LUZ ESPÍRITA
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 03, 2013 11:18 pm

NA SOMBRA E NA LUZ

ESPÍRITO VICTOR HUGO

NOVELA PSICOGRAFADA POR ZILDA GAMA

Sinopse:

Livro cuja leitura encanta do princípio ao fim, banha a alma do leitor de consoladora luz, pois mostra a possibilidade da regeneração moral, que se vai verificando por meio das sucessivas reencarnações do Espírito.

Na história de três indivíduos separados pelo ódio e dominados por paixões desordenadas, o autor espiritual, através da análise das quedas e conquistas de cada personagem, atesta que a Justiça Divina possibilita o aprendizado das sombras do erro à luz da perfeição.

Esta obra marca o início da produção psicográfica de Zilda Gama, e traz em seu preâmbulo interessantes informações da médium.

ESPÍRITO VICTOR HUGO

O autor espiritual, quando encarnado, foi poeta genial e romancista primoroso.
Nasceu na França em 26 de fevereiro de 1802, com o nome Victor Marie Hugo, ficando mais conhecido como Victor Hugo.

Foi membro da célebre Academia Francesa e autor consagrado da obra Os Miseráveis, entre outras.
Converteu-se ao Espiritismo depois de observar as experiências das mesas girantes com a médium Delphine de Girardin, ocasião em que pôde comprovar a imortalidade da alma através de diversas comunicações mediúnicas, inclusive de sua filha Leopoldina.

Victor Hugo desencarnou em 22 de maio de 1885.
No mundo espiritual, de acordo com informações que lemos no capítulo 3 da obra Devassando o Invisível, de Yvonne A. Pereira, foi escolhido pelos mentores espirituais para coordenar, depois do ano 2000, brilhante falange com o compromisso de moralizar e sublimar as Artes.

Por intermédio da mediunidade psicográfica de Zilda Gama, enviou as seguintes obras editadas pela FEB:
Na sombra e na luz, Do calvário ao Infinito, Redenção, Dor Suprema e Almas Crucificadas, e ainda Párias em redenção e Sublime Expiação, através do médium Divaldo Pereira Franco.

ZILDA GAMA

Procedente de uma das mais ilustres famílias do Brasil, nasceu Zilda Gama em 11 de março de 1878 no município de Juiz de Fora, MG.

Dotada de esmerada cultura, desde jovem colaborou com textos divulgados em jornais de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro.

Por volta de 1912 já era adepta da Doutrina Espírita, "embora não ostensivamente", como ela própria declarava.
Ainda no ano de 1912, Zilda Gama psicografava, com imensa emoção, a primeira mensagem assinada por Allan Kardec, Espírito este que, durante os quinze anos seguintes, assumiu a direcção de seus labores espirituais.

Em torno do ano de 1916, passa a psicografar a sua primeira novela, através do Espírito Victor Hugo, tendo como título Na sombra e na luz, seguindo-se outros.
Zilda Gama foi, no Brasil, a primeira médium a obter do mundo espiritual uma substancial literatura espírita, tendo causado sensação quando apareceram as suas obras mediúnicas, quer no meio espírita, quer entre os leitores leigos.

No dia 10 de janeiro de 1969, aos 90 anos, retornou à pátria espiritual aquela que foi| um padrão de honra e honestidade, legando-nos inesquecível exemplo de abnegação no trabalho de divulgação da Doutrina Espírita

Sumário

I N LIMINE
(No início)

LIVRO I- Uma existência tumultuosa
LIVRO II - Na escola do Infinito
LIVRO III - O inspirado
LIVRO IV - A aliança
LIVRO V - O homem astral
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 03, 2013 11:18 pm

IN LIMINE

Leitores:

Não tem outro mérito, senão o da lealdade, este conciso e despretensioso preâmbulo à novela epigrafada - Na sombra e na luz.

Antes de iniciardes a sua leitura, atentai, por alguns momentos, no que vos exponho com a máxima lealdade:
desde tenra idade sempre tive vocação para a literatura, conseguindo produzir poesias e contos que se acham insertos em jornais e revistas deste e de outros estados brasileiros.

Como foi, porém, que os compus?
Delineando-os primeiro mentalmente - assim concebia o pensamento que julgava digno de servir de tema para uma produção literária - depois, grafando-os no papel, fazendo contínuas alterações, ampliando ideias, substituindo vocábulos, não conseguindo, nunca, escrever um conto ou um soneto sem emendas ou rasuras.

Ora, essas composições considero-as minhas porque representam pensamentos que expus conforme desejava, germinados antes de serem escritos, interpretando emoções minhas, factos observados por mim, sentimentos meus.

Há notável diversidade entre esse meu modo de compor e aquele pelo qual foi grafada esta novela.
Relato-vos, pois, singelamente, a sua história, que é a mesma de seis livros por mim escritos, sentindo-me auxiliada por uma influência espiritual.

Havia quase um decénio, em 1912, que eu era sectária da doutrina espiritista, embora não ostensivamente.
Não desconhecia as obras fundamentais, e lia, com crescente interesse, os estudos de Leon Denis, de Flammarion, de Paul Gibier, de W. Crookes e de outros eminentes psiquistas, mas nunca havia tido o intuito de escrever algo sobre assuntos transcendentais.

Achava-me, em fins do mencionado ano, numa das fases mais dolorosas de minha existência, combalida por íntimos dissabores, e, buscando lenitivo a meus pesares, pus-me a ler - O problema do ser, do destino e da dor - de Leon Denis.

Uma vez, fechando subitamente suas páginas, tive a iniludível intuição de que algum ser invisível desejava corresponder-se comigo, qual já me havia sucedido nos momentos mais angustiosos da vida.
Ergui-me do lugar em que me achava e tomei a deliberação de ir à secretária atender à insistente insinuação de alguma entidade imaterial, desejosa, por certo, de me transmitir seus pensamentos.

Efectivamente, não me iludira:
recebo, por meio da psicografia, um comovente e salutar conselho dado por meu pai (desencarnado em 1903) e outro por uma adorada irmã, poetisa e violinista, desmaterializada pouco antes dele, aos 21 anos de idade, Maria Antonieta Gama, cujo nome era acatado pela imprensa mineira, tendo também colaborado no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro.

Ofereceram-se ambos para me orientar por alguns dias, fizeram-me agir e tomar deliberações que não me haviam ainda ocorrido à mente, e lealmente cumpriram o que me prometeram.

Querendo prestar-lhes um tributo de gratidão e para que se não perdessem seus excelentes ensinamentos, coleccionei em um caderno da Livraria Alves, ne 4, as amistosas mensagens de além-túmulo, escrevendo, na primeira página, com data de 20 de dezembro de 1912, o seguinte:
"Colectânea de algumas comunicações de Espíritos amigos e familiares que, quando me vêem sofrer ou carecendo de conselhos e auxílios espirituais, se apiadam de mim e se dignam de mos prodigalizar, bem como o bálsamo de um consolo, que só eles podem ministrar-me, porque conhecem e penetram meus mais íntimos pensamentos..."

Grande foi minha surpresa quando, à noite, tendo tido intuição de que ia receber mais alguma instrução de um ser intangível, tracei a lápis palavras que nem sequer me haviam passado de relance pelo cérebro e, pela primeira vez, obtive a mensagem de uma entidade desconhecida, que, desde então, todos os dias, não mais deixou de se corresponder comigo - Mercedes - de uma dedicação inexcedível, solícita consócia de todos os meus instantes de dor e de raras alegrias, enfim, um dos meus desvelados Guias espirituais.

Meu pasmo não teve limites quando grafei, no final do seu ditado, o seguinte:
"Alterai o que escrevestes no princípio do caderno;
ides receber inspirações, não só de Espíritos familiares, como de outros que não conhecestes, que não privaram convosco e nos quais nem sequer ainda pensastes.

Podeis escrever assim:
- A todos vós que vos dignastes inspirar-me boas resoluções e aconselhar-me nas horas de sofrimento e de provações".

Houve, desse modo, para mim, a revelação de um ente que conhecia, melhor do que eu, o que sucederia comigo e que não ignorava nem o que eu escrevia secretamente... Coisa admirável!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 03, 2013 11:18 pm

Tive, então, por intermédio de Mercedes, a formal promessa de que iria escrever obras ditadas por agentes siderais, se o quisesse, e, algumas vezes, duvidei dessa asserção.
Como seria crível que produzisse livros de assuntos psíquicos, sem ter sequer uma ideia em mente a explanar e, além disso, assediada por íntimos desgostos e por exaustivos labores inerentes ao magistério?

No entanto, no dia e hora aprazados, comecei a grafar, velozmente, páginas de sã moral, magistrais advertências dirigidas à Humanidade imperfeita, constituindo tudo, para mim, uma surpresa:
tema, epígrafe das exortações, nomes de seus signatários!

Minha família quase se alarmou por minha causa, temendo - como é crença geral entre detractores do Espiritismo - que minhas faculdades mentais ficassem desequilibradas ou que a saúde fosse prejudicada, pois, havia muito, a tinha em extremo alterável.

Entretanto, as inquietadoras previsões não se realizaram, felizmente:
continuei a exercer normalmente as funções concernentes ao magistério e tendo, por vezes, assumido a direcção do grupo escolar local, em que lecciono, não me sentia fatigada por trabalhar em demasia e o meu organismo não foi danificado.

Prossegui, pois, sem receios, meus estudos sobre o Espiritismo e continuei a receber, pela manhã, durante uma hora, os radiogramas do Espaço.
Nunca tive a pretensão de evocar Espíritos de elevada hierarquia, cujos nomes são venerados pela Humanidade, e, por ter recebido espontaneamente mensagens de alguns deles, ninguém me poderá acusar de imodesta, ou de querer notabilizar-me por meio de glórias alheias, pois nem ao menos meu nome tem figurado nos escritos medianímicos esparsos em diversos jornais brasileiros, enviados por mim.

Fiquei surpreendida quando, no final de uma dissertação moral ou religiosa, tracei, pela primeira vez, os nomes gloriosos de Victor Hugo, Allan Kardec e D. Pedro de Alcântara - a tríade lúcida que ditou já seis livros, escritos por mim, sem ter ideado sequer uma página!

Os cadernos em que tenho registado seus pensamentos e os de outros Espíritos tutelares, grafados todos celeremente, sem nenhuma corrigenda, como verdadeiras reproduções de livros alheios, já perfazem mais de meio cento, e, apesar do tempo limitado de que disponho para a cópia, já foram organizadas as seguintes obras:
Revelações, dois tomos, contendo dissertações morais e religiosas, das quais algumas foram publicadas pela Gazeta de Notícias em 1913 e 1914;
Diário dos invisíveis, versando educação moral;
Na sombra e na luz, novela;
um outro livro sobre assuntos filosóficos e uma outra novela, em preparo, quase concluídos presentemente.

Foram todas escritas sem ter eu imaginado previamente nem ao menos os seus títulos.
Quando me comunicaram os meus Mentores que iam compor, mediunicamente, uma novela, fiquei perplexa, não crendo que tal se desse;
no entanto, à hora convencionada, comecei a traçar o cabeçalho de um livro desconhecido, o da primeira parte, o primeiro capítulo, enfim, tudo quanto constitui os pródromos de um romance, ficando eu, ao passo que minha pena produzia o que não havia sido por mim absolutamente preconcebido, infinitamente admirada.

Escrevia, metodicamente, duas páginas por dia (há cadernos quadriculados com mais de 50 pautas), rapidamente preenchidas, em poucos minutos, tendo a impressão de estar lendo, cotidianamente, o folhetim de um jornal, esperando sempre a sua continuação na manhã imediata.

Às vezes fantasiava o que sucederia à personagem A ou B, e, entretanto, contra as minhas previsões, verificava depois que me iludira nessas conjecturas, pois escrevia coisa diversa do que havia imaginado.
Quando concluí a primeira parte de - Na sombra e na luz - julguei, com alguma decepção, terminada a obra, pois que todos os seus protagonistas haviam desaparecido do cenário da vida;
foi, por isso, com progressivo pasmo, que recebi as outras quatro divisões que a completam.

Concluída a novela, comecei a copiá-la em tiras de impressão e, mais uma vez, pude observar a inteligência do ser invisível que ma ditou.
Fui avisada de que havia necessidade de refundi-la, de serem feitas correcções, acrescentamentos, substituição de vocábulos, etc.
Efectivamente, nos momentos de trabalho, era mister colocar, ao lado daquela em que escrevia, uma outra tira de papel em branco, para receber à parte as modificações almejadas.

A pena corria subtil e rapidamente sobre a que se achava à minha esquerda e, quando ia ser feita alguma alteração, era eu advertida por um rumor suavíssimo, como o frémito das asas de minúsculo pássaro voando cerce a meus ouvidos, a minha destra parava bruscamente e era impelida, de leve, para a tira que estava à direita, na qual eram grafados outros vocábulos, substituindo os primitivos, ampliando ideias, concluindo detalhes e explicações necessárias à clareza dos pensamentos já expendidos, e, depois, voltava à primeira, prosseguindo a cópia.

Muitas vezes, quando era preciso apenas substituir alguma palavra, a caneta, sustida por minha mão - que parece ficar imponderável nos momentos do trabalho psicográfico - era levada suavemente para cima de um termo, cancelava-o, escrevendo outro acima da pauta, um sinónimo quase sempre.

Foram assim traçadas, refundidas e copiadas as páginas da novela - Na sombra e na luz - e de todos os outros livros já mencionados.
Deixo de cometer um delito de lesa-consciência, não assinando, como se fossem produções minhas, obras que não preconcebi, nem tive a intenção de escrever?
Absolutamente não.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 03, 2013 11:19 pm

Nelas só há o meu trabalho psicográfico e, além deste, encontrareis nesta - intercalados por minha espontânea vontade - dois pensamentos de Hermes.
Duvidais, porém, de que sejam realmente de seus signatários os referidos livros?
Por quê?
Todos encerram nobreza de sentimentos, magníficas reflexões morais e eu teria grande prazer em assiná-los com o meu obscuro nome, se não temesse praticar uma fraude e uma perfídia para com entidades de uma dedicação e magnanimidade inexcedíveis para comigo.

Agora, depois de explanada a origem do livro que ides ler, se continuardes a duvidar da minha lealdade, cometereis inqualificável injustiça.
Tenho, em todo o percurso de minha existência, dado provas de probidade e de amor à verdade.

Detesto o embuste.
Como aluna da extinta Escola Normal de S. João d’el-rei, parece-me ter lá deixado um nome imáculo;
exercendo o magistério público, tenho-me esforçado por ser irrepreensível, e pelo governo deste estado já me foram conferidas quase todas as provas de apreço a que faz jus o magíster mineiro.

Na minha vida privada nunca pratiquei uma acção que fosse censurável.
Tenho, pois, minha reputação ilibada, que muito prezo e não a quero macular faltando à verdade ou usando de qualquer burla para me salientar perante o público, que respeito e muito temo.

Poderá também alguém acusar-me de ser disposta à alucinação.
Protesto, porém, contra essa falsa asseveração, com veemência.
Nunca senti o menor desequilíbrio mental, e, mormente depois que, com assiduidade, hei feito estudos psíquicos, tenho adquirido maior serenidade de ânimo e fácil percepção;
sou perfeitamente calma e normal.

Nunca me afectou, sequer, um acesso nervoso tão comum às naturezas femininas.

Tenho padecido infortúnios acerbos, desde a desencarnação de vários entes queridos, até a traição - talvez a mais lancinante de todas as dores e o mais execrável de todos os delitos! - e, no entanto, apesar de muito sensível ao sofrimento, quer meu, quer alheio, admiro-me de nunca ter sofrido uma perturbação mental qualquer:
mantenho-me plácida nos momentos de dissabores excruciantes e vejo, por isso, a iniludível intervenção de Protectores imateriais, que me amparam fraternalmente e não me deixam desfalecer nos instantes em que, para a imprescindível lapidação de minh'alma, tenho de sorver, até a extrema gota, a taça da amargura.

Ultimamente, após verdadeira borrasca íntima - dessas que abalam até organismos varonis - surpreendo-me ao verificar que, ao inverso do que previra, minha saúde, havia muito alterada, se integrou por completo, e, não tendo deixado de mourejar constantemente, quer como educadora quer como psicógrafa, continuando a fazer estudos nos livros dos mais preclaros animistas mundiais, não sinto fadiga física nem intelectual, apesar de possuir um organismo que parece frágil em demasia.

Explicada a génese de Na sombra e na luz, das muitas obras de assuntos morais e filosóficos que já tenho organizadas, poderia aventar aqui a debatida questão de como um Espírito, que na sua última existência ignorava o idioma de Camões, pode expressar-se agora em língua portuguesa;
mas deixo de o fazer porque o assunto está proficientemente esclarecido por Gabriel Delanne, Fernando de Lacerda e outros ilustres psiquistas.

Faço, apenas, as duas seguintes ponderações:
1.ª - Um Espírito, ao atingir elevado grau intelectual pela lei das reencarnações, já nasceu em diversos países, aprendeu diferentes idiomas (e assim fica elucidada a tendência e facilidade que um indivíduo possui para aprender várias línguas, ao passo que outro, às vezes seu irmão carnal, não consegue sequer pronunciar com acerto as palavras do próprio vernáculo);
e, por isso, ao desmaterializar-se, integrando-se-lhe todos os cabedais de conhecimentos adquiridos, tendo nascido na França, em sua última existência, não poderia ter sido lusitano numa outra e, recordando-se de uma língua que já lhe foi familiar, não se lhe torna fácil emitir seus pensamentos a um médium português ou brasileiro?

2.ª - Desejando o Espírito de um inglês ou austríaco manifestar-se em qualquer idioma que ignorava na sua última encarnação, não poderá expressar as suas ideias ao Guia espiritual de um médium - de qualquer nacionalidade que seja - e este receber as comunicações por intermédio do invisível intérprete, pois que os desmaterializados se correspondem uns com os outros por uma linguagem mais perfeita que a nossa - a do pensamento - que é o volapuque1 do Espaço?

Tenho a corroborar as minhas hipóteses o que expõe o inspirado Leon Denis, no seu magnífico livro O problema do ser, do destino e da dor:
Os Espíritos comunicam entre si e se compreendem por processos ao pé dos quais a arte oratória mais consumada, toda a magia da eloquência humana pareceriam apenas grosseiro balbuciar.

As Inteligências elevadas percebem e realizam sem esforço as mais maravilhosas concepções da arte e do génio.
Mas estas concepções não podem ser transmitidas integralmente aos homens.
Mesmo nas manifestações mediúnicas mais perfeitas, o Espírito superior tem que se submeter às leis físicas do nosso mundo e só vagos reflexos ou ecos enfraquecidos das esferas celestes, algumas notas perdidas da grande sinfonia eterna, pode ele fazer chegar até nós.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 03, 2013 11:19 pm

Não vos admireis, pois, de que o incomparável Victor Hugo tenha expendido os seus pensamentos em língua que talvez desconhecesse na sua última trajectória pela Terra.

Se não o fez com perícia, é que escolheu mal o instrumento de que se utilizou para explaná-los;
lutou com a imperfeição ou deficiência intelectual do médium, ao qual transmitiu Na sombra e na luz.
Ele, insigne maestro da palavra escrita, teve a inexplicável fantasia de fazer um aprendiz de musicografia executar uma complicada ópera, que, certamente, ficou prejudicada no ritmo e na harmonia.

Eis por que encontrareis deslizes na novela que ides ler.
Há uma outra questão suscitada pelos que duvidam da lhaneza dos médiuns:
o confronto do estilo de uma comunicação espírita com a de um genial desencarnado, e, não sendo idêntico um ao outro, protestam logo, dizendo haver mistificação.

O Dr. Gabriel Delanne, no seu esplêndido tratado sobre psiquismo, epigrafado O Espiritismo, demonstra as causas que influem para que os ditames extratumulares, dos mais distintos desencarnados, tenham lacunas, e por isso me libero de reeditar o que já foi por ele cientificamente esclarecido.

Faço minhas, apenas, estas asseverações do citado cientista francês:
O fenómeno da transmissão é sempre uma acção reflexa do médium sob uma influência espiritual e não pode, muitas vezes, o agente sideral manifestar livremente os seus pensamentos, porque não encontra no cérebro do médium um instrumento bastante perfeito para transmitir suas ideias.

Posso, pois, receber fielmente os pensamentos dos fúlgidos mensageiros do Infinito?
Não, certamente. Não fico em transe nos momentos de trabalhos medianímicos.

Conservo integral a minha consciência.
Observo apenas que, enquanto persiste a indução espiritual, minha mente fica isolada, sem ideia alguma, in albis,² sentindo eu que por ela se filtram pensamentos alheios ao meu, qual se eu fora um dínamo em comunicação com uma bateria - que pode ser prontamente desligada daquele -, actuando em minha destra que faz, a seu turno, mover a pena, com rapidez incrível.

Compreendo, porém, que para ser fiel intérprete ou perfeita receptora dos radiogramas de lúcidos Espíritos, deveria possuir uma cultura intelectual que, infelizmente, ainda não me foi possível adquirir.

Bem sei que muitos leitores desta novela dirão ser diverso o seu estilo do inimitável autor de Os Miseráveis.
Direi, entretanto, aos que me fizerem essa objecção, que Victor Hugo, numa das suas correspondências psicográficas, expressou, sobre esse debatido tema, seus pensamentos, que aqui sintetizo em poucas palavras:
não o prende mais à Terra uma vanglória literária;
seu único objectivo é pugnar, com os grandes amigos dos sofredores e dos mutilados morais, no formidável prélio que tem por lema - Regeneração humana!

Conseguirá esse desiderato em Na sombra e na luz. Dir-me-eis depois.

Que importa a um abnegado do Espaço que a sua linguagem não seja impecável - devido à insuficiência mental do instrumento humano de que se utilizou - se consegue insuflar, nas almas conturbadas ou dilaceradas por dores inauditas, sentimentos nobilitantes ou esperanças imperecíveis?

Abri as folhas deste livro;
se achardes algumas de moral duvidosa ou com falta de elevação de sentimentos, comprometo-me a não receber mais as mensagens siderais.

Direi convosco: Não são de Victor Hugo...
Mas também não são minhas as páginas que constituem Na sombra e na luz.
As minhas faculdades intelectuais não se acham, felizmente, obliteradas pelo fanatismo ou pelo embuste.

Sou sincera e, por isso, não posso assinar meu nome em escritos que nunca foram preconcebidos e nos quais só há o meu trabalho medianímico.
Não quero usurpar o que me foi confiado por dignos e generosos amigos tutelares, que me têm fortalecido, amparado, lenido pesares acerbos, em horas de amargura e de provas dolorosas!

Eles que me julguem e façam justiça.
A justiça terrena é falha e parcial.
Tenho encontrado desconfiança e desconsiderações não só dos adeptos das crenças diversas da que professo, como de meus próprios confrades.

Fico, porém, serena, à espera sempre da injustiça humana e só confiante no julgamento austero e íntegro dos nobres invisíveis.

Termino, pois, este ligeiro prefácio à novela que ides conhecer e julgar, com as palavras do venerando Leon Denis, transcritas de sua já aludida obra, e que faço minhas:
"Ascenda para todos vós, Espíritos tutelares, entidades protectoras, meu pensamento agradecido, a melhor parte de mim mesma, o tributo de minha admiração e de meu amor".

1 Língua mundial criada pelo padre Johann Martin Schleyer, em 1880.
2 Em branco.

Minas Gerais, Além-Paraíba (Ilha do Recreio), 1917.
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LIVRO I - Uma existência tumultuosa

CAPÍTULO I


A época precisa em que ocorreram os factos primordiais, relatados nestas páginas de além-túmulo, não é mister que a mencione;
elucido, entretanto, os leitores curiosos de que esta verídica e emocionante novela, na qual, por vezes, surjo como uma das personagens, se desenrolou, quase toda, no século XIX, justamente cognominado das Luzes, no qual terminei a minha última existência planetária, fértil em provações árduas que hoje, rememoradas serenamente, depois de transcorridos decénios, esbatidas pelo esfuminho mágico do tempo, me volvem à mente como fragmentos de sonho. Tout passe...3

Começo, porém, a dar cumprimento ao que me propus:
ser o contem4 consciencioso dos episódios enternecedores de mais uma existência de um incomparável amigo - a quem consagro o culto de imarcescível afeição - depois de me ter ele outorgado o direito de o fazer.

Achava-me na Bélgica - proscrito da França, como se fora um celerado, e, no entanto, meu grande delito, meu imperdoável crime, o único de que me acusava a consciência, era o de ter verberado o despotismo, anelando defender minha terra natal da incursão perniciosa de qualquer tirania e desejando, para conseguir o meu objectivo, imolar-lhe a própria vida, se assim fosse mister - quando me relacionei com um jovem militar patrício, que conhecera superficialmente em Paris, e que, então, em Bruxelas, desempenhava honroso cargo que lhe confiara o governo de Luís Napoleão, de quem era súbdito, mas não servo.

Apesar de não ignorar as minhas ideias liberais, tinha por mim admiração entusiástica e, como nos víamos com frequência e nossas habitações pouco distavam uma da outra, travamos conhecimento mais íntimo, entabulamos afectuosas palestras e o assunto predilecto das nossas confabulações clandestinas era sempre a França, a pátria querida, flagelada por incessantes motins, frequentes lutas fratricidas, que a tornavam mais um campo bélico -fervilhando-lhe no seio as dissensões políticas, rastejando nos corações dos oprimidos e dos tiranos as áspides do ódio e das represálias - do que uma nação apropriada para seus filhos constituírem famílias, que pudessem viver tranquilamente, enquanto os verdadeiros patriotas laborassem por seu engrandecimento e progresso.

Desde o início de nossas relações, notei no meu distinto conterrâneo, a par de uma conversação em que transparecia a elevação dos seus sentimentos, uma visível melancolia que, muitas vezes, lhe absorvia os pensamentos, fazendo-o parar de chofre, em plena palestra amistosa, qual se de súbito houvera irrompido em sua alma emotiva algo de doloroso, justificando-lhe angustiosamente uma secreta e pungente ideia, e, então, nos seus límpidos olhos azuis, desvendava eu o fulgor de lágrimas contidas a custo, ou a flama de um dissabor latente e inconfessável.

Certa vez, quase ao anoitecer, estando a sós no meu gabinete de meditação e trabalho, anunciaram-me a sua visita.
Fi-lo entrar e convidei-o a sentar-se a meu lado.

Tão intensa era a amargura que o mortificava naquele dia, dando-lhe às nobres feições uma palidez de carrara,5 que, com paternal interesse, fui impelido a dizer-lhe:
- Sofres, meu amigo, e, quando vejo os rapazes da tua idade assim entristecidos e agoniados, não me é muito difícil profetizar a causa desses recônditos pesares.
Meu ilustre amigo - a quem designarei pelo nome de Paulo Devarnier - corou como um petiz apanhado em alguma travessura censurável e, bruscamente, tornou a empalidecer tanto, que ficou lívido.

Após breves momentos de reflexão, visivelmente comovido, disse-me:
- Poderia ocultar a outrem a génese da contínua mágoa que me entenebrece o coração e aniquila o organismo - pois vejo que, dia a dia, estou definhando, e, talvez breve, não possa mais me consagrar à nossa pátria - mas, ao meu preclaro amigo, de quem sou apreciador convicto, confessarei a causa da secreta dor que não vos passou despercebida.

Haveis de conservar, porém, meu caro amigo, absoluta reserva de tudo que vos narrar e desejo que nunca, nos vossos incomparáveis romances, façais a menor referência, em escorço rápido que seja, a esta minha confidência!
Não duvides da minha completa discrição: jamais, em livros meus, farei qualquer alusão ao que me disseres.

- Obrigado!
Confio tanto na lealdade do meu digno amigo que, sem o menor receio ou disfarce, vos darei a conhecer todas as páginas da minha vida íntima, como o faria a meu próprio pai, se ainda existisse.

Pronunciadas, que foram, estas últimas palavras, Paulo Devarnier começou a fazer-me o relato minucioso da sua ainda curta mas acidentada existência, interrompendo-o, por vezes, para proferir exclamações que, positivamente, ressumbravam a exaltação do seu espírito.

- Como sou covarde, pusilânime, meu amigo!
Deixar-me dominar pelo coração, eu que deveria servir à nossa gloriosa França!
Como pode um militar ser denodado, se se deixar escravizar por este insaciável e falaz órgão da emotividade - o coração - que o impele a sonhar e a ter ideias irrealizáveis?

Ai! porém, dele!
Para puni-lo da sua insana rebeldia, talvez ainda o traspasse com o meu gládio, obrigando-o assim a cessar de me impor os seus anelos e sofreando, de um só golpe, para sempre, as suas loucas aspirações, pondo termo, enfim, ao inaudito e longo suplício que me tem infligido!
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA Empty Re: NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 03, 2013 11:19 pm

Depois, mais calmo com as palavras de conforto e de esperança que lhe dirigi, começou, sempre sensibilizado, a narração integral da sua existência agitada por lances patéticos, que tentarei reproduzir o mais fielmente que me for possível, depois que ele - desfrutando a serenidade peculiar aos Espíritos evoluídos - me concedeu o direito de o fazer amplamente, prontificando-se a auxiliar-me no que já me houvesse deslembrado.

- Nasci em Paris, meu amigo, mas minha mãe era natural da Prússia, onde permaneci até aos quinze anos de idade.
Meu pai, que era francês e militar como eu, teve ensejo de vê-la, pela primeira vez, numa viagem que fez a Berlim, em casa de um amigo.

Amou-a imediatamente e foi correspondido com veemência por minha mãe, que possuía rara formosura e educação primorosa, e, pouco tempo depois de se terem encontrado, desposaram-se, contra a vontade unânime da família da noiva, que não desejava, de modo algum, a aliança de dois seres nascidos em nações diferentes e cujos filhos reciprocamente se detestam.

"Sou unigénito desse casal venturoso, constituído por dois entes que se adoravam infinitamente, esquecidos, ambos, de que haviam nascido sob céus diversos, em ambientes secularmente antagónicos e irreconciliáveis.

"Quantas vezes lamentei não ter tido um irmão - um desses companheiros que a Natureza nos dá - que escutasse os meus queixumes, me aconselhasse e compartilhasse do pesar constante que me flagela a alma, desde a segunda infância!
Mas, doravante, não o farei jamais porque considero a vida um mal e não o desejara a um ser a quem amasse santamente, como adoro a alguém que sofre infinitamente por minha causa, tendo sido impotentes os meus esforços para pôr termo às suas lutas.

"Prossigo, porém, caro amigo, a minha narrativa.
Meu progenitor morreu como um bravo, como um leão baleado, defendendo a França;
e minha mãe, com o coração dilacerado de dor, só, num país que não era o seu, comigo que apenas saíra da puerícia;
sem outro parente mais próximo, por parte do esposo, a não ser um cunhado, jovem militar ainda solteiro, transferiu residência para Berlim e lá começou o nosso longo martírio moral.

Se soubesse que essa resolução suprema que tomou seria a origem de tantos dissabores para mim, ela se teria deixado morrer na França -berço do marido e do filho adorados!

"Compreendo-a, porém, agora, que me sinto combalido por inexaurível mágoa, e sei por que tomou a deliberação de procurar seus parentes consanguíneos:
nossa alma, quando sofremos atrozmente, não pode exilar-se de todo o convívio social, pois tem ânsia, mais do que nunca, de carinhos, da união com uma outra que a compreenda, que lhe aligeire os íntimos tormentos, e, nesse período angustioso, alia-se à primeira pessoa que se lhe depare, que lhe estenda a mão generosa.

Assim, certamente, pensou minha pobre mãe ao buscar as paragens tudescas, onde esperava encontrar o achego da família e o perdão paterno, mas dessa vez, como sucede quase sempre, o coração ferido a ludibriou e, em vez de ternuras, só encontrou asperezas e decepções.

"Fomos, chegados a Berlim, residir em companhia de meu avô materno, já viúvo.
Austero ancião que me infundia temor e respeito, que me não acariciava nunca e era, às vezes, severo em demasia com o pequenino neto, que, para ele, patriota extremado como todo prussiano sabe sê-lo, tinha o imperdoável defeito de ser... francês!

"Minha mãe - inconsolável sempre, devido à irreparável perda que sofrera - jamais pôde achar lenitivo ao seu indómito pesar.
Passava os dias refractária à sociedade, reclusa no seu quarto, sempre triste, tendo apenas, para lhe minorar as penosas reminiscências do esposo, a minha presença.
Abraçando-me ternamente e cobrindo-me a fronte de beijos todas as vezes que dela me aproximasse, e somente sabia sorrir quando eu lhe retribuía as demonstrações de maternal blandícia.

"Como deveis supor, eu, ainda em tenra idade, compreendia, em parte, a nossa situação de dependência num ménage6 que não era o nosso.
Meu avô - rigoroso e inflexível - não consentira voluntariamente no consórcio da sua única filha e ainda lhe não havia perdoado a rebeldia contra a sua autoridade, ao vê-la regressar de um país que lhe inspirava aversão, viúva, e com um filhinho para ele criar e educar.

Longe de comovê-lo, a desventura de minha mãe lhe exacerbou antigos ressentimentos.
Fez-lhe recriminações e daí provinham as suas contrariedades e mau humor contra o travesso Paulo - o neto estrangeiro, o fruto de um himeneu que não abençoara.

"As crianças, porém, possuem uma intuição admirável, mais celeste do que humana (se é que temos, realmente, como dizem os teólogos, uma alma imperecível, de génese divina);
compreendem, de relance, tudo que se relaciona com a sua vida, sem que seja mister se lhes esclareça a sua situação social.

"Compungia-me, íntima e inexplicavelmente, contemplar minha mãe sempre com os olhos nublados de lágrimas, saber que sofria constrangimentos e humilhações, observar que ia perdendo, pouco a pouco, a sua ideal beleza plástica, que eu admirava com o enlevo de um crente fervoroso fitando a efígie de um ser divinizado, primorosamente modelado por egrégio artista.

Mas, com o vibrátil coração propenso às folias da meninice, sentia-me constrangido com a sua infinda melancolia e, sempre que me era possível, eclipsava-me da sua presença, para folgar na companhia de três priminhos - filhos do único irmão daquela que me concebera - os quais não deixavam de ir diariamente à residência de nosso avô, não só para o alegrarem, como para serem afagados.

Ele, tão ríspido para comigo, sabia sorrir, tornar-se jovial, fazendo-me compreender categoricamente a diferença que havia entre nós: - eu, francês, órfão e intruso; eles, os prussianos, felizes e adorados."

3 Tudo passa.
4 Narrador
5 Tipo de mármore encontrado na cidade de Carrara (Itália).
6 Lar, casa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 03, 2013 11:20 pm

CAPÍTULO II

Não me posso eximir de vos descrever a impressão que senti quando, pela primeira vez, deparei com os meus primos.

Parece-me que ainda os vejo, ao chegar a Berlim.
Os mais idosos, Carlos e Mateus, gémeos, contavam já cerca de três lustros; eram vigorosos, impulsivos, tinham modos bruscos e despóticos, tez morena sempre purpurina, olhos glaucos, traindo violência de instintos pouco nobres;
penetração, fereza e sagacidade como os dos falcões.

Senti repulsão instintiva por ambos, compreendi que possuíamos temperamentos antagónicos, ao passo que experimentei uma sensação de ternura e encantamento ao conhecer-lhes a irmãzinha, uma graciosa menina de sete anos, de cabelos áureos e encaracolados, de olhos cerúleos, profundamente merencórios, enfim, semelhante, no físico gentil, a um querubim proscrito do Paraíso e ainda lembrado e nostálgico de sua divina e longínqua pátria.

"Hoje posso afirmar que sua alma de açucena está de acordo com a sua cândida e angélica formosura.
A Natureza, meu amigo, que a muitos parece inconsciente e a outros agir de conformidade com uma potência que desconheço e não desejo perquirir, não se engana (é-me forçoso, entretanto, dizer) quase nunca em suas obras, mormente quanto às criaturas humanas;
a plástica é sempre a revelação do que é a alma nela enclausurada, do que são os sentimentos e, por isso, os frenologistas podem, com dados positivos, descrever as tendências de um indivíduo pelos traços fisionómicos ou pelas características de seu organismo.

"Não me iludi quanto aos sentimentos de meus primos, e o tempo me denunciou e confirmou o que, em idade infantil, imaginei a respeito de todos eles.
Carlos e Mateus - que contavam o dobro de minha idade e da de sua irmã - eram, quase sempre, impiedosos comigo;
só desejavam pôr em destaque a sua força muscular e, às vezes, me chamavam com escárnio e petulância, o que me revoltava até a derradeira fibra do coração, para que lutássemos a fim de ser eu vencido e eles terem ensejo de me dizer:

- És francês e por isso não te podes comparar a nós outros, alemães invencíveis!
- Se eu não fosse pequeno, venceria os dois juntos! - respondia-lhes com a face acerejada de ódio, expressando-me ainda imperfeitamente num idioma que não era o meu, o que aumentava a hilaridade e a zombaria de ambos.

"Raramente podíamos folgar em completa harmonia:
quase sempre me causavam descontentamento e, então, indignado e indefeso, corria, rosto orvalhado de lágrimas, para perto de minha mãe, que me abraçava em silêncio, ternamente.

Naqueles instantes penosos - vítima que era do absolutismo dos parentes, que patenteavam o que seriam mais tarde para mim - ela confundia seus prantos com os do mísero infante que, muito cedo, perdera o mais dedicado protector, arrebatado pela morte inclemente!

"Aparecia, então, à porta da câmara, empurrada violentamente, meu avô, trôpego no andar.

Com voz turbada pela cólera, censurava injustamente à desventurada filha:
- É assim, Amélia, que o estás educando?
Ele, tenho certeza, há-de crescer mal orientado, com tendências para o que é nocivo e se tornará um homem sem nenhuma qualidade moral apreciável, inútil à sociedade.

Por que é que não gosta dos primos?
Insulta-os, sem razão alguma e, em vez de o punires, ainda lhe dás estímulo para continuar a proceder incorrectamente.
Hás-de ver, em breve, o bom resultado dos teus mimos.

"Minha mãe guardava silêncio, agoniada.
"Meus adversários - assim posso chamá-los, sem faltar à verdade - motejavam da nossa dor tácita e inexprimível, e, então, destacava-se dentre eles, como o arcanjo da paz, a meiga, formosa e cândida priminha (à qual darei o nome de Elisabet ou o diminutivo familiar - Bet) e ia consolar--me e oscular a minha progenitora.

Outras vezes, assim me via resignado, acenava-me de longe, docemente, suavemente, com as suas minúsculas e róseas mãos que, naqueles instantes, pareciam o adejo de duas asinhas nacaradas de algum pássaro quimérico, foragido de um Eldorado, chamando-me aos nossos entretenimentos favoritos.

Contemplando-nos, ao lado um do outro, aquela que me deu o ser disse, reiteradas vezes:
- Como são belos e parecidos, Deus meu!
Assemelham--se tanto um ao outro como se fossem gémeos.
Ninguém poderá negar que o sangue os vincula fortemente e quem sabe se o destino também?

No entanto, presumo que só eu noto a analogia física com que o Eterno os dotou, porque o orgulho de nossos parentes os separa, dando a um supremacia sobre o outro.
Que é o que os aguarda no futuro, ó meu Deus?".
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 03, 2013 11:20 pm

Paulo Devarnier fez uma pausa, um parêntese na sua narração, dizendo:
- Meu amigo, hoje, reflectindo placidamente nos incidentes deploráveis ocorridos em minha puerícia, opino que a infância, tanto quanto a mocidade, a virilidade e a decrepitude, merece um estudo consciencioso dos psicólogos.

A criança é, quase sempre, o retracto apenas esboçado, com tintas fortes e indeléveis, do que vai ser na juventude, ou no decorrer da existência;
os sentimentos estão ainda em plena expansão - como as lavas a irromper de uma cratera quando o vulcão se acha num período eruptivo.

"Manifestam-se, por isso, com uma espontaneidade e impetuosidade que, mais tarde, não podem ser apreciadas sob o mesmo aspecto, porque a educação e as conveniências sociais os torturam, restringem, deixando-os - desculpai-me a comparação vulgaríssima - como esses títeres que, de proporção descomunal, parecem pequenos, porque estão comprimidos dentro de um estojo:
basta que alguém o abra para que mostrem a estatura gigantesca!

Omito, porém, considerações supérfluas, sobre a índole infantil, para não vos entediar, usurpando-vos um tempo precioso, e também para poder prosseguir a minha confissão.
Os primos de que vos falo, Carlos e Mateus Kceler, sempre foram meus adversários, seja por instinto perverso, seja por incompatibilidade absoluta de temperamento, ou, o que talvez tenha mais base, por ódio implacável de raça, pois nunca se uniram fraternalmente os filhos da heróica França com os da altiva Alemanha.

Mas, o que é, para mim, indubitável é que, desde a infância, os nossos sentimentos já se conflagravam, a juventude nunca pôde modificá-los e, por isso, ouso afirmar sem relutância:
jamais, jamais seremos unidos pelo mais ténue laço de afinidade espiritual ou de afeição recíproca".

* * *
Até transpor as fronteiras do meu país, ignorava eu a existência do amor cívico.
Senti-o, pela primeira vez na vida, jorrar do coração, quando fui tratado com sarcasmo pelos parentes, que me humilharam por ser de outra nacionalidade.

Ao conchegar-me, choroso, ao regaço de minha mãe, vi-a cerrar a porta do dormitório e ordenar que me prosternasse, com as mãozinhas enclavinhadas, como na hora de recolher ao leito.

Só então me disse gravemente:
- Vem rogar ao bom Deus, filhinho, para que nos proteja e faça com que nunca te lastimes de ser francês e possas, mais tarde, servir à tua pátria, como teu pai, que lhe consagrou a vida até ao extremo alento.
- Mas que é pátria? - murmurei, ingenuamente, antes de encetar a súplica a que ela me convidava, em intenção do morto inolvidável.

Deu-me a almejada explicação a meu alcance, concluindo assim:
- A nossa pátria, meu Paulo, deve ser mais venerada do que a dos outros povos que, muitas vezes, nos detestam e são impiedosos connosco nos tempos calamitosos de guerra.

- E tu, mãezinha, não nasceste no mesmo lugar que o bom papai?
- Não, filhinho, teu pai era francês como tu e nunca te vexes de ter aberto os olhos à luz dum país glorioso como a França, de onde viemos há pouco tempo.
Nasci nesta terra em que vivemos agora, que se chama Alemanha, que é a minha pátria e a de teu avô.

- Antes fosses também da França, como o meu papaizinho!
Não gosto daqui, nem do vovô...
Quando voltaremos para nossa pátria, mamãezinha?

Como não obtivesse de minha progenitora a desejada resposta, comecei a recitar, em surdina, uma prece que sabia de cor, quedando-me silencioso, depois, para que ela me ensinasse o ofertório.
A torturada, porém, nada me podia dizer, porque se achava numa de suas crises angustiosas:
soluçava, ajoelhada ao pé do leito, diante de um painel da Máter Dolorosa, que pertencera ao esposo adorado.

É que eu, caro amigo, candidamente, proferira verdades que, por certo, eram o constante tormento de sua alma impressionável e sentimental.

Compreendi desde aqueles instantes, lucidamente, por que meus primos se dirigiam com arrogância e desdém ao pequenino Paulo e por que nosso avô os acariciava até com o olhar que, para o mísero francesinho, tinha um rigor inexorável:
- nasceramos em nações diferentes, que não eram amigas!

Assim que terminei a oração, pus-me a meditar, pela primeira vez, no que exprime este vocábulo -pátria - para que me ficasse indelevelmente gravado na retentiva.
Súbito, ouvi bater brandamente à porta.
Descerrando-a, deparei com Elisabet - o anjo tutelar de nossa família, aquele que terminava todos os conflitos domésticos com um ósculo de paz na fronte dos contendores, que não ousavam profanar a pureza de suas intenções e se apressavam em firmar o armistício que ela desejasse.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 03, 2013 11:20 pm

Tratei de fazê-la entrar e sentar a meu lado.
Perto de Elisabet, sentia-me enlevado.

Não me era possível esquecer que, afora minha mãe, só ela me ameigava e defendia com seus róseos e minúsculos braços contra algum ato de violência dos irmãos, que não podiam transgredir-lhe a vontade, como Lúcifer, certamente, fica tolhido e manietado à voz potente de um querubim, quando lhe arrebata a presa imbele, custodiando-a sob suas asas de neve e luz, longamente espalmadas.

Assim pensei, por muito tempo, ao rememorar o prestígio de Bet, quando criança, sobre os meus primos.
Hoje, porém, caro amigo, que sou um céptico das coisas transcendentais, posso asseverar-vos que, na vida real, se dá agora o inverso do que afirma a Teologia:
é o arcanjo que está sob o domínio de dois cruéis satãs!

Sarcasmo acerbo do destino, que me tem arrancado aos olhos muitas lágrimas!
Reato, porém, o fio da narrativa: no dia a que me refiro, Elisabet entabulou comigo um inocente diálogo, e, como se houvera escutado o que eu e sua tia conversávamos antes da sua chegada, solicitou-me que lhe falasse de lá, da minha terra, com uma curiosidade já feminil.

Ouvindo-nos, minha mãe, a mártir ignorada, conseguiu sorrir.

Já não dormita senão vaga reminiscência em minha mente de tudo que confabulamos naquela hora, mas presumo que fosse o seguinte, mais ou menos:
- Há lá flores como aqui, chove, há estrelas... mas tudo é mais belo do que em tua pátria, Bet.
- É? Tenho vontade de conhecer a França, Paulo!
- Levar-te-ei para a minha terra, quando crescermos. Queres?
- Quero sim! O que não sei é se o meu paizinho consentirá que eu vá.
Prometes trazer-me depois, Paulo?

- Sim - respondi-lhe apreensivo, mentindo provavelmente pela primeira vez, pois pensava justamente o contrário do que dissera na minha frouxa afirmativa:
era meu maior anelo arrebatá-la para a França e jamais deixá-la regressar às plagas abominadas do nosso avô e dos seus irmãos.

Ai o coração infantil é maravilhosamente presságio:
sem ter verdadeiramente consciência do que falara, na completa irresponsabilidade da infância, acabava de formular um desejo que, decorridos tantos anos, é ainda o meu maior, o meu único ideal.

É que eu não desconhecia a embaraçosa situação minha e daquela a quem devo a vida, em casa de nossos parentes; compreendia a animosidade de todos eles contra nós e, conseguintemente, estava ávido por nos libertar da humilhante posição em que nos achávamos, num lar alheio, o que conseguiríamos se fôssemos com a graciosa Elisabet para o meu país.

Esse pensamento foi constante na minha meninice, fazendo-me devanear, horas a fio, sobre o modo de raptar a priminha - qual se fora uma princesinha dos contos de fada -, pois era essa a única solução que encontrava para que visse finalizados os nossos dissabores, fantasiando a suprema dita de ficarmos tranquilos em longínquo território, que não saxónio.

Vede, meu amigo, o que elaborava o meu cérebro numa idade em que as outras crianças planejam apenas travessuras e folguedos.

Desde aquela época, já uma dor inominável e latente me ciliciava o coração - o germe da mesma que, hoje, mo suplicia:
imaginar que eu e Elisabet teríamos de viver apartados por todo o sempre!
E então, como agora, já preferia sofrer as maiores tribulações, em Berlim, a habitar a mais deliciosa e paradisíaca região deste globo, longe dela.

Passaram-se dois anos após a cena que vos descrevi em síntese.
Comecei a frequentar as aulas do mesmo colégio em que se achava matriculada a mimosa Bet - o que excitou, contra mim, a mordacidade de meus primos, que cursavam um ginásio e já tinham iniciado o tirocínio militar.

Esse tempo, no entanto, o do início de meus estudos, foi o período áureo, a era florida de minha existência.
Passar pela vivenda da encantadora Elisabet, vê-la aguardando minha chegada com sofreguidão, tomar-lhe, pressuroso, a pasta em que acondicionava os livros e a merenda;
partirmos, lado a lado, em demanda do colégio, ver deslizar uma fracção do dia juntos um do outro, aprendendo, muitas vezes, no mesmo compêndio, a mesma lição;
deliciar-nos, nas horas de lazer, em magnífico parque, longe de meus primos e de nosso avô:
- era estar prisioneiro do Olimpo algumas horas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 04, 2013 10:07 pm

v
Diariamente me sentia mais ditoso do que se estivesse convivendo com os deuses.
Podeis compreender, pois, qual o pesar que de mim se apoderava ao ter de conduzir a gentil coleguinha ao lar paterno e voltar só para o de nosso avô, que, no entanto, assim comecei a frequentar as aulas do estabelecimento de ensino em que ele me matriculara, se tornou para comigo menos rigoroso.

Por quê? Um dia em que o austero ancião me osculou a fronte pela primeira vez, interroguei à minha mãe a causa da transformação operada no seu progenitor e ela me respondeu em segredo:
- É que, meu Paulo, já vais esquecendo a tua língua pátria e aprendendo a dele;
por isso, está contente, pois pretende que, mais tarde, sejas naturalizado alemão.

- Que é ser naturalizado, minha mãe?
- É renegar a terra em que nascemos, que o Criador nos concedeu, para servir à de outrem. É...

Não a deixei findar a frase, apenas encetada:
tudo compreendi rapidamente e um vivo clarão de florestas em chamas perpassou por meu cérebro, um relâmpago de dor e indignação mo incandesceu intensamente e, naqueles segundos, se me fosse possível, teria deixado, para sempre, as regiões tudescas, em companhia de minha mãe, a quem disse, no auge da exaltação:
- Consentes, minha mãe, que meu avô me force a cometer um ato indigno?

Vou dizer-lhe que nunca e nunca deixarei de ser francês como o meu querido pai!
Não quero ser prussiano, minha mãe!
Tenho aversão à terra de vovô.

- E à de Elisabet? - redarguiu ela a sorrir, intencionalmente.
Logo modifiquei meu pensamento:
- Ela sairá daqui... e irá connosco para a França, quando eu crescer...
- Se puderes conseguir o teu intento sem uma luta tenaz em que, talvez, sejas vencido, meu pobre Paulo! - disse, profeticamente, aquela que me deu o ser, com inexprimível melancolia, prevendo, então, tudo o que me sucederia no porvir, por uma faculdade infusa que só têm as mães extremosas ou as pitonisas verdadeiramente inspiradas pelos numes.

Beijou-me depois na face e, temendo que outrem a ouvisse, afora o filho amado, cerrou a porta do aposento em que nos achávamos e declarou, com a voz muito velada:
- Continuarás, meu Paulo, a aprender o vernáculo, para que meu pai, a quem muito considero e não desejo desgostar mais, não se agaste connosco, porém, comprometo-me a te ensinar às ocultas a língua francesa, para que não venhas a esquecê-la.

Não digas coisa alguma a quem quer que seja.
Todos suporão que te estou orientando nas matérias em que terás de ser arguido no exame, mas, de fato, só te ensinarei o idioma de teus patrícios.

Confiar segredo a uma criança!
Sabei, meu amigo, que uma criança muitas vezes o guarda melhor do que um adulto:
porque ainda não sabe trair a confiança de que foi alvo, ou pelo receio de ser punida.

Foi assim que, em divergência constante com os parentes, por causa da animadversão que nutrem contra os meus compatrícios, atingi os meus quatorze anos de idade.

Ao começar o desenvolvimento do meu intelecto e do meu físico, e mormente depois que, cursando meus primos uma escola militar, entrei a fazer progresso nos meus estudos, revelando inclinação apreciável para as ciências exactas - conforme o parecer dos professores -, meu avô se transformou de todo para comigo:
afagava-me, adorava--me e enaltecia mais os meus predicados mentais do que os dos dois outros netos, satisfazendo, com alegria, todos os meus desejos.

Abafara o orgulho prussiano, mas para facilitar a execução de um plano altamente cívico:
a conquista, pelos elos afectivos, do coração revel mas sugestionável do pequeno forasteiro francês, que a todos já parecia estar eternamente agrilhoado à terra dos famosos saxões.

Vivi, por algum tempo, sob as asas de um sonho verdadeiramente edénico, do qual não desejaria despertar jamais, se assim o permitisse a minha estrela.

Teve, porém, efémera duração o meu ilusório triunfo;
o firmamento de minha existência que então se apresentava sereno, encantadoramente opalino, turvou-se bruscamente, encastelou-se de negrejantes cúmulos e expediu coriscos que, como víboras de fogo, me alvejaram o coração, crestando-o para todo o sempre, carbonizando nele todos os anelos, todas as promissoras esperanças.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 04, 2013 10:07 pm

CAPÍTULO III

Completara, com destaque, o curso preliminar fora matriculado num estabelecimento de ensino secundário.

Meu avô se mostrava afável e magnânimo comigo, exaltando os meus predicados intelectuais perante os amigos e parentes, e essa violenta transição numa criatura de carácter sóbrio, qual o seu, pouco propenso às expansões ruidosas de sentimentos íntimos, fez-me ficar apreensivo, cogitando que ele houvesse concebido algum projecto enigmático a meu respeito.

Não pude deixar de expender, com lealdade, esses receios à minha mãe, que, no último período de uma afecção cardíaca, vivia reclusa no seu quarto, mais silenciosa, amofinada e pálida do que nunca.

Encontrei-a reclinada numa chaise longue, sentei-me a seu lado e lhe expus os meus temores.

A princípio me pareceu que não estava atentando no que lhe dizia; depois, fez-me erguer e tirar da lâmpada, já acesa, o abajur;
ordenou que me sentasse, em frente à sua cadeira, esteve a fitar-me longamente, penetrando com o olhar até o ádito de minh'alma, e só então principiou a falar, pesadamente, procurando dominar uma emoção que a tornava quase lívida:
- Meu filho, a mudança, que notaste em teu avô e que me não passou despercebida, provém de que ele deseja que, findos os teus preparatórios, comeces a aprendizagem militar na mesma escola em que teus primos estão a concluir os seus estudos, mas que sejas matriculado como seu pupilo e prussiano.

Para isso conseguir, vai, por meios brandos e carinhosos, granjeando o teu coração, a fim de que te não oponhas aos seus projectos.
"Bem sei que isso te contraria, tanto quanto me está mortificando, há muito.

Já compreendes que a terra onde nascemos, seja qual for, não deve ser renegada jamais e mormente por ti, meu Paulo, filho de um soldado nobilíssimo, de um guerreiro insigne, qual foi teu progenitor, que imolou a existência no altar sacrossanto da pátria querida!

Como hás-de repudiar o teu berço natal, esquecer que o foi também de um ente a quem devemos venerar em vida, e, mais ainda, depois que nos aguarda no Além - teu pai?
Que o céu me perdoe o ter de contrariar as ideias do meu, para defender os direitos invioláveis do filho e do esposo idolatrados.

"Em que penosa emergência me encontro, ó meu Deus!
Vejo, de um lado, meu pai já idoso, enfermo, sem resistência para sofrer um grande abalo moral; de outro, o filho dilecto ameaçado de ser espoliado de sua terra natal!
Tu, o unigénito de um heróico soldado francês, que, certamente, amaldiçoará a tua conduta ou a covarde submissão, se acederes aos rogos de teu avô.

Temo, sobretudo, compartilhar da incriminação do morto adorado, com quem hei-de estar a curto prazo, por não ter sabido conjurar o perigo ora iminente sobre a tua fronte.
Sofreria, insanamente, só com a ideia de que sua alma, que muitas vezes pressinto a meu lado, velando por nós, deixasse de aprovar uma acção de sua esposa ou de seu amado Paulo.

"Não posso, pois, adiar para mais tarde a execução de um plano salvador, que elaborei a teu respeito, mas que, para não ferir tua alma de visionário, a desabrochar para a vida, a acariciar sonhos de glória e de venturas, ainda não tinha tido a precisa coragem de pôr em prática.

Escuta, pois, meu filho, o que te vou dizer, com a máxima atenção:
antevejo que minha existência atinge seu termo;
a dor incoercível que me tem aguilhoado, sem cessar, o coração, desde que enviuvei, fê-lo enfermar e não tarda - depois de tanto mo ter flagelado - a dar-me o eterno repouso.

"Sê corajoso, Paulo, não chores assim!
"Deixa-me prosseguir, pois não sei se ainda amanhã poderei aconselhar-te o que deverás fazer, para que te não tornes um francês execrável.
"Tens um tio paterno, residente na França, militar como teu pai, ao qual desejo escrevas para vir buscar-te".

- Mas isso é uma traição feita a meu avô, minha mãe, e meu coração se revolta com a deslealdade!
- E se acederes aos planos desses parentes, não serás duplamente desleal?
Não trairás a França e a teu pai?
"Imagina, Paulo, que futuramente a Alemanha se bata com a França.
Serás um trânsfuga tão abominável que empunhes armas contra tua própria terra natal?"

- Nunca, minha mãe!
Mas, por que me querem forçar a ser soldado?
Prefiro ser um cientista, constituir família, viver calmamente num lar venturoso.
- Não se vive feliz sem a paz da consciência, meu filho; e se aqui ficares não a terás, porque assim que eu morrer, obrigar-te-ão a te naturalizares prussiano.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 04, 2013 10:07 pm

Caí genuflexo, com as mãos súplices:
- Piedade, minha mãe, não tenho ânimo de me separar de Elisabet!
Ela me abraçou comovida, dizendo com a voz entrecortada de soluços:
- Não duvides da minha afeição, Paulo, mas não posso pactuar com uma covardia inqualificável.
"Sê forte e não me mates de emoção, meu filho!

Há muito desejava dizer-te o que te transmito agora, mas relutei, temendo angustiar-te e também que me faltasse a necessária energia para te dar uma ordem suprema, ou antes, para te fazer uma súplica, que será a derradeira e que, por isso, espero, não deixarás de atendê-la.

"É mister que voltes para tua pátria, meu Paulo.
Lá estudarás o que te aprouver, seguirás a carreira para a qual sentires maior vocação, depois regressarás a Berlim e, quem sabe! talvez consigas desposar Elisabet.

"O irmão de teu pai se chama Félix Devarnier e aqui tens o seu endereço.
"Não me prometes, agora, Paulo, escrever-lhe amanhã, expondo a tua situação e rogando que te venha buscar... quando eu deixar de existir?
"Diz, meu filho!".

Foi soluçando que fiz a minha mãe a formal promessa de lhe obedecer.
Escusado é dizer que não pude adormecer tranquilo aquela noite, só conseguindo conciliar o sono muito tarde, já ao alvorecer, tendo sido assaltado, em sonho por aparições sinistras de pugnas e infortúnios que, em breve, me viriam em profusão por todo o percurso da minha acidentada existência.

No dia imediato àquele em que tive o espírito abalado por tão forte emoção, minha mãe ditou uma carta que, trémulo e receoso, detendo-me a cada palavra, grafei lentamente, qual se fora condenado a lavrar uma sentença funesta e irrevogável, que eu próprio devesse cumprir.

Depois que a leu - corrigindo alguns deslizes, pois que a missiva fora escrita em francês, que me parecia já uma língua exótica - ordenou-me que a levasse a uma agência postal para registá-la com o endereço de meu tio Félix Devarnier.
Obedeci, sentindo o coração agitado por um presságio de amarguras, parecendo-me que, desde aqueles momentos, terminara minha infância e iniciara uma outra fase da minha existência, para a qual vaticinava desditas incessantes.

Tive o prenúncio iniludível de que, desde então, me votara a intérmino sofrimento.
Por quê? Ai meu amigo, penso que esses misteriosos prognósticos do que nos vai suceder são imagens de acontecimentos futuros que se aclaram de súbito, desenhadas que já estavam num cenário íntimo - sob o influxo de uma potencia que desconheço - e avanço mais, que a nossa boa ou ma sina não depende dos nossos esforços nem do nosso livre-arbítrio, porque é traçada por mão implacável e nada há que possa deter ou revogar os desígnios inerentes à nossa vida, do primeiro ao último instante.

Imagino que, como num regato de água hialina se espelham todas as silhuetas, todas as formas, todas as sombras e todas as cores dos corpos que se acham nas suas margens ou no céu, também no abismo do caleidoscópio de nossa alma há sempre o vislumbre, às vezes passageiro, outras nítido como painel pincelado por um Correggio,7 de todos os sucessos porvindouros.

Assim, o que se nos afigura um pressentimento tenebroso não é mais do que a projecção da realidade futura, que, dia a dia, se vai patenteando, pondo em foco todas as imagens que apareciam apenas esboçadas.
Desumanamente, como um Torquemada,8 o destino apenas entrevisto vai executando o que se nos afigurava ilusão e, desse modo, triturando aos poucos o coração, ceifando todas as quimeras, tornando em cinza todas as nossas mais caras aspirações.

Perdoai, porém, bom amigo, as minhas divagações filosóficas.
Sou, como o disse minha mãe, um visionário, mas agora posso acrescentar ao que ela proferiu:
quase todos os meus ideais já feneceram e só resta o derradeiro - a morte ou o nada, o que me parece a mesma coisa.

Já não sou um ideólogo, mas um vencido nas justas que travei com a sina cruel, que me tem fustigado a alma com a inclemência de um Tritão.9

Retorno, porém, à minha narrativa, prometendo não deva negar mais, uma só vez sequer!
Vivia atribulado desde que minha mãe me impôs a condição de regressar à França.

Atemorizava-me a revelação, que me fizera, de que nossos parentes tentariam obrigar-me a renegar o solo francês;
amargurava-me o coração saber que estava prestes a perder a mais desvelada das mães;
porém, sobrepujava a todos os meus pesares a ideia de ter de me apartar de Elisabet, talvez para sempre!

Desde que habitava Berlim, ainda se não havia passado um único dia sem que a visse;
crescêramos lado a lado, como gémeos que se idolatrassem; nossos pensamentos eram uníssonos - nunca discordamos uma só vez;
sabíamos - sem ainda termos feito mútuas confidências - que nos amávamos como irmãos e como noivos... desde os sete anos de idade!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 04, 2013 10:08 pm

E como era então graciosa a querida Bet, ao completar os seus três lustros primaveris!
Que beleza arcangélica a sua!
Como todos os olhares se volviam curiosos para verem-na passar e, no entanto, seus olhos de turquesa radiosa, merencórios e ternos, só buscavam os meus, que não se fatigavam de os contemplar com enlevo.

Nossos ascendentes percebiam claramente o sentimento estreme e indissolúvel que encadeava as nossas almas, exultavam por isso e sorriam à sorrelfa.

Assim prenderiam, indefinidamente, o pequeno expatriado francês pelo coração, que, em breve, seria espezinhado por tantas torturas.
Escoado mais de um decénio, depois dos incidentes que vos pretendo relatar, ainda sinto n'alma a dor rumorejar, como a concha que, exilada do mar, conserva incessantemente o seu ruído, que parece ocultar-se-lhe nas volutas, eternamente.

Ao regressar da agência postal, onde fora levar a carta dirigida a meu tio Devarnier, a qual, para o meu espírito impressionável, tomou as proporções de um Himalaia de bronze premindo-me o peito, tomei a deliberação de confidenciar com a meiga Elisabet, que, certamente, teria palavras caridosas para desvanecer, em parte, as minhas tétricas apreensões.

Ela, que me vira passar em direcção à agência, me aguardava no pequeno jardim da sua morada, lendo um livro de Goethe, que eu lhe ofertara no dia do seu último natal, e observou logo a minha palidez e a preocupação do meu espírito.

Interrogou-me, temerosa de haver sucedido algo de lastimável:
- Que tens, Paulo? Piorou a tia Amélia?
- Sabias que ela está muito mal?

- Sim... há muito... Os médicos acham o seu mal incurável.
- E por que preferiste que eu vivesse iludido e nunca me disseste, lealmente, o que me revelas agora sobre a enfermidade de minha mãe?
- Para te não afligir, Paulo...

Guardei silêncio por alguns momentos.
Bet julgou-me agastado com ela pela primeira vez. Tranquilizei-a.

Depois, disse-lhe:
- Tenho uma revelação a te fazer.
Serás capaz de guardar, inviolavelmente, um segredo, Bet?
- Um segredo, Paulo?
Se é teu, como não hei-de saber conservá-lo por toda a minha vida?

Fitei-a naquele instante, meu amigo, e quase não tive ânimo de lhe transmitir meus pensamentos, para não vê-la sofrer.
Estava tão bela, tão serena, que hesitei em levar à sua alma bonançosa o pesar que punha a minha em procela.

Elisabet, porém, tanto insistiu para que lhe dissesse toda a verdade, que não pude resistir aos seus rogos e, numa sincera confissão de quem não sabia ainda mentir nem simular os sentimentos, tudo lhe narrei sobre a deliberação que minha genitora havia tomado de me fazer regressar a França.

Via, ao passo que lhe falava, ir empalidecendo gradativamente e seus olhos se aljofrarem de pranto.
O rosto que, havia poucos momentos, parecia esculturado em nácar precioso, subitamente se tornou de jaspe, como o firmamento em zona tropical, à hora do crepúsculo, passa bruscamente da cor da púrpura à da cinza.

Logo após, tomou a nuança do alabastro mais níveo.
Choramos, sentados no mesmo banco do jardim, por muito tempo, mãos enlaçadas pela primeira vez, sentindo que, ao prenúncio de um afastamento, as nossas almas ficaram mais ligadas, transfundidas numa só.
Depois de longo silêncio, como se já não estivéssemos mais na infância ou como se, de súbito, nossos espíritos houvessem atingido uma idade secular, começamos a conjecturar no porvir, que se nos antolhava tempestuoso, prenhe de adversidades.

Bet não me acusou uma só vez por ter acedido à vontade materna; apenas se mostrou tristonha e apreensiva.

Vendo--me, porém, infinitamente abatido e consternado, tentou consolar-me:
- Sabes, Paulo, o que nos vai suceder?
O mesmo que à tua mãe;
virás da França buscar-me, quando já fores oficial ou terminares os teus estudos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 04, 2013 10:08 pm

- Assim o espero, Bet, mas o que me acabrunha é termos de ficar separados, e quem sabe se me não irás esquecendo aos poucos, ou se terás a constância de me esperar alguns anos, até que eu possa vir buscar-te?
- Eu, Paulo? Não me ofendas duvidando da minha afeição!
Juro que te hei-de esperar, haja o que houver futuramente!
Hei-de ser-te sempre fiel e nunca a outrem consagrarei a amizade que te tenho.

- Mas teus irmãos, sobre todos os membros da nossa família, serão contra nós.
Pressinto que me hão-de odiar inexoravelmente, se eu regressar à França.
- Haja o que houver, Paulo, serei sempre... tua noiva!

Noivos! Éramos, pois, prometidos esposos aos quatorze anos de idade e o segredo do nosso amor cândido e impoluto, que até então nunca nos assomara aos lábios, que apenas irradiava dos nossos olhares, por entre a timidez das almas castas e ingénuas, a dor no-lo patenteava inopinadamente e uma incomparável alegria - mesclada, entretanto, de amaro pesar, qual se fora uma taça de néctar em que alguém instilasse absinto - me inundou o coração, refrigerando o tormento que o abrasava com o vaticínio de inevitáveis angústias.

Assim, ao passo que minh'alma se iluminava de ventura, meus olhos se turvavam de amargurado pranto.

* * *
Passaram alguns dias após a nossa mútua confissão e, todas as vezes que nos achávamos a sós, reiteramos quase as mesmas palavras, que traduziam temores, esperança, amor, projectando também o que faríamos - com as pupilas orvalhadas de lágrimas, linfa do sofrimento a gotejar do coração premido pela bárbara manopla do destino - no momento em que tivéssemos de ficar segregados um do outro, transfundindo nossas almas em recíprocos protestos de afeição, jurando que jamais seríamos desleais, preferindo a morte à perfídia.

Uma tarde, ao regressar da casa de Elisabet, encontrei minha desditosa mãe muito mais pálida do que nos outros dias, com os lábios rubros por uma onda sanguínea, o olhar fixo no tecto, a destra pousada sobre o coração - reduto de todo o suplício que padecera em silêncio, proscrita na sua própria terra, condenada a uma perpétua reclusão, decretada na saudade inexaurível do esposo bem-amado.

Quando me aproximei do seu leito, não pude deixar de soltar estridente grito de aflição.
Ela, então, me fitou por um momento apenas - tendo no olhar expressão inesquecível, na qual pude compreender quanto sofria por me deixar só, exposto às borrascas da vida e, ao mesmo tempo, uma rogativa, a derradeira, para que cumprisse o prometido.

Depois, sem poder pronunciar um único vocábulo, cerrou as pálpebras, como se estivesse aguardando exclusivamente a minha presença para abandonar a existência, aquela existência de mártir inconsolável.

Expirou quase ao abandono, como vivera, a desventurada e incompreendida criatura!
Permiti, caro amigo, faça uma ligeira interrupção, omitindo o que deveis perceber lucidamente:
a minha mágoa incomensurável ao perder aquela que me dera o ser, mágoa que até hoje ainda perdura quase intacta no meu imo, porque somente agora compreendo a tortura em que viveu a desditosa viúva, que nunca pôde encontrar lenitivo ao pesar que padeceu com a separação de um ente a quem amava mais que à própria vida.

Desde então, o amor que eu lhe consagrava se transformou em culto, em veneração intraduzível!
A dor desperta e matura o nosso espírito; em poucos dias deixei de ser uma criança, sentindo íntima e radical transmutação dos sentimentos e das ideias.
Meus pensamentos se tornaram graves, reflectidos, como se eu já contasse meio século de vida, e cuidava, às vezes, que meus cabelos fossem ficar nevados.

Mas, para mitigar meu infortúnio - o primeiro temporal que me fustigou a alma tenazmente, acordando-a para as grandes refregas morais - tinha a ternura de Elisabet e os afagos paternais de nosso avô, que me tratava com indizível carinho, o que me fazia, muitas vezes, prantear remorso por haver escrito aquela maldita missiva a meu tio Félix, imaginando que aquele que procurava abrandar o golpe que me fora vibrado em pleno coração teria o seu, em breve, dilacerado pela minha ingratidão, ferida por mim, involuntariamente, sua alma de patriota extremado e já sem energia para suportar estoicamente os embates da adversidade.

7 Pintor italiano (1489-1534).
8 Termo originado de Tomás de Torquemada, célebre pelo fanatismo religioso e crueldade;
seu nome se tornou símbolo da Inquisição.
Alusão feita ao carrasco que obedecia cegamente às ordens de Luís XI.
- Nota da psicógrafa.
9[i] Alusão feita ao carrasco que obedecia cegamente às ordens de Luís XI [i]– Nota da psicógrafa
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 04, 2013 10:08 pm

CAPÍTULO IV

Decorreu algum tempo depois do infausto sucesso que acabo de referir e cuja recordação ainda me punge intimamente.
Como já disse, tornei-me taciturno, meditativo, desabituei-me de sorrir, sentindo que, no íntimo, uma estranha individualidade substituíra a que nascera comigo.

Ao passo que se ia adelgaçando, diluindo, a personalidade infantil, que por fim se dissipara ou pulverizara como escombros alijados a uma voragem, surgia uma outra definitiva, alicerçada em bases imutáveis - a varonil.

Não era mais o infante gárrulo, irreflectido e esperançoso de outrora, não.
Durante os dias enlutados que se seguiram ao passamento de minha mãe, meu espírito, apesar de aturdido, se desenvolvera, se metamorfoseara.

Tinha, às vezes, a impressão de estar enclausurado um titã no pequeno cárcere do meu organismo, como a teria um cedro, se dotado de sensibilidade, no qual despontasse um rebento que, decorridos anos, se agitasse, ultrapassando o próprio caule em que germinara.

Mais do que até então, avigorou-se em meu ser o culto inefável que consagro a Elisabet e, se até aquela época me era penoso imaginar minha partida de Berlim; depois que fiquei órfão pela segunda vez parecia-me inqualificável barbaridade levar-me alguém - mesmo que fosse algum éden - para outra região afastada daquela em que jazia o sepulcro materno e onde se encontrava o único lenitivo às minhas mágoas - Elisabet!

Não poderia, noutra paragem, fruir o consolo que, em Berlim, amenizava os pesares de minh'alma em crepe: palestrar com a afável noivinha, renovar os nossos protestos de mútua felicidade, confundir nossas lágrimas, que todos julgavam originadas do recente sucesso que nos enlutara, mas que provinham da expectativa em que nos achávamos, da derrocada de nossos sonhos, do despenhar, em nossas frontes, de uma inevitável desventura, que, talvez para sempre, nos afastasse cruelmente um do outro, pois não eram infundadas as angústias dos nossos corações - misterioso oráculo que se oculta no santuário do nosso peito.

Às vezes, em rápidos instantes, pensava, revoltado contra mim mesmo:
- Por que hei-de sair da Prússia, se, somente aqui, poderei conquistar a almejada ventura, meu enlace com Elisabet?
"Que importa servir à pátria de Elisabet, pátria do meu coração que a idolatra?".

Mas logo austera reprovação me farpeava asperamente a consciência:
- Quê! Pois vais repudiar a terra de teu pai, que morreu propugnando-a, como um ínclito?
Vais traí-lo e a tua infortunada mãe, que confiava na nobreza do teu carácter e a quem juraste cumprir a sua última vontade?

Tinha, naqueles momentos de secreto embate, a visão entristecida da morta adorada, sempre com as negras vestes da viuvez, muito pálida, contemplando-me como o fizera pela derradeira vez, no leito da agonia.
Então, não mais tentava reagir: cerrava as pálpebras, deixava-me arrebatar pelo vertiginoso torvelinho dessa fatalidade que me tem desfolhado, uma a uma, as ilusões da mocidade, todas as esperanças da vida, que arrasto como o galé arrasta o seu grilhão maldito, sabendo que jamais será libertado!

Um dia, ao regressar da casa de Bet, ouvi distintamente vozes alteradas que provinham da sala de visitas da residência de meu avô, e, como uma delas me era desconhecida, parei no limiar da porta, hesitando em penetrar no recinto a que ela dava acesso.

Alguém dizia:
- Não venho cometer uma arbitrariedade, senhor;
tenho sobre ele o direito inconcusso, pois, primeiramente seu pai e depois sua mãe mo entregaram, antes de falecerem.

- Que fizestes de todos os documentos comprobatórios do que alegais, senhor? - disse meu avô, com desdém e agastamento.
Houve uma breve pausa, que a fala do estranho interrompeu:
- Ei-los!
Funéreo silêncio sucedeu às vozes exaltadas e depois ouvi, claramente, a de meu avô, exprimindo cólera, indignação e dor:
- Desgraçados! Em minha casa, tratados com todo o carinho e me embaírem assim, covardemente, sem que eu o suspeitasse!

Às suas últimas palavras se misturavam lágrimas e soluços incontidos.
Nesse instante impeli a porta e, entrando cautelosamente na sala, deparou-se-me um desconhecido, de porte altivo e fisionomia insinuante, fardado de tenente francês - tal qual uma fotografia de meu pai, conservada cuidadosamente por minha mãe, que a fitava sempre com os olhos marejados de pranto.

Estava de pé, faces ruborizadas por intensa emoção.
Mas o que me confrangeu o espírito, dolorosamente, foi ver meu avozinho com os cabelos de neve revoltos, debruçado sobre um consolo de tampo de mármore, soluçante, tendo uma carta pendente da destra engelhada e trémula.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 04, 2013 10:08 pm

Confesso, que, pela vez primeira, senti uma infinita ternura por aquele venerável ancião e, com a alma compungida, aguilhoada pelo remorso e por indescritível pesar, tive ímpetos de me ajoelhar a seus pés, implorando perdão para mim e para minha pobre mãe, pois compreendi, de relance, o que se tratava, ao ver de suas mãos convulsas escapar-se a carta fatal, a carta-avalancha, a carta leviatã, que, havia muito, me estrangulava atrozmente o coração, esmagando também, dentro dele, minha idealizada ventura, derruindo o único sonho de minha vida, porquanto jamais o hei-de ver realizado neste planeta maldito: a minha união com Elisabet!

Ao pressentir minha aproximação, pelo rumor dos passos temerosos, meu avô ergueu-se e, com o rosto inundado de lágrimas, apontando a porta, disse-me, vibrante de cólera:
- Desgraçado que criei qual se fora um filho querido, que mandei educar, que estimava já tanto como aos outros netos adorados - triunfando de um asco que julgara invencível - e que, no entanto, de combinação com aquela desventurada, pela qual ainda estou de luto, me ludibriou infamemente, não se apiedando dos meus cabelos brancos e de tantas amarguras que tenho sofrido, para me dar um golpe tremendo!

Também já não és nada para mim; és, de hoje em diante, um estranho; és novamente um francês que odeio e hei-de amaldiçoar até ao derradeiro instante desta vida!
Vai-te! Eis aqui o irmão daquele que tem sido o causador de todos os meus desgostos, de todos os meus acerbos infortúnios, de todos os meus mais profundos dissabores:
segue-o, miserável, que o chamaste traiçoeiramente!

Podes ir desde já e não te lembres mais de mim nem dos meus parentes:
és um intruso detestado, um enjeitado na minha família e jamais - ouve bem as minhas palavras para que nunca as esqueças! - consentiremos que desposes a minha querida neta Elisabet!

Não julgues que farás como teu pai, não, traidor!
Saberemos, agora, defender-nos contra as aves de rapina da nossa felicidade, vindas daquela França odiada.

O desconhecido, que era meu tio Félix Devarnier, lhe interrompeu a apóstrofe, dizendo:
- Senhor, acabais de nos insultar brutalmente e eu saberia repelir a afronta feita aos que me são caros, se entre nós não se erguesse uma muralha que não ousarei escalar:
a diferença das nossas idades!

Respeito as vossas cãs.
Além disso, julgo-vos demente neste instante e, assim, o que tenho a fazer é retirar-me de vossa casa, levando para sempre o meu querido sobrinho!
Vamos, Paulo Devarnier, nem mais um momento quero que fiques aqui!
Agora compreendo bem a tua situação e a da pobre Amélia, que aqui deve ter morrido de desgostos.

Se eu o soubera...
Espero-te alguns minutos, quantos bastem para acondicionares o que te pertence.
Declaro, meu amigo, que, naquela hora tormentosa, não sabia mais onde me achava nem o que fazia:
estava dominado, apossado, esmagado pela engrenagem da sorte inclemente!

Retirei-me da sala, cambaleante, e dirigi-me ao quarto em que falecera minha mãe.
Arrumei, à pressa, numa pequena mala de viagem, alguma roupa, alguns objectos que pertenceram a meus pais, parei em frente ao leito onde vira agonizar a triste mártir, fitei a primorosa tela suspensa à parede, representando a Máter Dolorosa - que parecia olhar-me através das lágrimas, como eu também a via - e voltei automaticamente ao lugar em que se achavam meu avô e meu tio.

Tentei, lacrimejante, abraçar o querido avozinho - ele o era desde aqueles momentos angustiosos em que o vi tanto sofrer por minha causa, apesar da rispidez com que me tratara - mas fui repelido, talvez inconscientemente, pois que as suas faculdades mentais se achavam obliteradas pelo acerbo dissabor que lhe agrilhoava a alma.

Aquela visão dolorosa de um velhinho soluçante, debruçado sobre o mármore que igualava na cor os seus cabelos brancos, me persegue até hoje, a todos os instantes de minha atribulada existência, confrangendo-me tenazmente o coração.

Penso ser a insídia, por mim praticada contra o pobre velhinho que me adorava, a origem da minha intérmina amargura.
Por que não fiquei, naqueles momentos, aos pés do austero ancião?
Por que não reneguei minha pátria, levando o júbilo a duas criaturas que me idolatravam - uma, abeirada do túmulo; outra, mal saída do berço?

Ai! meu amigo, eu era então, como ainda agora o sou, arrastado pela fatalidade.
Saímos da casa de meu avô, deixando-o inconsolável, carpindo, sem me ter querido ver à hora da partida, e nos dirigimos a uma praça, em busca de um veículo.

Mal contendo o pranto que me nublava a vista, implorei a meu tio Félix que me levasse à residência dos pais de Elisabet, de quem desejava despedir-me, haurir, numa palavra que fosse, o conforto para me animar a sofrer, na minha pátria, o meu amargurado degredo - que o seria para mim o viver em qualquer país que me distanciasse do seu coração amigo e afectuoso.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 04, 2013 10:09 pm

Ele acedeu ao pedido, depois de muito relutar.
Fomos, em casa de Bet, tratados com frieza, mas não com impolidez.
Meus primos se achavam ausentes e o pai deles, assim que soube que me achava de partida para a França, avaliando o desgosto que essa minha inesperada resolução causara a seu genitor, se foi internar no gabinete cirúrgico, pretextando um trabalho inadiável.

Eu e a querida Bet, sem ânimo para nos apartarmos, ficamos ao lado um do outro, sem pronunciar uma só palavra, os olhos marejados de lágrimas.

Compadecida da nossa dor, minha tia Helena, com a voz emocionada, chamando-me à parte, disse:
- Meu filho, nunca me oporei à tua afeição pela minha Bet, mas vejo que vais ter adversários inexoráveis em teu tio Guilherme e nos teus primos, que, como sabes, nunca te estimaram e que, de hoje em diante, se insurgirão contra ti. Coragem!

"O que puder fazer por ti e por Elisabet fá-lo-ei.
Foste, porém, muito culpado e talvez sejas o causador da morte de meu sogro, o que, sucedendo, complicará a tua situação.
Agora vai, meu filho, estuda, conquista uma posição social e volta, que o tempo tudo desvanece e dissipa".

E foi assim, caro amigo, ouvindo essas palavras de conforto e branda censura - sem pensar em me defender para não chamar odiosidade sobre a memória de minha mãe - que deixei a Alemanha e aqueles a quem amava, sacrificando pela França a minha ventura.

Transcorridos anos, desfolhadas todas as minhas mais fagueiras esperanças, encontro-me na aflitiva conjuntura de um náufrago, à tona de proceloso oceano, oscilando nas ondas, prestes a me submergir para sempre, sem o mais mínimo vislumbre de salvação.

- És jovem, generoso e denodado, e não deves deixar que o pessimismo te avassale! - disse eu a Paulo.
Estou fatigado de lutar em vão contra a sorte hostil e crudelíssima e sei, por iniludível augúrio, que jamais conseguirei alcançar o único objectivo da minha existência, que sabeis qual é!

Este gládio, meu amigo, que representa a minha pátria, a imolação que lhe fiz da minha ideada felicidade, ainda dará tréguas a meu sofrimento:
não vos admireis quando souberdes que, com ele, varei o coração, exausto de padecer.

Falta, porém, muito pouco a vos inteirar a respeito do meu regresso da Prússia, da minha permanência no solo francês, dando-vos a conhecer o que tenho suportado em mais de dez anos de verdadeiro suplício moral.
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA Empty Re: NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 04, 2013 10:10 pm

CAPÍTULO V

Voltei para a terra em que nasci, com o coração saturado de mágoas, de indescritível acabrunhamento, sentindo-me só, abandonado entre indiferentes ou estranhos.

Farpeava-me a alma, a todos os instantes, a falta dos afagos da querida Bet.
Tinha saudades de quase todos os nossos consanguíneos e, mormente, do nosso avozinho.
As suas derradeiras palavras vibravam sempre, como até agora, aos meus ouvidos, apunhalando-me de dor o coração sensível.

Escrevi a Elisabet com frequência, fazendo-lhe longas confidências de meus pesares e de minhas apreensões, recebendo, em troca, notícias que me alucinavam de regozijo, aliviando também a tortura da minha grande saudade.
Mas a minha dita foi efémera, porque, após dois meses de ausência de Berlim, não recebi mais nenhuma carta da minha noiva e as que lhe dirigia me eram recambiadas intactas.

Que se passara?
A dúvida, o receio de alguma enfermidade de Bet, o tormento do zelo flagelaram-me continuamente o espírito e, por vezes, fiquei com a saúde abalada, forçado a deixar os estudos para, na companhia de meu tio paterno, andar em excursão pela Itália e por todo o sul da Europa, a fim de espairecer e tonificar o organismo.

Prossegui, depois de um interregno de alguns meses, os meus estudos e consegui, afinal, concluí-los, tendo optado pelo curso de engenharia militar, a conselho do meu protector, que, após minha formatura, empreendeu comigo prolongada viagem através do continente oriental.

Quando aportamos em Hamburgo, obtive dele permissão para ir a Berlim, prometendo-lhe demorar o menos possível na formosa capital prussiana.

Mal lá cheguei, ao anoitecer, dirigi-me logo à residência de Elisabet.
Ela habitava uma casa que pertencia a seus pais, sendo, portanto, provável que se não houvessem mudado.
Senti o coração anarquizado pela emoção que de mim se apoderou.
É que, meu amigo, havia quase um decénio não tinha notícias de minha prima e deveis compreender quanto temia encontrá-la com as ideias mudadas a meu respeito.

Talvez já fosse noiva ou esposa de outrem.
Pelos esclarecimentos obtidos, ao chegar à rua em que a deixara, soube que ainda morava na mesma casa.

Encontrei-a no jardim, como a esperar alguém, melancólica, descarnada, com um vestido claro.
Assim que meus olhos nela se fixaram - com insaciável avidez, oriunda da saudade e do amor -, notei que um grande desgosto lhe excruciava a alma.
Reconheceu-me quase no mesmo instante em que me avistou, mas a minha presença lhe inspirou mais pavor que contentamento.

- Querida Bet! - pude murmurar enfim.
- Paulo! que surpresa me causaste!
- Como poderia avisar-te que estava na Prússia, se há tantos anos deixaste de me escrever, sendo as minhas cartas, para meu martírio, devolvidas intactas?

Ela desviou dos meus os seus formosos e merencórios olhos e começou a soluçar.
Suas lágrimas me faziam enlouquecer de desespero e germinar na mente mortificante suspeita.

- Já estás comprometida com outro, Bet?
- Não, Paulo, nunca serei noiva de outro, senão daquele a quem prometi conservar-me fiel e saberei cumprir meu juramento!
- Obrigado! Obrigado!
Mas, por que deixaste de me escrever, querida Bet?

- Porque eles te odeiam muito e não consentiram... desde que nosso avozinho enfermou por tua causa, quando foste para a França.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 04, 2013 10:11 pm

Exigia o meu coração atormentado por dilacerante desconfiança, estilhaçado por dúvidas e zelos inquietadores, uma explicação cabal daquele longo silêncio, durante intérminos e malditos anos, em que minh'alma se debateu num pélago de dor inexprimível, e por isso lhe supliquei:
- Diz-me tudo que tem ocorrido desde que nos separamos, Bet!
Que tem havido? Que tens sofrido?

- Não sabes, Paulo, que o nosso pobre avozinho morreu poucos meses depois de haveres partido para a França?
Não o sabias até este momento, não é verdade?
Escreveste-lhe uma vez, mas ele te recambiou a carta.

Era bem orgulhoso o nosso avozinho.
"Data de sua moléstia a minha desdita.
Culparam-te de sua enfermidade e do seu falecimento.

Internaram-me num colégio com a proibição formal de escrever, ainda que fosse à minha pobre mãe.
Estive, assim, sequestrada durante quatro anos, sem ordem de gozar as férias em casa, exercendo as professoras uma vigilância sobre mim qual se eu fora uma criminosa.

Quando regressei ao lar, já não era mais uma criança e me interpelaram a teu respeito.
Perguntaram-me se ainda tinha intenção de te desposar.
A resposta afirmativa que dei a meus irmãos exasperou-os.

Disseram-me, coléricos:
'Queres aliar-te ao assassino do nosso pobre e adorado avô?'

"Como me calasse, banhada em pranto, resolveram manter-me reclusa por mais algum tempo.
Minha mãe protestou, mas seus rogos foram baldados:
tive de permanecer num internato por mais dois anos.
Somente regressei quando minha genitora, oprimida de desgostos, esteve quase agonizante, mas tenho vivido tão espionada que não me foi possível escrever-te e, além disso, não sabia a direcção que deveria dar à correspondência."

- Ainda resido na mesma casa de meu tio Félix, minha Bet.
Ouve-me, porém, agora:
nosso avô nunca me perdoou o pesar que lhe causei?
- Infelizmente não, mas julgo que talvez a sua maior dor proviesse da tua ausência.
Se tivesses vindo, ter-te-ia perdoado, Paulo.
Parece-me que te idolatrava.

- Por que não mo disseste, Bet?
- Não me deixaram, Paulo!
Não consentiram que te escrevesse uma só palavra:
tornaram-se a minha própria sombra, seguindo todos os meus passos!

"Agora, Paulo, vou confiar-te a causa do mais acerbo pesar que experimento:
meus irmãos e meu pai continuam a odiar-te, falam em te tirar a vida se aqui te virem, persistem num intuito que reputam criminoso, e minha desventurada mãe - que continua prometendo fazer por nós o que estiver a seu alcance - tem sofrido muito.
Essa peleja mor que nos mortifica há anos, por vezes a tem prostrado no leito e a sua saúde, cada vez mais melindrosa, acha-se irremediavelmente comprometida!

Quanto temos padecido.
Que me sucederá, se me faltar a protecção materna?
Vê, Paulo, se pareço a mesma Bet que deixaste quando daqui foste."
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 05, 2013 10:44 pm

Fitei-a longamente e, lendo no seu rosto, que se tornara de jaspe, todo o longo suplício que a atormentava intimamente, compreendi que nunca a amara tanto, como então, divinizada pelo martírio moral que, por mais de um longo decénio, suportava heroicamente, por minha causa!

Como achei digna do meu amor infinito aquela pobre criatura!
Senti-me compensado de todos os padecimentos, de todas as agonias, abençoando-as por ela.

Tomei-lhe as mãos gélidas, osculei-as com inexprimível ternura, dizendo-lhe:
- Queres que finde, neste instante, toda a nossa longa tortura, Elisabet?
- Como, Paulo?
- Uma carruagem me espera:
fujamos de Berlim e, longe dos nossos adversários, poderemos realizar o almejado consórcio.

Ela empalideceu mais, até a lividez, meditou por alguns momentos e respondeu com inaudita amargura, meneando a loura cabeça:
- Não, Paulo, hoje ainda não pode ser consumado o nosso martírio.
Não sabes que minha mãe se acha à morte?
Como deixá-la no seu leito de dores, sem poder abençoar-me no extremo instante?

Ainda não podemos terminar nosso infindo sofrimento, querido noivo!
Não edifiquemos nossa ventura sobre um sepulcro - que talvez se abrisse mais depressa com a minha brusca partida -, pois não quero que o Céu nos amaldiçoe ou que o crepe do remorso ensombre os nossos corações.
Mas o tempo corre, meu Paulo, e eles estão prestes a chegar!

Vem sem demora ver a nossa única amiga, antes que sejamos impedidos de o fazer por teus adversários irreconciliáveis.
Tomou-me da mão, como se segurasse a de uma criança, ao mesmo tempo aflita e radiante, e me levou ao quarto onde se achava a sua genitora, numa chaise longue, reclinada para trás, pálida e enlanguescida por desgostos e padecimentos físicos, revelando a sua fisionomia uma enfermidade grave e incurável.

Ao ver-me, visível foi a sua agitação, pois me reconheceu imediatamente, e falou num tom de maternal ternura:
- Paulo, meu filho, quando chegaste?
- Há pouco, e conto partir dentro de algumas horas.
Vim aqui especialmente para estar convosco e com a minha saudosa noiva...

Só então, à luz de uma lâmpada, pude contemplar a adorada Elisabet, procurando saciar a alma separada da sua, havia mais de dez anos.
Já não era a mesma Bet de rosto oval, nacarado e infantil que eu conhecia, pois o sofrimento o tornara descarnado e sugara, como vampiro, a sua rósea cor de flores de macieira; mas tinha algo de alabastro e luz, uma suavidade dos seres divinizados e impolutos, a mesma expressão de bondade, candura e perfeição moral que denunciam os entes santificados pelo martírio, para os quais, prestando-lhes culto, devemos olhar genuflexos, com o pensamento erguido a esferas rútilas, inatingidas pela Humanidade miserável e desditosa.

Fitando-a, enternecido até as lágrimas, que me empanaram os olhos, por vezes, sem entrar em detalhes, expus os meus projectos às duas santas criaturas, que me ouviram em silêncio.
Disse-lhes que terminara os estudos e então só alimentava um desejo - desposar aquela que estava sofrendo por mim e que eu idolatrava ilimitadamente!

Concluí meus pensamentos nestes termos:
- Elisabet é quase da minha idade e encontraremos nas leis do seu país apoio à nossa pretensão.
- Mas - ponderou minha tia, com tristeza - onde e como conseguiremos realizar o vosso consórcio?
Que valem as leis contra o despotismo de nossos parentes, que roubaram minha Bet aos meus carinhos, durante seis longos anos?

São capazes de vos matar, meus queridos e pobres filhos.
Ia responder-lhe e propor-lhe o plano que concebera - o rapto de Elisabet - quando, de súbito, como rubros, iracundos e ferozes agentes satânicos, meus primos surgiram à porta do quarto, e, vendo-me em afectuosa efusão de ideias, como o indicavam a nossa calma aparência e as nossas mãos unidas, uma repentina lividez de gesso lhes mascarou as faces, que eram, invariavelmente, purpurinas.

Reconheceram-me prestamente porque conservo ainda muitos traços fisionómicos da minha adolescência.
Nem os anos transcorridos longe, nem os vínculos de parentesco nos ligam tão intimamente, nem um átomo de piedade por um acto que pratiquei quando ainda criança irresponsável, nem a presença de uma pobre mãe enferma puderam atenuar o orgulho e o furor daqueles dois indivíduos truculentos, que me abominam como se eu fora o mais degradado bandido!

Encararam-me com desprezo e arrogância, deixando que pelos olhos chamejantes, a despedirem jactos de fogo diabólico, explodisse o ódio que me votam.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 05, 2013 10:45 pm

Carlos bradou, sacudindo os punhos, como costumava fazer para me ameaçar, quando eu era indefesa criança:
- Atreveu-se a vir a esta casa, vil traidor?
Como que electrizado, impelido por baterias poderosas, adiantei-me para quem pronunciara aquelas ignominiosas palavras, empunhando um revólver, quando vi a enferma levantar-se, e, interpondo-se aos dois, dizer ao ofensor, com uma energia que não admitia réplica:
- Não o insultes mais, Carlos!
Se me desobedeceres, amaldiçoar-te-ei, serás o responsável por minha morte e Deus não deixará de te punir severamente!

Depois, mudando de tom, me disse suplicante:
- Paulo, eu te rogo, em nome de Deus e no de tua mãe, que não repilas a afronta que acabas de receber e que te retires em paz da nossa casa, para que se evite uma irremediável desgraça.
- Defendeis um traidor, um francês, minha mãe? - rugiu Carlos, cujas pupilas dilatadas pareciam esguichar flamas infernais.

Fui tentado novamente a dar-lhe uma resposta equivalente à injúria, mas, de repente, vi minha infeliz tia cair desmaiada a meus pés, e Bet - a minha idolatrada noiva -precipitar-se sobre o corpo inanimado, tentando erguer-lhe a cabeça encanecida.

E assim, ajoelhada e soluçante como estava, me dirigiu um olhar inesquecível, através de lágrimas, como a me implorar piedade, protecção, ou para firmar comigo um eterno pacto de fidelidade e de amor.
Soube, então, conter-me a tempo de evitar um crime, apertei-lhe a destra para provar que lhe havia compreendido os pensamentos e, depois, fitando altivamente a Carlos, disse-lhe:
- A hora é imprópria para desafrontar a minha dignidade que ultrajaste vilmente, mas ainda saberei provar-te que a têmpera de uma espada francesa não é inferior à de uma prussiana... até a vista!

Elisabet continuava a soluçar convulsamente.
Sem ter podido dirigir-lhe sequer uma palavra de carinho ou conforto, saí precipitadamente e, sentindo desde aqueles momentos rugir no cérebro uma tempestade de ódio, de desespero, de revolta, não me foi mais possível olvidar a cena pungentíssima que presenciei.

Aquela alcova e aquelas criaturas ficaram, até hoje e para sempre, esculpidas na minha mente, como se nela tivessem sido pirogravadas, para meu constante suplício.

Parece-me estar a ouvir, incessantemente, a voz colérica de Mateus dizendo, na hora em que eu transpunha os umbrais do quarto com o coração apunhalado de dor:
- Malditos Devarnier!
Acabam com a nossa família!
Têm um influxo nefasto e satânico que nos causa uma desgraça sempre que aparece algum deles.

Imaginais como fiz a viagem de regresso à França, caro amigo.
Não vos digo uma inverdade declarando que, a levar esta existência intranquila como a tenho, desde que fui a Berlim, fora preferível que, no instante em que me retirei da residência de Elisabet, o sabre de Carlos me houvesse atravessado o coração.
E vivo assim, meu amigo, há quase três anos, sem ter tido desfecho o drama da minha vida, sem ter recebido a mais ligeira notícia de minha noiva e sem ter podido ainda voltar a Berlim para cumprir o que prometi a Elisabet.

Que é que lhe sucedeu durante este lapso de tempo?
Que novos tormentos já lhe infligiram seus algozes?

Avaliai a inquietação e a agonia do meu viver desde então, esperando a todo o momento uma notícia alarmante vinda da Alemanha, onde não me é permitido ir agora, pelo governo francês.
Às vezes empalideço mais e sinto esvair-se-me o coração dentro do peito, numa inaudita angústia, ao ver algum estranho se aproximar de mim.

Julgo que me vem apenas dizer:
- És Paulo Devarnier?
Pois bem, venho informar-te que Elisabet Kceler morreu.
Compro, às vezes, algum diário tudesco e, instintivamente, procuro a seção do obituário, ou então o deixo cair das mãos, faltando-me ânimo para receber de chofre qualquer nova deplorável referente à minha noiva.

Eis como vivo amargurado.
E o que mais me conturba a consciência é pensar que a mãe de Bet - a única criatura que protegia a nossa afeição ilibada, compreendendo-lhe a intensidade e a nobreza - faleceu em consequência do abalo recebido naquela noite em que estive no seu lar.

Quer isso dizer que minha noiva, inerme, deve achar-se enferma, espezinhada, padecendo contínuos desgostos por minha causa.
Parece-me vê-la, sem cessar, genuflexa - semelhante a um marmóreo arcanjo de sepulcro - tal como a contemplei pela última vez, e um pesar inominável me devora o peito por não poder ir arrancá-la ao julgo mefistofélico de três verdugos empedernidos!

Sem o desejar, tenho sido, realmente, o causador da desventura de tantas almas puras e merecedoras dos melhores quinhões de felicidade terrena.
Às vezes, dou razão a meus adversários: parece-me, efectivamente, que a fatalidade me assedia sem cessar, que nasci de uma união não abençoada pelo chamado Criador do Universo, e, por isso, ocasiono desditas àqueles a quem me afeiçoo ou que me honram com a sua amizade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 05, 2013 10:45 pm

Previno-vos ainda a tempo, prezado amigo!

- Não, meu amigo - repliquei - laboras num erro absoluto:
o Eterno, a Justiça Suprema não pune a quem quer que seja, por nutrir o mais nobre dos sentimentos humanos - o amor ou a amizade!
Tens sido apenas vítima do orgulho indomável dos teus parentes, que, iníquos contigo, nunca te julgaram com imparcialidade.

"Teus primos foram e são teus inimigos rancorosos desde que te conheceram, sempre se consideraram teus superiores - apesar do íntimo parentesco que vos liga - por ódio ou por preconceito de raça, que os cega e que também nos separa, talvez eternamente, a nós franceses e prussianos, povos ambos de um mesmo continente.

"Não deves, pois, persistir nesses pensamentos lúgubres de pessimismo ou de fatalismo.
"Queres que te aconselhe paternalmente?"
-Sim!
- Aventuro, então, uma ideia, que submeto à tua apreciação: por que não mandas um emissário à Alemanha para te trazer de lá notícias positivas de tua noiva?
"Não é preferível que as tenhas - sejam quais forem - a ficares padecendo o suplício desta incerteza?
É melhor saber a realidade - por mais penosa que seja - do que permanecer em aflitiva perplexidade."

- Aceito-a, meu amigo - exclamou ele - e vou pô-la em execução: sou um náufrago e não devo repelir a tábua salvadora que me atiram vossas mãos generosas.

No dia seguinte ao em que tão longamente confabulamos, Devarnier pôs em prática a ideia que eu lhe sugerira:
um emissário partiu de Bruxelas para Berlim, levando instruções minuciosas a respeito do que desejávamos obter - notícias minuciosas e positivas de Elisabet.

Foi encarregado dessa delicada missão um prestimoso e inteligente conterrâneo nosso, que fez ingentes esforços por desempenhá-la satisfatoriamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 05, 2013 10:45 pm

CAPÍTULO VI

Transcorreram alguns dias sem que tivesse ensejo de estar com Paulo Devarnier.
Uma tarde, supondo-o enfermo, preocupado com a sua ausência, tomei a deliberação de ir procurá-lo na própria residência, onde me informaram que o meu confidente partira inopinadamente, havia apenas poucas horas, para a França, em cumprimento de um dever militar urgente, e que deixara alguém incumbido de me entregar um bilhete expresso em poucas palavras, traçadas de escantilhão e com visível nervosismo.

Ainda as conservo quase ilesas na memória e aqui as reproduzo:
Chamado inesperadamente à França, vou partir com o espírito opresso por inexprimível pesar, visto não ter ainda recebido as almejadas notícias da Prússia.

Prevendo este sucesso, pedi ao amigo F... que, na hipótese de me não encontrar mais aqui no seu regresso, vos relate tudo que houver ocorrido durante a missão que está desempenhando e, então, far-me-eis o inolvidável obséquio de me dar circunstanciados esclarecimentos acerca do que me interessa saber, não me ocultando a realidade, por mais sombria que seja. Adeus!

Não sei quando nos veremos outra vez, mas conjecturo que será em nossa pátria, onde continuaremos as nossas amistosas palestras.
Perdoai-me não ir abraçar-vos.
Tenho estado enfermo de inquietação e parece-me que o mais leve abalo moral me dará o que tanto ambiciono - o repouso perpétuo!

Antes, porém, de me ser arrancada à alma a derradeira pétala de ilusão, desejo saber o que se passa em Berlim.
Insensata Humanidade!
Apega-se, à beira de uma hiante voragem, até a um farrapo de neblina, para conservar a vida, quando seria mais racional atirar-se, voluntariamente, ao fundo do abismo por mais pavoroso que fosse.

Deixo-vos o endereço do meu albergue em Paris.
Um saudoso amplexo de despedida do desventurado - Paulo.

Achava-me, poucos dias depois do recebimento desse aviso, agitado pelos sucessos que, inesperadamente, me infelicitaram em Bruxelas, ameaçado, ainda no exílio que me amargou a existência durante quase dois décimos de século, de ser repelido do solo belga, por haver oferecido asilo, no meu próprio lar, a compatrícios perseguidos, expatriados como eu, quando me foi procurar o medianeiro de Devarnier.

Fi-lo sentar-se e ele me disse:
- Senhor, não encontrei mais em Bruxelas o nosso comum amigo Paulo e foi melhor assim.
Os informes que colhi são quase todos desfavoráveis ao nosso conterrâneo.
Vou, agora, sucintamente, inteirar-vos de tudo que aconteceu com relação ao desempenho do meu encargo.

Chegado ao termo da Viagem, dirigi-me, segundo as instruções recebidas, à casa da noiva de Paulo, mas encontrei-a ocupada por outros moradores.
Após rigorosas pesquisas, soube que a Srta. Elisabet se acha reclusa numa residência isolada - e com maior severidade, depois que a mãe faleceu -, só podendo assomar a alguma janela acompanhada de um dos seus algozes.

Vive, actualmente, valetudinária e espionada, na companhia do velho pai que, às vezes, mostra não a querer contrariar mais na sua aspiração de se consorciar com o primo, temendo vê-la sucumbir aos desgostos, como já sucedeu à sua mulher.

Mas os irmãos da vítima, cada vez mais odiando a Devarnier, não afrouxam o rigor, não permitem que em casa entre material de escrita, para que a infeliz reclusa não possa transmitir seus pensamentos ao noivo distante.
"Há poucos meses agravou-se-lhe a situação, pois os irmãos querem obrigá-la a contrair matrimónio com um oficial do exército austríaco - que ignora, por completo, o compromisso que há entre a sua pretendida esposa e o primo.

Este enlace, porém, talvez não se realize, porque a Srta. Elisabet está seriamente enferma.
Não lhe pude falar, mas consegui remeter-lhe (por intermédio de uma fâmula munificentemente remunerada para esse fim) longa missiva de Paulo a qual, certamente, foi lida às ocultas, entre prantos, alta noite, enquanto seus opressores dormiam profundamente.

"Designei, na missiva que juntei à de Paulo, a hora exacta em que passaria pela sua morada para receber a resposta que almejava, dando-lhe detalhes a meu respeito e dizendo como procederia para que ela não se enganasse.

Não sabia da dificuldade em que a infortunada prisioneira se via para escrever, sem o material indispensável, e, por isso, quase não obtive o que desejava.
Comuniquei-lhe que, unicamente a mim, confiasse a sua resposta, para que nenhuma dúvida pairasse na minha mente, quanto à sua identidade.

"No momento convencionado fiz um quase imperceptível sinal com a destra, à entrada do jardim - vedada por um portão e gradil férreos, que tornam inexpugnável o acesso à habitação, uma quase fortaleza de estilo medieval, localizada nos arredores de Berlim - e supliquei um óbolo, com voz lamentosa e estentórica, aos moradores que se achavam numa das amplas janelas ogivais, de descomunal espessura, reconhecendo neles Elisabet, seu pai e um de seus irmãos.

"Ela sabia, previamente avisada como se achava, do estratagema de que eu usaria e percebi sua comoção ao dirigir--se ao pai para lhe fazer um pedido, muito pálida, trajando veste ampla e nívea, que lhe dava a aparência de um ser imaterial, prestes a desferir o voo supremo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 05, 2013 10:46 pm

"Compreendi, por sua ansiedade, que o irmão é quem queria descer para me repelir ou atirar uma insignificante esmola.
O pai, porém, acedeu ao pedido da enferma, que desapareceu por momentos no interior da vivenda, surgindo depois em companhia da serva, que eu remunerara para lhe entregar a carta já mencionada.

Aberto o portão, Elisabet, extremamente pálida, desceu alguns degraus da escada da frente e, em vez de me entregar uma dádiva, depôs no meu chapéu este bilhete, escrito na página em branco de um livrinho - talvez de preces - com tinta rubra semelhante a sangue, que suponho extraída de alguma flor purpurina do jardim do seu cárcere.

Ei-lo, senhor.
Eu vo-lo entrego para que o remetais ao nosso amigo Paulo Devarnier".

Li-o, em alguns instantes. Era, mais ou menos, redigido nestes termos:
Está quase findo o meu tormento, Paulo!
A tua Bet morrerá fiel à nossa indissolúvel afeição, se não puderes, o mais breve possível, tirá-la deste ergástulo.
Fizeste-me feliz por alguns momentos com as notícias que um generoso desconhecido me transmitiu.

Obrigada! Já não posso mais lutar, meu Paulo, e, se não conseguires pôr termo ao nosso grande suplício, meus dias estão contados.
Salva-me! Até quando Deus nos quiser unir.
Saudades e toda a alma ansiosa da tua - Bet.

O intermediário de Paulo Devarnier acrescentou:
- Eis, senhor, como desempenhei minha missão.
Peço--vos, agora, transmitais ao nosso amigo ausente tudo que acabo de relatar.
Sinto-me pesaroso por não ter sido portador de notícias mais agradáveis ao nosso prezado Paulo.

Parece-me, pelo que disse a servidora de Elisabet, que os algozes da noiva de Devarnier lhe impõem, para a deixarem em paz, o matrimónio com um oficial austríaco, de elevada patente, já um pouco idoso.

"Poderá ela resistir por mais tempo à pressão em que vive?
Qual será o desfecho desse drama de vida real?
Que trama urdirão os adversários de Paulo para o tornarem desgraçado?
Tais as interrogações, senhor, que fiz a mim mesmo, durante esses dias em que desempenhava a minha missão, envidando esforços para colher informes que me pudessem esclarecer a verdadeira situação de Elisabet.

Soube que a data da realização do seu enlace já está fixada para breve e é coisa decidida por seus verdugos.
Não vos esqueçais de dar este esclarecimento ao caro Devarnier.
Apresento-vos, agora, as minhas despedidas e os protestos de minha sincera admiração".

Agradeci, como se fora o próprio Devarnier, ao seu escrupuloso e inteligente emissário.
Infelizmente, não pude logo me exonerar da incumbência que recebera, devido à fase acidentada que a minha existência atravessava naquela ocasião, em que fui expulso do território belga.

Não me refiro a esse episódio dolorosíssimo da minha última peregrinação planetária senão para demonstrar as causas poderosas, ou as impossibilidades que me impediram desempenhar com presteza um dever para com um amigo dedicadíssimo.
Pouco depois de haver escrito minuciosamente a Paulo, relatando-lhe tudo quanto soubera por intermédio do seu emissário, estando já longe de Bruxelas, fui desagradavelmente surpreendido com a notícia de um duelo de morte, ocorrido na França, clandestinamente, entre um militar tudesco e Devarnier, sendo de todos ignorado o móvel desse encontro.

Fora ferido mortalmente o meu pobre amigo, por seu contendor que, após o duelo, se suicidara.
Fiquei, por alguns meses, consternado, julgando-me quase responsável pelo que sucedera, não remetendo logo a Devarnier as informações que o enviado obtivera.
Não teve ele, assim, tempo de agir eficazmente para libertar a noiva do guante de seus algozes, porque coincidira, infelizmente, a ocasião em que devia tê-las recebido com o desenlace de uma tragédia na qual, a contragosto, me achara implicado.

Tratei de averiguar a identidade do adversário do meu compatriota - pois o jornal parisiense em que li o relato delituoso sucesso apenas mencionava as iniciais dos beligerantes - e soube, por intermédio de um amigo residente na França, que se tratava de um dos seus primos, Carlos Kceler, que, acossado pelo remorso de haver assassinado um quase irmão, arrefecido o seu furor à vista do sangue de quem se deixara matar sem defesa - certamente sob o domínio de um dissabor insuportável -, suicidou-se após algumas horas de verdadeira compunção, ao saber que sua vítima já se achava no Père-Lachaise.10

Como, porém, ocorreu esse encontro bélico em Paris, e não em Berlim?
Qual a causa que precipitou o desenlace de uma tragédia que, por vezes, eu previra, mas não assim tão sanguinolenta?
Teria o inditoso Paulo tentado, judicialmente, emancipar a noiva de um jugo nefário, sequestrada no próprio lar?

Teria, então, recebido a carta que eu lhe escrevera, antes do funesto duelo?
Que acontecera à desgraçada Elisabet?

Soube apenas que Paulo Devarnier, acometido de febre violenta, em consequência do ferimento recebido, feito a florete e que lhe ofendera os pulmões, sucumbiu quase louco, num delírio e num sofrimento indescritíveis.

10 Cemitério de Paris, onde está situado o dólmen de Allan Kardec.
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