrena. Um riquíssimo ornamento em forma de diadema cingia-lhe a fronte, multiplicando a beleza do seu nobre semblante.
— Sinto-me abafar sob esta capa de peles, murmurou ela.
Plotino ajudou-a a desenvencilhar-se do valioso abrigo, importado de longínquas regiões setentrionais, e quedou embevecido e magnetizado. O busto elegante e soberbo de Emérita, destacava-se sob a magnífica túnica reluzente, bordada de ouro e filetada de pérolas, deixando a descoberto o níveo colo imáculo. Mordido pelo ciúme, Plotino falou com certo sarcasmo:
— Estás hoje mais bonita do que no dia do nosso casamento! Dir-se-ia que apuraste mais o vestuário para esta festa do que para os nossos esponsais! — Não me recordo mais como estava naquele dia. As noivas geralmente ficam atónitas. É como um terremoto, o casamento.
— Pois eu me lembro perfeitamente, volveu Plotino. Estavas inexplicavelmente triste, absorta, e no entanto dizias-te alegre.
— Era natural que assim fosse porque o casamento é o ato mais importante da vida feminina. O espírito fica como perturbado de tantas emoções. É o grande dia do destino, para a mulher. Eu era uma inexperiente donzela e o nosso noivado foi rápido demais. Instada pelos parentes, que te elogiavam unanimemente, aceitei teu pedido de casamento, mas teria sido melhor que nos tivéssemos conhecido mais, para sabermos nossos verdadeiros pendores. Se eu soubesse que pretendias retirar-te da vida social para viver enterrado neste ermo, não teria aceito a tua aliança.
Meu coração parece que adivinhava o quanto de renúncia a vida me pediria e não participava da alegria a que eu queria forçá-lo. Lastimava também a separação de meus pais, temendo perder a paz que eu sempre gozara na companhia deles, tão mansos e carinhosos para com todos. Nunca se ouvia sequer uma reprimenda em nossa casa. De repente, como se o destino jurara destruí-la, ficou deserta. Meu irmão mais velho morreu, de uma flecha envenenada que lhe feriu a mão, na guerra contra os persas. Uma irmã casada, que morava connosco, morreu de parto, pouco depois do meu consórcio. O marido, desgostoso mudou-se. Mamãe não resistiu a tantos abalos consecutivos e enfermou gravemente; Papai deixou tudo para permanecer ao lado dela, mas em vão. Morreram com a diferença de dias, um do outro. Talvez eu pressentisse tudo isso. Temia também não encontrar no novo lar a mesma felicidade que desfrutava no domicílio paterno.
— Esse receio acorre às noivas pouco compenetradas da sua missão, disse Plotino. Aquelas que têm o amor por farol, não receiam desventuras problemáticas, porque confiam no afecto do esposo e assim sonham com ininterruptas felicidades.
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Qualquer lugar a que as leve o seu marido, torna-se um ninho de amor e um palácio de fadas, todavia, não quero obrigar-te a pensar como eu e estou cogitando dos meios de restituir-te à liberdade, a fim de que possas viver como entendes e onde quiseres. Há o recurso legal do divórcio, a que não me oporei. E como não quero que permaneças na minha companhia movida pela necessidade, porei à tua disposição os recursos indispensáveis, para que possas viver independente. Tarde descubro que não me amavas! Porque então te casaste, se nada te forçava a isso?
— Plotino, tuas palavras mesmas, mostram que não têm razão tuas acusações. Se só agora percebes que eu não te amava é porque nunca te dei motivos para supor que não eras amado. Sempre fui mãe e esposa honestíssima e carinhosa, inteiramente consagrada ao lar, porque pois me diminuis no julgamento dos nossos próprios filhos?
Não prossigas nessa atitude, que só pode lançar a discórdia e a desunião entre nós.
Não sabes que toda casa dividida será destruída? Essa tese é sustentada por aquele a quem tanto admiras: Jesus. Não suscites portanto, essas questões dolorosas, depois de quase vinte anos de existência em comum, e justamente agora que precisamos nos apresentar com o semblante risonho, para não entristecer os demais.
— Queres que eu me mantenha silencioso e concorde com as proposições erróneas que sustentas? falou Plotino. Destruíste o sonho da minha vida, e em boa hora me permitiste o engano d’alma em que vivia, e não queres que eu procure esclarecer e solucionar a situação que se criou? Emérita, prosseguiu ele pertinaz, muito temos ainda que conversar.
— Então é melhor voltarmos, Plotino. Para que comparecer a uma festa patenteando sofrimento? Nossos filhos não se divertiriam.
— Não! respondeu Plotino. Agora é tarde. Iremos de qualquer forma. Não me disseste que adoravas as festas? É impossível recuar, a sorte está lançada!
* * *
O restante da viagem transcorreu em silêncio tumular. Ao se aproximarem do Solar de Apolo, feericamente iluminado, perceberam o ruído característico das grandes festas. Chegavam-lhes aos ouvidos os sons dos instrumentos musicais, entrecortados por vozes e alegres risadas. A sege deu entrada no imponente castelo, acorrendo logo, dois criados que conduziram o veículo até o lugar de descida dos convidados. Meio atordoados, os familiares de Plotino agruparam-se por um momento junto à escada de mármore que dava para o salão, engalanado magnificamente para a recepção dos convivas. Luzes e flores em profusão. Em vários pontos, pequenas mesas artisticamente enfeitadas, sobre às quais, viam-se pratos de prata contendo doces e iguarias. Pares e grupos formavam-se em toda parte, rindo e conversando animadamente. Bancos no jardim ofereciam a quem quisesse repousar um pouco, momentos de trégua na ruidosa folgança. No topo da escada achava-se Argos Zenóbio, vestido em grande gala e coroado de rosas. Revelando a consideração que dispensava aos recém-chegados, desceu imediatamente, para recebê-los e apresentar-lhes as boas-vindas. Saudou atenciosamente, e com um gesto largo, dirigindo-se a Plotino, exclamou:
— Nobre Plotino, é uma honra que concedes a este solar comparecendo à minha pobre festa, acompanhado da tua família. Digna-te a subir.
Após algumas frases amáveis e as apresentações usuais, o elegante grupo deu entrada no recinto principal, já repleto de pessoas. Zenóbio acompanhou os amigos ao vestiário, onde lhes foram servidos perfumes e ungidos os cabelos com óleos aromáticos, segundo o costume da época. Hábeis músicos dedilhavam citaras e harpas, tímpanos e atabales, mantendo os convidados entretidos enquanto se aguardava o início das danças. Depois de retirarem os luxuosos mantos, dirigiram-se para o centro do salão, fantasticamente iluminado. Fileiras de lanternas multicores pendiam das altas traves e dos festões artisticamente lançados de uma janela a outra. À medida que se aproximavam do meio da sala, os circunstantes, compreendendo que se tratava dos convidados de honra que haviam chegado e que a festa ia começar, iam fazendo silêncio e prestando atenção ao grupo, do qual, sobressaíam a elevada estatura do anfitrião e a resplendente beleza de Emérita. Enquanto isso, os músicos tomavam lugar no balcão da orquestra e os fâmulos corteses sustavam por um momento o oferecimento de doces e licores.
— Amigos! disse Zenóbio em voz alta, estendendo os braços para a frente e para o alto, o Solar de Apolo se orgulha com a presença de tão selecta sociedade. Eu vos agradeço o vosso comparecimento e vos ofereço esta festa. Não é ainda a que eu desejava apresentar-vos e eu vos rogo que releveis as deficiências que observardes. É porém o máximo que me foi possível obter nas atuais circunstâncias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:30 am

Minha felicidade é completa com a chegada do meu distinto amigo Plotino Isócrates e sua Exma. família. Expandi portanto, a vossa alegria, meus caros convidados! Ocupai os vossos postos. As danças vão ter início!
Palmas e vivas atroadores, saudaram as últimas palavras de Zenóbio e a orquestra atacou uma alegre peça musical.
Em sinal de deferência, Argos Zenóbio, solicitara a Emérita que lhe concedesse a primeira contradança. Obtida a anuência protocolar de Plotino, estendeu o guerreiro a mão possante sobre a qual Emérita depôs, trémula, seus níveos dedos. Aos compassos da música, desfilavam os pares em longos serpenteios, enquanto do alto choviam pétalas de flores, lançadas por mãos invisíveis. Um momento havia em que o cavalheiro enlaçava a dama pela cintura e voluteava, ocasião em que os pares podiam conversar mais livremente.
— Emérita, murmurou então Zenóbio, ainda estás tão encantadora como quando te conheci com dezasseis anos de idade! Foste meu único sonho de ventura sobre a Terra, e debalde, tenho procurado esquecer-te. Só compreendi quanto te amava quando percebi que nunca serias minha! Destino infausto o meu! Jamais pude amar outra mulher, e tive. de permanecer solteiro, esperando que a morte viesse pôr termo à minha vida inútil. A despeito de todos os perigos,, tenho sido poupado e eu vejo nesse fato, um sinal de que os deuses, penalizados do meu sofrimento, pretendem favorecer ainda a nossa união.
— É impossível, Argos, falou Emérita, emocionada. Agora é tarde. Sou mãe de dois filhos já moços e Plotino tem sido irrepreensível para comigo.
— Mas tu me amavas também. Lembras-te como feliz e alegre era o nosso namoro?
— Sim, mas depois desapareceste e eu pensei que nunca mais te veria.
— Fatal erro, aquele! Como não percebi logo que não poderia viver sem ti?
Porque retardei a minha decisão de pedir-te em casamento? Estamos moços ainda e talvez possamos recomeçar a vida. Sou bastante rico para viver folgadamente em qualquer país do mundo e se a tua felicidade não for completa ao lado de Plotino, eu me proponho fazer-te feliz. Diz-me francamente: és venturosa?— Difícil uma resposta sincera, Argos! Plotino é austero, cumpridor dos seus deveres domésticos e carinhoso para com os filhos, aos quais parece adorar. Nada nos falta em matéria de conforto, mas...
— Este "mas", diz tudo, Emérita. Atenção, dissimulamos. Ele nos observa disfarçadamente com o olhar desconfiado e rancoroso! Vejo que te ama apaixonadamente. Todavia, não renunciarei, visto que te conheci e amei primeiro.
— Não rememores o passado longínquo, Argos!
— Porque não hei de lembrá-lo se é a minha única fonte de felicidade? Já soube que não és feliz, embora há pouco, tenhas dito o contrário! Naquela ocasião, eu não pude lutar pela tua posse, porque os meus recursos eram limitados, e eu não havia herdado ainda este castelo, hoje engalanado para receber-te. Foste compelida a te consorciares com um falso amigo, seduzida pelas promessas falazes de Plotino, que me venceu nesta batalha, à traição.
Se ao menos me houvesses pedido para esperar-te, murmurou Emérita, possuída de tremor nervoso que foi notado por Argos. Não sou ambiciosa e teria preferido a tua relativa pobreza à opulência de Plotino, a quem eu não amava e a quem apenas aceitei para aliviar a aflitiva situação económica do meu pai, que mal ganhava o necessário para viver. Plotino nada me deixa faltar, excepto a liberdade. Não sou senhora de receber visitas nem de fazer as que desejo, devido à estreita sujeição em que ele me mantem.
— Vives prisioneira, Emérita? Queres te libertar do cruel verdugo, querida?
interrogou Argos arrebatado, fixando o olhar enérgico em Emérita. E como esta estivesse prestes a desmaiar, de cansaço ou de emoção, susteve-a e parou.
— Queres repousar no aposento destinado às damas? perguntou com meiga solicitude.
— Não, Argos, já passou o que sentia. Não convêm despertar as suspeitas de Plotino, que afecta desinteresse mas certamente nos observa.
— Emérita, falou Argos, antes de nos separarmos, quero que reveles a verdade integral: ele não te trata com a atenção devida à tua beleza e honestidade?— Às vezes. Nem sempre estamos de acordo quanto às diversões, que ele detesta! Considera a esposa uma enclausurada no lar, sem direitos de espécie alguma, sem poder frequentar a casa das pessoas amigas ou deleitar o espírito nas reuniões sociais. Foi com bastante relutância que me trouxe, bem como aos nossos filhos, que é a primeira vez que assistem a uma festa.
— Ele suspeita da nossa antiga afeição, Emérita? Saberá que muito nos adoramos ainda?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 10:30 am

— Não sei. Não posso dizer-te ao certo, mas presumo que sim, porque é bastante zeloso em tudo que diz respeito à minha pessoa. É melhor não nos falarmos mais. Agora tudo está perdido!
— É o que supões. A vitória coroa os persistentes. Poderemos gozar ainda infindas venturas! Depende de ti. Se quiseres eu te libertarei!
Os últimos acordes da orquestra extinguiam-se e os pares voltavam lentamente aos primitivos lugares. Em vez de conduzir Emérita ao lugar onde estava o esposo, Argos dirigiu-se para uma mesa onde se achavam as bebidas e enquanto a servia, lhe disse:
— Necessito falar-te seriamente assim que for possível. Vendo-te, ressuscitou em mim, com intensidade, o afecto que te consagro desde a juventude!
— Não penses mais no passado, Argos, pois tenho que seguir meu destino!
— Não somos escravos do destino! Nós o fazemos e modificamos. Os fortes vivem como querem, os fracos como podem.
— Assim parece, mas a realidade nos ensina que o destino tem uma força que ninguém pode dominar, nem Júpiter!
— Eu o dominarei, respondeu Zenóbio levando ao tórax a destra cerrada. Vais compreender tudo dentro de poucos minutos. Assim dizendo, Argos retirou-se do salão.
Entrementes, Plotino se acercava e com acerba inflexão falou à esposa: — Recordaste longamente o passado, entabulando uma interminável palestra com Argos, não é verdade, Emérita? Devia ser bem interessante o que faláveis, pois a fisionomia de ambos revelava incontida emoção.
— Estranho que hajas, de longe, observado os nossos rostos, mas isso não me conturba, porque tenho tranquila a consciência.
— Se seguisses os ditames da consciência, pensarias mais nos teus filhos e não relegarias teu esposo a uma posição secundária e ridícula. Não me iludem ambos e só te peço que vejas onde pisas e aonde te leva o inescrupuloso Argos.
— Quem achas que sou, retrucou Emérita, alguma esposa sem dignidade e pundonor?
— Repito: cuidado, estás à beira de um abismo. Depois não te queixes de mim.
Imagino facilmente o que se passou no teu coração ao reencontrar o antigo afeiçoado, aliás, também actual, pois nem procuraram ocultar a simpatia que sentem um pelo outro. És mais leviana do que eu pensava.
— Enlouqueceste, Plotino? interrogou-o Emérita lívida e assombrada.
— Não, absolutamente; antes houvesse enlouquecido para não perceber a extensão da minha desventura. Nossa aliança é finda, Emérita. Fiz tudo o que estava ao meu alcance para tomar-te feliz. Fracassei. Não te culpo por não gostares de mim, pois estas coisas não se forçam. Apenas, já que me aceitaste por esposo, exijo lealdade. Se não te importa a reputação, tem dó ao menos dos teus filhos, sobre cujas cabeças inocentes desabarão as ruínas do nosso lar. Sem lar poderei viver, mas sem honra não.
Emérita estava como que fulminada; cambaleou e teria tombado ao solo se o marido não a houvesse amparado. Diversos pares, que dançavam alegremente, aproximaram-se para auxiliá-la. Argos, que tendo regressado, observava de longe a eleita do seu coração, aproximou-se de Plotino interpelando-o emocionado:
— Que é que sucedeu a vossa esposa? Está enferma?
— É uma indisposição passageira, respondeu Plotino afectando serenidade.
Ultimamente sua saúde não anda muito boa. Por isso quase perdíamos esta admirável festa e a ela só comparecemos em consideração à vossa antiga e leal amizade. Argos julgou perceber uma leve ironia no fim da frase e procurou o olhar de Plotino, mas não encontrou a solução que esperava.
Emérita refazia-se do delíquio.
— Seria conveniente repousar alguns momentos naquele triclínio, senhor! disse Argos apontando para um compartimento contíguo, para onde todos se dirigiram.
Samuel e Anália, que dançavam alegremente, vendo a progenitora amparada, passar o lenço na testa lívida, aproximaram-se aflitos e com os olhos lacrimosos interrogaram:
— Que foi papai? Mamãe está se sentindo mal?
Emérita pervagou o olhar em torno e encontrando o dos parentes, disse com voz débil:
— Vamos para casa!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:33 pm

Os filhos beijaram-lhe as mãos com ternura e ansiedade. Plotino retirou-se rapidamente para procurar o palafreneiro e sua sege, enquanto os filho carinhosamente ajudavam Emérita a levantar-se e iam buscar os mantos no vestiário. Argos, que os acompanhava, aproximou-se disfarçadamente de Emérita dizendo-lhe quase em segredo:
— Coloquei no bolso direito do teu abrigo, um minúsculo bilhete em que explico como podemos reconquistar a felicidade quase perdida. Mandarei em breve ao teu castelo, um falso mendigo, para trazer a resposta.
Emérita fitou-o com tristeza, sem dizer palavra e dos seus olhos azuis-turqueza, que as lágrimas tornavam mais belos, fluíram duas gotas ardentes.
Antes do carro partir, o médico do solar, a mando de Argos, apresentou-lhe um copo com poção calmante e fez entrega de várias plantas aromáticas, cuja cocção, dizia, restabeleceria a circulação e exerceria função benéfica sobre o organismo.
O baile, que havia sido suspenso por momentos, prosseguiu após o lamentável incidente mas com menor entusiasmo. O retorno ao lar, foi silencioso, evitando todos acordar Emérita que caíra em brando torpor.
Acompanhemos o sono da esposa de Plotino: ao pôr-se a carruagem em marcha, Emérita sentiu as pálpebras cansadas e cerrou-as. Aos poucos foi-se delineando na sua memória a imagem do médico do solar de Apoio, cuja fisionomia se tomou estranhamente nítida. Estarei sonhando? perguntava ela a si mesma. O ancião parecia fitá-la com os grandes olhos calmos, ao mesmo tempo que dizia: dorme. .. dorme... Sob a influência daquela ordem, Emérita adormeceu completamente. Simultaneamente tinha a impressão de flutuar no espaço e a seguir de penetrar numa sala escura, na qual sentado numa mesa coberta de livros e papiros, achava-se o herbanário, que lhe dizia:
— Chamei-te minha filha, e nada temas. Teu corpo repousa sob o efeito sedativo da infusão que te ministrei. Acordarás melhor, porém ouve: Estás sob a ameaça de graves sucessos, e precisas revestir-te de muita prudência para não seres tragada pelo temporal que ajudaste a desencadear. Trata-se de uma prova necessária ao progresso do teu espírito, que sempre tem fracassado nela. Conspiram contra ti todos os defeitos do teu carácter: o orgulho, a vaidade, a inconformação, o egoísmo e até a ingratidão.
Acautela-te pois, a fim de não sucumbires à tentação. Se conseguires triunfar, teu fardo será aliviado; se tornares a fracassar, se agravará e muito a tua situação, porque todos os auxílios te foram prestados e não terás atenuantes. Sou guia espiritual e de Argos pedi a missão de encarnar para estar ao vosso lado nesta provação. Não reincidas nas graves faltas do passado. Ora sempre a Jesus, para que te dê forças e vencerás. Adeus..
A imagem do velho herbanário foi-se distanciando lentamente, até desaparecer no infinito. Outros sonhos lhe povoaram a mente. Quando acordou, achavam-se já perto do Solar de Minerva. Anália, que retinha entre suas mãos as da sua mãe, exclamou:
— Estás melhor, mamãe?
— Sim, onde estou?
— Estamos quase chegando. — Ah! É verdade, murmurou em tom doloroso, recordando-se subitamente do que se passara.
Plotino quebrou o silêncio que se fizera:
— Não falais nada, meus filhos? Manifestai a vossa opinião sobre a grande festa a que comparecestes. Pareceis decepcionados, no entanto Zenóbio esmerou-se em nos proporcionar todas as diversões que se poderia esperar.
— Depois o farei, pai! explicou Samuel entristecido. Receio que mamãe se acha seriamente enferma, para desmaiar sem motivo em pleno salão.
— Deve ter sido fraqueza, interveio Anália, pois com os preparativos há dois dias, que ela não se alimentava direito.
Plotino pôde admirar a nobreza de sentimento dos filhos, que com estas explicações procuravam desviar a suspeita de que o delíquio de Emérita tivesse alguma relação com o reencontro dela com Zenóbio. E imerso em profundas cogitações, manteve-se em silêncio até o fim da viagem.
Ao saltarem, Samuel exclamou:
— O melhor da festa é chegar em casa!
Todos riram diante da observação do jovem, que alegremente se desfazia de capas e adornos e respirava a plenos pulmões a atmosfera acolhedora do lar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:33 pm

E como se achassem todos fatigados, retiraram-se para os dormitórios. Anália abraçada a Emérita e Samuel conversando com Plotino. Eis o que dizia o mancebo, em voz baixa:
— Paizinho, sede paciente com minha mãezinha querida. Ela há tempos já vem dando estes sinais de esgotamento nervoso. Evitai discutir com ela, que parece realmente enferma e sofredora.
— Justamente essa aparência de martirizada é que me ofende até o recesso da alma! Não sei mais o que fazer para contentá-la. Mas já descobri a causa dessa insatisfação: é que ela não ama ao teu pai e ultimamente a minha presença tornou-se-lhe insuportável e cansativa.— Não digais isso, paizinho, disse Samuel. Não me façais chorar. Mamãe está mesmo doente. Consultai um médico e vereis que voltará a alegria e a felicidade ao nosso lar.
— Está bem, filhinho, disse Plotino abraçando ternamente o filho. Farei o que for possível. Por hoje chega, vamos dormir. Pai e filho permaneceram unidos durante algum tempo num longo abraço, como se desejassem reforçar os laços que os ligavam.
Depois separaram-se, indo cada qual para seu quarto.
* * *
Plotino penetrou sem ruído na câmara conjugal, fracamente iluminada por uma lâmpada pendente da parede. Emérita deitara-se vestida e jazia imóvel no leito, com o braço dobrado sobre os olhos, parecendo amuada.
Ao ver entrar Plotino, que fora sentar-se numa poltrona junto à janela, Emérita levantou-se e dirigindo-se para o quarto contíguo, onde ficavam os armários, disse:
— Vou me despir. Estou cansadíssima.
Retirou os brincos e demais adornos, que guardou no porta-jóias e após alguns movimentos, certificando-se de que não era observada, apalpou emocionada o manto de arminho, encontrando o minúsculo bilhete que nele fora colocado por Argos Zenóbio. Apertou-o na mão sob inenarrável emoção e receosa de perder novamente os sentidos, se o lesse, encerrou-o no fundo secreto de uma das gavetas da cómoda, pensando:
— Amanhã lerei o que ele me escreveu. Agora falta-me coragem para isso, pois não sei o que Argos me propõe.
Ao fechar a gaveta, lembrou-se sem saber, porque do sonho que tivera na carruagem e no qual lhe aparecera o herbanário. "Cuidado", parecia ouvi-lo dizer.
— Que sonho estranho, murmurou. Será um pressentimento? Talvez um aviso.
Preciso redobrar de cuidado.
Voltando ao aposento, viu que Plotino permanecia imóvel, junto à janela, com o olhar perdido no horizonte longínquo. Deitou-se, e ao rememorar os acontecimentos daquela noite repleta de emoções contraditórias, foi presa de uma crise de soluços. — Estás novamente enferma? perguntou o marido com leve ironia na voz.
— Não sei o que tenho, sinto a cabeça vazia e parece-me que vou enlouquecer!
Vou deitar-me no quarto ao lado, para não perturbar o teu sono, disse ela com humildade.
— Não é preciso. O dia está prestes a raiar e amanhã irei dormir noutro quarto.
Não receies, que não a tocarei mais.
— Não me tortures assim, Plotino. Prefiro que me mates logo com um punhal!
— Porque te mataria eu? Não sou teu juiz. Estás no direito de seguir teus caprichos. Deus permite que as suas criaturas realizem as experiências que quiserem, por mais absurdas que sejam, inclusive aniquilarem-se física ou moralmente. Cada um, porém, arcará com os resultados dos seus actos. Escolheste o caminho da revolta e da inconformação. Trilha-o se quiseres. A árvore se conhece pelos frutos. No triste desfecho de hoje, tens o primeiro furto da árvore que resolveste plantar. Podes fazer-me sofrer, mas não roubar-me a paz da consciência. Não te matarei. Bastante punição encontrarás por ti mesma. Não tenho rancor de ti, tenho pena, porque vejo que estás cavando a tua ruína pelas próprias mãos. De hoje em diante és livre, mas enquanto estiveres sob este tecto, respeita-o. Apenas, no interesse dos nossos filhos, sugiro que a separação se faça sem ruído. Poderás permanecer aqui até que estejas em condições de mudar-te. Diremos que vais em busca de saúde, e mais tarde, que nos divorciamos por incompatibilidade de génios. Poderás então satisfazer as tuas pretensões por mais insensatas que sejam!
— Eu nunca agi com insensatez, Plotino! Enxotas-me de casa?! Tua vontade vai ser satisfeita...
— Não! podes permanecer aqui quanto tempo quiseres, mas agora sim, como prisioneira! Proibida de sair de casa sem minha autorização, proibida de falar com quem quer que seja na minha ausência! Sacrificar-nos-emos a bem dos nossos filhos, aparentando sermos ainda marido e mulher.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:34 pm

Perante terceiros falar-nos-emos com naturalidade, embora um abismo nos separe doravante. Pensa e escolhe. Quando te houveres decidido, participa-me. Um vivo clarão do arrebol iluminou a sala. Plotino levantou-se e a passos firmes, como se houvera dormido a melhor das noites, abandonou a estância, deixando Emérita desacordada.
Um ambiente de tristeza reinava no Solar de Minerva. Samuel e Anália, entregues aos estudos, não haviam palestrado ainda com a progenitora, e o pai, mal surgido o dia, ausentara-se de casa.
Emérita, deprimida, mantinha-se isolada, pensativa, não se afastando do dormitório.
Plotino dera ordem ao mordomo para lhe preparar novo aposento, até que a esposa recobrasse a saúde!
À tarde, quando o silêncio se fez mais completo, indicando que não havia ninguém nas proximidades, Emérita se ergueu do leito, encerrou-se no vestiário e retirando do esconderijo o pequenino volume astuciosamente enviado por Argos Zenóbio, leu, trémula de emoção:
"Adorada do meu coração — Estamos novamente na encruzilhada da vida. Não tentes mais fugir deste amor que vinte anos provaram, ser sincero. Planejarei a tua fuga e quando tudo estiver pronto, avisar-te-ei.
Polidoro, meu fiel escudeiro, disfarçado em mendigo, será o nosso mensageiro. Por ti, estou disposto a lutar e a vencer!
Teu
Argos"
O coração batia-lhe com força no peito e um tremor nervoso dominou-a incoercivelmente. Nunca sentira aquela emoção e então, compreendeu quanto excedia ao do marido o afecto que consagrava ao antigo namorado. Uma coragem nova reanimou-a e ela também se sentiu disposta a lutar e a vencer pelo seu amado. Recomeçariam a vida! Eram moços e fortes ainda! Quantos se casam mais velhos do que eles, e conhecem ainda a felicidade! Reconheceu a loucura que praticara unindo o seu destino ao de Plotino — sempre zeloso e exigente. Revia-se na festa em que os conhecera, na flor da idade, e em que ambos, fascinados pela sua formosura, manifestaram a admiração que ela lhes causara nos corações ardentes. Já naquele memorável dia, simpatizara mais com Zenóbio, com o qual percebia possuir maior afinidade. A conversação deste era superficial mas brilhante e alegre, ao passo que a de Plotino versava de preferência, assuntos sérios e enfadonhos. No entanto, ele também fora belo na mocidade. Garboso e impecável, fixava o interlocutor com atenção, devassando-lhe os íntimos pensamentos e desígnios. Ecoavam-lhe ainda aos ouvidos as alegres risadas de Zenóbio e seu génio zombeteiro, em contraste com o génio taciturno de Plotino, que raramente gargalhava. Não obstante, unira-se a este! Ah! se Zenóbio houvesse pedido para esperar! Mas como adivinhar que ele a amava? E Emérita considerou então, a fragilidade da vontade humana, em relação com o destino das criaturas. Uma pequena lacuna, alterara-lhe o curso da vida irremediavelmente!
Sentia que agora era tarde para recomeçar. Apesar de não amar Plotino, tinha confiança nele, sabia-se em segurança ao seu lado. Que fazer?! "Oh meu Deus, auxiliai-me!" exclamou ela.
Sentiu-me subitamente cansada e reclinou-se no leito, com os olhos fechados.
Pareceu-lhe então adormecer e sonhar novamente com o herbanário egípcio que lhe dizia:
— Insensata. Queima o bilhete de Argos. Queres provocar uma tragédia?!
Abriu os olhos assustada, ouvindo ainda nitidamente as palavras do ancião.
Levantou-se rapidamente e sem que ninguém a observasse reduziu a cinzas o escrito comprometedor. Sentiu-se mais tranquila, como se tivesse alijado de si um peso invisível, mas ainda imersa em cruciante incerteza, permaneceu absorta e desanimada.
Uma leve batida à porta fê-la levantar-se, para abrir. Seus olhos nublados de lágrimas, depararam com Samuel e Anália. que tristes e preocupados interrogavam-na:
— Ainda estás doente, mãe? Porque permaneces afastada de nós, que tanto te adoramos?
— Obrigada, meus queridos filhos! Perdoai-me, pois desde ontem tenho tido receio de enlouquecer e chego a pensar em me suicidar para que vosso pai seja ditoso.
Os filhos abraçaram-na ternamente, chorando: — Não deveis dizer isso, mãe. Não vedes que papai vos ama, como aliás todos aqui? Bani do vosso pensamento ideias tão fúnebres. Porque nos fazeis sofrer com a suspeita de que não vos amamos? Vivíamos tão felizes e contentes; depois que começaram as vossas dissensões com papai tudo mudou. O ambiente anda carregadíssimo sem que se saiba porquê. Não há uma razão forte para estarmos todos tão acabrunhados!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:34 pm

Ela os fitou com gratidão infinita e, menos agitada, perguntou:
— Vosso pai já chegou?
— Sim, há poucos instantes, e sabendo que não tínheis saído do quarto o dia todo, mandou-nos vir à vossa procura chamar-vos para o jantar, que vai ser servido daqui a pouco.
Reconfortada, Emérita fez alguns retoques na toalete e, abraçada aos filhos, encaminhou-se para o salão em que eram servidas as refeições dos donos do Solar de Minerva. O marido e os professores saudaram-na, interrogando-a solicitamente sobre o estado de sua saúde. Ela lhes agradeceu a amabilidade com expressões de inequívoca gratidão.
O jantar decorreu calmo e quase em silêncio. A conversação se resumia em uma ou outra observação, feita de vez em quando pelos filhos ou professores com o intuito de quebrar o mutismo pesado e incómodo. Findo o repasto, foram tocadas algumas músicas, após o que recolheram-se todos aos seus aposentos. Plotino, a pretexto de procurar algumas peças de roupa que lhe faltavam, ou que não encontrava, veio até o antigo dormitório do casal. Esperava que Emérita lhe comunicasse a sua decisão sobre a sua formula "divórcio ou prisão", porém a consorte se manteve quieta, inferindo ele que o assunto permanecia pendente. sobraçando seus pertences, retirou-se com um cortez: Boa noite.
Vendo-se só e percebendo que a decisão do marido era inabalável, Emérita atirou-se no leito consternada, conjecturando:
— Infeliz que sou! Não sei que decisão tomar! Argos me oferece a sua protecção, um novo lar mas, não sei porque, não tenho confiança nessa nova ventura. Será a separação dos filhos o que me entristece a este ponto? Ter-me-ei acostumado com Plotino e agora, no momento em que o perco, passei a amá-lo? Quem pode entender o coração humano?! Como é contraditório! Depois de ansiar longos anos por esta libertação e esta união com Argos, vacilo, como um preso que depois de cumprir longa sentença é posto em liberdade e ao sentir-se na rua constata que passara a amar o cárcere. Oh meu Deus, como sou desventurada! Tirai-me desta dúvida, dizei-me o que deverei fazer! Jesus, se existes e és o amparo dos aflitos, como dizem os teus seguidores, tira-me desta aflição atroz.
Um brando entorpecimento invadiu-a toda, como um formigamento. Quis mover-se mas o corpo abatido recusava obedecer-lhe. Entretanto, coisa estranha, não sentia medo, porém calma e bem-estar, aos quais por fim, se abandonou. Tinha a impressão de estarem seus progenitores a seu lado.
Papai, mamãe, onde estareis nesta hora? começou ela a pensar. Porque partistes tão cedo? Se vísseis vossa filha como sofre, compadecer-vos-eis. Inspirai-me!
Uma voz, que parecia ecoar dentro da sua cabeça, nítida mas imaterial, respondeu-lhe:
— Filha de minh´alma, aqui estamos a teu lado, com a permissão de Jesus. Temos orado por ti a fim de perseverares no bem e poderes recolher como prémio a felicidade.
— Eu poderia ser ditosa, queridos pais, murmurou ela, em surdina, se não fora a recordação de ambos e de Zenóbio. Por que não me casei com ele, se nos amávamos?
Por que se afastou de mim quando poderia fazer-me ditosa?
— Filha, tu e Zenóbio têm sido cúmplices de crimes dolorosos em encarnações passadas e estais impedidos de consorciar-vos enquanto não resgatardes os débitos que contraístes para com a Justiça Divina. Precisais aprender a não construir a vossa felicidade à custa dos demais. Sempre que vossas almas se encontram, em diferentes corpos, na terra, não respeitam as barreiras que lhes são opostas pela moral e pelo dever, e isto, longe de vos aproximar, vos tem afastado cada vez mais. Ainda agora, vacilas no cumprimento do dever e esqueces que tens dois filhos adoráveis, pelos quais deves te sacrificar.— Então... devo esquecer Zenóbio?
— Sim, filha querida. É preciso. Lembra-te mais de Jesus, dos teus filhos e do teu esposo, e menos de ti e de Zenóbio.
— Que devo responder a Plotino? Ele parece decidido ao divórcio.
— Responde-lhe que optas pela família.
— Mas as suas condições são severas!
— Sim, todavia ele acabará por perdoar-te.
— E que farei quando Argos mandar saber a resposta ao seu bilhete?
— Responde-lhe negativamente!
— Eu tenho me esforçado para viver em harmonia com o meu esposo, mas este parece adivinhar os meus mais secretos pensamentos, censura-me sempre acremente, sem motivo justificável, e não me perdoará nunca a minha palestra com Argos!
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O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama Empty Re: O solar de Apolo - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:34 pm

— Esforça-te, filha, disse o seu sensato genitor, para viver em harmonia com aquele que é o teu legítimo companheiro nesta existência e que tem motivos para ser desconfiado, porque já foi traído por ti e Argos em anterior encarnação. Ele sabe intuitivamente que vocês se amam. Tens sérios compromissos para com Plotino, assumidos antes de voltar ao corpo físico. Plotino também está resgatando falta idêntica, que o mantêm igualmente separado da sua alma gémea, mas nesta vida tem cumprido rigorosamente o seu dever e é um esposo fiel e dedicado. Reconcilia-te com ele quanto antes.
— Há um mútuo ressentimento, meu pai, em nossas almas, e isso destruiu a nossa harmonia conjugal, talvez para sempre!
— Procura reconquistar-lhe o afecto de modo a que não pairem dúvidas em seu espírito, a teu respeito! Deves dar a seguinte resposta ao sedutor Argos: "Perdoa-me.
Não posso abandonar os filhos que eu adoro. Adeus". — Estamos trabalhando junto a Argos, a ver se o dissuadimos da louca empresa que planeja. Ajuda-nos com as tuas orações. Deus te abençoe. Estas foram as últimas palavras que ouviu. Reabrindo os olhos, viu que anoitecera completamente... Lembrando-se dos conselhos paternos e percebendo que para qualquer lado que se voltasse os caminhos estavam fechados, caiu prosternada, soluçante, e com os braços erguidos rogou ao céu:
— Jesus, compadecei-vos de mim. Implorai a Zeus que me extinga a vida, que se me tornou intolerável sobre a terra! Levai-me para onde se encontram meus estremecidos pais e eu bendirei eternamente o vosso nome!
*
A misericórdia divina nunca desampara os homens e recursos infinitos são movimentados a fim de auxiliá-los. Na maioria das vezes, os beneficiários nem percebem os imensos esforços que foram despendidos para facilitar-lhes o triunfo. É claro que algum sacrifício deve ser feito por quem precisa progredir. A lei é: Ajuda-te que eu te ajudarei. No caso presente temos um exemplo desse postulado: Isolada como vivia do mundo, por uma necessidade do seu carma, Emérita foi auxiliada com o desenvolvimento de faculdades mediúnicas, que lhe permitiriam receber conselhos e advertências de seus pais desencarnados.
*
Durante longas horas a filha do professor Kondilakis meditou nas palavras paternas. Lembrou-se de que um dia, após o seu casamento com Plotino, seu pai lhe dissera com expressão carinhosa:
— Filha, perdoa a teu esposo o não ser apreciador de festejos sociais, onde, muitas vezes, seres humanos, até então de proceder inatacável, são arrastados ao abismo de paixões malsãs. Quantas mulheres têm cometido loucuras irreparáveis! Não te revoltes pois, contra o teu marido, pelo fato de ele não apreciar as vaidades mundanas. Pondera, antes, na correcção com que tem procedido até o presente. Não suponhas que eu me tenha enganado e enganado a ti, aconselhando-te a aceitares a proposta de casamento que Plotino te fez. O homem perfeito não existe. Muito pedi a Deus que te permitisse compartilhar da ventura de outro ser humano, que pudesse proporcionar-te um lar ditoso, onde reinasse o conforto e a paz. Agora que tudo está conseguido, que o Céu realizou as minhas aspirações paternais, sê digna do teu virtuoso consorte e jamais te arrependerás!
Que respondera ela, quando o nobre ancião lhe disse tais palavras? Respondeu, com voz trémula não podendo refrear sua grande emoção:
— Nunca serei ditosa em meu próprio lar, meu pai, pois a imagem de Argos se interpõe entre nós.
— Que dolorosa e surpreendente confissão, filha! Agora compreendo porque vives triste e indiferente aos que te rodeiam de carinhos.
— Foi a Fatalidade que agiu contra mim, meu pai, não permitindo que eu me unisse a Zenóbio.
— Agora, filha, que a situação está definida, eleva teu pensamento aos Espíritos Santos implorando-lhes auxílio para que jamais te afastes da senda luminosa do dever e possas cumprir até o fim os teus deveres conjugais.
Por que sortilégio, essas palavras do seu pai, pronunciadas há tantos anos, voltavam-lhe nítidas à memória? Estaria prestes a enlouquecer? Que faria ela quando Argos lhe enviasse o emissário para colher a resposta decisiva?' Teria forças para dizer NÃO ao amado do seu coração? Quem sabe se a voz que escutara provinha, não do espírito de seu pai, mas de uma alucinação do seu cérebro superexcitado? Desde a véspera parecia-lhe ouvir vozes. A advertência do herbanário seria um simples sonho?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:35 pm

Estes e outros pensamentos fervilhavam na mente de Emérita, empenhada em não abandonar a ilusão de um amor que tudo indicava impossível e criminoso.
Percebendo que sua filha se mantinha irresoluta, nova manifestação foi preparada para a madrugada desse dia, pelas entidades que em vida foram seus pais.
Foi a vez de falar a mãe de Emérita. Aproximando-se da filha adormecida, chamou-a.
Recebendo o apelo materno no íntimo do seu espírito, a esposa de Plotino estremeceu.
— Minha mãe! Salva-me deste abismo!
— Filha, haja o que houver, nunca desmereças do conceito recto da tua consciência. Não desprezes os conselhos que te foram dados por teu pai e pelo bondoso egípcio. Nunca faças jus a censura dos emissários celestes e estes saberão defender-te em todas as emergências da vida terrena. Não te iludas! A alma existe e é responsável perante Deus por todos os seus actos, bons e reprováveis! Não traias a confiança do teu esposo ou a de teus filhos! Toda dor, por mais acerba que seja, encontra compensação farta na paz da consciência. O justo suporta todos os martírios terrenos porque sabe que neste planeta tudo é transitório, e que só Deus é justo. Haja o que houver, aconteça o que for da Vontade Suprema, nossa alma deve estar isenta de máculas. É preferível sofrer o mal, a fazer outros sofrê-lo.
Sê portanto, a lâmpada inextinguível do teu lar, sempre acesa no coração dos entes queridos, para os nortear para o Altíssimo!
— Lembrar-me-ei sempre dos vossos conselhos, minha mãe.
— Deus o permita, Emérita. Conforma-te com o Destino, que é forjado por nós mesmos segundo leis que não conhecemos, mas das quais, não se pode fugir.
— Então, mãe, nossa vontade não impera em nossa vida material? Nossos esforços são anulados, por mais veementes que sejam?
— Nossas aspirações, quaisquer que sejam, tendem a realizar-se. O que não é possível é fugir à consequência dos nossos actos. Deus permite que se pratiquem perversidades porque o sofrimento tem função importantíssima no aperfeiçoamento dos seres. Se nossas maldades ficassem impunes, não nos arrependeríamos de praticá-las. Não conheces o ditado: Quem semeia ventos colhe tempestades? É uma verdade. A lei manda que a colheita seja da mesma natureza que a sementeira. Se semeares espinhos não podes colher flores. Compreendes? Por isso, minha filha, nossos pensamentos devem estar sempre voltados para o bem. Todo aquele que se desvia do caminho do dever, inflige a si mesmo uma rude punição, quer na existência em que errou, quer na subsequente. Tens sido até aqui esposa honesta e mãe zelosa. Não queiras perder o fruto desse nobre procedimento. Muitas vezes, Emérita, no fracasso de um sonho, está o triunfo de nossa alma. Persevera no bom caminho e terás condigna recompensa. Não tem limite o porvir do nosso espírito e a renúncia, para evitar o sofrimento de nosso próximo, é uma das mais gloriosas vitórias da nossa vida! Tens dois tesouros sagrados em teu lar, teus meigos e adoráveis filhos e a estes deves consagrar tua actual existência. Mesmo inditosa, não deves jamais ser infiel ao teu companheiro. Grava, pois, no recesso de tua alma, minhas derradeiras palavras sobre tão melindroso assunto: não desmereças do conceito do teu esposo, mesmo que ele pratique acções condenáveis. Adeus, minha filha. Que o nosso Pai Celestial te abençoe.
***
Deitado na sua cama solitária, Plotino meditava. Os acontecimentos dos últimos dias perpassavam em sua memória nos mínimos detalhes. Tentara uma experiência arriscada: a de levar Emérita ao Solar de Apoio.
— Fiz bem, dizia consigo mesmo; eu precisava ter a certeza de que Emérita ama Zenóbio. Desde que ela soube do regresso do aventureiro, mudou completamente, tornando-se indiferente ao lar e aos filhos. Lembro-me daquele dia já longínquo, em que ela me pediu para levá-la a passeio às imediações do Solar de Apolo. Quando chegamos perto da fortaleza. Emérita disse a Samuel:
— Eu podia ser a senhora deste incomparável castelo ..
— Por que, mãezinha? interrogou o filho surpreso.
— Porque fui quase noiva do seu proprietário.
— Então, Emérita, replicou Plotino repreensivo, confessas que estás arrependida por haver unido o teu destino a quem não possui um alcáçar como este? Tens a coragem de revelar a verdade ao teu filho?
— Falei brincando, Plotino; quis apenas gracejar contigo, mas já estou arrependida de havê-lo feito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:35 pm

— E acaso duvidas, respondeu Plotino, que eu não compreenda que este principesco solar te faz recordar o passado, arrependida por não te haveres consorciado com o seu proprietário? Foste apenas mal inspirada pela ambição que sempre dominou o teu coração: tu te casaste comigo porque Argos desapareceu e naquela época eu era mais rico do que ele. Quando soubeste que ele havia herdado esta magnífica propriedade, grande foi a tua decepção e o teu arrependimento.
— Paizinho, interveio Samuel sempre sensato e ponderado, para que não surja outra discussão como esta, jamais viremos por estes arredores. E assim sucedeu por muito tempo. Por isso, grande foi a surpresa de Samuel, quando seu pai aquiesceu ao convite de Argos Zenóbio, não percebendo que ele tentava uma positiva experiência para melhor conhecer os sentimentos de Emérita!
Várias vezes ela se lastimara em palestra com os filhos, de que o marido lhe proporcionava uma existência confortável, mas de encarcerada!
Sim, tudo ficara esclarecido agora. Emérita não o amava. À luz desta verdade tudo se concatenava e formava sentido: suas queixas, sua tristeza, suas confissões, sua reanimação ao saber que Zenóbio voltara, seu desejo de frequentar festas, seu pedido para ir morar na cidade. Nestas condições, para que reter a esposa a seu lado? Fizera bem em oferecer-lhe liberdade. Ou prisão total, pois Emérita não lhe inspirava mais confiança. Sim, no dia seguinte perguntaria pela opção. E fatigado por estes e outros pensamentos, Plotino adormeceu.
* * *
No dia seguinte, os dois esposos levantaram-se cedo, indo cada qual para os seus afazeres. Denotavam ambos, na palidez do rosto, o drama acerbo que viviam. Um momento houve em que se encontraram casualmente, cumprimentando-se com aparente frieza. Achando-se sem testemunhas, Plotino aproveitou a ocasião para perguntar-lhe:
— Tem já alguma decisão a comunicar-me?
E como Emérita hesitasse, acrescentou:
— Tu tens dois caminhos a escolher, como já disse: a permanência aqui, e agora sim como prisioneira, sem direito algum, ou a separação com o consequente divórcio.
Neste caso, e enquanto proceder bem, dar-te-ei uma mensalidade para o teu sustento.
Ficarás livre, então, dos compromissos familiares que tanto te constrangem, e poderás levar a vida que quiseres, onde quiseres e.. . com quem quiser.
Emérita, que se sentiu ferida por essas palavras, respondeu com rancor:
— Tu falas como se detivesses o monopólio da honra, da fortuna e do destino.
Pois fica sabendo que meus pais me deixaram um nome honrado e nunca precisaram recorrer a infâmias para se manterem. Nem todos podem fazer semelhante afirmação a respeito daqueles que lhes deram o ser...
Plotino saltou:
— Que pretendes dizer com essas palavras reticentes? Já ouviste alguma acusação ou referência desairosa à memória dos meus adorados pais? A que vem essa calúnia extemporânea contra seres que não podem defender-se e que sempre te trataram bem? Fala!
— Não calunio ninguém, mesmo porque és a primeira pessoa a quem falo sobre certos fatos do meu conhecimento e que envolvem o nome de teu pai.
— Faço questão absoluta de saber que fatos são esses, para pulverizar instantaneamente as infâmias. Meus pais eram modelo de virtude, conforme tu mesma pudeste comprovar!
— Não mencionei o nome de tua mãe, que realmente era uma santa, mas o mesmo não sucedia com o meu sogro, Milon Isócrates. Não pretendia revelar-te coisas que me contaram em segredo há muito tempo, todavia, para castigo do teu orgulho direi... Quando eras pequeno, teu pai atravessou uma fase de dificuldades financeiras e por isso, uma noite, apresentou-se com a família neste solar, que pertencia a um tio de teu pai, chamado Cleon. Este, que era imensamente rico, morava sozinho aqui. Sendo viúvo, sem filhos, o seus únicos herdeiros eram Milon e dois outros sobrinhos. Ora, teu pai, soube se insinuar na estima do velho, obtendo permissão para residir em sua companhia. Durante algum tempo, viveram em harmonia, mas por questões de somenos importância desavieram-se, cavando-se um abismo entre eles. Cleon, profundamente desgostoso com a rebeldia do sobrinho, a quem acolhera como se fosse um filho, declarou que faria novo testamento, deserdando-o e pondo em seu lugar um dos parentes afastados. Com esse intuito, preparava-se para ir a Atenas, quando um dia apareceu morto, com o crânio fracturado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:35 pm

É verdade que o assassinato se deu na estrada pública e os seus bolsos apareceram saqueados, como se houvesse sido vítima de vulgares malfeitores, mas as suspeitas recaíram também sobre o teu pai, que a custo livrou-se das acusações de alguns vizinhos.— Tuas mesmas palavras deixam perceber que ninguém presenciou o crime.
Como portanto, afirmar que o autor de tão hediondo atentado, tenha sido a pessoa que recebeu tantos favores do morto? Quem poderá afiançar categoricamente que meu tio foi assassinado pelo meu genitor? Onde forjaste essa calúnia inverosímil, Emérita?
— Calúnia, disseste, Plotino? Queres uma prova do quo acabo de revelar-te e que devias ter suspeitado outrora, apesar da tua pouca idade? Pois bem, se quiseres tirar uma prova cabal do que ora te exponho, poderás obtê-la no Fórum de Atenas, onde se acha o inquérito feito pelo Questor, o qual aborda também o suicídio do teu pai, nas águas do golfo, movido pelo remorso.
— Estas faltando com a verdade! exclamou Plotino, rubro de cólera. Meu pai morreu afogado num desastre, por ter emborcado a frágil embarcação em que saíra para pescar.
— É o que pensas! Chamas-me de mentirosa? Pois eu te digo que quando era apenas tua noiva, muitas foram as pessoas amigas que me aconselharam a desistir do nosso projectado enlace, alegando que eu não poderia ser feliz indo residir no lugar em que foi praticado tão horripilante crime. Fortuna mal adquirida não traz sorte, diziam todos.
— Se eu soubesse do que agora me relatas, há muito teria vendido este desditoso solar e partido para longínquas terras, e que talvez ainda faça, em breve. Quando as pessoas que nos cercam são falsas e sabem inventar tragédias deploráveis e inacreditáveis, convém que nos afastemos delas, para sempre! Devias ter usado de lealdade para comigo e não permanecer muda tanto tempo.
— Era minha intenção jamais referir-me a esses dolorosos episódios, e se agora o fiz, foi em revide às tuas injustas acusações.
— Darei providências imediatas para a descoberta da verdade. Confesso com sinceridade que quando meu pai foi vítima de um acidente marítimo (tinha eu então apenas dez anos), percebi que algo de muito grave ocorria em nosso lar, mas somente hoje tenho a noção exacta do que se passou, visto que ninguém, nenhum amigo teve ânimo bastante para me narrar a verdade. Sei que minha mãe vivia imersa em dissabor inconsolável, mas eu atribuía tudo ao profundo amor que a ligava a meu pai. Vou apurar nos tribunais o que de fato se passou, e se não houver nenhum vestígio, ficará patente a falsidade da calúnia que veiculas contra a honra da minha família. Agora descubro mais uma das razões porque relutaste em aceitar-me por companheiro de existência. Infeliz que sou! Estão realmente mortos para sempre meus pobres sonhos de terna felicidade!...
No rosto de Plotino estampou-se um profundo desalento, e aquele homem usualmente enérgico, fechou os olhos para esconder as lágrimas.
— Aceitei teu pedido de casamento, continuou Emérita, porque me inspiraste afecto, a despeito das referências desfavoráveis feitas a meu pai por pessoas idóneas, às quais respondi que nenhuma culpa te cabia nos infaustos acontecimentos.
— Agora compreendo tudo! Basta! Mas, por que não foi terminado o processo contra meu desditoso pai? Por que continuou na posse de uma propriedade em litigio, havendo outros herdeiros presumíveis? Como terminou a questão judiciária? Que fim levaram os parentes longínquos de meu tio? Por que se eclipsaram eles para sempre?
A estas perguntas Emérita não soube responder cabalmente e a palestra terminou com os cônjuges mais desavindos que nunca.
Depois deste incidente, Plotino ausentava-se do lar sem comunicar à família o verdadeiro motivo das suas idas a Atenas, mas, pelo postilhão(1) que o conduzia, soube-se que ele procedia a demoradas pesquisas nos arquivos do Foro Criminal daquela cidade.
Poucos dias após, vemo-lo dirigir-se à Emérita nos seguintes termos:
— Conseguiste plenamente o teu escopo: lançar-me o desespero n'alma!
— Eu o fiz involuntariamente, em ato de legítima defesa. Qual a culpa que me cabe se apenas reproduzi opiniões alheias referentes a meu sogro? Obtiveste confirmação de que foi ele o autor do crime? Já investigaste o que há?
— Em parte... Há efectivamente um processo contra meu pai, sobre o qual recaía odiosa suspeita. No entanto, minha mãe ganhou a questão e continuamos a viver neste castelo, eu e ela. A morte de meu pai determinou o encerramento do inquérito.
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— Sim, houve um parente de tua mãe, de grande prestígio no governo, que intercedeu por ela e conseguiu abafar o processo, invocando a morte do acusado.
— Eu soube que a desavença entre meu pai e tio Cleon surgiu de uma intriga, pois foram dizer a este que o seu sobrinho queria libertar-se do seu benfeitor para apoderar-se imediatamente deste solar. Talvez algum servo desleal, com o intuito de obter possível recompensa pela denúncia. Quem sabe se não foi o mesmo servidor que assassinou meu tio, pensando ser agradável a meu pai e que depois, como este recusasse aprovar a sua ignominiosa acção, vingou-se arrojando-o ao mar? Compreendo agora que algo de muito grave ocorreu neste castelo e já que tudo aqui me recorda fatos dolorosos, vendê-lo-ei na primeira oportunidade. Venceste, Emérita, conseguiste arrasar-me totalmente. Pensei salvar a honra no meio dos destroços do meu lar, mas também ela perecerá na catástrofe!
* * *
A revelação feita por Emérita, das circunstâncias que rodeavam a posse do solar, provocou em Plotino, um doloroso aturdimento. Um pensamento, dentre todos os que fervilhavam no seu cérebro, predominava: possuía uma riqueza quase ilícita, que podia ser contestada a qualquer momento por parentes do morto. Que teria acontecido se o Solar de Minerva houvesse passado a outras mãos, ficando ele e sua progenitora na penúria? Qual fora o amigo que a protegera para sustar a acção judicial, e com que intenção o fizera? Como sincero amigo ou com interesses inconfessáveis?
Uma invencível tristeza apoderou-se do castelão, que embora houvesse presenciado as duas tragédias sucessivas, do assassinato e do suicídio, só agora compreendia o significado delas. Que juízo faria do seu próprio progenitor? Teria mesmo tentado impedir que o seu tio Cleon fizesse novo testamento extinguindo-lhe a vida?
Teria aquele bondoso ancestral prometido deserdá-lo, conforme diziam? As recordações que tinha de seu pai, falecido quando Plotino ainda era criança, testemunhavam seu carácter amoroso e solícito. Procurava na memória um acto de violência que tivesse sido praticado pelo seu genitor, e não encontrava. Ainda existiriam, no próprio castelo em que residia, algumas pessoas contemporâneas dos trágicos acontecimentos? Existiriam ainda, algures, os legítimos herdeiros do Solar de Minerva? Porque se haviam eles eclipsado até então, quase vinte anos após o doloroso fato que tanta magoa lhe causava? Estas e outras conjecturas lançaram Plotino em estado de grande depressão moral e abatimento físico, causando surpresa aos que o fitavam, o seu súbito envelhecimento.

FIM DO LIVRO I
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 06, 2023 8:36 pm

LIVRO II

1 - O Reflexo do passado
Moralmente vencido pela incerteza que pesava sobre a origem da herança que lhe coubera, Plotino deixara de assediar Emérita. Que ela ficasse morando no castelo ou resolvesse partir, era-lhe agora quase indiferente. Agarrava-se desesperadamente à hipótese de que o pai e seu tio houvessem sido assassinados. Por quem? Com que intuitos? perguntava a si mesmo. Enquanto não soubesse, sua preocupação não teria fim.
— Porque não morri antes? dizia consigo. Teria sido melhor cair no campo de batalha do que carregar o peso desta dupla desgraça: ficar sem honra e sem lar! Sou um espectro vivo. Que caminho tomarei?
Menor não era a perturbação em que se via envolta Emérita. Ela, que outrora se fazia notar pelo seu dinamismo e alegria, deixou de buscar o convívio dos entes queridos: seus dois filhos e algumas moradoras do castelo mais chegadas. Encerrava-se em seus aposentos particulares, afirmando necessitar de silêncio e isolamento por achar-se enferma e excessivamente nervosa. Samuel, sempre atencioso para com sua progenitora, saíra à procura de um famoso médico, o qual prescreveu um complicado tratamento à base de tónicos e estimulantes. Os saraus musicais foram inteiramente abandonados e as lições eram dadas como que a medo, em voz baixa. Um véu de tristeza cobria a mansão desde o infausto dia em que Emérita regressara doente da grande festa havida no Solar de Apolo. Não mais se ouvia o canto das lavadeiras nem as gostosas gargalhadas que vez por outra partiam das dependências dos empregados.
Os próprios pássaros pareciam ter fugido do arvoredo. O silêncio reinava nas vastas edificações, que se diria desabitadas.
Um desalento invencível se apoderara da castelã, e o seu organismo, abalado por violentas emoções, apresentava graves desequilíbrios. Era-lhe um tormento a vida como transcorria, apesar de estar morando num aprazível castelo onde havia todo o conforto material. Sentia-se atribulada, desgostosa, com frequentes crises de choro seguidas de prostração. Parecia-lhes que os seus filhos, outrora tão carinhosos, andavam arredios.
— Certamente me censuram o não haver reprimido os galanteios de Zenóbio e julgam-me causadora da actual situação, pensava ela.
Perdera, pois, desde então, o conceito dos que lhe eram carinhosos e que agora só lhe dirigiam palavras convencionais. Plotino mantinha-se irredutível e apenas a cumprimentava. Dois professores cujas esposas estimava, alegando necessidades várias, haviam-se retirado do castelo acompanhados de suas famílias. Mas, o que mais a afligia era o dilema em que se encontrava: permanecer ou fugir? O amor que dedicara a Zenóbio na juventude, e que supunha extinto, renascera ardente e embriagador. Ele nada perdera da sua fascinante personalidade, antes, tornara-se mais atraente. Revê-lo causara-lhe as mais gratas emoções e ainda agora, pensar nele era-lhe uma agridoce mortificação. Tardiamente verificava que só a ele dedicara o seu coração. As demonstrações de apreço que ele lhe havia prodigalizado na festa, causando até estranheza aos presentes, tangiam as suas fibras emotivas fazendo-as vibrar. Se ele se tivesse mostrado indiferente, talvez ela também tivesse podido permanecer fria, mas o reencontro fora cordial e afectuoso e isso avassalara-a completamente. Teria forças para recusar-se a acompanhar Argos se ele a chamasse, sentindo-se desprestigiada e infeliz em seu próprio lar? Passando e repassando na memória os fatos idos, sentia-os reviver cada vez mais nítidos e detalhados. E concluiu que não lhe seria possível resistir ao apelo de Zenóbio.
Concebeu então um plano que, posto em execução havia de resolver a situação: o suicídio! Sim, ocultar-se-ia num sepulcro e isso a libertaria das dúvidas e entre-choques em que vivia. Não desobedeceria ao espírito do pai, que lhe recomendara o sacrifício da permanência no solar; nem causaria mais desgostos a ninguém. Só ela sofreria as consequências daquele amor insensato. Esperaria Argos no céu; retirar-se-ia do mundo que lhe recusava a felicidade a que se julgava com direito e estaria solucionado o problema em que se debatia. O esposo, cego de ciúmes, a desprezara ao perceber que ela amava a outro, embora tivesse sido até então honesta e austera cumpridora dos seus deveres. Subitamente, lembrou-se de que Zenóbio ainda não mandara buscar a resposta ao bilhete que lhe escrevera... E se o mendigo aparecesse, de repente? Devia dar-lhe uma resposta que não lhe concedesse esperança de um novo encontro, dissuadindo-o de reatar um afecto condenado pelo juiz irrecorrível que na terra se chama — Destino!
Deprimida por estas considerações, foi dominada por um tremor nervoso e percebeu que a febre se instalara no seu organismo.
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