LUZ ESPÍRITA
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Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:01 pm

Dor Suprema
ZILDA GAMA

DITADO PELO ESPÍRITO VICTOR HUGO

índice
LIVRO I - Sonho e realidade
LIVRO II - Castelos desertos
LIVRO III - Clarões e penumbras
LIVRO IV - Ressurreição do passado
LIVRO V - Da desilusão ao abismo
LIVRO VI - Os Filhos das Sombras
LIVRO VII - Os Legionários da Luz
LIVRO VIII - Os Pioneiros do Bem
LIVRO IX - Nas fronteiras do Céu
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:02 pm

LIVRO I - SONHO E REALIDADE

CAPITULO I
Há, no Sul da Europa, um país afamado, de céu sempre azul, clima suave, frat as deliciosas, separado das outras nações fronteiriças por elevadas serranias - balizas de granito e neve - os Alpes - parecendo pedestais da estátua de um Prometeu (1) invisível, erigida por arquitectos visionários, a fim de que pudesse ele escalar o Infinito constelado, para lhe roubar as luzes inextinguíveis e resplandecentes dos astros, para, de seus blocos, poder plasmar as efígies dos heróis e dos deuses imortais...
Quase todo o seu território se assemelha a um fragmento de perna de um guerreiro destemido, que, desejando atravessar o Mediterrâneo a nado, em direcção ao Ocidente, se afogasse em suas águas revoltas, e, então, desaparecendo o corpo ciclópico, dele restasse apenas uma gigantesca e eterna bota marcial...
É ele banhado por dois mares quase paralelos, os quais se reúnem na extremidade meridional por um amplexo permanente e perpétuo, qual o de dois irmãos gémeos, que, tendo de separar-se, antevendo infindas saudades, se abraçassem, estreitamente por toda a consumação dos séculos, não almejando apartar-se, jamais:
o Adriático e o Tirreno...
É a terra dos sonhadores e dos artistas, dos belos vinhos, dos vulcões violentos, das ruínas milenárias, das tragédias emocionantes, onde viveram Doges e Césares, onde as gôndolas deslizam, serenamente, no dorso esmeraldino do Adriático...
Já sabeis, leitor amigo e perspicaz, que me refiro à Itália, a pátria maravilhosa de Alighiéri, de Da Vinci, de Cícero, de Petrarca, de Marco Aurélio...
Silenciosamente, por meio do pensamento - o rádio humano, de origem divina, o maior portento da alma, invisível e perene fagulha do Criador - penetremos em uma formosa habitação romana, na era em que reinava o intrépido Júlio César (2).
Nas proximidades do Platino, erguia-se uma construção de maravilhosa arquitectura, obra surpreendente de escultores anónimos, símiles dos pequeninos e operosos agentes neptuninos (3), que edificaram os mais assombrosos monumentos, e, logo, humildemente, se eclipsaram nas trevas das águas, sem que, jamais, aflorassem à superfície marítima...
Nela residia um ex-procônsul da Aquitânia, uma das mais famosas províncias dominadas pelos Romanos, e, actualmente, território francês, o qual será designado nesta narrativa pelo nome de Numa Tarqumio, cuja crueldade atingia o fantástico!
Consorciado com uma jovem de peregrina formosura, notável pelo físico e pela alma, opostos aos do esposo, esse contraste valia pelo que se observa entre uma rosa de púrpura aveludada, cheia de aroma e orvalhos celestiais, e um asqueroso verme, abrigado em sua corola, a sugar-lhe a vida, gota a gota...
Ela vivia em tormentos incessantes, e não podia suportar, sem íntima revolta, as iniquidades que o consorte praticava, sentindo-se acorrentada, pela Fatalidade, a um déspota crudelíssimo, infinitamente infortunada, no palácio principesco, tal um rouxinol cego, preso em gaiola de ouro e diamantes, dentro de cerrada noite perpétua, sem um vislumbre de alvorecer ou de liberdade...
Chamava-se Clotilde, e não tinha visto, pela vez primeira, a luz solar na Cidade Eterna, mas em uma das menores ilhas Baleares (4).
Seus progenitores, membros ilustres do patriciado Romano, eram de opulência régia, probos e altivos, dotados de rara pureza de carácter.
Residiam eles, quando Numa Tarquínio se relacionou com os fidalgos insulares, em solitário castelo de cantaria, edificado no cimo de colina escarpada, parecendo alvo alcíone, aninhado em um alteroso vagalhão de espumas, subitamente petrificado ao influxo de poderoso Mago, que o tornasse imóvel por todo o sempre. . .
Circulavam o solar, de estilo vetusto, resistentes muralhas, que o tornavam inexpugnável, excepto à direita, onde existia íngreme e longa escaleira, ao passo que, à esquerda, havia um rochedo de cor sempre sombria, o qual nunca fora escalado, tão abrupto era, eriçado de agulhas graníticas, como se fossem espadas gigantescas de um exército temeroso que, repentinamente, tivesse sido paralisado e empedernido por um poder invencível. ..
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:02 pm

Derivou-se dele o nome do castelo - Rocha Negra.
Ali, naquela região alcantilada, viveram os progenitores de Clotilde, o casal Donato Moréti, em completa harmonia, seus numerosos serviçais, seus jovens filhos - Fláyio e Clotilde, Pedro Naldi, heróico e denodado guerreiro, já viúvo, seu filho Luciano e alguns mercenários(5), que, em caso de assalto, seriam os defensores do castelo.
Flávio era de estatura mediana, trigueiro, de olhos negros e expressivos, revelando sentimentos indómitos e profundos.
Clotilde era alva como as camélias da Palestina, vistas cm noites de plenilúnio, com um ténue nacarado nas faces, cabelos castanhos, com reflexos dourados, lembrando o decantado mel do Himeto(6), longos, veludosos, encaracolados; olhos da mesma cor das madeixas, maravilhosos, suaves, nostálgicos, fascinantes.
Seu aspecto era o de Aspásia(7) ao desabrochar da juventude .
Foram ambos educados por eméritos professores, alguns deles atenienses, que lhes proporcionavam variados conhecimentos literários, artísticos e filosóficos, de acordo com os ensinos pitagóricos, dos Quais seu progenitor era fervoroso adepto.
Raramente se ausentava Donato do castelo, preferindo a paz do lar, com os entes que lhe eram caros, livre de lutas bélicas, tão frequentes na época, e que serviam para os ambiciosos se apoderarem dos haveres dos vencidos...
Prevendo, sempre, um assalto a seu pacífico Solar, o austero e previdente senhor (que dera provas de intrepidez, e havia fracturado um braço em encarniçada investida contra as Gálias), não se descuidava de pesquisar os arredores de sua sólida habitação, reforçando, quando necessário, as muralhas que a circulavam, excepto do lado esquerdo, que se comunicava com o Mediterrâneo e com intransponível penedia.
- Nunca provocarei uma agressão, dizia ele, convictamente, aos amigos; mas saberei repelir os ousados aventureiros que infestam o Mediterrâneo...
Seus fâmulos, que eram tratados com brandura inigualável, quando saíam a serviço do Castelo eram às vezes provocados pelos fundibulários(8) perigosos, existentes naquelas regiões insulares, invejosos da existência tranquila, laboriosa e confortável, que desfrutavam na Rocha Negra.
Os servos de Moreti, porém, ordeiros e probos, não davam ensejo a contendas, e, não lhes respondendo aos doestos provocadores, retiravam-se, cortesmente, e levavam ao conhecimento de seu amo o que lhes havia sucedido.
Viveram, desse modo, serenamente, por mais de dois decénios, os habitantes da Rocha Negra.
À sombra das muralhas havia frutos e flores, paz espiritual, conforto nos lares; pois, além da do castelão, existiam outras famílias, dignas de conviver com a dele, fraternalmente, desempenhando modestos misteres.
Desse viver e quietude, o mordomo do alcáçar, Pedro Naldi - destemido cabo de guerra, companheiro inseparável de Donato, quando combatiam nas Gálias - no caso de uma investida, à mão armada, seria o defensor.
Havia, ao alvorecer, exercícios militares, findos os quais, os que neles tomavam parte se entregavam a úteis misteres.
- Enquanto estamos em paz - dizia Naldi, sorrindo - meus soldados são operários, agricultores e industriais...
Assim, nunca perdem eles seu tempo precioso, e servem, incessantemente, à Pátria e à Família!
Naldi era viúvo; tinha, porém, para lhe alegrar a existência, um formoso e adorado unigénito, que herdara os nobres predicados paternos.
Era ele, na época a que nos reportamos, um mancebo de quatro lustros de idade, de altura mediana, porte airoso, olhos castanhos, cabelos ondulados, de um louro intenso de avelãs sazonadas.
Desde que nascera Clotilde, quando contava ele quatro anos de existência, sentiu-se atraído por seus encantos infantis, e dedicou-lhe profunda afeição, que se foi vigorando, no percurso da vida, e transformando em veemente amor; fascinado por sua peregrina formosura física, aliada à de sua alma angelical, que parecia transparecer-lhe no olhar, onde havia um fulgor estelar...
Era, a filha de Donato, a irmã que nunca tivera, a mãezinha, que nunca beijara, arrebatada ao túmulo ao dar-lhe a existência, qual se fora a sua própria, que se desprendera de seu corpo, para se infundir no do débil nascituro...
Luciano acompanhara-lhe os passos desde a puerícia, ouvira-lhe o balbuciar das primeiras sílabas dos vocábulos, que todos julgam impregnados de uma candura e suavidade celestes, parecendo fragmentos de um idioma extra-terreno, desconhecido no mundo sublunar...
Eram inseparáveis, desde o rosicler da existência.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:03 pm

Ele a seguia, e, quando Clotilde percorria as aleias do grande parque do solar, oferecia-lhe pomos de flores, com gentileza cavalheiresca; depois, estudava a seu lado, nos mesmos livros, e com os mesmos professores.
Viviam ambos, enfim, inebriados por uma ventura inexprimível na linguagem humana, não desejando outra sobre a Terra, senão a de não se apartarem jamais, fundindo em uma só as duas almas, e, assim sempre unidos, partirem para as mansões siderais...

(1) Prometeu, deus do fogo, fílho do Titã Japoto, e irmão de Atlas.
(2) Júlio César, célebre general romano, conquistador das Gálias, foi ditador, e morreu apunhalado por Bruto, seu filho adoptivo (44 a. J.C.).
(3) Agentes neptuninos ou neptunianos, relativos ao Oceano.
Depósitos de terrenos, formados pelas águas marítimas e por lnlusórios; muitas maravilhas do Oceano são devidas aos agentes neptuninos.
(4) Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, actualmente sob o domínio da Espanha.
(5) Mercenários, soldados que, não pertencendo a nenhum exército, serviam, por dinheiro, a qualquer pais.
(6) Himeto, monte grego, célebre pelo excelente mel, e pelos mármores que possuía.
(7) Aspásia, mulher de Péxlcles, afamada por sua beleza.
Nasceu em Mileto - na Asia Menor.
(8) Fundibulários, jogadores de funda, arte em que se celebrizaram os habitantes das Ilhas Baleares.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:03 pm

CAPITULO II
Amanheceu um dia de incomparável encanto, no início de radioso estio no sul do Velho Continente.
Não longe do solar da Rocha Negra, o Mediterrâneo resplandecia com fulgurações de esmeraldas, fundidas aos ardentes raios solares, cintilando como se fossem tesouros de pedrarias orientais, liquefeitas ao influxo de áureo condão divino.
O impulsivo Flávio, fatigado da reclusão em que vivia, ávido de actividade e emoção, propôs aos genitores uma excursão marítima.
Possuíam os castelões uma sólida chalupa, que, quando necessário, fazia o transporte de visitantes e víveres, de uma ilha para outra.
A ideia do mancebo foi recebida com aplauso, excepto por Luciano, que, sem atinar com a causa, teve um súbito sobressalto, e ficou apreensivo, pressagiando algum sucesso desagradável...
Seu desvelado genitor, o chefe das armas do alcáçar, tentou desvanecer-lhe os infundados receios, dizendo-lhe :
- Meu filho, não há prenúncio de tempestade...
Eu não me aventuro a ir contigo porque, além de estar um tanto enfermo, quero sempre permanecer como atalaia vigilante, no meu posto de honra, pois sei quão cobiçado pelos corsários é este solar...
Luciano calou-se, e foi incorporar-se aos itinerantes.
Clotilde, trajando formosa túnica azul safira, com um peplo (9) dourado, dir-se-ia uma aparição olímpica, tal a sedução que irradiava de todo o conjunto harmónico.
Foi ela quem insistiu com Luciano para tomar parte no passeio; e ele, fascinado por sua gentileza, não teve ânimo de contrariá-la, embora desejasse ficar em companhia do venerável genitor.
Ele vestia uma túnica rubra, de inimitável primor; e, ao lado da donzela, formava tão gracioso par, que, ao vê-los, os progenitores de ambos entreolharam-se, sorrindo, abençoando-os com olhar carinhoso, cheio de lágrimas de júbilo, compreendendo que uma era o complemento do outro, que o berço já os havia ligado, qual o Destino o faria, certamente, até o derradeiro instante de vida terrena.
Quem os visse, ao lado um do outro, belos, e em plena juventude, logo perceberia que lhes prendia as almas um vínculo luminoso e indestrutível de afecto profundo, havendo uma afinidade espiritual absoluta entre ambos, parecendo irmãos no físico e nos sentimentos, estátuas de jaspe e ouro, modelados por um mesmo escultor genial e portentoso - Deus!
Clotilde semelhava-se, pois, mais a Luciano do que a Plávio, parecendo isso, a todos que os viam, um capricho sugestivo do Destino, porque não percebiam a revelação insofismável da intervenção divina em duas almas que haviam atingido o mesmo nível de conhecimentos humanos, de moral e de sentimentos, tornando-se gémeas pelas conquistas espirituais realizadas, irmanadas pelos mesmos e sublimes ideais.
Nunca se haviam apartado um do outro, nem agastado mutuamente.
Uma estreita comunhão de pensamentos fizera penetrar-lhes nos corações emotivos uma intensa e inalterável afeição, desde os primeiros tempos de existência.
Naquele dia, sem que ambos pudessem averiguar a procedência de seus presságios, mostravam-se entristecidos e apreensivos ...
Flávio, ardente e aventureiro, temperamento ao contrário do da irmã e do companheiro de infância, mostrava-se exultante, e acompanhava os aprestos para o passeio com inaudito interesse.
Seu pai, que o olhava sorrindo, observou-lhe:
- Parece-me que nasceste para argonauta, Flávio!
- E' verdade, meu pai - respondeu-lhe o jovem, com incontido entusiasmo, vendo-se observado pelo condescendente genitor - dir-se-ia que descendo dos antigos e intrépidos argonautas gregos, dos que fizeram parte da expedição do inesquecível Argos(10)
... Quanto anseio por avistar novos horizontes, empenhar-me em alguma empresa arriscada!
Morro de tédio nesta monótona Rocha Negra!
Já não tolero a fastidiosa filosofia pitagórica e socrática ... que eu julgo impraticável em nossa era!
Não nasci para esperar serenamente os acontecimentos, mas para ir ao seu encontro, agir e triunfar das lutas, para entrar na actividade de uma vida cheia de aventuras e heroicidades!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:03 pm

Como tarda o momento de me incorporar a uma Legião romana, para combater ao lado de Júlio César, conquistando novas glórias para nossa Pátria, em longínquas paragens, além dos mares embravecidos!...
- Muito folgarei, Flávio - disse-lhe Donato com tristeza manifesta em seus olhos glaucos - que cinjas a tua fronte com os lauréis das vitórias guerreiras, mas quanto me custará a suportar a tua ausência, ou morte, talvez, meu filho!
Os pais extremosos transmitem um átomo de sua própria vida aos filhos, dos quais ficam sendo, perpetuamente, uma fracção integrante, inseparável por todos os séculos...
Só se sentem eles integrados quando os têm perto de seu coração, ao alcance de seus braços, para os apertarem de encontro ao peito, que, em cada palpitar, profere os seus nomes queridos!
Quando eles se ausentam, ou morrem, não vivem os progenitores como vivem as outras criaturas: falta-lhes algo em suas almas, sentem-se incompletos, desditosos, e, desde então, a luz^ da vida vai-se-lhes extinguindo lentamente, qual a de uma lâmpada sagrada à qual ninguém mais deitasse uma gota de óleo...
É o grande amor que te consagro, Flávio, que me faz adiar, sempre, o instante temido para as lides guerreiras. Insulei-me do mundo, para poder conservar intactos os tesouros que o Criador do Universo me concedeu - minha esposa e meus filhos!
É o bendito egoísmo do amor paterno que te torna infortunado, meu filho!
Quantas vezes antevejo, com lágrimas secretas, o instante de nosso apartamento!
Quanto sofrerei, sabendo que a tua vida se achava em perigo incessante, pressagiando que jamais regressarás a nosso lar até hoje tão feliz, que vais encontrar uma cova ignorada, muito além, muito longe das fronteiras de nossa Pátria, em inóspita paragem, sem ao menos poder cobrir de flores a tua desconhecida sepultura...
- Mas, querido pai, não pensemos nos infortúnios, e, sim, nos louros do triunfo! exclamou o jovem, com vivacidade.
- Flávio, na vida humana as venturas são raras, ao passo que as desditas não têm limites...
Júpiter (11) que te inspire e te proteja, filho meu!
Os olhares do mancebo, onde fulgurava o brilho da excitação, incidiram sobre o formoso par composto de Luciano e Clotilde, que, a curta distância um do outro, enlevados pelos mesmos sentimentos de ternura, olhavam o chamalote de esmeraldas e ouro, do inquieto Mediterrâneo, alheios ao mundo real...
Flávio, depois de percorrer a chalupa, após os últimos aprestos, quando a viu em movimento, aproximou-se de Luciano, desejoso de expandir os seus mais íntimos pensamentos, e interpelou-o:
- Sabes que anseio por ser legionário de César, combater em regiões longínquas?
Não sentes o mesmo entusiasmo pelas conquistas de lauréis, que certamente farão feliz a Pedro Naldi, de quem deves seguir os heróicos feitos?
- Confesso-te, Flávio - respondeu-lhe o interpelado, percebendo o alcance dessas palavras - que não experimento o mesmo entusiasmo que manifestas pelos sangrentos triunfos de Marte... (12)
Nasci para viver em paz com a humanidade. Se tiver de combater a teu lado, verás que não sou covarde; mas, parece-me que, longe da Rocha Negra, morrerei de nostalgia. . .
- Acaso amas o lar paterno mais do que eu, Luciano?
- Os temperamentos divergem de um indivíduo para outro, Flávio! Não posso menosprezar o afecto que consagras a teus progenitores, meu amigo, mas, não devo deslembrar que meu pai, exausto de arriscadas campanhas, já se acha mais próximo do túmulo do que o teu, e, por isso, não tenciono apartar-me dele, para que, caso venha a faltar, tenha quem o substitua na defesa do alcáçar.. .
- Louvo muito os teus dignos propósitos, retrucou Flávio, com alguma ironia, mas, será somente por causa de teu nobre genitor que se torna tão penosa a tua ausência da Rocha Negra ?
- Certamente, não! - respondeu-lhe, lealmente, Luciano, percebendo a alusão - todas as pessoas que connosco privam merecem também a minha estima e consideração...
Flávio abrangeu-o e à irmã em um só lance de vista, e, como para melhor completar seu pensamento, disse, intencionalmente:
- Olha, caro Luciano, antes que eu seja legionário (13); sem conquistar lauréis... não deixarei que me prendam o coração!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:03 pm

Luciano permaneceu silencioso por alguns instantes; compreendia lucidamente a alusão de Flávio, não o considerando merecedor do afecto da irmã; sentiu a vibração da ofensa, mas, ponderado e digno, querendo evitar um atrito com o companheiro de infância, pode, de ânimo sereno, replicar-lhe:
- Meu amigo, eu te considero o irmão que o Destino não me concedeu, e, por isso, não desejo ocultar-te os meus mais secretos pensamentos; já que desvendaste o sigilo de minh’alma... eu te direi que jamais trocarei os sangrentos louros de qualquer vitória por um só instante da felicidade que desfruto no solar em que vivemos!
Para mim não há glória mais inefável do que a de conviver com criaturas nobilíssimas, em um lar tranquilo, onde imperam os sentimentos dignificadores, onde a virtude é a soberana que reina em todos que o habitam!
- Nasceste para ser patriarca ou patrício romano, amigo! - exclamou Flávio, rindo, com zombaria. - não deixas de pensar com acerto; mas, não devemos dar plena expansão aos sentimentos afectivos, que acabam sempre dominando e vencendo o coração, sem também cultuar os que nos podem impulsionar às grandes e imortais aventuras!
O coração é qual um árdego corcel que - domado com perícia, é vencido; mas, deixado com a brida livre, pode atirar-nos a um abismo...
- Que valor possui o triunfo guerreiro - sempre desumano, conseguido à custa das lágrimas e do sangue dos vencidos - para quem ama a paz, o labor, o estudo, a fraternidade e a ventura suprema, da Terra: a organização de um lar tranquilo e honesto? Devemos dominar o coração quando ele nos impulsiona para as paixões criminosas, e não para os sentimentos puros e nobres!
- E tens a certeza de que conseguirás, como conjecturas, essa ventura suprema? - interpelou-o Flávio, propositadamente .
- Esforçar-me-ei para que ela se torne em realidade! - respondeu-lhe Luciano, empalidecendo apreensivo, pela primeira vez, desde que amava a formosa Clotilde - não considero impossível conseguir o que te expus, lealmente, porque nunca pratiquei um ato que desdoure as glórias de meus antepassados, nem o farei jamais...
Não me julgues covarde, Flávio, pois é possível que ainda combatamos nas mesmas fileiras e, então, verificarás que, embora ame a paz, saberei manejar o gládio... que me causa pavor!
- Bela coragem, a tua, Luciano! - exclamou, rindo com sarcasmo, o filho de Donato Moréti - porque te causa pavor uma tão nobre arma?
- Porque desejaria que todos vivessem em harmonia, em uma época menos belicosa do que esta.
Queria que todos os povos estivessem de comum acordo, que se auxiliassem mutuamente, respeitando reciprocamente os seus direitos sagrados, e jamais tivessem ensejo de se tornar homicidas... considerados heróis, quando vencedores, e escravos, quando vencidos!
Para mim, o verdadeiro herói, bravo entre os bravos, é o justo, o virtuoso, o que sabe cumprir seus deveres terrenos, sociais e espirituais, o que não sacrifica vidas preciosas, mas o que as salva, o que aureola a alma com os louros da honestidade, do Bem praticado, o que não cinge a fronte com os louros que enegrecem o Espírito com as trevas do remorso!
- Não devias ter nascido nesta era, há vinte anos, mas sim, daqui a dois milénios, Luciano! - tornou Flávio, com mal dissimulada zombaria.
És um utopista, e nunca verás realizados os teus ideais...
Sempre, no planeta em que vivemos, maior será o número dos que se digladiam que o dos que se amam...
Fraternidade?!
Aqui, na Terra, no mundo das rivalidades, das ambições e das injustiças?!...
Que absurdo!
Preparemo-nos, sim, para lutar e vencer adversários, não os poupando ... para que eles nos trucidem!

(9) Capa comprida.
(10) Argonautas, heróis gregos, que, no navio denominado - Are"* - capitaneado por Jasão, foram à Colchlda (na Asia ao Sul do Cáucaso) Para conquistar o velo de ouro.
(11) Júpiter ou Zeus, o pai e o soberano dos deuses, na Religião dos Romanos e dos Gregos.
Moréti o invocava, apesar de acreditar na filosofia de Pitágoras e de Platão.
(12) Marte era o deus da guerra.
(13) A Legião Romana tinha 3.000 homens, depois, 5.000 e, enfim, 6.000 homens; 360 cavaleiros faziam parte de cada Legião, que se dividia em 1.000 coortes, estas em 3 manípulos e cada manipulo, em duas centúrias.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:04 pm

CAPITULO III
Donato Moreti que, pouco distante dos dois rapazes, os observava com interesse, aproximou-se de Luciano, que, ao vê-lo, se ruborizou, qual se houvesse pronunciado ofensas contra Flávio...
Pela vez primeira, o austero ancião entabulou com ele uma palestra afectuosa.
Julgando-o, até então, um inexperiente mancebo, qual o próprio filho, ficou surpreso com a sensatez com que dissertara sobre assunto grave - o mesmo que constituirá sempre o seu ideal na Terra: a paz mundial!
- Aprouve-me escutar-te, Luciano - disse-lhe o ancião, com melancolia, apertando-lhe a mão, cordialmente - e felicito-te pelas ideias que acabas de expender, com uma sinceridade em que não posso deixar de crer, com verdadeiro contentamento!
A guerra, a meu ver, é a prova máxima da ferocidade e da vindicta humana...
Nas lutas sangrentas, são sempre imoladas vidas utilíssimas, profanados lares honestos, usurpados tesouros seculares, acumulados às vezes em longas etapas de labor e sacrifícios...
No entanto, os que mais irmãos trucidam e degradam... são os considerados mais famosos heróis!
Só há um motivo que pode impulsionar um povo à luta fratricida: a defesa!
Se fossem as causas justas as vencedoras. .. não teríamos a lamentar tantas desditas; mas, quantas vezes triunfam os opressores e os déspotas!
Essa é a maior calamidade das guerras.
O forte vence o fraco, embora às vezes este esteja coberto de razões...
Vais sofrer muito, Luciano, por causa de teus elevados intuitos, com tua apurada sensibilidade, e a nítida compreensão de teus deveres morais... quando tiveres de empunhar uma arma homicida contra o nosso semelhante...
Quanto me tortura o prever essa era, que já nos atinge, pois tu e Flávio já ultrapassastes a idade de iniciar os labores consagrados a Marte...
- Muito me alegra o saber que não discordais do que censo, senhor - respondeu-lhe o filho de Naldi, exultante por haver encontrado no ancião um valioso aliado.
Eu desejaria, se meus almejos fossem atendidos pelos- deuses, que os homens se tolerassem mutuamente, respeitassem os seus direitos, não ocasionando nunca desarmonias sangrentas, não vivendo como lobos cervais, sempre enraivecidos, ávidos de carnagem!
Mas... que digo eu?
Lobo, por mais feroz que seja, não ataca o seu semelhante; há fraternidade entre as feras, ao passo que os homens, considerados os mais elevados seres da Terra, semelhantes ao Criador na imagem - quase todos se hostilizam, e embrutecem quando empunham armas assassinas!
- Sou de teu parecer, Luciano; e, por isso, até hoje, embora sendo patrício, e tendo o dever de mandar meu filho cumprir um preceito cívico... ainda não o fiz!
Que valem, porém, nossos sentimentos humanitários e fraternos, se estes são incompreendidos por nossos coevos... que mais amam o despotismo e a corrupção de costumes do que a paz e a moral?
Porque abandonei a minha Pátria?
Porque me refugiei em um rochedo, qual alcíone (14) que quer, livre das procelas, construir o seu ninho, longe dos olhares dos abutres mais temíveis para não lho destruírem?
Jamais voltarei a Roma... senão a passeio...
Sou amigo de César, mas não nasci para as inquietações em que vivem os nossos compatrícios.. .
- Ainda irás a Roma, querido Pai, a fim de ver-me chegar de regiões longínquas, em horas de triunfo, conquistado pelas invictas Legiões de nosso magnânimo Júlio César! - exclamou Fláyio, com ardor e despeito por haver percebido que seu genitor esposara as ideias de Luciano, e não as suas.
- Assim o queira Marte, filho meu! - respondeu-lhe Donato, com incontida amargura, pressagiando o contrário do que dissera ao estremecido e afoito mancebo.
Perto do esbelto Flávio, achava-se Clotilde, alva e formosa, cujo semblante esmaecera desde os primeiros remoques do irmão, referentes a Luciano, pois neles descobrira algo de deprimente e injusto contra o seu afeiçoado.
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Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:04 pm

Nunca sentira tão agitado o coração, a augurar-lhe um acontecimento grave, que, certamente, poderia modificar sua ditosa situação, e a daquele que amava com a veemência de quem ama uma só vez na existência...
Dando o braço ao irmão, afastou-se do genitor e de Luciano, dizendo-lhe, com tristeza:
- Desconheço-te, hoje, Flávio!
Dir-se-ia que estás hostilizando a Luciano, teu digno companheiro de infância, um quase irmão, nascidos ambos com diferença de poucos dias!
Já compreendeste, meu irmão, que eu me afeiçoei, profundamente, por ele... não queiras contribuir para nosso infortúnio!
Não percebes as subtilezas dos que amam a quietude de um lar; daqueles que se compadecem dos que nos deram o ser, mormente quando suas frontes já estão alvejadas de neve; daqueles que nos adoram ternamente, vivem de nossa vida, e não se resignam nunca a perder-nos; vendo os que criaram com desvelos e ternura tombar nos campos de cruentas batalhas, pisados esses despojos queridos, pelas patas profanadoras dos corcéis!
Não queiras compelir um amigo, que é altivo, e foi ferido em sua dignidade, com as tuas referencias deprimentes, a partir para uma luta fratricida - que o é toda a guerra - causando, desse modo, duas irreparáveis desventuras: uma, a de seu venerando pai, que pende para o túmulo; outra, a de quem sonha, pela vez primeira, com a felicidade terrena...
- Pois bem, Clotilde - retrucou-lhe o irmão, com certo agastamento - folgo por me haveres externado lealmente, os teus pensamentos...
Quero, também, ser franco, embora preveja que isso te causará desgosto...
Não aprovo a tua inclinação por Luciano...
- Qual o desdouro que lhe notas?
Flávio! - interrogou Clotilde, com vivacidade e agastamento.
- Nenhum, minha irmã, acho-o até um rapaz de nobres predicados morais e intelectuais; mas é muito jovem ainda, não tem méritos que o realcem na sociedade, nem nutre o desejo de conquistá-los, para só então merecer o teu afecto.
És muito bela, Clotilde, e não nasceste para ficar residindo entre penhas; e sim para imperar em Roma, como esposa de um ilustre e vitorioso legionário!
- Não, Flávio! - exclaimou Clotilde, com veemência, eu não quero outra glória... que a de viver, serenamente, ao lado do que amo desde a infância!
- Talvez mudes de parecer, cara
Clotilde, em outro local, sob outro céu, na convivência de uma sociedade culta... - tornou Flávio, misteriosamente.
Mas, vendo lágrimas aljofrarem os olhos cândidos da irmã querida, sentiu-se abalado de remorsos, e disse-lhe:
- Eu gracejava contigo, Clotilde!
Fica tranquila... não arrebatarei tão precioso tesouro!
Assim dizendo, porém, purpureou-se repentinamente como se estivesse mentindo a si próprio, à sua consciência, ou fosse capaz de praticar o contrário do que afirmara à donzela...

(14) Alcíone - ave fabulosa que fazia ninho â beira-mar, quando este estava sereno. (Ave aquática, pernalta; maçarico).
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:04 pm

CAPITULO IV
Flávio, que adorava a irmã, retirou-se para a proa da chalupa - Conquistadora - que já havia partido de Cabrera,(15) poucas horas antes da palestra dos dois jovens.
Pôs-se ele a observar o horizonte com olhar perscrutador, qual se fosse o de um velho corsário, conhecedor profundo da náutica.
Temperamento impulsivo, génio arrebatado, altivo, ressumbrava, em todas as suas acções, lealdade e firmeza de carácter.
Havia muito, percebera ele que a encantadora Clotilde se afeiçoara, intensamente, a Luciano Naldi.
Embora não fosse este, tanto quanto ela, de elevada estirpe, nenhum deslustre apresentava o mancebo, que primava pelos dons intelectuais e morais, e - sabia-o Flávio - nenhuma oposição teria de sua família contra as pretensões esponsalícias dos dois enamorados...
Esperava, porém, que Luciano fizesse jus a alguns lauréis, qual seu denodado progenitor, que se notabilizara nas regiões gaulesas, a fim de que então se efectuassem as núpcias.
Desgostara-o, pois, extremamente, a aversão que Luciano votava as pugnas guerreiras, porque desse modo jamais alcançaria uma vitória; seria sempre um anónimo chefe de família, não se destacando dentre os seus mais ilustres compatrícios; teria, enfim, uma existência obscura, desprovida de glórias cívicas, imolando o porvir de sua irmã, que possuía atributos físicos e morais, dignos de fulgurarem até nos palácios principescos...
Com o seu temperamento impulsivo e leal, muito lhe custaria sofrear tais sentimentos, mas, esforçar-se-ia tenazmente por fazê-lo, para não causar dissabores à sua querida Clotilde.
Adiantava-se o dia.
A Conquistadora sulcava rápida e calmamente as vagas, ouvindo-se o rumor dos remos impulsionados por braços vigorosos.
O Mediterrâneo mostrava-se de um esplendor quase divino.
As ondas pareciam adormecidas em leitos de rainhas orientais, incrustados com todas as turmalinas do Universo.
Dir-se-ia que as leves ondulações que ainda possuíam, eram escamas lúcidas de uma hidra encantada, amortecida ao som de uma longínqua avena de Eolo (16), que a modulasse além das fronteiras de Cartago (17).
A chalupa singrava docemente, ora ao sabor dos ventos, ora movida pelos remos, fendendo as vagas serenas e glaucas, onde, à sua passagem fugidia, desabrochavam diáfanas rosas de branca espuma, logo desfeitas, como efémeras ilusões!
Ao aventureiro Flávio, sempre no encalço de sensações ou de emoções inéditas, maravilhava-o qualquer excursão marítima, sôfrego por abandonar a monótona existência na Rocha Negra, a fim de compartilhar dos prélios perigosos, incessantes quase, entre Romanos e povos adversos, desejo de viver em alguma metrópole movimentada, onde pudesse compartilhar dos gozos e regalias sociais.
Nascera para empreender aventuras temerárias, e não para a placidez dos lares.
Tinha alma de guerreiro, e não de patriarca.
Penalizava-o a resolução paterna de conservar-se ilhado do mundo, evitando lutas e represálias, não percebendo a excelsitude das afeições calmas e inefáveis, que soem abrolhar nos corações de sensibilidade apurada no isolamento e na meditação...
Notava, com desprazer, a crescente inclinação de Clotilde pelo unigénito de Naldi.
Não a condenava por isso, mas desejava que ela - formosa quanto Helena (18), virtuosa quanto Cornélia(19), inteligente e opulenta, tendo pelo lado materno parentesco com a família real dos Celtiberos (20) - desposasse uma personagem de renome mundial, que a tornasse ditosa e célebre na altiva Roma.
Ele, ao inverso de Luciano, amava as refregas arroiadas, - embora nunca houvesse delas compartilhado, por obediência ao genitor - mas sonhava realizar longas e acidentadas viagens; tinha, enfim, como maravilhosamente se expressara o arguto Donato, alma de intrépido argonauta, sempre insaciável de proezas temerárias...
Almejava afrontar um temporal marítimo, e não viajar em plena bonança.. .
Com aspecto sobranceiro, contemplava as vagas até então tranquilas, quase já entediado, enquanto em seu íntimo tumultuavam sonhos e visões de glória e triunfo...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:04 pm

Na extremidade oposta à em que se achava ele, viam-se, belos e merencórios, Luciano e Clotilde, contemplando o horizonte, como se nele tentassem desvendar os arcanos do futuro, silenciosos e apreensivos, sem revelar, um ao outro, dolorosos presságios...
Subitamente, ambos se olharam com os olhos enublados de pranto, a névoa da tristeza que se lhes evolava da alma, como em límpido lago, em noites hibernais, se eleva alva bruma...
Foi Clotilde quem interrompeu a penosa reflexão em que ambos estavam imersos:
- Luciano; - disse ela - muito me inquietaram as palavras de Flávio, pois nelas percebi alguns remoques à tua pessoa, e quero que saibas quanto isso me desagradou...
- Também eu os observei, Clotilde, com acerba surpresa...
Bem sei que Flávio é meu amigo; mas... o que lhe desagrada em mim...
E silenciou, às súbitas, pálido e alterado, tão penoso lhe era o pensamento que concebera, e logo interrompera...
- Que tem ele a dizer em teu desabono?
Luciano.
Acaso não és digno filho de Pedro Naldi, a quem nosso pai deve a vida, e ao qual confia a vigilância do alcáçar em que residimos?
Não é teu genitor um dos heróis das Gálias, amigo de Júlio César?
- Bem compreendo a generosidade de teus conceitos, mas, o que já percebeu Flávio, e não merece a sua aprovação... é o afecto que te consagro, Clotilde!
Ele me quer para amigo, e não para cunhado...
Não me julga merecedor de tão grande ventura. .. e não hesitará em cravar-me o punhal de uma recusa, se eu ousar insistir nas minhas pretensões!
- E não merece ser correspondida a tua afeição?
Luciano! - interrogou a donzela, esmaecendo.
Era a primeira vez que ambos permutavam confidências afectivas, solidificando os sentimentos que havia muito se dedicavam, mutuamente, embora seus lábios nunca os tivessem divulgado...
- Ele não me julga digno de me aliar à tua família, que tem por ancestrais membros de estirpe real... - pôde responder-lhe o mancebo, após segundos torturantes.
- Que importa a realeza? Luciano!
Se às vezes nos palácios imperiais nascem tiranos, bandidos coroados, e numa choupana, pode vir à luz da vida um justo?
Vale, acaso, mais, um reino do que a virtude?
- Obrigado; Clotilde!
Que vale, porém, o teu generoso conceito?
Se a sociedade contemporânea só encontra lustre no que galga posição vantajosa, seja embora usurpador ou celerado...
- Confiemos a nossa causa a nossos progenitores, Luciano, e estes saberão fazer-nos felizes.
Possuem eles a verdadeira majestade - a virtude, que é a soberana de quem Deus reconhece os direitos, e têm o verdadeiro tesouro que pode ser transportado ao Céu. .. porque se acha acumulado.
- Assim o creio, Clotilde, mas se, estando eles já enfermos, baixarem ao túmulo?...
Quem advogará a nossa causa ? na própria alma imortal!
- Quem, Luciano?
Nossos corações enlutados que, perdendo uma irreparável felicidade, não prescindirão da derradeira que lhes restará... a nossa aliança... que eu espero seja eterna!
- Obrigado, Clotilde!
És tão formosa no aspecto quanto no espírito luminoso!
Deves ter sido exilada do Olimpo (21) por alguma deusa... talvez zelosa de tua perfeição...
Quedaram-se ambos, com os olhos enevoados de lágrimas, alheios ao mundo físico, embevecidos pelos próprios sentimentos, que lhes faziam pulsar, celeremente, os corações - onde se albergavam sonhos de ventura inaudita.. . e augúrios dolorosos, porque, nos espíritos dos que se amam, nunca existe a felicidade integra!, devido ao receio de virem a perdê-la!

(15) Cabrera, uma das menores ilhas Baleares, no Mediterrâneo.
(16) Éolo, deus dos ventos, filho de Júpiter e da ninfa Menalipo.
(17) Cartago, cidade da Africa, fundada pelos Fenícios, e destruída no século VII.
(18) Helena, princesa grega, famosa pela sua beleza irresistível.
(19) Cornélia, a mãe dos Gracchos, símbolo do amor materno, da virtude e da coragem.
(20) Celtiberos, povo da antiga Espanha, provenientes dos Celtas e dos Iberos.
Foram os povoadores da Península Ibérica.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:05 pm

CAPITULO V
Repentinamente, uma lufada ardente, partida do Sul, abrasou as faces dos itinerantes.
O velho marujo, que pilotava a chalupa, voltou-se para Donato, e disse, respeitosamente:
- Domine (22), acho prudente voltarmos à Rocha Negra, de onde já partimos há mais de seis horas...
As tempestades por esta época, aqui, são terríveis!
Estas rajadas de fogo, que percorrem o Mediterrâneo, vindas da África, precedem ciclone, ou tempestade violenta.. .
- Pois voltemos ao castelo, sem tardança, Genaro! - ordenou Moréti ao chefe dos tripulantes. *
Um impulso contrário, dado aos remos por braços musculosos, e as velas enroladas nos mastros prenunciaram o regresso dos excursionistas.
Flávio, que escutara a ordem paterna, ávido de aventuras arriscadas, suplicou-lhe, com veemência:
- Amado pai, um momento apenas; dai-me a atenção: morremos de tédio no solar, onde vivemos segregados do mundo...
Estamos apenas a pouca distância da Rocha Negra, e já quereis retroceder?
- Certamente, Flávio! respondeu-lhe Donato, com energia, pois a prudência a isso nos obriga!
Não somos piratas barbarescos para expormos à morte todos os entes que mais prezamos!
- Não dizeis sempre que o nosso destino está traçado pelos Numes (23), e que não morreremos na véspera, mas no instante em que Átropos (24) corta o fio à nossa vida?
- A experiência e a razão inspiram-me precauções contra os perigos, e não afrontá-los sem necessidade.
Flávio! Eu aplaudo a tua coragem, mas não é prudente que, para pô-la à prova, sacrifiquemos a vida de tantos entes estremecidos!
A opinião que repetiste, filho, não é minha, mas a de quase todos os seres...
No entanto, não devemos ser temerários, fazendo jus às punições dos deuses...
- Esperemos apenas alguns momentos mais, meu pai! - implorou Flávio - se os ventos mudarem de rumo, prosseguiremos.
No caso contrário, voltaremos ao cárcere!
Estava encantado com esta excursão... pois, havia muito tempo, me parecia não estar respirando a plenos pulmões; julgava-me asfixiado em um ergástulo!(25).
Ia Donato replicar-lhe, visivelmente contrariado com a insistência do filho em cumprir-lhe as ordens, quando a atenção de todos os que se encontravam na chalupa convergiu para uma imponente galera, que, até então, se achava oculta por uma colma das Baleares.
- A quem pertencerá essa formosa embarcação? - perguntou Flávio a seu pai, já esquecido do desgosto que lhe estava causando. Seu desejo era o de possuir alguma possante galera para realizar infindas viagens, transpor o Mediterrâneo, contemplar novas paisagens, outros horizontes...
A intensa afeição que dedicava aos genitores era um empecilho às suas aspirações, e ele não atinava como poderia libertar-se daquele jugo benigno mas poderoso, que q privava de efectuar seus almejos de glórias e triunfos mavórticos...
Subitamente, a Conquistadora foi abalada por uma impetuosa e ardente rajada de vendaval, que parecia desprendida de uma fornalha chamejante, em pleno maremoto...
- E' tarde para fugirmos ao perigo! - exclamou, com angústia, o velho piloto, dirigindo a Donato um olhar aflitivo - só há um meio de salvação, acolhermo-nos naquela embarcação que se aproxima.
- Rumo à galera! - ordenou Donato, profundamente emocionado.
A chalupa trepidava sobre as vagas, que, bruscamente, quais leões enraivecidos pelo desafio de tigres indianos, eriçassem as jubas e rugissem clangorosamente.. .
O tufão generalizou-se pelo Mediterrâneo, de modo assustador .
As velas foram atadas ao mastro, e, dentro em pouco, a chalupa, sem directriz, cabriolava ao influxo das vagas, que, repentinamente enfurecidas, dir-se-ia terem-se agigantado para lutar com o harmatão (26).
As pessoas que se achavam na frágil embarcação, lívidas de terror, deixaram escapar dos lábios um brado uníssono.
Luciano foi o único que, naqueles momentos apavorantes, assumiu a direcção da Conquistadora, e, mostrando calma prodigiosa, auxiliou o timoneiro no que foi mister.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:05 pm

Seus esforços, porém, foram infrutíferos:
os vagalhões, agitados e erguidos, pareciam muralhas movediças, impedindo os impulsos da frágil embarcação, que começou a adernar...
Um dos marujos embocou uma tuba (27) marítima, e gritou em direcção à galera, que se avistava a algumas centenas de braças de distância do local em que eles se achavam ameaçados de naufrágio:
- Socorro! Socorro!
Vinde em nosso auxílio!
A senhoril e formosa galera começou a movimentar-se em demanda da chalupa, que, sacudida brutalmente pelos vagalhões enfurecidos que a invadiram, estava prestes a soçobrar.
Após momentos de aflição inenarrável, viram-na aproximar-se da chalupa já meio avariada.
Marinheiros adestrados nas lides oceânicas atiraram cabos aos viajantes da Conquistadora; e, com dificuldades inauditas, salvaram os que estavam em iminente perigo, sendo todos transportados ao interior da Imperial.

(21) Olimpo, segundo a Fábula, a residência dos deuses.
(22) Domine, senhor, em latim: dominu".
(23) Numes, cada um dos deuses do paganismo, divindade, poder celeste.
(24) Átropos, aquela das três Parcas que cortava o fio da vida. que as outras teciam.
(25) Ergástulo, prisão subterrânea, da antiga Roma. Cárcere, enxovia.
(26) Harmatão, furacão senegalesco.
(27) Tuba, trombeta marítima, ou falante, porta-voz.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:05 pm

CAPITULO VI
Clotilde, ao primeiro embate da adversidade, alma afeita à paz de um lar virtuoso, não podendo sofrear a comoção que a empolgou, esmoreceu, tendo que ser conduzida em braços, e deposta sobre um coxim de veludo carmesim em faustosa sala, digna de um príncipe oriental.
Nívea e bela, qual efígie da Vestal esculturada por um Praxiteles(28), inspirado pelos Numes celestiais, parecia haver tombado de seu pedestal, tornando-se o alvo de todos os olhares circunstantes.
Rodearam-na os parentes contristados.
Sua genitora, a extremosa Júnia, tentava reanimá-la, fazendo-lhe massagens, com uma loção alcoolizada, nos membros empedernidos.
Luciano, pálido e consternado, não cessava de a contemplar com indescritível ternura, desejando que lhe arrancassem a própria vida para a inocular na adorada desfalecida.
Achavam-se ainda os tripulantes e os servos de Donato assoberbados de emoção pelo perigo que os ameaçara de morte cruel, ouvindo o ribombar dos trovões, os ululos do furacão, e pelas bátegas de chuva que sacudiam a Imperial, quando se lhes apresentou estranha personagem.
Era um homem alto e trigueiro, aparentando mais de cinco decénios de idade.
Seus olhos mostravam uma vivacidade e ardência incomodativas, sempre fixos, lembrando os dos ofídios, que não têm pálpebras, fronte profundamente convexa, nariz adunco, faces cavadas.
A boca, mal delineada, formava uma reentrância nas maxilas, pela falta dos incisivos, fracturados em uma queda de corcel, mas conservava um rictus de escárnio para quantos nele fitassem os olhos.
Eis o aspecto inolvidável da personagem, que encarou os náufragos com petulância.
Trajava alva túnica e uma toga escura, que lhe dava tonalidades desagradáveis à epiderme crestada certamente pela soalheira africana.
Adiantou-se com desenvoltura para os que se abrigaram na galera, relanceando a vista velozmente por todos; e, fitando os olhos abrasadores na amortecida donzela, interrogou os circunstantes:
- A quem tenho a honra de acolher na Imperial?
- A Donato Moréti, veterano, da Farsália(29), esposa, filhos, amigos e servos, domine! respondeu-lhe Flávio com afoiteza, compreendendo que aquele que lhes falara era o dono da galera, e conjecturando logo ser algum excelso Romano, e ansioso de relacionar-se com ele para realização dos seus planos ambiciosos.
- Muito folgam os meus olhos e o meu coração em vê-los...
Donato Moréti é meu conhecido, pois ninguém se esquece de um dos mais heróicos batalhadores da Farsália... onde deixou um braço de Hércules (30) em holocausto à Pátria. ..
Onde se oculta, presentemente, o inesquecível patrício... que jamais foi visto na invicta Roma?
- Em Cabrera(31), no Solar da Rocha Negra... tornou Flávio.
- Em Cabrera?
Uma ilha semi-selvagem!
Como se pode viver em Cabrera! insulado do mundo?
Ser-me-ia mais fácil encerrar-me... em uma cratera de extinto vulcão...
Mas, quem és tu, mancebo?
Algum descendente do Donato Moréti?
- Sou o seu primogénito, domine!
- E... aquela formosa donzela desmaiada ?
- Minha irmã, Clotilde Moréti.
- Estava ela enferma antes do naufrágio da Conquistadora?
- Não, domine!
Ela perdeu os sentidos na hora em que se deu a catástrofe.
- Eu não presenciei o sinistro, encerrado no meu camarote, resolvendo um plano de César...
Apenas ordenei que socorressem os que estavam era perigo de vida...
Empenho-me, agora, em ver tua digna irmã reanimada com as rosas da vida...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jun 03, 2022 8:06 pm

Aproximou-se o Romano, que será designado pelo nome de Numa Tarquínio, da esmaecida Clotilde, tal uma falena nocturna atraída por intensa luz.
Ordenou logo, vivamente interessado pela jovem, que fossem chamar o astrólogo, clérigo e médico de bordo, o qual manipulava, não só as drogas vitalizantes, mas também as destruidoras das vísceras humanas.
Vindo que foi, fê-la aspirar essências de verbena e de outras ervas aromáticas, activou-lhe a circulação com uma toalha áspera, humedeceu-lhe a linda fronte com ura líquido esmeraldino; e, dentro em poucos instantes, reanimada, a donzela descerrou as pálpebras, patenteando, à claridade diurna, seus olhos cor de topázios luminosos, de uma tristeza e sedução inigualáveis, aformoseados por longos cílios, onde fulguravam gotazinhas de lágrimas, buscando o olhar de Luciano.
Menos apreensivos com o estado da filha adorada, Donato e sua lacrimosa esposa dirigiram-se ao possuidor da Imperial, e apresentaram-lhe agradecimentos pela amistosa acolhida que lhes dispensara, e pelos desvelos que lhe mereceu Clotilde, que ambos temeram eternamente arrebatada a seus carinhos. ..
- Eu é que me rejubilo, domine, por vos haver reencontrado, disse Numa com exagerada galanteria e ênfase, bem assim por ter a honra de conhecer os que vos são caros..
. Permitis que eu saúde, especialmente, à vossa encantadora filha?
Com assentimento de Donato ele se abeirou do coxim, onde estava reclinada Clotilde, e falou-lhe com afectação:
- Formosa donzela, eu rendo a homenagem de minha ilimitada admiração à mais bela Aspásia(32) que meus olhos viram... pois, até a era presente, nunca eles contemplaram um conjunto mais harmonioso do que o vosso: descendeis de Júpiter. .. se é que não acolhi na Imperial a própria Anfitrite;(33) o que poderá fazer que tenha de combater com Neptuno(34) ou qualquer outro deus... cioso de meu grande prazer!
Clotilde, ainda aturdida pelo que lhe sucedera, mal percebeu o que o potentado Romano lhe dissera; mas, sentindo uma súbita angústia, que lhe confrangeu o coração, impensadamente, como a pedir-lhe que a protegesse, dirigiu o meigo olhar a Luciano, que empalidecera até à lividez ao ouvir os galanteios de Numa Tarquínio, percebendo lucidamente, mais temerosa do que a tormenta que fustigara a galera, fazendo-a oscilar sobre as vagas enfurecidas.. . essa aproximação do arrogante guerreiro à sua adorada companheira de infância e prometida consorte...

(28) Praxiteles, célebre escultor grego, que maravilhou os antigos com as suas estátuas primorosas de Vénus.
(29) Farsália, hoje Fersala, cidade antiga da Tessália, onde César derrotou Pompeu (48 a. J.C.).
(30) Hércules, herói grego, que conseguiu exterminar a Hidra de Lerna.
(31) Cabrera, a menor das ilhas Baleares.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:18 pm

CAPITULO VII
Quando Clotilde se assenhoreou de suas faculdades mentais, lançou um olhar perplexo a tudo que a circundava - móveis aparatosos, e pessoas desconhecidas - e, soerguendo-se no coxim, perguntou à sua lacrimosa genitora:
- Onde estamos nós, mãezinha?
- Fomos salvos pela tripulação desta galera, filha querida, e devemos ser eternamente gratos ao generoso Romano Que nos mandou socorrer...
- Onde está ele? - interpelou Clotilde, debilmente, relanceando um fúlgido olhar pelos circunstantes.
- Ele se aproxima de ti! - exclamou Flávio, antes que a mãe lhe respondesse, com incontida alegria, mostrando o ex-procônsul, que se detivera a conversar com Donato Moréti.
Numa Tarquínio adiantou-se jubiloso; e, apertando a mão aveludada, e ainda meio gelada da donzela, depois de lhe haver feito exagerada saudação, acrescentou com manifesto agrado:
- Foi o acaso feliz que hoje me proporcionou o ensejo de vos conhecer e aos vossos parentes, encantadora Anfitrite!
Clotilde, ao ouvir-lhe a voz sibilante, e ao contacto de sua mão ampla e descarnada, percebendo que as falanges eram salientes e empedernidas, estremeceu instintivamente, e sentiu o coração agitar-se de súbito, tornando-se-lhe as faces, até então lívidas, de um tom de aurora boreal.
Não querendo, porém, mostrar-se sem gentileza àquele que lhe prestara, e a tantos seres amados, relevante auxílio, respondeu-lhe, com um melancólico sorriso:
- Nem todos os acasos são felizes, domine; e, aquele que bendizeis... eu o lamento, pelas aflições que causou aos que mais amo sobre a Terra...
Seremos, porém, sempre, gratos à vossa generosidade; e, agora, além do nosso reconhecimento, nós vos solicitamos perdão por tanto vos haver importunado!
- Perdoar-vos o prazer que essa bendita procela me proporcionou? Oxalá que a tempestade que agita a Imperial durasse eternamente.. .
- Saberemos corresponder à vossa magnanimidade, domine! - exclamou a jovem, penosamente, empalidecendo e novamente procurando o olhar sereno de Luciano, no qual notou uma sombra de incontido dissabor, pois, no coração de ambos haviam irrompido, às súbitas, presságios de desditas que se desencadeariam sobre eles, originadas pela interferência do déspota em suas até então plácidas existências...
Ansiava Clotilde por subtrair-se à presença e aos olhares de Tarquínio, desejando ficar a sós com os seus genitores e Luciano, que a fixava com enternecimento, revelando a vontade de lhe transmitir secretos pensamentos.
Somente Flávio se regozijava pelo que lhes havia acontecido, conjecturando que, por intermédio do afamado e temido ex-procônsul, sua vida se metamorfosearia, realizando-se seus almejos de aventuras e glórias.
A tormenta continuava, com intensidade, a fustigar a galera, mas, bendizendo-a, Numa ordenou a seus activos serviçais que oferecessem vestes enxutas aos náufragos, e preparassem iguarias deliciosas em homenagem a Donato Moréti e a todos os que lhe eram preciosos.
Quando amainou o temporal, já noite alta, foi-lhes servida lauta ceia, e Tarquínio saudou a seus hóspedes com requintada gentileza, mostrando-se exultante pelo acaso venturoso que os levava à galera, fazendo incessantes libações alcoólicas.
Quando todos se iam retirar para os beliches que lhes foram preparados com magnificência, Luciano abeirou-se .de Clotilde, e falou-lhe, em surdina:
- Preciso falar-te, amanhã, em carácter reservado...
Tarquínio, que não os perdia de vista, achando-os belos e semelhantes, disse a Donato, apontando-os:
- Deveis orgulhar-vos de possuir tão formosos descendentes, domine!
Quão encantadores são os vossos dignos filhos, quer a donzela (que é a mais fascinante que meus olhos contemplaram !) quer os mancebos...
- Agradeço-vos as desvanecedoras referências aos que o Destino me concedeu.
Estais, porém, equivocado, ilustre Romano, quanto aos rapazes, pois somente um deles é meu descendente : Flávio, o trigueiro, que já conversou convosco...
- Oh! justamente o outro que parece irmão gémeo de vossa filha, não pertence à vossa ilustre estirpe! exclamou Tarquínio, com exagerado espanto.
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Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:18 pm

Depois, visivelmente contrariado, fixando o olhar investigador em Luciano, interpelou a Donato:
- Quem é; então, aquele... cavalheiro ?
- É o unigénito do glorioso Pedro Naldi, a quem confiei a defesa de meu solar, no caso de um assalto de corsários...
Eu o estimo tanto qual se fosse realmente um outro filho meu.
É um digno mancebo, possuidor de lúcida inteligência e raros predicados morais.
Luciano inclinou-se, em sinal de cortesia e agradecimento, perante o nobre Donato.
. Numa Tarquínio contraiu os cenhos com violência, e em seus olhos houve um lampejo de cratera em ignição.
Advertido por um recôndito augúrio de que aquele esbelto rapaz era o predilecto de Clotilde, inquiriu ao venerável More ti, afectando não haver percebido a realidade:
- Estes válidos jovens, vosso filho e o outro, ainda não prestaram os seus inestimáveis serviços à Pátria?
- Não... domine! - respondeu-lhe o ancião, a custo, compreendendo o alcance daquela intempestiva interrogação.
Tenho-os educado para a paz; no entanto, ambos são valorosos, e anseiam para tornar-se legionários romanos...
- Que idade têm eles?
- Vinte completos, domine.
- Já ultrapassaram a época de se apresentar às armas, domine - respondeu-lhe Numa, em tom irónico e repreensivo
- Nossa Pátria não pode prescindir do concurso de tão valorosos mancebos.. .
E, assim falando, o ex-procônsul sorriu enigmaticamente.
- Se sois pai, domine - disse-lhe Donato, com altivez - haveis de compreender: maior do que o amor consagrado à terra natal... só o que dedicamos a nossos filhos!
- Percebo a intensidade do amor paterno, domine, mas, se já houvesse ligado o meu destino ao de uma digna compatrícia, e tivesse descendentes, não deixaria de oferecer os varões à nossa Pátria, merecedora do maior sacrifício de nossos corações...
Moréti sentiu que suas faces enrubesceram ao passo que uma algidez polar lhe invadiu os membros.
Para sair do penoso silêncio em que ambos ficaram imersos, Numa, tentando reatar as boas graças de seu hóspede, riu com jovialidade, e disse:
- Não vos contrarieis, domine.
Todos nós temos o nosso ponto vulnerável, um calcanhar de Aquiles (35), e o dos pais é o coração, o órgão mais sensível, pois nele se abriga infinito afecto pela prole, sempre temeroso de que algum perigo lhe possa suceder...
Não vos acuso por isso - admiro-vos, admiro-vos!
Julgo, porém, que, embora muita afeição lhes consagreis, não deveis impedir a estes belos jovens o cumprimento dos seus deveres cívicos!
Ainda vos regozijareis com os louros conquistados por eles...
Um momento de glória, depois de lutas renhidas, domine, vale bem mais do que uma existência secular, mas inactiva, monótona, de paz inalterável...
Numa Tarquínio, terminando o que visara, despediu-se, fazendo votos a Morfeu (36) para que todos tivessem repouso confortador; e, após, ele e seus hóspedes retiraram-se para os beliches que lhes foram reservados.
A chuva, em bátegas incessantes, caía com intensidade, fustigando a embarcação, que, por vezes, trepidava, e parecia prestes a desfazer-se e desaparecer no abismo oceânico...
Com o temporal que abalava o Mediterrâneo, havia a bordo da Imperial, em muitos corações inquietos, o prenúncio de inevitáveis borrascas morais...

(32) Aspásia, mulher de Péricles, nascida em Mileto, célebre pela sua beleza.
(33) Anfitrite, deusa do mar, filha do Oceano, e esposa de Neptuno.
(34) Neptuno, deus do mar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:18 pm

CAPITULO VIII
Ao alvorecer, a chuva cessou.
Luciano, sem haver podido conciliar o sono, levantou-se ao primeiro rosicler da aurora, e pôs-se a contemplá-la do tombadilho da galera, que podia ter ancorado em uma enseada insular, durante a noite, mas, não o fizera porque o timoneiro recebera ordem de se afastar da terra, como para reter, por mais tempo, em seu bojo, os náufragos...
O mar aquietou-se qual leão africano, que, após muitas horas de refregas formidáveis, caísse ao solo exausto, e. vencido pela fadiga, adormecesse profundamente...
O Sol, qual um Lázaro divino, parecia ressuscitar do túmulo esmeraldino das ondas serenas, luminosas pelo esplendor do arrebol, ao influxo maravilhoso de um Jesus invisível. ..
Ao passo que ele se ia erguendo majestosamente, as vagas reflectiam suas radiosidades de ouro e púrpura, qual portentosa apoteose, parecendo o Levante um roseiral dos Trópicos, todo flor e luz, cujas pétalas caíssem ao mar, e se diluíssem ao contacto das águas, ou fossem recolhidas aos leitos das Sereias, em dia de magníficos festivais ou de núpcias de deuses...
Luciano olhava a amplidão cerúlea, embevecido, mas apreensivo.
Por intuição divina, e graças aos ensinos pitagóricos - que lhe haviam sido ministrados por um emérito professor grego - sempre crera na sobrevivência da alma após o desenlace funéreo de uma existência terrena; nas punições e recompensas, conforme o proceder individual
em cada etapa planetária; e, porque sua vida até então estivesse isenta de máculas, idealizava uma ventura inigualável, depois do aniquilamento da matéria, numa região encantadora...
Revelara, desde os primeiros tempos da meninice, ser digno descendente de seus denodados ancestrais, patenteando um espírito austero e reflectido.
Foi criado sem punições, e sem os carinhos de sua mãe, que se alou ao mundo espiritual ao dar-lhe a luz da vida, qual lâmpada que se extinguisse por falta do óleo sacrossanto que alguém vazasse em outro recipiente - e afeiçoou-se intensamente a seu ilustre progenitor e aos membros da família de Donato Moréti, que julgava sua também, tal o carinho com que era tratado por todos eles.
Inteligente, perspicaz, meigo e valoroso, era estimado por todos com quem convivia.
Tendo estudado com os mesmos eméritos educadores de Flávio e Clotilde, e desejando fazer-se artista e não soldado, dedicou-se especialmente à pintura, revelando as suas primeiras telas um idealismo suave e transcendente, que maravilhava a quem as visse.
Progredira nos estudos mais do que Flávio, e isso era um dos motivos de rivalidade secreta entre os dois mancebos, de temperamentos antagónicos.
Luciano era o enlevo, o orgulho e a esperança de seu denodado genitor, que nele concentrava todas as suas mais caras esperanças.
A vida, até então, correra-lhe placidamente, qual arroio cristalino, sem um vislumbre de desgosto, entre seres queridos.
No horizonte de sua alma, porém, como sucede a todos os entes evolvidos, havia o prenúncio de uma tempestade de dissabores, a antevisão de inesquecíveis sofrimentos...
Atingira dois decénios de uma existência sem dores nem preocupações, igual a uma alvorada primaveril incessante...
Subitamente, começou a inquietar-se com os prováveis obstáculos que surgissem para o desviar da encantadora companheira de infância...
Não temia nenhuma oposição por parte de seus progenitores, mas, percebeu claramente que Flávio, ambicionando posição de realce, almejava para sua formosa irmã um consórcio notável, que a fizesse fulgir na mais afortunada classe social. Luciano percebera que não lhe era possível competir em opulência com a pretendida esposa, nem tivera por antepassados membros tão insignes como os possuía ela...
Seus temores, porém, nunca o atormentaram tanto quanto, desde a véspera, ao ouvir as expressões irónicas de Flávio, a seu respeito, e as galantarias do hediondo Numa Tarquínio dirigidas à sua eleita.. .
Sabia que o seu companheiro de infância tinha louváveis sentimentos, mas era excessivamente aristocrata e ambicioso...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:18 pm

Rememorando os sucessos do dia anterior, lastimou sinceramente não haver perecido no naufrágio da Conquistadora, amortalhado, juntamente com a noiva querida, nas espumas do Mediterrâneo agitado, pois pressagiava infortúnios inomináveis para ambos.. .Desde que o seu olhar observador incidiu sobre Numa Tarquínio, por uma inexplicável intuição augurou desventuras até então deslembradas.. .
Adivinhou-as sua alma afeita à meditação e às pesquisas psíquicas, sugeridas pelos ensinamentos de ura dos mais belos poemas de moral perfeita, com que os inspiradores siderais, os iniciados nas verdades celestes têm brindado a humanidade - os Versos Áureos, do imortal filósofo e Mestre de Samos - Pitágoras! (37)
Era o senhor da Imperial afamado tirano que todos os povos de antanho conheciam, bárbaro vencedor de muitos países de que usurpava os haveres, os homens valorosos, as mulheres mais formosas, profanador de lares honestos...
Seus característicos fisionómicos eram os de um verdadeiro homem-abutre, um ser destituído de sentimentos generosos, dos que não sabem domar os desejos impetuosos, e que, para os saciar, não vacilam em purpurear as mãos e a consciência em borbotões de sangue...
Com que suprema arrogância encarava ele os circunstantes! Com que volúpia devorava, o olhar incendiado por súbita paixão, a formosa Clotilde, desfalecida ainda, cuja alma imaculada parecia já se ter alado às regiões etéreas, inspirando mais uma prece do que sentimentos malsãos, pressentindo a aproximação de um monstro...
Conjecturava Luciano que ele ia apresentar-se como pretendente esponsalício de Clotilde; e, embora cresse esta incapaz de uma traição, não podia vaticinar ainda as infâmias que Numa urdiria contra todos para sair vitorioso...
De que torpezas lançaria mão o desnaturado déspota para lhe vencer os escrúpulos da consciência íntegra, e apoderar-se da ambicionada presa?
Não sabia, então, responder àquela íntima arguição...
Seu espírito jazera como que em letargo profundo até então; doravante, porém, não sucederia o mesmo; augurava, iniludivelmente, que a bonança de sua vida fora passada, e as refregas mais ásperas avizinhavam-se dele e de todos os entes estremecidos...
Sentia-se invadido por uma onda de tétricos pensamentos, dos quais tentava, em vão, libertar-se, e pressagiava que não seriam desvanecidos, em um próximo porvir.'..
Desde a véspera daquele dia, julgava ouvir, a todos os instantes, uma voz sibilina (38); plena de dolência e carinho, que lhe segredava no mais íntimo escaninho de sua alma:
- "Vais perder, por todo o sempre, a cândida e bela Clotilde!
Teus sonhos de ventura vão ruir por terra, pobre Luciano!"
De onde partiria essa voz pressaga, prenunciando inevitáveis infortúnios?
De seu próprio ser... ou do exterior?
Sondando as trevas da noite de vigília penosa, em que estivera, após tantas emoções abaladoras, nenhum vestígio descobrira que confirmasse os dizeres que o atormentavam...
Dir-se-ia que era o seu próprio coração desperto que, em cada sístole e diástole, lhe falava daquele modo, em tom magoado ...
Não pudera repousar durante a noite; e, ao perceber os primeiros albores matinais, depois dos cuidados com o vestuário, pôs-se a contemplar os fulgores do Levante, e as ondas serenas, tão diversas do que se haviam mostrado poucas horas antes...
Assim devia suceder-lhe no decorrer da existência - misto de quietudes e tormentas - às quais ninguém se pode subtrair no mundo sublunar...
A placidez da manhã arrefeceu-lhe a chama que lhe crestara o cérebro durante a noite, qual labareda que se extinguisse bruscamente, mas houvesse deixado em seu interior indícios indestrutíveis de escombros e cinzas, após uma erupção vulcânica...
Nunca, porém, achara ele tão sublime o arrebol!
Parecia-lhe o Oriente uma cerejeira em flor, que se alçasse ao Céu pelo influxo de um condão maravilhoso, de Mago sideral, transformando-a em luz rósea e dourada, que se estendesse pelo Firmamento em fora...
A intuição de que, além, através do velário azul da amplidão cerúlea, da atmosfera e do éter, jaziam entidades imateriais, pulcras e formosas, arraigava-se-lhe no Espírito desde que fizera a leitura dos magistrais Versos Áureos do inspirado de Samos, cujos ideais ele esposara e confrontava com os da era em que vivia, adoptando os daquele, e rejeitando os dos seus contemporâneos.
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Lastimava não ter sido um de seus discípulos, achando-o incomparável filósofo, ignorando que já o tinha sido. e havia feito parte da plêiade dos iniciados, do templo em Delfos,(39) e que, por haver cometido um delito grave em uma de suas precedentes existências - raptando a esposa de um companheiro de armas (a qual, depois, reconheceu ser a formosa e adorada Clotilde) - ainda estava peregrinando na Terra, a ultimar provas aspérrimas...
Nunca praticara ele um ato que a sua própria consciência verberasse - na sua actual existência - sentindo-a límpida qual a de uma cândida criança...
Que o atingissem as dores, pensava ele com amargura, as lutas acerbas, as provas ríspidas, mas o a que aspirava era conservar a neve da consciência impoluta, sem a denegrir com alguma acção aviltante.
Tão embevecido estava Luciano com as suas cogitações, à proa da garbosa galera, que nem percebeu a aproximação de um marujo, aparentando ter meio século de existência, de olhar ardente e leal, tez bronzeada pelo sol de diversos países equatoriais, o qual lhe tocara levemente no ombro esquerdo, sorrindo com bondade e tristeza.
Luciano voltou-se para ele, rapidamente; e, de súbito, olharam-se profundamente, parecendo que, naquele momento, suas almas se mesclaram na permuta do primeiro olhar, ambos sedentos de confidências, sondando os mais recônditos sentimentos que existiam nos escrínios de seus corações...
- Formoso mancebo; - falou-lhe o nauta - quando a juventude desperta antes da alvorada, sem um motivo imperioso... é que seu espírito está inquieto, ou, antes, seu coração está aguilhoado por secretos pesares.. . de amor!
- Bem o adivinhaste, arguto filho de Neptuno; - respondeu-lhe o jovem, ávido por transmitir seus pensamentos a um ente sincero e bom, que pudesse aconselhá-lo na dolorosa conjuntura em que se encontrava - meu coração anda mais agitado do que, ontem, o Mediterrâneo...
- Que são tuas mágoas, senão os receios, às vezes pueris, de um jovem enamorado?
Que são elas, porém, mancebo, em confronto com as que me oprimem a mente?
Parece que, há muito, tenho paralisada no peito uma espada de fogo... que me requeima o coração de ódio, e não me consome esta execrada vida...

(35) Aquiles, rei dos Mirmidões, famoso herói da Tróia, só possuía um ponto vulnerável ou mortal - o calcanhar - e, por Isso, Paris matou-o com uma flecha envenenada, que lhe acertou no calcanhar.
(36) Morfeu, deus dos sonhos, filho da Noite e do Sono.
(37) Pitágoras, célebre filósofo, matemático e professor grego, nasceu na ilha de Samos (580 a. J.C.). Acreditava na imortalidade da alma e na lei da Palingenesia (reencarnações). Professava moral elevada, aliava a educação intelectual ã moral e física. Foi mestre incomparável.
(38) Sibilino, dito por Sibila, mulher que predizia os acontecimentos.
A médium da antiguidade.
(39) Delfos, cidade grega onde havia um aramado templo, consagrado a Apoio, perto do Parnaso, em que oravam os discípulos de Pitágoras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:19 pm

CAPITULO IX
Luciano fixou, compadecido, o interlocutor, tanta expressão de amargura havia em suas palavras.
O marujo também o contemplou, com um olhar fulgurante, onde havia lágrimas, e disse-lhe:
- Teu aspecto, mancebo, inspira-me confiança.
Tua alma deve ser nobre e leal quanto os teus olhos mo revelam; olhos límpidos, glaucos, de sonhador, feitos de fragmentos de céu veneziano, vagas do Atlântico e safiras de Ceilão... (40)
Antes, porém, que nos perturbem a palestra os curiosos, quero dizer-te o que sinto e dar-te conselhos que a longa experiência de uma vida acidentada adquire...
Mancebo, ouve-me com atenção.
Eu não sou romano, mas gaulês (41) de nascimento e de coração.
Era livre, afortunado, feliz, e tudo me usurparam em negro dia: liberdade, tesouros, família!
Minha pátria foi assolada por uma onda de bárbaros inimigos; e Numa Tarquínio, um dos mais famigerados asseclas de César, fez-me seu cativo, tendo, antes, infamado o meu lar...
Minha infância e minha juventude foram de príncipe, minha senectude... de escravo!
Compreendes a minha dor e humilhação? Mancebo!
Emudeceu o marujo, por momentos olhando o mar.
Ouvia-se o ruído dos remos, compassado e monótono. O velho marinheiro enxugou algumas lágrimas, que lhe deslizavam pelo rosto crestado das soalheiras.
Havia um estranho clarão em seus olhos de trevas.
Luciano contemplou-o, sensibilizado, prognosticando infortúnios, semelhantes aos do mísero marujo, não só para si próprio, mas ainda para os que lhe eram caros.
O nauta, vendo-o mergulhado em penosas cogitações, quebrou-as, chamando-lhe a atenção, para prosseguir sua comovedora narrativa:
- Mancebo, o maldito... que é o dono desta galera fatídica, venceu-me; e, pela traição, subornando os meus aliados, aprisionou-nos, após, cruel e acintosamente...
Vendo-me indefeso, violou o meu lar, apoderou-se de muitos dos meus entes queridos, poluindo-os, torpemente...
Quando eu o soube, revoltado, no auge do desespero, verberei-lhe o procedimento, enlouquecido de dor... e o indigno, rindo, novo Génio do Mal, um Belzebu (42) hediondo, ordenou a seus verdugos que me vergastassem, no que foi obedecido pelos que o temem e execram ...
Não quis que me arrancassem a vida... para gozar com a minha degradação e vexame, podendo espezinhar-me e injuriar-me a todos os momentos que lhe aprouver, fazendo-me seu escravo... a suprema afronta a meus brios de homem livre e honesto!
Espreito, há muito, o instante propício para saciar a minh’alma asfixiada em sangue e em lama pútrida - a lama da humilhação e da ignomínia!
Eis o que fui impulsionado a revelar-te, mancebo, qual se o fizesse a um filho - que o teria de tua idade, se o carrasco a quem me refiro não houvesse imolado a sua vida, na minha presença, para torturar-me satanicamente! - condoído de ti e de todos os que foram alojados na Imperial em má hora... pois, antes houvésseis sucumbido ao furor dos temporais... do que sido salvos por um perverso... que vai exigir, cruelmente, o resgate de sua principesca acolhida aos náufragos... desgraçando-os!
Fui sincero contigo, e hás-de me retribuir a prova de lealdade: diz-me quem é a formosa donzela que, amortecida, foi transportada à galera?
Tua irmã ou tua noiva?
- Obrigado pela confiança que em mim depositaste, marujo, respondeu-lhe Naldi, a custo.
Ela é minha companheira , de infância, e, pretendo, dentro em poucas horas, contratar I os nossos esponsais...
- Desditosos e belos jovens!
É bem provável que, doravante, vossos projectos e sonhos de ventura, sejam burlados, ou, antes, destruídos, totalmente pelo bandido em cujo antro dourado fostes acolhidos, acossados pela fatalidade!
Numa Tarquínio está intensamente enamorado da deslumbrante virgem que adoras, mancebo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:19 pm

O abutre encontrou um novo ninho de rouxinóis para devorar... e não vacilará em apoderar-se dele de qualquer modo - legal ou ilegal!
Ele é capaz das maiores vilanias para satisfazer os seus mais torpes desejos...
- Que me aconselhas a fazer, marujo e amigo?
Parece-me que perdi a faculdade de reflectir, estando perto da loucura - tal a deplorável situação de minha alma!...
- Que deves fazer?
Prevenir o ancião, pai de tua noiva, do perigo que vos ameaça a todos...
Se conhecêsseis, mancebo, o celerado que abrigou nesta galera míseros náufragos... para fins inconfessáveis - pois está sempre ávido de aventuras, lances trágicos e gozos - iríeis, com certeza, para um país longínquo e ignorado do monstro.
Estou eu convicto, ele o fez julgando salvar corsários para se apoderar do quanto lhes pertencesse, e, após, exterminar os que estivessem a bordo, atirando os cadáveres ao mar... que encerra, por todo o sempre, os despojos de todos os que se lhe dão para ocultar!
Ele respeitou o prestígio, de Donato Moréti... por causa de César, e da encantadora filha que possui.
Mas, à menor recusa às suas pretensões, ele os perseguira, praticando todas as ignomínias de que é capaz, e conseguirá assenhorear-se da sedutora donzela... que seus olhos tigrinos viram, ontem, fascinados!
Conheço-lhe os mais secretos pensamentos, as mais íntimas conjecturas, por uma intuição que não sei explicar, mas nunca falha...
Fujam, fujam todos os que foram abrigados nesta galera fatal, o mais breve possível, do celerado a que me refiro.
Eu não o faço... porque sou forçado a seguir-lhe os passos qual a sombra ao corpo... até que se me apresente o ensejo de lhe esfacelar o coração... com um punhal... como ele o fez ao meu...
Sigo-o, impulsionado pelo ódio, sequioso de ver jorrar o seu sangue pestilencial!
O nauta calou-se por momento, tendo nos olhos um clarão de ódio, que, dir-se-ia, certamente lhe inflamava o cérebro ...
Depois, fixando o rapaz, disse-lhe:
- Meu verdadeiro nome... é Múrfius Selan e o teu mancebo!
- Luciano Naldi, filho de heróico guerreiro...
- Luciano e Múrfius serão, doravante, aliados perpétuos...
É mister agires, agora, de modo que não sejas outra vítima de Numa Tarquínio... cujo olhar cintilava, ontem, quando te aproximaste da formosa jovem que amas...
Se, sagrado, para o qual tomo por testemunha o céu... ou o próprio Júpiter!
Assim dizendo o velho marujo estendeu a destra a Luciano, que empalideceu, compreendendo (que a pureza de seus sentimentos o impediam de molestar aquele que o havia livrado, e a tantos entes estremecidos, de morte inevitável, mas não podia deixar de firmar uni pacto de lealdade com o desditoso nauta, ao qual se sentiu, em realidade, perpetuamente coligado...
Já então, no Levante, em apoteose deslumbrante, se desfaziam flores etéreas, de pétalas auri-rosadas.
Dir-se-ia que um Apeles(43) divino as houvesse metamorfoseado em púrpura celeste para pincelar uma tela portentosa, em homenagem ao Criador do Universo,
Todos despertaram na Imperial, que ancorou em um pequeno porto de Cabrera, e houve ordem de Numa Tarquínio para serem conduzidos à Rocha Negra os sinistrados da Conquistadora.
Clotilde, ao notar a palidez de Luciano, denunciadora dos embates de sua alma emotiva, aproximou-se dele, mas evitou interpelá-lo para não despertar atenção dos que a circundavam, observando que era alvejada pelos olhares coruscantes do dono da galera...
Luciano não os viu logo, porque contemplava ternamente a companheira de infância, achando-a mais idealmente formosa depois que em sua mente havia surgido o irreprimível receio de perdê-la...
Quando os percebeu, porém, avivadas as suspeitas da véspera contra Numa Tarquínio pelo que soubera, revelado por Selan, tornou-se lívido, prestes a perder a noção da realidade...

(40) Ceilão, ilha do sul do Indostão, hoje pertencente à Inglaterra.
Célebre pelos rubis e safiras admiráveis, que produz.
(41) Gaulês, natural das Gálias, nome que os antigos davam a duas regiões: Cisalpina e Transalpina, submetidas por César, 58 a 50 a. J.C.
(42) Belzebu, nome do Satanás, considerado o chefe dos Espíritos do Mal, o que supera a todos pela crueldade.
(43) Apeles, o mais célebre dos pintores gregos.

FIM DO LIVRO I
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:19 pm

LIVRO II - CASTELOS DESERTOS
CAPITULO I
Velejava a Imperial, serenamente, no Mediterrâneo dourado pelo esplendor do amanhecer, prestes a aportar em abrigo insular.
Numa Tarquínio, que havia apurado excessivamente a opulenta indumentária, fixava o olhar embevecido no vulto encantador da filha de Donato Moréti, a qual se interessava unicamente por Luciano, julgando-o enfermo.
Iam permutar os primeiros pensamentos, naquele dia, quando foram chamados a realidade pela voz estentórica de Tarquínio, que se aproximou de ambos, e interrogou a donzela:
- Agradam-lhe as viagens marítimas, filha do heróico Donato ?
Clotilde votou-se para ele, bruscamente, como ferida por um secreto punhal, e respondeu-lhe, com receio de lhe desagradar:
- Sim, domine, mas não desejo, jamais, empreendê-las... temendo os funestos temporais do Mediterrâneo...
Prefiro morrer, tranquilamente, oculta na Rocha Negra...
Tarquínio riu, ruidosamente, e disse:
- Já pensais em morrer, em plena juventude?
É natural que ficásseis apavorada, pelo que sucedeu à Conquistadora, uma frágil chalupa...
Em uma galera, porém, igual a esta, nenhum perigo correrá vossa preciosíssima vida...
Iludis-vos em outro ponto, formosa dama, as águias não nasceram para se encarcerarem num ergástulo, mas para rasgarem a amplidão sideral!..
Vós sois águia real, e, portanto, podendo atingir o Infinito... quereis ficar acorrentada a um abismo? Um inóspito rochedo, de mísera ilhota, não pode continuar a aninhar uma águia semi-divina...
Sentindo-se purpurear, Clotilde redarguiu, com altivez:
- Não me seduzem as vanglorias mundanas, domine!
Não alimento as elevadas aspirações que tendes, contento-me com o meu selvagem ninho de pedras, onde vivo ignorada do mundo, mas feliz, e com o coração cheio de paz!
Numa Tarquínio, com um esgar de descontentamento, retrucou:
- Nascestes para reinar em grande metrópole, e não para ser ofuscada em uma penha desconhecida... dos romanos!
Se desejardes, e, bem assim, vossos nobres parentes, em vez de nos dirigirmos à Rocha Negra, ordenarei imediatamente ao palinuro (1) da Imperial, e esta nos conduzirá a Óstia, (2) cera breve nos acharemos em Roma, que ficará deslumbrada com o tesouro que se ocultava em alcantilado penhasco...
- Não é possível, domine, aceitar o vosso honroso alvitre! - exclamou Clotilde, sentindo, às súbitas, uma indómita angústia constringir-lhe o coração.
Não estamos prevenidos para uma viagem a Roma, e, além disso, desde o intenso abalo moral que sofreu com os sucessos nefastos de ontem, está enferma nossa extremosa mãe.
Iremos, contudo, oportunamente, à vossa residência, testemunhar-vos quanto somos gratos à vossa magnânima hospitalidade.. .
- Aceito a vossa gentil escusa, linda jovem, e as vossas ordens, doravante, serão cumpridas à risca... pois aqui só tendes servos que desejam obedecer-vos com prazer! - respondeu-lhe Tarquínio, inclinando-se, com exagero, perante Clotilde e seu genitor.
Sem nenhum outro incidente digno de reparo, a galera, que havia sido desviada de sua verdadeira rota, rumou para a Rocha Negra, e o ex-procônsul acompanhou os seus hóspedes até o solar, observando-lhe as mais ínfimas minudências.
A esposa de Donato Moréti, a virtuosa Júnia, devido às inquietações por que passara na véspera daquele dia, quase no último período de uma grave endocardite, (3)
foi transportada ao leito, presa de dispneia e febre.
Percebendo a consternação que reinava no lar de Moréti, tão venturoso até àquele fatídico passeio marítimo, Numa Tarquínio apressou a sua partida, e, ao despedir-se do proprietário do solar, falou-lhe, intencionalmente, fitando a aflita Clotilde:
- Os fados nos aliaram por todo o sempre, dominei.
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Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:19 pm

Não é, pois, um adeus que vos digo... pois pressinto que as nossas relações amistosas vão ser intensificadas...
Aqui me vereis no decorrer de limitado tempo...
Donato expressou-lhe seu perene reconhecimento pela generosa acolhida que lhe dispensara, e à sua família, e fez-lhe oferecimento que a urbanidade lhe impunha.
Tarquínio, patenteando um requinte de cordialidade excepcional, inscreveu em um papiro (4) os nomes de todos os habitantes do alcáçar, para jamais os esquecer, mencionando a idade dos varões que lá viviam...
Flávio, exultante com as relações entabuladas com o potentado romano, prometeu ir visitá-lo dentro de limitado tempo, assim que se verificasse o restabelecimento da saúde de sua genitora, cujo estado lhe causava sérias apreensões.
Somente ele, exultava com a presença de Numa Tarquínio... enquanto que os seus companheiros de excursão se mostravam entristecidos .
Assim que o ex-procônsul se retirou, Luciano Naldi solicitou uma secreta audiência a Donato Moréti e falou-lhe com gravidade:
- Acumulam-se nuvens tempestuosas sobre vosso ditoso lar, domine!
- Bem o prevejo, caro Luciano...
A moléstia de minha cara Júnia faz-me antever dias de pesares e inquietações...
- Não é só isso, domine, o que ora me preocupa, mas também o que sucederá aos que nos são queridos, depois do encontro funesto com o abutre da honra e da ventura alheia - Numa Tarquínio!
- Porque te referes com tanta severidade a quem nos prestou inestimáveis socorros?
Luciano! - interpelou-o o ancião, com tristeza e censura.
- Porque tenho a revelar-vos as vilanias daquele déspota, disfarçado agora em prestimoso amigo, para, amanhã, talvez, cravar profundamente um punhal em vosso nobre coração!
- Eu te desconheço, Luciano; é melhor que me digas o que soubeste, para que eu faça um imparcial julgamento de quem nos socorreu em hora aflitiva... mas não goza de reputação ilibada...
Luciano revelou, então, ao probo castelão o que soubera por intermédio do piloto da Imperial.
- Considero-vos, depois de meu digno pai, o meu melhor amigo, domine - concluiu o jovem - e, escudado nessa afeição profunda, quero interrogar-vos:
consentireis, de bom grado, na aliança esponsalícia de vossa filha com o infame Numa Tarquínio?
Donato meditou durante alguns instantes; depois, apertando-lhe a destra, respondeu-lhe:
- Luciano, meu amigo; eu desejava que Flávio pensasse como tu.
Há mais vínculos de afinidade entre a minha alma e a tua... do que entre a minha e a de meu filho, que, embora generoso e bom, se deixa arrebatar pelas vanglorias; e, por isso, antevejo muitas decepções no decorrer de sua existência...
Percebo, Luciano, porque me fizeste aquela interpelação, depois de me ter dado a conhecer a tua lealdade e o teu amistoso interesse pelos que nos são caros.
O coração paterno, porém, é um lúcido Argos, - tem sempre cinquenta olhos vigilantes -; e o meu suspeita, há muito, o que existe no teu e no de Clotilde: amais-vos recíproca e ternamente, e eu não quero interpor-me entre ambos, senão para concorrer para a vossa felicidade...
Pode a minha filha ser pretendida por um príncipe, mas, desde este momento, minha palavra se acha empenhada contigo, considerando-te, doravante, outro filho bem-amado!
- Obrigado, meu bom amigo! antes, meu segundo pai! - exclamou Luciano, osculando a destra do nobre ancião.
Quanto sois digno e magnânimo!
O ancião abraçou-o, e prosseguiu:
- Sei que o mundo social aplaudiria o consórcio de minha adorada Clotilde com o déspota romano, de que falávamos, pois todos julgam um lar venturoso... pelo esplendor das habitações e dos móveis que as guarnecem...
Bem sabes, porém, Luciano, que eu só considero afortunado aquele onde impera a virtude, a harmonia de sentimentos, o amor recíproco.
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Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama Empty Re: Dor Suprema - Victor Hugo/Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Jun 04, 2022 7:20 pm

Compreendo que seria intensamente desditosa a minha querida Clotilde, se se efectuasse o seu matrimónio com um homem tão hediondo no físico quanto no moral; com quem lamento haver contraído uma dívida de honra, e de eterno reconhecimento!
Algo de tenebroso e peçonhento existe na alma daquele indivíduo, porque, ao contacto de sua mão, senti, ao mesmo tempo, repulsa, asco e uma secreta dor, qual se houvesse sido pungido por uma víbora!...
Como hei-de desenvencilhar-me daquele monstro, sem desdouro para meu carácter?
- Partindo, todos nós, para longínqua região, antes que Tarquínio volte à Rocha Negra, domine!
- Sim, essa a resolução que eu tomaria, hoje, se não fosse a moléstia grave de minha boa Júnia...
Temos que esperar o restabelecimento de sua saúde, para partirmos para outra nação, talvez a Grécia...
Vou, desde já, providenciar para que tudo esteja aprestado para a viagem, com a urgência que a nossa situação requer...
Desejo, também, consultar o velho amigo Naldi e Clotilde sobre o que resolvemos sem os inquirir previamente.

(1) Palinuro, piloto.
(2) Óstia, porto marítimo que fica próximo de Roma.
(3) Endocardite, inflamação do endocárdio (membrana, que forra interiormente o coração).
(4) Papiro, folha, feita com a casca de uma planta, de que se utilizavam os antigos para a feitura dos manuscritos.
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