LUZ ESPÍRITA
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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

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NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA - Página 4 Empty Re: NA SOMBRA E NA LUZ - VICTOR HUGO / ZILDA GAMA

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 10, 2013 9:41 pm

Era o que eu temia me viesse suceder.
A lâmpada maravilhosa que me iluminava a alma tinha a lhe alimentar a chama o estro musical, os carinhos de Jeanne e a esperança numa existência venturosa, uma vez aniquiladas em mim as funções vitais.

Faltando-lhe um desses elementos, ela começaria a bruxulear.
E quem ousara afirmar que se não apagaria de todo?
Amedrontava-me, assim, a prova pela qual seria aquilatado o meu valor moral, prova das mais rudes que dilaceram o coração humano - a da morte de um ente amado.

Receava eu que, no momento preciso, me faltasse ânimo para a suportar cristãmente, que viesse a fraquejar como o timoneiro que, na hora da tormenta, visse em estilhaços a bússola que o nortearia às terras patrícias.

Esperava-a qual enfermo que se enche de terror ao pensar que lhe vão decepar um membro, em operação cirúrgica dolorosíssima.
Tremia por mim mesmo, suspeitando que minha crença, até então profunda e inabalável na Providência, aluísse.

Momentos houve em que me parecia estar à borda de um abismo - de um vulcão, úlcera de chamas que cancera a crosta terrestre, verrumando-a até ao centro; que ia ser atraído, tragado bruscamente, sentindo faltar-me o solo, gretado em pavoroso terremoto.

Nessas horas de angústia, porém, uma força misteriosa e potente me invadia, percorria-me o organismo uma corrente magnética formidável e, às vezes, em segundos, me transmudava noutro homem, completamente diverso daquele que, pouco antes, estava prestes a desfalecer.

Ficava calmo, resignado, quase sorridente, alma jovial, ouvindo distintamente esta advertência amiga:
- É mister que vivas porque claudicaste outrora.
Estás reparando crimes gravíssimos e depende de ti também a remissão do infeliz inválido!
Tão forte era a luta que se travava no meu íntimo, que sentia a fronte completamente frígida, rociada de gélido suor.

Chamava então por Jeanne e a convidava para irmos em busca de nosso pai, a fim de que, acercando-nos do seu leito de torturas, esquecesse as minhas e me enchesse de intrepidez para suportar as lufadas da dor.

Um dia, ao sentarmo-nos infantilmente a seu lado, ele nos disse, entre repreensivo e carinhoso:
- Pelo que observo, há uma verdadeira conspiração contra mim ou a combinação firme entre vocês ambos para me deixarem somente com a Margot, não é exacto?

Muitas vezes vos tenho ouvido a conjecturar como devem ser invejáveis os mundos habitados pelos justos ou pelos que já se reabilitaram perante o tribunal divino, esquecidos de que o vosso pobre pai enfermo, inutilizado para a vida e para o trabalho, está a escutar o que dizeis e almeja seguir-vos.

"Não é generoso o que fazeis ou não sabeis avaliar a afeição que vos consagro.
Ainda agora, quando aqui entrastes, pensava eu na morte, desejando que ela me viesse libertar dos meus padecimentos;
mas, ao ver-vos, logo quis continuar a viver, assim mesmo desditoso, para vos amar e vos ter a meu lado.

É o egoísmo de um infeliz a quem certamente o Omnipotente perdoará.
Agora, porém, não falemos mais de coisas pungentes, para não nos entristecermos.
Olvidemos as nossas tribulações!

"Vai, Jeanne, buscar o violino de François e daqui nenhum dos dois sairá, sem meu prévio consentimento.
Quero, François, apreciar longamente, bem próximo de ti, as músicas que, ainda há pouco, tocaste em surdina, só para Jeanne".

Logo que minha irmã voltou, satisfiz o pedido do entrevado e, instantes após, o ouvi murmurar como em íntimo solilóquio:
- Para um desgraçado como sou, o Criador foi magnânimo, concedendo a companhia de um anjo tutelar - Jeanne, que o é para mim, e a de um protector generoso - François, que trabalha, com os olhos enegrecidos pela caligem da cegueira, para que não me falte o pão de cada dia.

Inverteram-se os nossos papéis: ele deixou de ser meu filho para se tornar meu jovem e extremoso progenitor.
Ambos mitigam meus dissabores com as suas carícias, ungem as chagas que em meu coração abriram as farpas corrosivas da desventura, proporcionando-me, como nesta hora, instantes de felicidade no meu catre de supliciado.

"Deus é realmente misericordioso, como dizeis, caros filhos, porque eu não merecia ter dado o ser a duas criaturas tão dignas quanto sois!
Não temais por mim, que não sou mais o céptico de outrora:
a dor me acepilhou a alma e nela esculpiu sentimentos de submissão aos desígnios divinos, de esperança numa existência louçã, após as ríspidas rajadas da adversidade.

Com o corpo empedernido, qual se o houvera varado o olhar fatídico de Medusa, reconheço agora que uma espécie de aurora, alguma coisa indestrutível e imortal sobrevive à matéria.
"Saberei conduzir minha cruz ao Gólgota, aguardando a derradeira sentença que o Altíssimo decretar para cumprida fielmente, sem tergiversações.

E, se é verdade que os entes amados não nos abandonam nunca, no caso de serdes chamados ao Além antes de mim, não desampareis o vosso infortunado pai, que ficará sozinho na Terra, qual Prometeu, não com o fígado, mas com o coração incessantemente dilacerado pelos corvos da saudade das ideias flageladoras!".

36 Composição musical, para canto, sobre um assunto terno e sentimental.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 10, 2013 9:41 pm

CAPÍTULO II

Jeanne ainda viveu connosco alguns dias mais, depois da cena que acabo de descrever, revelando sempre inalterável alacridade, compondo enternecedoras estrofes que declamava quase afónica, a voz entrecortada pela tosse.

Já me considerava feliz por não ter vista.
A cegueira me poupava a aflição de ver esquelético e devorado pela febre o seu corpo mignon.
Uma vez - a última naquela sua breve penosa existência - ela nos recitou uma quadra, que ainda conservo na memória:

Ei-la:
"A alma, ao baixar do Além, prende-se à argila...
Geme em seu cárcere, luta, mas, de chofre, Rompem-se-lhe os grilhões.
Então, tranquila, Liberta, cinde o Espaço e não mais sofre!"

Foi este o seu canto de cisne.
Compreendi-lhe o pensamento:
desejava, macerada por longo padecer, quebrar os elos que a retinham presa à Terra e, Espírito acendrado nas pugnas tenazes do sofrimento, prelibava as delícias de uma vida futura, enflorada de inextinguíveis gozos.

Era toda uma confissão enfeixada em poucos versos, em quatro estiletes de fogo que me trespassaram o coração, como as espadas da dor o seio da pulcra Mãe do Nazareno.

Duchemont, que se achava presente, sentiu-se tão emocionado que a interpelou assim:
_ É verdade que poderás ser ditosa, longe dos que te idolatram?
- Não, certamente, caro Duchemont; mas já fiz um pacto com François:
não partirei definitivamente, enquanto permanecerem encarcerados no ergástulo terreno aqueles a quem amo infinitamente.

Pouco tempo depois deste diálogo, uma noite, Duchemont ofereceu à noiva deliciosos frutos, que ela recebeu com demonstrações de reconhecimento, mas sem se mostrar para com ele tão afável quanto o era habitualmente.
Conservou-se reclinada num antiquado canapé e, no decorrer da amistosa palestra que entabulamos, manifestou grande preocupação de espírito, invencível melancolia.

Quando viu que o bondoso Duchemont ia retirar-se, disse, apertando-lhe a mão:
- Vou fazer-te um pedido, Duchemont.
- Um pedido, Jeanne?
Por que te expressas assim?
Diz antes que me vais dar uma ordem.

- Agradecida. Amanhã, em vez de frutas, traz-me flores... muitas rosas...
- Flores? Deus meu!
Bem sabes que algumas vezes te tenho oferecido flores, por que mas pedes para amanhã?
Estás pior? Diz, Jeanne!

- Parece-me que já não respiro como nos outros dias.
- Vou buscar um médico!
- Não, obrigada. Amanhã cedo poderás trazê-lo, se quiseres.
Agora não, vou repousar.

Duchemont, apreensivo, despediu-se da noiva, prometendo-lhe voltar em hora matinal, acompanhado de um médico.
Apertei nas minhas as mãos de Jeanne e as achei enregeladas.
Perguntei se desejava ir deitar-se e ela respondeu por uma negativa.

Meu pai, muito aflito, me ordenou que, ajudado por Margot, transportasse o canapé em que se achava a adorada enferma para junto do seu grabato.
Jeanne já se tornava quase imponderável: pesava mais, naquele cruel momento, a minha consternação do que seu frágil organismo de mariposa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 10, 2013 9:42 pm

Aplicamos todos os meios que estavam ao nosso alcance para lhe minorar os sofrimentos.
Ministrei-lhe, por diversas vezes, sedativos, mas a sua respiração, depois da meia-noite, se tornou sibilante.
Ela se esforçava por se mostrar plácida, a fim de tranquilizar o pai que, ferido em pleno coração por uma dor inaudita, não cessava de falar, de nos dar ordens com relação ao tratamento da filha bem-amada, parecendo, às vezes, que a aflição o enlouquecera.

Mudo, ao contrário dos filhos de Saturno37 que o próprio pai triturava, sentia eu o cérebro devorado por torturantes pensamentos.

Precipitou-se o desfecho do drama pungente que, havia muito, aguardávamos com pavor.
Foi talvez para que Jeanne deixasse de ser flagelada mais depressa do que supúnhamos.
Certamente seu espírito cândido e redimido não precisava mais do tormento das provas terrenas, do mesmo modo que o diamante já facetado dispensa o buril do lapidário.

Eu me ajoelhava quase ao lado dela e, embora não a pudesse ver, afagava-lhe a fronte, sentindo os seus veludosos cabelos umedecidos por gélido suor.
Quanto lamentava não enxergar aquelas madeixas preciosas, que tanto desejara contemplar ao menos uma vez na minha dolorosa existência, por me dizerem que eram belas, que tinham a cor do ouro líquido, luminoso e, sobretudo, por pertencerem à dilecta criatura a que nenhuma outra, pensava eu, se podia comparar no globo terrestre!

Afinal, em dado momento, ela deixou de gemer e me disse, tão debilmente que sua voz parecia o ciciar do zéfiro perpassando pela fronde de um álamo solitário:
- Meu François, chegou a ocasião de fazeres o que te implorei, há meses.

Penso, neste instante, em Deus e quero exalar o último alento ouvindo a melodia que executaste... naquele faustoso e torturante sarau... em que conheci o querido Duchemont... teu generoso amigo... ao qual desejo que, amanhã, exprimas a minha perene... indelével gratidão...

Procurei eximir-me de lhe satisfazer o desejo que, então, não me parecia razoável.
Aleguei que esquecera a música indicada e não a enganava assim falando, porque a minha dor era tão profunda que me fizera deslembrado da própria arte amada.
Tinha a impressão de que todas as ideias se me haviam dissolvido na mente, ficando apenas uma: a da nossa separação, embora temporária!

Ela, porém, não aceitou nenhuma escusa.

Impelindo-me docemente para me obrigar a ir buscar o violino, disse flébil e sutilmente:
- Sê corajoso, François.
Pressinto que vou agora ser venturosa.
Parece-me que, tendo cometido outrora um deliro hediondo, acabei hoje de cumprir a sentença proferida contra mim, a fim de que me reabilitasse pelo sofrimento e me libertasse para sempre.

Da vida breve e penosa que teve, a mísera Jeanne leva na alma - qual aroma dulcíssimo de violetas maceradas - a lembrança da tua afeição ilibada, a de meu noivo, de nosso pai e da Margot.

Não lamentes, pois, François, tenha soado a hora da minha redenção.
Se soubesses o que estou vendo neste instante... se visses o que me circunda... julgar-me-ias muito feliz.
"Cuido reconhecer nossa mãe... num dos seres que aguardam minha libertação... para me conduzir ao Além...

São muitos, todos belos, sorridentes, parecendo venturosos...
Dir-se-ia que esta humilde alcova... onde tanto tenho padecido tomou proporções ilimitadas... que as paredes se afastara muito... permitindo-me descortinar, ao longe, paisagens e entes formosíssimos... que não mais pertencem à Terra...

Não vos mortifiqueis por mim, amado François, querido pai.
Tenho a convicção inabalável de que, em futuro não remoto nos havemos de reunir, como hoje, num outro mundo mais ditoso que este...
Apressa-te, porém, meu irmão... atende a supremo rogo da tua Jeanne... pois que minha vida bruxuleia qual lâmpada a que só resta uma gota de óleo".

Ergui-me, então, infinitamente magoado e combalido, mas amparado sem dúvida pelos Invisíveis que, nas horas da amargura, infundem coragem e resignação sublimes aos espíritos torturados - espargindo neles um bálsamo que mitiga a dor mais intensa. Pude, assim, atender ao pedido da agonizante.

De súbito, como se não obedecesse mais à minha própria vontade e sim à de outrem, que actuasse vigorosamente sobre mim, que me empolgasse e fascinasse, empunhei o violino e, enquanto este soluçava, o inundei de pranto.

Meus lábios não proferiram um único queixume naquele instante de tremenda prova.
Meu pensamento se alheou da matéria, cindiu o Espaço, implorando ao Criador do Universo a energia de que necessitasse o meu espírito para não baquear, para não fraquejar na hora da suma expiação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 10, 2013 9:42 pm

Perdera a noção exacta do local em que me achava e do que fazia.
Não sabia mais se estava sob o guante de um sonho opressor ou sob o de uma realidade esmagadora;
continuava, porém, a executar quérulas cavatinas, trémulos gemidos, que se evolavam do arco e das fibras sonoras do instrumento, como se as exalasse um coração premido sob alta montanha.

De repente, houve um staccato e, pela última vez, ouvimos a voz de Jeanne, com um timbre diverso do que conhecíamos, revelando um esforço extraterreno e formulando uma súplica veemente:
- François... Consola nosso pobre pai!
Estas palavras, que repercutiam no mais escuso recesso do meu ser, paralisaram-me o braço.

Fez-se um silêncio tumular na alcova funérea.
Meu coração tremeu e, logo após, me senti aturdido, como que dominado pelo fantástico, possuído de incoercível desolação.
Ao mesmo tempo experimentava a analgesia de todos os meus pensamentos, o olvido de tudo que me cercava, o adormecimento completo de todas as minhas faculdades mentais.

Parecia-me carecer não só da vista como da audição e da voz.
De novo, porém, meu braço se movimentou impelido por uma força alheia à minha vontade e modulei em surdina, no instrumento, um maviosíssimo hino sacro, uma elegia canora, um salmo doloroso, uma volata de lágrimas, ou, antes, uma prece de harmonias desconhecidas na Terra.

Ungia, balsamizava assim a agonia daquele ente querido que, à semelhança do pássaro baleado que, não podendo mais gorjear, se contenta com ouvir o chilrear das outras avezinhas quando saúdam a alvorada, se aprestava para contemplar no Além a aurora de uma nova vida, encaminhando-se para o Céu e para a felicidade verdadeira que aguarda os Espíritos depurados pelo sofrimento, desconhecida neste planeta de expiação.

Por fim, o violino cessou de soluçar; deixei-o cair das mãos que se me tornaram inertes, rijas e enregeladas, e desfaleci a poucos passos do corpo inanimado de Jeanne.

* * *
Foi assim, meu amigo, que se extinguiu a lâmpada da minha vida.
Não me permitiu o destino contemplar, como desejava, o cadáver do ente adorado.
Apenas o osculei lacrimoso, coração fendido pelo gládio da dor.

Jeanne, o meu sonho fagueiro, o único ideal da minha existência agoniada, que ela enflorava às vezes de rosas luminosas, feneceu como se dissipa na amplidão o acorde de uma harpa, o último trinado de um rouxinol moribundo.

Nos primeiros dias que se seguiram à nossa separação foi que verifiquei que realmente tacteava nas trevas, sentindo que elas me asfixiavam, que se me embrenhavam pelas órbitas, faziam parte integrante do meu próprio ser e me amortalhavam a alma de crepe!

37 Na mitologia romana, Saturno era equivalente do antigo titã Cronos, deus do tempo.
Governava o mundo dos deuses e dos homens devorando seus filhos ao nascerem para que não o destronassem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Mar 10, 2013 9:42 pm

CAPÍTULO III

Desde que Jeanne foi sepultada, fiquei sem poder trabalhar, num estado de desânimo insuperável, sem, contudo, me lamentar uma só vez.
Parecia-me que algo de impreenchível desaparecera do meu ser, onde se cavara insondável abismo, apavorante vácuo, capaz de conter o oceano.

Um silêncio de Campo Santo imperava em nosso lar, desde que nele ecoara o derradeiro grito súplice de Jeanne.
Era como se ninguém mais se atrevesse a falar, para conservar, eternamente intacta, nos escrínios dos corações transidos de dor sagrada, aquela lembrança da morta inolvidável.

Julguei que não mais pudesse exercer minha profissão.
Tão profundo era o pesar, que supunha haver esquecido os rudimentos da música.
Também não desejava profanar o instrumento que acompanhou, soluçante, a agonia de Jeanne, executando nele peças dançantes, em saraus alegres, onde volteavam criaturas talvez indiferentes ao sofrimento humano.

Só então me considerei cego de todo:
faltou-me o lume que vislumbrei ao nascer - a afeição incomparável da irmã idolatrada.
Tive a impressão de me haverem arrojado do Infinito a uma cratera que atravessasse o globo terrestre até ao báratro onde se conflagram e crepitam as labaredas e as lavas incandescidas.

Senti a alma qual galera desarvorada em mar alto, sobre ondas enfurecidas, envolta por lúrida cerração.
Experimentei tudo isso, meu amigo, prostrado numa cama da qual supus jamais me levantasse.
Ao cabo, porém, de alguns dias após o infausto sucesso, desabrocharam em mim novas energias; forças ignoradas renasceram como das próprias cinzas renascia a Fênix38 legendária.

Senti-me com ânimo de lutar, de viver, sem que meus lábios se descerrassem para murmurar qualquer imprecação contra o destino, obra do mesmo artista egrégio que forjou as estrelas e as flores.
Compreendi, de modo categórico, que minha existência tinha por fim reparar o que quer que fosse de hórrido, que ela me fora dada para o desempenho de uma arriscada missão, e que era forçoso concluí-la impavidamente, a despeito de todos os óbices que surgissem, a fim de fazer jus ao galardão dos vencedores.

Um dia, depois de haver dormido longas horas, ergui-me do grabato onde, desde o passamento de minha irmã, estivera presa de invencível prostração física e moral, insensível às demonstrações carinhosas de Margot e de Duchemont, o incomparável amigo, que me visitava quotidianamente, que compartilhou da minha mágoa infinita, que custeou os funerais de Jeanne e a acompanhou até a campa e que se afligia por me ver imerso em tão grande apatia - e procurei um dos meus vestuários, apalpando os móveis mais próximos.

Margot, que não cessava de me espreitar, solícita me levou um deles, perguntando com bondoso interesse:
- Quer a sua roupa preta, Sr. François?
Não vai pôr luto?

- Trago-o na alma e nos olhos, Margot!
Não é o bastante?
Que importa que os outros o vejam?
Dê-me uma roupa qualquer e pode retirar-se, pois desejo ficar só.

Ela atendeu ao pedido e, em seguida, ouvi que cerrava a porta da alcova.
Sem uma lágrima, ajoelhei-me no soalho, mãos enclavinhadas, fronte alçada ao céu - na postura e que me ensinara a orar a dilecta Jeanne quando eu era ainda a sua primeira boneca - e implorei com fervor e humildade ao Omnipotente o valor de que precisava para triunfar das minhas árduas provas.

Quanto tempo estive assim genuflexo, em súplica ardente, não vos posso dizer, porque, impossibilitado de contemplar a alvorada e o crepúsculo, de distinguir o dia da noite, o tempo era para mim sempre uniforme, contínuo, indiviso.

Não diferençava as horas senão quando as escutava badaladas nalgum relógio.
O que, porém, vos posso afirmar é que, à medida que do meu coração se elevavam as preces, uma corrente magnética se ia estabelecendo entre o meu cérebro e o empíreo, donde descia uma cascata de luminosa espuma, transportando eflúvios balsâmicos à minha alma, que de repente se iluminou, como se a banhara um Niágara radioso.

Levantei-me ainda aturdido, como se despertasse de um sonho anestésico, sentindo-me leve, quase levitado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2013 10:19 pm

Ouvindo do aposento contíguo os meus passos, o pobre paralítico, que gemia, falando como se delirasse, murmurou com voz lamentosa:
- Vem para junto de teu pai, François;
és o único lenitivo que me resta no meu leito de Procusto!
Já te sentes melhor, querido filho?
Julguei que também fosses morrer... deixar-me só!

Com o andar vacilante, a destra elevada, tacteando as trevas que novamente me inundaram o cérebro, não tendo mais quem me norteasse dentro ou fora do lar, aproximei-me do inválido, que me disse, cheio de amargura, enlaçando-me o busto com o seu único braço:
- Estou cego, como tu, François, porque já não vejo também a nossa Jeannette, o raio de luz que clareava a nossa mansarda desditosa e despovoada!
Agora está tudo consumado.
Que é o que nos resta senão a nossa saudade, a nossa dor e a nossa miséria?

Ah! supunha-me preparado para o grande golpe, mas me sinto outra vez céptico, pusilânime, covarde, desalentado.
Fomos rudemente feridos, meu filho.
A Providência tem sido cruel para connosco e só não nos olvida Para nos supliciar!
Queres ainda que me resigne?

Ia dizer alguma coisa que lhe pudesse minorar a mágoa imensa, mas ele não mo permitiu, exclamando dolorosamente:
- Há dez dias, meu filho, que o nosso lar se acha envolto em crepe e, durante esse tempo, tens estado imerso num sono quase cataléptico, ao passo que eu ainda não consegui adormecer um só momento, vivendo numa vigília ininterrupta!
Todos repousam, todos têm períodos de olvido para os seus pesares, só eu me vejo condenado a velar sempre e sempre, para meu maior suplício!

"Tens sofrido, bem o sei, mas reconheço que entidades extraterrenas te amparam.
Elas como que te arrebataram a alma desde que Jeanne morreu, enquanto que eu me sinto abandonado por todos, até pelo sono!
Chego quase a enlouquecer, imaginando que o meu martírio dantesco ainda pode durar muito!
Os inquisidores eram menos desumanos do que quem nos tortura a alma com a saudade - o mais tremendo de todos os tormentos!

Quem criou a saudade, fazendo-a germinar no coração ulcerado pela separação de um ente idolatrado?
"Deus! É Ele, pois, quem, depois de ceifar o precioso lírio que aromatizava o nosso tugúrio, ainda revolve em nossos peitos o punhal intoxicado da saudade, quando devia fazer que esquecêssemos o passado, murando-nos o pensamento, como fazem os obreiros ao construírem as represas que desviam o curso dos rios.

"Protestas? Tapas os ouvidos com as mãos?
Ai! É porque não viste, como eu, roubarem a minha Jeannette para sempre.
Não presenciaste, como eu, levarem o seu alvo ataúde coberto de rosas, o seu pequenino esquife, dentro do qual também foi encerrado o meu coração dorido e lacrimejante!".

Depois, com voz trémula, entrecortada de suspiros, denunciando lágrimas ou temor do que me ia sugerir, disse:
- Que propícia ocasião para pormos termo ao nosso martírio...
Em poucos momentos, se o quisesses, poderíamos ir juntar-nos à querida morta...

Compreendi o alcance de tais palavras e o seu lúgubre alvitre.
Estremeci, tomado de convulsivo calafrio, à ideia do suicídio que acabava de me ser sugerida.
Levantei-me de um salto, desprendendo-me impetuosamente do braço paterno.
Embora enternecido e apiedado dos seus padecimentos, meu espírito se revoltou, repelindo a insinuação criminosa.

Tive de novo um íntimo deslumbramento.
Repentino clarão se produziu dentro do meu cérebro, como se o incendiasse um dilúculo de ouro, ou o pincelassem com tintas de luz.
Pela primeira vez, naquela angustiada existência, vi tudo que me circundava mergulhado numa luminosidade intensa, aclarado por um arrebol multicor.

Voltou-me a inspiração, que julgara extinta.
Senti que alguém me tocara muito de leve no ombro, depois de me haver roçado docemente a fronte, donde, a esse contacto, me pareceu borbulhar uma luz que a tornava fulgurante.

E fui compelido a dizer ao pobre enfermo, com inusitada eloquência:
- É mister olvidemos essa lutuosa página da nossa atribulada existência, meu querido pai!
Que é, afinal, uma vida humana?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2013 10:20 pm

Microscópico fragmento, minúscula faísca, mesquinho átomo da Eternidade, fracção infinitesimal do tempo, ante a grandeza imensurável da vida espiritual, que vivemos na Imensidade ilimitada, por milénios sem-fim valem os minutos da vida actual?

E por fugirmos a b instantes da dor, havemos de retardar a ventura cm aguarda, na sucessão indefinida dos evos, em outros orbes donde foi desterrada a lágrima, onde as almas que se amaram vivem num júbilo inexprimível, sem jamais se afastarem cumprindo, juntas, missões sublimes?

Sejamos heróis, meu pai, nos momentos da luta, e não soldados covardes do exército dos torturados da Humanidade delituosa.
"Creio na justiça infalível do Sumo Legislador e na imortalidade da alma.
Sei que as provações por que passamos são lapidações necessárias ao nosso aperfeiçoamento anímico.

Combatamos, pois, até ao derradeiro instante, nesta cruzada bendita da verdadeira felicidade.
Pugnemos sempre, eu sem vista, vós sem um braço, como dois paladinos estropiados, como dois guerreiros incompletos, sim, mas que têm, dentro das suas mutiladas armaduras de lodo, uma centelha deifica, cujo fulgor se há-de confundir com o das estrelas e das alvoradas!

"Pelejemos, sob o arnês da coragem moral, empunhando as armas da paciência, da resignação silenciosa, da submissão, da virtude, e esperemos tranquilos a vida futura incomparavelmente mais longa do que esta que não dura mais do que um meteoro, que, confrontada com a do Além, é uma gota d'água em face do oceano.

Se triunfarmos na peleja, vencendo as nossas imperfeições morais, nossa vida passará a ser um incessante hino de vitória, um interminável cântico de alegria, um hosana perene, sem mescla de tristeza ou de infortúnio.

"Aqui me acho ao vosso lado; meditemos em nossa sorte.
Tendes o corpo inteiriçado e uma vista de Argos;41
eu me mover à vontade e tenho baças as pupilas, os olhos inválidos por atras sombras.
Assim, cada um de nós é o comento do outro.
Eis aí como a Providência nos aparelhou para, unidos, desempenharmos a missão pungentíssima.

O que falta a um sobeja no outro.
Não é patente a intervenção do Céu nas nossas existências?
Porventura, teria sido o cego acaso quem assim nos fez e reuniu?

"Não, meu pai, foi o Incriado.
A Ele, pois, devemos dirigir uma prece, agradecendo-lhe todas as nossas decepções, todas as nossas amarguras, manifestando-lhe o reconhecimento que testemunharíamos ao discípulo de Asclépio42 que nos houvesse sujeitado às torturas de uma operação dolorosíssima para nos salvar da gangrena o organismo que, sem isso, estaria, em breve, todo contaminado pelo vírus letal, donde mais prolongados sofrimentos e finalmente a perda da vida por entre dores lancinantes.

Ah! meu desditoso pai, sem dúvida delinquimos no passado;
somos galés que ainda cumprimos penas a que fomos condenados em existências, cujo prolongamento vemos nesta;
penas resultantes de uma sentença rigorosa, mas remissora.

Se não reincidirmos nas culpas que a determinaram, próxima estará a libertação.
E o dia em que nos abrirem as portas da masmorra será mais belo, mais esplendoroso do que o é, para um príncipe, aquele em que, no apogeu da glória, o sagram soberano de grande e poderoso império!

Corre-nos, portanto, o dever de, na actual encarnação, lutar com denodo, meio único de resgatarmos faltas de priscas eras, erros sinistros.
Lutemos até ao último alento e seja a morte involuntária quem no liberte das nossas tribulações".

Tomei-lhe depois a mão e, elevando o pensamento a sólio do Incognoscível, com a voz emocionada, mas firme por efeito de uma força de vontade inquebrantável, formulei fervorosa súplica por mim e pelo triste paralítico.
Dirigi-me em seguida ao lugar onde costumava guardar o violino.

Meu pai, ao ver-me empunhá-lo, julgou-me alucinado e entrou a exclamar:
- Não, François, não me martirizes!
Não mais quer ouvir esse instrumento que me lembra a idolatrada morta.
Seus sons me virão ferir o coração mais doridamente do que um acerado punhal. Piedade! piedade!

Já me não era, porém, possível obedecer-lhe.
Um poder formidável me dominava.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2013 10:20 pm

Preludiei formosíssima rêverie, a cuja maviosidade se misturava a voz gemente e alterada do paralítico, a dizer:
- Deus meu! Como sou desgraçado!
Nem ao menos posso tapar os ouvidos, pois que de uma só mão disponho e essa quase morta!
Tenho assim que ser flagelado por estes sons que não desejara mais ouvir.

François já me não atende, enlouqueceu decerto!
De dia para dia aumenta a minha infelicidade!
Que hediondo crime terei cometido, Senhor, para merecer tão bárbara sentença?

Também eu vou enlouquecer.
Dar-se-á que, por ser demente, a Natureza me haja manietado, a fim de que ninguém me temesse, impedido, como me acho, de praticar o mal?
Se ficar louco, que serei senão um despojo humano, um miserando cadáver acorrentado a uma alma igualmente morta, pois que a razão é a vida do espírito?

Pouco a pouco, entretanto, foi serenando.
Deixou de imprecar contra o destino e por fim se calou, enquanto eu, sentindo mais do que nunca a fronte iluminada pelo estro musical, continuava a modular sinfonias incomparáveis.

Cedendo ao influxo de uma potência misteriosa, a mão movia o arco com inigualável maestria, arrancando às cordas frases musicais de incomparável beleza, de harmonia com os acordes que, perto de mim, se evolavam de uma orquestra portentosa, constituída de dezenas de flautas, cítaras, alaúdes e harpas tocadas por artistas imateriais, que, comigo, realizavam maravilhoso concerto.

Procurando imitá-los, meio desvairado, eu os via ao redor de mim, em semicírculo gracioso, com seus corpos intangíveis airosos, entrajados de alvas roupagens vaporosas, como que feitas de nevada escumilha.

Súbito, dentre tantas entidades diáfanas, uma se adiantou sobraçando uma lira de rosas, encordoada de fios luminosos, semelhantes aos raios das estrelas.

Deslizando pelo solo, aproximava-se de mim para me ofertar o célico instrumento.
Em torno da fronte ideal lhe voejavam pétalas de flores, irisadas falenas e alvinitentes pombas, que bailavam nos ares com a graça das sílfides.

O ser angélico, que por esse modo de mim se avizinhou, era Jeanne.
Cumpria a promessa que fizera, de me inspirar fomentos de amargura.
Reconheci-a por uma intuição indefinível.

Era qual a contemplava em sonhos, quando minha alma se exteriorizava da matéria por influência poderosa e incontrastável.
Sim, era mesmo Jeanne.
Era esse ser familiar a quem amara em diversas existências e que, então, pertencendo àquela trupe de artistas siderais, me apareceu qual a própria Euterpe,43 para me incutir ideias grandiosas em relação à Arte excelsa, que ela simbolizava e eu sempre cultuara.

Fitava-me com insistência, como que para afirmar que não esquecera o que havia prometido e o que me pedira nos derradeiros momentos da sua agonia.

Fazia-o, também, decerto, para me animar a prosseguir na minha via crucis até alcançar a vitória definitiva.
Notei que, entre todos aqueles entes venturosos, era ela o único que se mostrava merencório.
Quando concluí a execução da magistral sonata (assim me posso exprimir, pois não me refiro a um trabalho meu, mas a uma composição de etéreos virtuoses), tinha o cérebro ofuscado, eclipsado.

Mas, lá nas profundezas da mente permaneceu indelével a preciosa reminiscência da música executada e das arcangélicas aparições, lá essa lembrança se impregnou como no cerne do sândalo o suavíssimo aroma de uma inebriante essência, que resiste à aniquiladora acção dos séculos.

Meu pai, que a princípio se revoltara contra mim, em poucos momentos se achou dominado pelas vibrações harmoniosas do violino.

Aquietou-se. Decorrido algum tempo, ficou embevecido, quase em êxtase.
Quando terminei, pediu que me acercasse do leito, abraçou-me ternamente e me osculou a fronte cálida, orvalhando-a de lágrimas.
Estivemos longos minutos assim unidos, enlaçados pela mesma dor, pelo mesma túrbida saudade, pelos mesmos esperançosos sonhos.

Compreendi que, naquele momento, em nossos espíritos acabava de se dar algo de extraordinário, de misterioso, de supremo, que para sempre os aliara, que nos encadeara para a eternidade as almas e as existências, tornando-as desde então inseparáveis.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2013 10:20 pm

Naquela hora soleníssima, fundiram-se, na forja do destino, os elos que as manteriam presas uma à outra, até a consumação dos séculos.

Nessa noite meu desventurado pai dormiu profundamente.

38 Ave fabulosa que era a única da sua espécie.
40 Personagem mitológico que atraía viajantes para a sua pousada.
Depois que adormeciam ele adequava o corpo da vítima ao tamanho do leito, cortando-o ou esticando-o com cordas e roldanas.


41 Na mitologia grega, gigante que possuía cem olhos, cinquenta dos quais estavam sempre abertos.
Símbolo da vigilância.

42 Deus da Medicina, entre os romanos e os gregos.
43 Musa da música (Mitologia grega).
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2013 10:21 pm

CAPÍTULO IV

Por poucos dias tivemos as almas em paz.

Horas esquecidas levávamos então, meu pai e eu, a falar de Jeanne e de minha mãe, como se nos referíssemos a duas pessoas que andassem em excursão por longínqua e afortunada região, à qual iríamos ter em breve prazo para nunca mais nos separarmos.

Ansiosos, mas resignados, aguardávamos esse momento, consistindo toda a nossa ternura em pensar nele.
Éramos como dois grilhetas que, em deserta e soturna ilha, cumprissem uma sentença ao mesmo tempo severa e justa, ávidos pelo dia já próximo da libertação, sôfregos por voltarem à pátria distante, onde os esperam entes idolatrados.

Para nós, esses entes eram os que nos precederam no túmulo-pórtico do infinito.
Normalizara-se a nossa existência. Recomecei a trabalhar como trabalhava antes do passamento de Jeanne.
Geral, porém, foi a surpresa no auditório que costumava aplaudir-me, quando de novo perante eles apareci.

É que eu envelhecera.
Contando apenas dezoito anos, tornara-me excessivamente débil, de lividez marmórea.
Muitos amigos supuseram que eu houvesse estado doente.

Algumas noites de vigília e de contínuo labor bastaram para que meu estado se agravasse. Sintomas alarmantes se manifestaram.
Eram os pródromos do mesmo mal que levara minha irmã à sepultura.
Olhando-me através do seu coração extremoso, sempre a pressagiar inevitáveis infortúnios, maiores cuidados e temores inspirava eu a meu pai do que a quantos me viam.

Acabou ficando totalmente alarmado.
Para o tranquilizar, fiz-me conduzir por Duchemont ao consultório de um médico e, pelas frases vagas que este proferiu depois de me examinar, percebi que jamais recuperaria a saúde.
Em pouco tempo a insidiosa moléstia se apoderou inteiramente do meu organismo, produzindo-me desânimo e sofrimento tão grandes, que se tornou impossível dissimulá-los.

Um dia, cheguei-me ao paralítico e lhe disse com a máxima placidez:
- Prevejo, meu pai, que não mais poderei sair à noite e já me vai inquietando a ideia de que venha a faltar de todo o pão necessário à nossa subsistência.

O que eu supunha ser apenas consequência das dores ultimamente curtidas, é um mal incurável, que já me avassalou os pulmões.
O que mais me aflige porém, não é o meu padecimento físico, é a ideia de que em breve não possa mais exercer a minha profissão, sendo entretanto o meu maior desejo o de sempre amparar-vos.

Cumpre, pois, meu pai, sejamos previdentes e nessas condições vamos conversar calmamente acerca da nossa situação e do futuro.
Se daqui a pouco tempo me vir impossibilitado de trabalhar para nossa manutenção, providenciarei no sentido de sermos recolhidos a um hospital.

Como, porém são diferentes as nossas moléstias, teremos que ficar separados.
Não vos entristeçais com isso, pois tudo farei para vos dar coragem e vos mitigar os pesares.
Irei visitar-vos muitas vezes, todas as que os enfermeiros me permitirem enquanto puder manter-me de pé.

E quem sabe se consentirão que leve o meu violino?
Se conseguir a satisfação deste desejo, não deixarei de executar as produções que tanto apreciais, do vosso François.
"E por que hão-de impedir que o meu querido instrumento me acompanhe à morada da dor e da agonia?

"Por que é que os opulentos e venturosos que, trajados a rigor e cobertos de jóias, percorrem as enfermarias dos hospitais, ostentando diante da miséria e do sofrimento o fausto e a felicidade, como se passeassem pelas ridentes aleias de um lindo parque, não se lembraram ainda de oferecer, em vez de moeda que sempre deixam cair nas mãos descarnadas, quase gélidas, de seres que só do que precisam é de uma campa e de preces, algumas flores aos pobres moribundos?

De que servem moedas aos infelizes que não têm mais lar, nem pátria;
vizinhos que estão das fronteiras da pátria comum, o Espaço, onde não há balizas, plantadas por homens, nem cordilheiras ou rios que delimitem pátrias diversas?

Por que não se lembraram de levar aos que, nos leitos hospitalares, vestíbulos do túmulo, estão prestes a mergulhar no seio do Infinito, que, mais carinhosamente, acolhe o rude e probo calceteiro do que o monarca omnipotente e cruel, um instrumento musical, que, tocado por mãos de artista, certo suavizaria os estertores da morte?
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2013 10:22 pm

"Haverá na Terra de profundis44 mais solene, deprecação mais vibrante do que o Requiem de Mozart?45
"Pois bem! quero ser o primeiro a praticar a caridade por essa forma, eu tão pobre que não posso agasalhar os que tiritam de frio, nem socorrer os torturados pela fome, que já nos ameaça.

Quero ser o primeiro a mostrar que não só os ricos, os ditosos, fazem jus à audição dos primores musicais dos afamados mestres, que também os desventurados e principalmente os que estão quase a abandonar a arena da vida, onde deixam entes idolatrados, podem ter uma agonia mais branda, suavizada pelas melodiosas notas de um violino, de uma flauta, de uma harpa, dedilhados com extrema delicadeza.

Será um lenitivo para as dores que os flagelam, para a febre que lhes requeima os corpos, para as pungentes saudades que experimentam, lembrando-se dos seres amados que vão ficar no mundo.

"O Omnipotente não deixará de abençoar tão meritória acção e sinto que é Jeanne, ou alguma entidade sideral, quem me sugere estas ideias.
Ideias desta natureza só do Céu nos vêm.
"Mas, perdoai-me, meu pai, essas divagações sobre assunto diverso daquele de que vim tratar.

Daqui me aproximei apenas para vos dizer:
sejamos fortes, sejamos heróis nas supremas batalhas da vida.
Não há motivo para consternação.
Não percebeis que se avizinha a hora da redenção eterna?

Que, dentro em pouco, nos teremos reunido à saudosa Jeanne?
"Por que então chorais? Coragem!
O Criador, que é a suma bondade, talvez haja comutado a nossa pena abreviando--nos os dias de cárcere terreno.
Devemos aguardar com os corações jubilosos a nossa próxima libertação".

- Ah! meu François!
Como hei-de regozijar-me, temendo que partas antes de mim, temendo ficar só com a minha dor sem limites?
Quando Jeanne faleceu, julguei endoidecer.
Tornei-me de novo céptico e só não me suicidei por não ter mãos para empunhar uma arma.

Tu, me François, conseguiste dar ânimo à minha alma desolada.
Deste-me alento para viver.
Mas, se me precederes no túmulo, mergulharei em trevas, enlouquecerei de saudade e de tristeza.

- Pois bem, meu pai, não vos abandonarei jamais, nem agora, nem quando pertencer ao mundo espiritual, que co meço a divisar, uma vez que é por demais angustiosa par nós ambos qualquer separação, ainda que breve.

"Acabo de conceber uma ideia que submeto à vossa apreciação.
A vigília e o relento me prejudicam grandemente saúde.
Para evitá-lo, sairei durante o dia com o violino, tocarei nos lugares públicos as minhas mais preferidas com posições e estou certo de que poucos ouvintes deixarão de me socorrer.

"Protestais? Tenho a certeza de que, mais do que nunca as entidades celestiais me inspirarão e, assim, colherei muitas moedas que repartirei convosco e com os nossos irmão - os cegos e os paralíticos.

"Não será para mim um sacrifício, meu pai, pois que implorarei a caridade pública, mas de dentro da treva em que vivo.
Assim, não vendo aqueles a quem peço a esmola, meu rosto não se cobrirá da púrpura do vexame, quando, estendendo-lhes a mão, me responderem com o sorriso de escárnio, que facilmente assoma aos lábios dos impiedosos ou dos felizes.

Com os olhos vendados pelo negror da cegueira nada vejo e, portanto, agradecerei qualquer mesquinha dádiva e nenhum ressentimento guardarei dos que me recusem o seu óbolo."

Ele me interrompeu, surpreso e desorientado, dizendo-me:
- Mendigares uma esmola à caridade dos transeuntes, tu, meu amado François, um violinista exímio, uma glória francesa?
- Não é o artista, meu pai, nem a glória francesa quem irá suplicar um óbolo aos transeuntes.
É o cego enfermo, que tem de manter o seu querido pai inválido, para lhe poupar mais uma dor.

- Está bem, meu François, e para, por minha vez, te evitar mais uma amargura, estou resolvido a recolher-me a um hospital.

Nem mais um queixume proferiu, mas, enquanto isto disse, chorou abundantemente.

44 Das profundezas.
45 O Requiem é a última composição e uma das mais importantes obras de Mozart - compositor e músico austríaco (1756-1791).
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2013 10:22 pm

CAPÍTULO V

Algum tempo depois dessa afectuosa palestra, já me sentia extremamente debilitado, necessitando de repousar e fortalecer o organismo, coisa de que a nossa desprovida bolsa não me permitia cogitar.

De dia para dia minguavam os nossos modestos recursos pecuniários.
A modelar Margot, de inexcedível desvelo para connosco, tanto nas horas de alegria, como nas de adversidade, frequentemente saía a oferecer à venda os poucos móveis e objectos que nos restavam e que até então julgáramos indispensáveis.

Mais o era, porém, o pão par o nosso sustento.
Eu por mim vivia numa quase completa imobilidade, tanto os meus sofrimentos físicos e morais.
A falta de meios me impossibilitava de me sujeitar a um tratamento médico conveniente.

Todavia, continuava a confortar a alma do meu companheiro de infortúnio, sempre que o desânimo o assaltava, ensinando-lhe a suportar todas as vicissitudes da existência sem se queixar, com valor espartano.

Quanto maior se tornava minha prostração, mais experimentava a benéfica influência dos protectores espirituais.
Eles me transmudavam.
Levantava-me, empunhava o violino e executava melodias de uma suavidade de luar a esbater-se por sobre um roseiral em flor.

O pobre paralítico, com a alma ungida de resignação, confessara-me julgar-se, então, quase venturoso.
Certo dia, mais prolongada foi do que de costume a ausência da bondosa Margot e vimo-la regressar trazendo estampado no rosto o desalento.

Nesse dia, tardou muito em nos dar um pouco de alimento.
Clara se nos fez a penosa situação em que nos encontrávamos.

Disse-me então meu pai:
- Está iminente a nossa separação, François.
É preciso que hoje mesmo providenciemos o nosso recolhimento a uma casa de caridade.
Logo conversaremos a esse respeito com o prezado Duchemont.

Margot, que se achava à pequena distância, ouviu o que disse meu pai e, com a familiaridade que a sua afeição maternal autorizava, exclamou, entrecortada de lágrimas a voz:
- Que é o que acabo de ouvir?
Pretendeis ir para um hospital e de nada prevenis a pobre Margot!
Supondes que não tenho coração e que, portanto, a nossa separação não me mortificará?

Pois me abandonais?
Já não vos sirvo a contento, Sr. Delavigne?
Já não tendes confiança na velha Margot, que vos viu pequenino?

- Tens sido, minha boa Margot, de uma santa dedicação para connosco e por isso te consideramos como da família.
Mas não devemos sacrificar-te por mais tempo.
Bem sabes que o nosso François já não pode trabalhar.

Havemos de condenar-te a mendigar para nós, ou a sucumbir de fome ao nosso lado?
Tens direito a uma existência melhor, mais isenta de cuidados do que a que passa nesta miserável mansarda.

- Mas eu não vos importuno exigindo o que não me podeis dar.
Sempre arranjo tudo como posso, de modo que ainda não ficastes sem uma refeição, pelo menos...
- Olha, Margot, as inquietações, em que todos nós vivemos, precisam ter um termo.
Foi por isso que deliberamos internar-nos num hospital.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2013 10:22 pm

- ...e deixar sem destino a infeliz Margot, já velha, sem parentes, sem poder mourejar, como antigamente, não é assim?
Pois bem, esperai ainda uns dias.
Não façais coisa alguma antes que eu vos venha dizer:
"De nada mais posso dispor com que atenda às vossas necessidades".
Depois que vos houver falado desse modo, podereis ir para o hospital.

Comoveu-nos profundamente a nobreza de sentimentos daquela inculta mas abnegada criatura, que, enquanto nos dizia tais coisas, enxugava as lágrimas com o avental.

Seguiu-se longo silêncio.

De súbito, porém, a nossa dedicada serva o quebrou, perguntando a meu pai:
- Que é feito do seu irmão Jaques, Sr. Delavigne?
- Bem sabes - respondeu meu pai - que, ainda jovem, emigrou para a América, temendo o serviço militar na Argélia.
Há muito não recebo notícias suas.
Por que te lembraste dele agora?

- Porque hoje, tendo saído à pressa para umas compras, esbarrei com um homem quase da sua idade, muito parecido com o senhor, antes da sua enfermidade.
Espantada, estive para lhe perguntar o nome, mas me contive, receando alguma indelicadeza.

Trajava com apuro e caminhava devagar reparando nos transeuntes, o que me chamou a atenção.
Quem sabe se é mesmo o Sr. Jaques, que, tendo regressado da América, anda à procura do irmão que aqui deixou?
Pode bem ser que Deus o tenha enviado à França para vos socorrer.

- Não nos devemos embalar nesses sonhos de felicidade, Margot.
Entretanto, vou tratar de verificar se meu irmão está de volta do Canadá, de onde me escreveu pela última vez há mais de dez anos.

À noite, como sucedia sempre, tivemos a visita de Duchemont.
Meu pai lhe referiu o que Margot nos contara e pediu fizesse algumas investigações para saber que fundamento poderia haver na ideia que lhe sugerira o encontro que tivera a nossa companheira de desdita.

Quando Duchemont se despediu, Margot o acompanhou até a porta e lá se demorou em longa e animada palestra com o nosso bom amigo, que dali por diante passou a visitar-nos com mais frequência.

Também na boa Margot se operou, a partir daquela noite, sensível transformação.
Mostrava-se satisfeita, quase alegre e, sem sair diariamente à rua, como dantes, todos os dias nos servia bons acepipes.

De uma feita, meu pai a interpelou:
- Achaste a galinha dos ovos de ouro, Margot?
Olha lá, não vás matá-la...

A boa criatura nada respondeu.
Guardou silêncio sobre a sua extrema dedicação para com os míseros enfermos.
Pensando no caso, não nos foi difícil descobrir que ela nenhum tesouro achara.

Nós, meu pai e eu, é que encontráramos alguma coisa de mais precioso do que um filão aurífero:
a abnegação sublime de uma serva, aliada à piedade de incomparável amigo, objectivando ambos nos poupar a mais rude de todas as provas - uma dolorosa separação.

Vexava-nos, porém, semelhante situação.
Compreendemos não nos ser lícito aceitar por tempo indeterminado o sacrifício de uma e a generosidade do outro.
Mas, quando nos dispúnhamos a deixar definitivamente a nossa desconfortável morada, uma dita inesperada nos sorriu em meio de tanta desventura.

Não eram infundadas as suspeitas de Margot, relativamente ao regresso de meu tio Jaques.
Graças às informações que Duchemont obteve, pudemos abraçar ainda uma vez o parente que emigrara para o Canadá.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2013 10:23 pm

Foi uma cena enternecedora a do encontro dos dois irmãos.
Fizeram-se mútuas e íntimas confidências.
Meu tio se tornara opulento, por efeito de arriscados, mas sempre bem-sucedidos empreendimentos.

Era chefe de numerosa família, de cujos membros nos ofereceu belas fotografias.
Entre estas havia a de uma bela jovem loura e esbelta, extremamente parecida com a nossa Jeanne.

Meu pai, vivamente emocionado com essa semelhança, exclamou, dirigindo-se a meu tio:
- Por que não a trouxeste contigo, Jaques?
Que lenitivo seria, para as saudades que me pungem a alma, ver ressuscitada na tua filha, bela e sadia, a minha Jeannette!

Como me achasse melhor de saúde no dia que meu tio passou em nossa companhia, proporcionei-lhe ensejo de ouvir uma das minhas mais apreciadas composições.
Ficou maravilhado e logo firmou o projecto de me levar consigo para a América, contando que, com a mudança de clima, talvez minha enfermidade paralisasse.

Recusei aceder ao seu desejo para me não separar do entrevado, que não assentira em viajar estirado, como um cadáver.
Antes de voltar para Québec, onde residia, o que se verificou pouco tempo depois, meu tio encarregou um banqueiro, com quem fazia transacções, de entregar a meu pai uma pensão mensal, suficiente para nos mantermos com modéstia.

Regressou pesaroso ao Canadá, prometendo-nos voltar mais tarde com a família, que seria também a nossa.
Fora o coração, sensibilizado pelas nossas desventuras, que, decerto, num gesto de compaixão, lhe ditara aquelas generosas palavras.

Ante o estado valetudinário em que nos encontrávamos meu pai e eu, nenhuma dúvida poderia meu tio nutrir de que, quando novamente pisasse as plagas francesas, só lhe restaria procurar as nossas campas - campas humildes, anónimas, sem inscrição alguma, assinaladas apenas por uma cruz singela, que as mãos piedosas de Margot e de Duchemont sobre elas colocassem.

Podeis imaginar, meu amigo, qual tenha sido nossa alegria, reconhecendo, depois de haver estado iminente a nossa separação e exactamente quando mais necessitávamos de recíprocos carinhos, de uma íntima comunhão de pensamentos, de uma constante confidência de mágoas e de anelos, que só a morte, desde então, nos poderia separar os corpos mutilados.

Meu pai, cheio de intenso júbilo, me disse:
- Reconheço a intervenção divina neste sucesso, que nos tranquilizou os corações e nos faria ditosos se não fossem as nossas enfermidades.

* * *
A calma do espírito, algum conforto, dias de repouse absoluto e alimentação conveniente operavam, ao cabe de algum tempo, a tonificação do meu organismo, de modo a me ser possível estudar as composições dos mestres favoritos - Beethoven e Mozart. Fui levado, assim, a aceitar convites para tocar nalguns concertos realizados em magníficos solares.

Bastaram, porém, a vigília e a fadiga de algumas noites para que a saúde ficasse de todo irremediavelmente perdida.

Certa vez me comprometi a executar músicas clássicas em casa de opulento capitalista que festejava o aniversario dos seus esponsais.
Nesse dia, porém, senti-me, como nunca, desalentado, febril, incapaz de qualquer esforço.

Chegada a hora do concerto, notei em mim alguma coisa de anormal.
Pela primeira vez me pareceu que a inspiração me abandonara.
Faltava-me o alento que os Invisíveis sempre me deram, alento que me aligeirava o arco e fazia tirar do violino indescritíveis harmonias.

Desprotegido, desamparado pelos meus celestiais inspiradores, não consegui interpretar as partituras com a maestria de outrora.
Lancinante dor me constringiu o peito e estive prestes a desfalecer.
Teriam todos notado a minha perturbação?

Ansiava finalizar a execução da música inicial da esplendorosa festa, pois que sobre-humanos eram os esforços que empregava para executá-la.

Não lhe sabia, como dantes, dar a expressão à vida, as admiráveis cadências que os artistas siderais sempre me insuflavam.
Livre, com o vibrar do último acorde, dessa tortura inenarrável, recebendo frios aplausos, sentei-me extenuado numa cadeira.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Mar 11, 2013 10:23 pm

Gotas de glacial suor me orvalhavam a fronte, dando-lhe a algidez do mármore.
Tão desorientado, tão conturbado fiquei, que certamente tinha a fisionomia descomposta, alterada pela decepção, pela angústia, lívida como a dos moribundos.

Imerso nesse acabrunhamento, pressenti que alguém de mim se aproximava a passos leves.
Sei hoje de quem eram eles, porquanto daqui contemplo a graciosa criatura que, numa hora de árdua provação, compreendeu o meu suplício.

É uma dessas almas de querubim, um desses lírios humanos que despontam na Terra, sob a forma de cândidas donzelas, para desempenhar missão de paz e de carícias.

Esse alguém me observou meigamente:
- Precisa ter muito cuidado consigo, senhor Delavigne!
- O estado lastimável da minha saúde lhe mereceu atenção? - perguntei.

- Por que duvidar?
Aprecio tanto, tanto, as suas produções!
Hoje, porém, não parece o mesmo.

Antes que lhe dissesse qualquer coisa, ela, mudando de torno, me perguntou com afectuoso interesse, que me comoveu até às lágrimas:
- Que é daquela jovem, que diziam ser sua irmã e que o acompanhava aos saraus?
Era tão graciosa e parecia tão inteligente!
Quantas vezes, de volta a casa, lembrando dela, me senti comovida ao extremo!

E por que não lhe hei-de dizer a verdade?
Compadecia-me dela e desejara protegê-la se ela o quisesse.
Por que não a trouxe mais consigo?

- Obrigado! Quanto agradeço o vos terdes lembrado de minha pobre irmã!
Ela, porém, jamais tornará a acompanhar-me, pois não descerá do Céu, para onde se alou, a fim de me fazer companhia...
Deus vos cubra de bênçãos!
Agradecido! Sois infinitamente bondosa!

A recordação de Jeanne, naqueles instantes dolorosos, sensibilizou-me e entristeceu-me ainda mais.
Quis, num impulso sincero e profundo de reconhecimento, apertar a mão à meiga e piedosa donzela, que se me afigurava nimbada de luz.

Quis agradecer a quem se dignara de compadecer-se de mim.
Mas, ao erguer a mão na direcção do compassivo arcanjo que me falava, senti que outra mão repelia a minha com energia, ao mesmo tempo que uma voz áspera abalava todas as fibras do meu coração, arrojando-me de dentro do sonho fugaz em que me deleitava ao pélago estonteante da mais brutal realidade.

- Tenha consciência, senhor! - bradou-me essa voz.
Ignora por acaso estar afectado de uma moléstia contagiosa?
Aqui já não é mais o seu lugar.

Oh! como ainda me maceram a alma as mágoas recentes dessa última existência terrena, amigo!
Só os séculos, no seu incessante e vertiginoso perpassar, poderão atenuá-las, esvanecê-las, como se desfazem as espumas das vagas, quando o mar se toma bonançoso.

Naqueles tumultuosos segundos experimentei um súbito atordoamento, uma rápida vertigem e, logo após, a sensação de que o sangue afluíra celeremente ao meu tórax dolorido.

Tornou-se efervescente e começou a humedecer-me a boca em jactos tépidos e espumosos.
Levei o lenço aos lábios e pedi ao leal companheiro Duchemont que me conduzisse a casa, dizendo-lhe achar-me impossibilitado de continuar a tomar parte no concerto.

Ele atendeu prontamente ao meu pedido e, em veloz carruagem, me acompanhou à lôbrega mansarda.
Minha brusca chegada causou indescritível aflição a meu pai, que sem demora mandou chamar um médico para me socorrer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2013 9:33 pm

Achava-me quase exangue, em consequência de repetidas hemoptises.
Seguiram-se, para mim, horas infindáveis de agitação e delírio.
A cruel ofensa que sofrera me vergastava incessantemente a alma.

Atormentava-me também a ideia de que o meu protector invisível me desamparara.
Dirigi ao Eterno uma vibrante e sincera súplica e imediatamente benfazeja calma me invadiu o ser.

Adormeci e tive a ventura de ver em sonho a querida Jeanne, que estendia a nívea mão para me ajudar a atravessar impetuoso rio, sobre estreita e frágil ponte, livrando-me de ser tragado pelo terrífico vórtice que ululava debaixo dos meus pés.

No dia seguinte, o ricaço em cujo palacete fora rudemente afrontado me remeteu elevada quantia em francos, muito acima da remuneração que podia ser devida.

Por me haver expulsado de sua casa, mandava-me, disfarçadamente, munificente esmola.
Fiquei perplexo, sem saber se deveria ou não recebê-la.
Compreendendo, porém, que me cumpria ser atrozmente espezinhado, aceitei-a.

Meu pai me perguntou:
- Por que não desististe de tocar, uma vez que, antes de principiar o concerto, te sentiste indisposto?
- Uma vez que agora não nos faltam os meios de subsistência, planeei adquirir um piano com o produto do meu trabalho.
Eis por que não desisti de tocar naquela noite.

- Era uma bela aspiração, meu François, mas não valia grande inquietação que me estás causando.
- E me vai talvez custar o sacrifício da própria vida.
Quem sabe, porém, meu pai, se não estarei mais perto de a realizar?
Os desígnios de Deus são sempre sábios.

Ele não se conformou com o que eu lhe disse.
Lamentava a todos os momentos a minha imprevidência.
Imaginava que do esforço por mim feito com o braço direito, par executar uma acidentada composição wagneriana, resultara romper-se uma das veias do pulmão.

Para lhe poupar maiores desgostos, eu lhe ocultara a verdade.
Aquela foi a última vez que me apresentei diante de uma sociedade mundana, que se despediu de mim repelindo--me do seu seio, desde que, invalidado pela moléstia que me levava ao túmulo, não pude mais, como dantes, fazê-la deliciar-se por algumas horas, executando irrepreensivelmente composições dos grandes mestres.

Bem amarga despedida me fizeram os ditosos do mundo!
Abençoo, entretanto, aquele cruel momento em que me vi duramente humilhado, pois que a dor da humilhação é rutilante moeda com que adquirimos a ventura nos orbes redimidos.

Aplacado o sofrimento de minha alma, rendi graças ao Criador por me não haver revoltado contra quem me ferira em pleno coração, por haver podido sofrear até as lágrimas, recalcando para o íntimo tão aviltante ultraje, ocultando-o de todos, levando para o sepulcro a mágoa que, durante alguns dias, como áspide traiçoeira, me não deixou de pungir um só instante.

O artista, que tantas vezes recebera aplausos delirantes, fora vaiado da última vez que aparecera em público, para depois se recolher aos bastidores.
Empanando o brilho das horas de triunfo, ficara a recordação dolorosa da cena final.

Uma coisa, no entanto, me restara para suavizar a impressão penosíssima e indelével dessa noite de fecunda prova para o meu espírito.
Restara-me a lembrança da gentileza de uma piedosa donzela, que certamente percebera a nobreza do meu sacrifício e de mim se apiedara.

De quando em quando, um sorriso de júbilo me assomava aos lábios.
Que eram os meus sofrimentos em comparação com a felicidade que me aguardava no Além?
Para que me afligir, se tanto maior seria essa felicidade quanto mais dura fosse a provação?

Afinal, com o tempo se esbateram as tristes reminiscências do facto que tanto me mortificara e, embora à custa de heróico esforço, consegui triunfar da prova que Deus me impusera para aquilatar da minha coragem moral.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2013 9:33 pm

* * *
Está quase terminada, meu amigo, a narrativa dessa existência em que, posso dizer, não tive infância nem juventude, pois vivi sepultado nas sombras, encarcerado em lúgubre masmorra;
em que não conheci os brincos de uma nem os gozos de outra;
em que as decepções e os reveses me flagiciaram constantemente o coração.

Mas, em compensação, inúmeras vezes tive o cérebro iluminado por uma lâmpada interior, semelhante às que oscilam à frente dos sacrários, enquanto aos meus ouvidos baixavam ondas sonoras, divinais melodias, que me faziam esquecer todas as dores tão de pronto quanto os raios solares fazem dissolver-se as brumas matinais, desnudando a Natureza até então oculta ao olhar dos condores que, ao impulso de leves asas, se elevam a alturas que o homem ainda não atingiu.

Que importa, porém, isto ao homem, se, acorrentado embora à superfície da Terra, pode ele, com as asas luminosas do pensamento, levar a alma a cindir o infinito do céu, através da poeira de astros coruscantes?!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2013 9:33 pm

CAPÍTULO VI

Mais alguns meses vivemos sob o mesmo tecto, meu pai e eu, recordando o passado, lembrando-nos dos que haviam partido para o Além.

Às vezes, em íntimo colóquio, ele me dizia:
- A dor, François, é necessária à alma, não só para arroteá-la, a fim de que nela germine a sementeira dos sentimentos elevados, como também para que não nos esqueçamos do nosso Criador.
A felicidade é estéril e egoísta.

"Estou certo de que, se fora são de corpo, opulento, venturoso, faria da vida outro conceito, cometendo faltas que, certamente, me acarretariam severíssimas punições.
Seria ateu, indiferente ao sofrimento alheio, arbitrário, orgulhoso e, provavelmente, ao primeiro desgosto, poria termo à vida.

"Precisamente nos instantes de suprema angústia é quando reconhecemos que uma força incontrastável nos governa, que o nosso destino o traçou uma potestade divina, que esta, entretanto, não nos esmaga com o seu ilimitado poder, mas antes nos incute ideias de libertação, de justiça, de Piedade, de altruísmo.

Graças à sua bondade, a nossa mente entrevê como realidade, em mundos isentos de sombras prantos, as aspirações com que sonhamos na Terra.
"Quanto mais padecemos, tanto mais desejamos evolucionar, progredir moral e intelectualmente, marchar na senda do bem e da virtude, a fim de conquistarmos rapidamente o galardão reservado aos que triunfam do mal e das imperfeições que maculam as almas humanas.

"Bem dizes: estamos remindo dívidas desde muito acumuladas.
Compreendo agora que nossas vidas já estiveram entrelaçadas em existências anteriores.
Ficamos jungidos uns aos outros por crimes praticados em comum.

Reabilita-mo--nos hoje, chorando juntos.
Horrendos devem ter sido os nossos delitos, para que tão cruciante seja a nossa expiação.
"Pela dor nos vamos libertando das sombras desse passado lúgubre.
Nossos crimes, como elos de bronze, nos encadearam os destinos através dos séculos.

Assim unidas têm as nossas almas que caminhar, permeando todas as adversidades, por uma vereda que se nos afigura intérmina, cheia de obstáculos que iremos transpondo com o olhar fito no céu.
"Quando houvermos atingido a meta de tão dolorosa peregrinação, todos os tormentos por que passamos, confrontados com a felicidade que então fruiremos, certo nos parecerão suavíssimos.

"Marchemos, pois, meu filho, com as mãos enlaçadas e com o pensamento alcandorado ao empíreo donde flui o inefável lenitivo que se chama - resignação -, o que muitas vezes temos sentido descer sobre os nossos Espíritos, como fúlgido orvalho.

"Incrédulo era eu na sobrevivência do ser, no seu destino ultra-terreno, e foste tu, François, quem me incutiu estas transcendentes ideias que acabo de expender e sem as quais seria o mais desgraçado dos seres.

"Sabes do que me lembro continuamente?
Do teu nascimento, da quase aversão que me inspiravas.
Culpava-te da morte daquela a quem adorava - tua mãe.

Quantas vezes te chamei de treva!
Achava-te inútil à pátria e à família.
Penso agora de modo diametralmente oposto.

Tens sido o nosso arrimo, serás uma glória da França, és o meu brilhante archote.
Praza a Deus que ele me alumie até ao derradeiro alento.
"Assim como a estrela de Belém guiou os magos ao berço do Nazareno, tu me tens guiado para o Céu e para o Eterno.
"Abençoo-te por esse benefício, com a alma inundada de dulcíssima ventura, sentindo-a como que imersa em subtilíssima e radiosa espuma.

Abençoo-te pelo bálsamo que tens espargido no meu coração tantas vezes flagelado pelos acúleos da dor!
A treva é quem faz abrolhar a luz no meu Espírito.
Bendito sejas, François!".
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2013 9:34 pm

Estes e outros pensamentos da mesma natureza meu bom pai mos externava num tom de infinita ternura, velado por uma tristeza que me emocionava e ao mesmo tempo me fazia exultar, por perceber que promissora evolução e benéfica metamorfose se estavam operando no seu espírito, encaminhando-o para a perfeição cujo corolário é a felicidade eterna!

Certa vez, assim me falou, com voz cariciosa e melancólica:
- Que união a nossa, François!
Somos dois mutilados que, reunidos, não formamos um ente completo, pois que não nos podemos integrar para o trabalho.
Tens, como dizes, mortos os olhos, e eu poderia, com os meus, guiar-te os passos por entre as trevas em que vives.

"Mas tenho o corpo inanimado, um corpo cadáver, ao qual, demais, falta um dos braços.
Eis-me, pois, imprestável para a minha família para a minha pátria.
Sou exactamente o que eu, quando eras criança, dizia que havias de ser!

"Penitencio-me de ter dito tais coisas cruéis.
Peço-te perdão da mágoa que com elas te causei.
Vejo, hoje, que somos dois réprobos a cumprir, no mesmo cárcere, dolorosa mas remissora pena.

Quando obteremos o alvará da libertação?
Quando nos desvencilharemos destes despojos inúteis?
Oh! quando chegará para os dois sentenciados sem apelação o momento da liberdade?
Só a morte, a grande redentora universal, nos poderá libertar, descerrando a porta eril do nosso ergástulo.

Ah! então, as lágrimas que a dor nos faz verter se transformarão em róseas pérolas de ventura.
"Tenho, presentemente, inveja dos que partem para o Além.
Tão soldado me sinto ainda à Terra, que, prevejo, muito custará minha alma desprender-se da pétrea masmorra que a empareda!

"Estou, porém, conformado com a sorte.
Já sei abençoar cristãmente todas as adversidades.
Receio, entretanto, François, que se te fores, antes de mim, me venha a faltar a coragem que desde alguns meses tenho tido, pois me parece que o refrigério da paciência me vem das tuas palavras, das músicas que executas como se foras um enviado do paraíso, ser extraterreno, dotado da faculdade de aplacar as minas dores e recordações, como tinha Davi a de serenar, com a sua harpa celeste, a cólera de Saul!

Aí que situação horrível será a minha, se vier a ficar só, com os meus pensamentos, com o corpo e a alma torturados tenazmente pelos sofrimentos físicos e morais!".

Ao ouvir essas palavras, verifiquei que me enganara supondo que a resignação se implantara naquele coração.

Então, querendo predispô-lo para a prova decisiva, disse-lhe:
- Preparai vosso coração, meu pai, para receber mais um tremendo golpe, que provavelmente será o último da vossa existência:
o de me ver desaparecer do cenário do mundo, ao cabo destes dias de amargura, que estão prestes a findar, pois já comecei a transpor o limiar da vida espiritual.

"Sinto que hora a hora o alento me vai faltando, que se adelgaçam os laços que me prendem o Espírito ao corpo, que em breve eles se romperão para sempre.
A ninfa está ultimando a obra de destruição dos liames que a mantêm encerrada no casulo, onde lhe falta a luz, e, dentro em pouco, se transformará na falena de asas ténues, ágeis, leves, diáfanas, que se elevará ao firmamento, em demanda da Pátria eterna".

* * *
- De nós dois, serei eu o que se libertará primeiro;
mas pressinto que me conservarei ao vosso lado.

Não deixarei, portanto, para mais tarde um pedido que vos quero fazer e que, espero, será atendido.
Quando, daqui a poucos dias, não me for dado consolar-vos, executando no meu violino as músicas que vos mitigam os pesares, não vos lamenteis nem vos desespereis por motivo da minha morte.

Sabe quanto as nossas existências têm sido acidentadas, como os reveses e os sofrimentos se multiplicaram nelas;
deveis portanto, compreender que será para mim uma dita alcançar a libertação do meu Espírito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2013 9:34 pm

Figurai que concluí o meu tirocínio artístico e fui contratado para fazer parte de uma orquestra de profissionais, que esta irá tocar em longínquas terras e que, passado algum tempo, ireis ao meu encontro, com a saúde restaurada, com os passos firmes de um mancebo de dezoito anos.

"Imaginai ainda que, enquanto durar minha excursão, vos transmitirei constantemente meus pensamentos, que confabularemos amistosamente como agora, porquanto não ignorais que, livres da matéria, nossas almas podem confabular com os que lhes são caros no mundo, servindo--se de uma linguagem muda, mas inteligível.

"Rogo, pois, tenhais a maior e mais santa resignação, quando me virdes partir para o paraíso longínquo, de que vos falei, onde espero ser feliz, porque nesta vida só conheci o sofrimento e nunca me rebelei contra as Leis providenciais, não reincidi nos delitos que outrora cometi quase impunemente.

Humilhei-me quanto devia e, nos momentos das mais acerbas aflições, recebi a benéfica influência dos Mensageiros celestiais, que sobre a lápide da minha alma derramaram alegrias, como sobre um túmulo se espalham flores.

"Tive sempre o amor puro de Jeanne e o vosso amor de pai, os quais sinto que superarão o tempo e as distâncias.
Recebi do Céu alento nos instantes em que mais áspera era refrega moral, como recebi também as mais sublimes inspirações musicais, linguagem de numes, que escuto enlevado e mal posso interpretar nas cordas do violino, que, entretanto, exprime todos os sentimentos da alma humana.

"Não devemos temer a morte, uma vez que a consciência não nos acusa de haver transgredido as Leis Divinas.
Sabemos que o crime é sempre punido e a virtude galardoada.
Podemos, pois, sondar sem receio o futuro, que será o eco do presente.

Não maculamos as mãos na prática de nenhum crime, antes as enobrecemos pelo labor honesto.
Não profanamos os lábios com o perjúrio, a traição, o ateísmo.
Resta-nos, conseguintemente, esperar, com um estoicismo digno de Zenon,46 a hora extrema, serenamente.

"Assim, quando a minha vida, curta mas dolorosa a ponto de me parecer, às vezes, que já vivo há um século, for ceifada, porque o haja determinado o Criador, não deploreis o meu desaparecimento fugaz da vossa presença, certo de que mais tarde me encontrareis de novo, como a todos aqueles a quem consagrastes afeição imperecível e imaculada.

"Sede, portanto, intrépido e submisso às determinações do Alto.
Gravai bem, no âmago do vosso ser, as minhas exortações.
É preciso que saibais sofrer nos momentos das provas definitivas.

Não imprequeis contra o destino.
Abençoai as vossas tribulações e dores, objectivando a felicidade que desfrutareis se souberdes cumprir a pena que vos foi imposta, pena aparentemente bárbara, mas de fato calcada no direito celestial, proferida por juízo absolutamente imparcial e justo."

Acabando de pronunciar essas palavras, ouvi soluços.
A palestra que entabuláramos, de cama para cama, cessou por instantes.
Fiz esforços ingentes para me levantar; não o logrei.

De mim se apoderara invencível languidez.
Invoquei o auxílio dos emissários divinos e só então me pude sentar.

Com tanta eloquência e persuasão lhe falei ainda da paciência necessária nos momentos aflitivos, que meu pai não articulou uma só queixa e me prometeu resignar-se à nossa próxima separação temporária.

46 Filósofo grego, fundador do estoicismo:
doutrina que se caracteriza por uma ética em que a imperturbalidade, a extirpação das paixões, a aceitação resignada do destino, são marcas fundamentais do homem sábio, único apto a experimentar a felicidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2013 9:34 pm

CAPÍTULO VII

Durante quase dois meses me pungiu um indizível pesar.

Supus haver perdido o estro musical, ter sido abandonado por meus queridos inspiradores.
Essa, de todas as minhas expiações, a mais dolorosa.
Muitas vezes chorei em silêncio, sem ter a quem transmitir minha tortura íntima.

Um dia, quase ao anoitecer, dirigi ao Criador uma súplica sincera e logo ouvi, numa linguagem muda mas enérgica, que se filtrava pelo meu cérebro, estas palavras:
- Empunha o violino.

Era uma ordem dos Invisíveis.
Para cumpri-la, ia chamar pela Margot, quando lhe ouvi os passos morosos no compartimento contíguo ao em que me achava.
Pedi-lhe me levasse o amado instrumento, que jazia no seu pequenino estojo, desde que a enfermidade se agravara.

Meu pai protestou, dizendo não consentir que, no lastimoso estado de fraqueza em que me encontrava, me fatigasse.
Temia uma funesta consequência.
Prometi-lhe ser moderado, executar só uma melodia e descansar longamente.

A custo sustive nas mãos o precioso instrumento quando das de Margot o tomei.
Faltava-me a força muscular necessária para com o braço esquerdo mantê-lo horizontalrnente, assim como para premir as cordas e movimentar o arco Tal era a minha debilidade!

Pedi então à bondosa serva que me achegasse às espáduas as diversas almofadas, sobrepondo-as umas às outras.
Assim recostado, pude preludiar uma ária - a primeira que aprendera e com a qual sempre experimentava a afinação do violino.

Fazia-me, porém, sofrer o esforço que empregava para sustentá-lo nos meus braços esqueléticos e enfraquecidos pela febre.
Senti-o pesar tanto como se fora um alude colossal que, resvalando sobre eles, começasse a esmagá-los.

Meu pai, apreensivo, exclamou:
- Não faças um excesso que talvez te seja fatal, François!
Não agraves o teu estado, meu filho!
Por Deus, não te fatigues!

Não lhe atendi ao carinhoso apelo e continuei a dedilhar lentamente a ária, naquela santa relíquia com que Jeanne me presenteara, dominado pelo misterioso pressentimento de que nunca mais o faria de novo.

Tive ímpetos de abraçar o violino, de cobri-lo de beijos e lágrimas.
Cumpria-me, porém, ocultar o que em mim se passava.

Meu pobre pai me estava observando.
De repente, como se me houvesse transformado em barra imantada, um brando fluido magnético me percorreu da cabeça aos pés e meu corpo fremiu.

Experimentei, em seguida, agradável sensação de conforto e bem-estar.
Senti que sobre minha cabeça jorravam eflúvios benéficos, que se me infiltravam por todo o organismo, suavizando-lhe as dores, tonificando-o prodigiosamente.
De um só impulso me pus de pé, dentro de ampla camisa de dormir, que se assemelhava a uma veste talar, e que avultava na proporção do emagrecimento do corpo.

O violino, que pouco antes se me afigurava de bronze, mal podendo segurá-lo com o braço pendido, se tornou como que imponderável.
Com a mão direita comecei a impelir agilmente o arco, arrancando às cordas sons que pareciam desferidos por argentinas fibras.

Inesperadamente sucedeu o que não acontecia havia dois meses precisos, desde aquela memorável noite em que adoeci gravemente:
entrei a escutar, num intraduzível arroubo, como se estivera com o ouvido no receptor de um telefone, cujos fios descessem do Infinito, maviosíssimas vibrações.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2013 9:35 pm

Eram dulcíssimas melodias, sonoridades incomparáveis, misto de luz e harmonias, que cascateavam do Alto, como se viessem de um festival seráfico fendendo o firmamento.
Fluíam de lá e se coavam em minh'alma, incendendo-a no seu cárcere sombrio.

Deixara de sofrer.
Todas as minhas dores físicas desapareceram inteiramente.
Julgava-me elevado a uma região encantadora.

Tinha os pés presos ao solo e a fronte mergulhada no espaço sideral.
Extático, principiei a divisar caracteres romanos, que, luminosos, iam surgindo um a um, formando uma legenda, ou uma epígrafe misteriosa.

Sem dúvida compunham o título daquela música deliciosa que eu, enlevado, executava.
Formaram a curva de um arco-íris, destacadas todas as letras, como numa projecção eléctrica multicor, terminando o dístico por uma reticência de estrelas.

Li estas palavras:
La Dernière Larme***

* * *
Quanto tempo durou o êxtase?
Não o sei dizer...

Pouco a pouco me voltou a noção da realidade e pude compreender o que dizia o paralítico:
- É a tua mais bela produção, esta que acabas de executar, meu filho!
Jamais me esquecerei dessas volatas divinas, que me inebriaram por momento e que, julgo, ficaram insculpidas em minh'alma.

Por que se me não extinguiu a vida nestes instantes inefáveis?!
Morreria venturoso, se morrera ouvindo-as.
Tocaste uma serenata do céu, meu François!

- Sim, meu pai, também eu, sem imodéstia, a posso qualificar de sublime, porque ela, como aliás todas as composições que me atribuíram, é obra de virtuoses siderais.
Sempre as ouvi como se as modulassem nas mansões cintilantes os Espíritos purificados pela dor.
São eles os inspiradores dos artistas terrenos, aos quais, assim, dão a conhecer o regozijo que os aguarda no Além, se aqui não claudicarem, se conservarem impolutas as almas.

A composição que acabastes de ouvir, eu vo-la dedico.
É o meu canto de cisne.
E quem a mereceria mais do que o meu companheiro de cárcere?
Sabeis qual o nome que lhe deram?

- Se me competisse dar-lhe algum, escolheria o de Prantos fulgurantes, porque realmente, enquanto a apreciava, as lágrimas que me orvalhavam os olhos se tornavam brilhantes, se transformavam em gotas de luz, que me permitiram ver a nossa mísera alcova como que inundada da claridade de um luar que se difundia por toda ela.

Divisei, como se estivera alucinado, uma entidade vestida de luminosa neblina, com um dos braços alçado, fitando o céu, donde certamente desceu para mo apontar.
Imagina, François, que reconheci nessa aparição um ser que nos é muito caro, muito saudoso.

Vê quanto se deve achar refrigerado meu coração!
Ah! doravante, saberei ser digno da dor que me flagelar o peito e do céu que ma enviou, pois tenho quem me norteie para ele:
um dos mais pulcros arcanjos que lá decerto me aguarda para sermos ditosos.
Qual, porém, a epígrafe dessa melodiosa e célica produção?

- A derradeira lágrima.
- Antes o fosse para mim!
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2013 9:35 pm

Ditas essas palavras, senti que me ia faltar o equilíbrio, que no meu íntimo algo de extraordinário se passara.
Senti-me novamente desamparado pelos Invisíveis.
Sofri violento abalo em todo o ser e, logo após, um desfalecimento invencível, a impressão de que fora arremessado da cúspide de uma torre a um abismo pavoroso.

As forças me abandonaram de chofre, como se houvessem isolado o dínamo - meu organismo - das baterias eléctricas.

Meus esguios braços ficaram inertes, frígidos.
Deles pendeu o violino que outra vez se tornou pesado como se feito de bronze.
Resvalou até ao solo, foi cair junto do leito de meu pai, e, ressoando, como se soltara angustioso gemido, se espatifou.

Inutilizou-se o precioso instrumento, cujo tampo harmónico se espedaçara.
Meu pai deu um grito estridente de inenarrável pesar, como faria o desventurado Saul se visse em fragmentos a melodiosa harpa de Davi.

Percebi que se esforçava por apanhar do soalho o violino que afinal conseguiu.
Começou então a lhe passar pela fenda a única mão de que dispunha, como a passaria sobre uma chaga que desejasse ver cicatrizada.

Em outra ocasião teria compartilhado do desgosto paterno, mas, naquele momento, apenas uma fugitiva mágoa me aflorou à alma.

É que em mim se operava uma grave alteração.
Minha individualidade e meu corpo me pareciam diversos do que haviam sido até então.
Compreendi, por uma sensação indefinível, mas não inédita, que começara o afrouxamento dos laços fluídicos que me retinham o Espírito preso à argila humana e tive a lúcida certeza de que me não deveria afligir pelo violino amado, que já não tinha dono, pois minha existência se avizinhava do seu termo.

Um mundo, de que já não me lembrava mais, principiou a esboçar-se no meu íntimo.
Tinha a impressão de que meu crânio tomara proporções colossais.
Afigurou-se-me que minh'alma, depois de jazer em letargo por muito tempo, despertara aos acordes daquela sublime cavatina.

Comecei a distinguir, como em sonho, sombras, vultos femininos, envoltos em roçagantes clâmides de deslumbrante alvura, que desfilavam, ininterruptamente, a pouca distância do meu leito.

Tantas coisas fantásticas surgiam e desapareciam diante de mim, que meus sentidos físicos se embotaram.
Tornei-me insensível aos padecimentos corporais.
Esqueci meu próximo fim, mergulhado num Letes profundíssimo, do qual me parecia que jamais havia de emergir.

Quase deixara de ter vida orgânica.
Sentia-me longe da Terra, próximo das paragens inatingidas pela dor e pelos seres que ainda se acham agrilhoados fortemente às vestes materiais.
Por fim distingui duas silhuetas graciosas, de túnicas nevadas, que se postaram uma aos pés, outra à cabeceira do meu catre, e não mais deixei de as ver senão quando se me romperam os últimos liames da vida.

Numa delas reconheci Jeanne e na outra um ente familiar também, meu protector bem-amado.
Não as enxergavam meus olhos feitos de luto, que nenhum milagre tornara perfeitos.
Era minh'alma, já quase exteriorizada do corpo físico, que as vislumbrava, ao clarão de suave radiosidade, que eu supunha descer, em bátegas de luz, do próprio Infinito.

Reconheci, por intuição, naquelas duas entidades, as adoradas atalaias que vigiavam todos os meus passos, que se desvelaram por mim durante toda a minha existência, enquanto lutei na arena terrestre, e que aguardavam meu regresso ao mundo em que habitavam, mundo das sombras para os precitos, mundo das luzes inextinguíveis para os justos ou regenerados.

Contemplava-as distintamente e por vezes as supunha tão achegadas ao leito, que estendia os braços, procurando segurá-las pelas vestes tenuíssimas, alvinitentes e intangíveis.

Estava consumada a minha atroz provação - a cegueira.
Já não existia também, para mim, o mundo palpável, que eu apenas conhecera por intuição e pelos ensinamentos de Jeanne.

Um outro começara a se me patentear.
Era como se assistisse ao desenrolar de um filme cinematográfico, em que se sucedessem imagens de regiões extraterrenas de paisagens bizarras, crepúsculos de pérolas e de rosas alvoradas de ouro pulverizado, seres de beleza vestalina e andar alígero.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2013 9:35 pm

Compreendi o fenómeno que se dava comigo:
meu espírito já se libertara de muitos vínculos que o enclausuravam na prisão carnal, donde ansiava por se desenvencilhar, qual falena que, ao se lhe dilatarem as asas de gaze, corrói os filamentos que a tolhem, para, librando-se nos ares, inebriar nos liriais em flor.

Já o sentia flutuante nos meus órgãos, qual bergantim que oscila sobre as vagas.
Ao passo que, aos poucos, se iam dilacerando os últimos elos fluídicos que ainda o ligavam à matéria, entrava eu na posse de uma faculdade potente, que reconhecia não pertencer à retina, mas à alma - a da visão.

* * *
Todas essas impressões que vos acabo de expor, querido amigo, experimentei-as nos breves segundos que se seguiram aos em que deixei cair das mãos o dilecto violino.

Meu pai, vendo-me quase desmaiado sobre as almofadas, deixou por sua vez cair de novo ao chão, com fragor, o pobre instrumento e se pôs a chamar-me reiteradas vezes, sem que me fosse possível atender às enternecedoras súplicas que me dirigia.

Chamou então a Margot, que não lhe respondeu, por se achar ausente naquele momento em que minh'alma se emancipava dos finais obstáculos que a prendiam à Terra.
Meu infortunado progenitor não cessava de implorar socorros para mim, delirando de aflição, no auge da angústia, até que, regressando, a dedicada serva acudiu, me acomodou na cama e entrou a fazer-me fricções na fronte e nos pulsos com um éter que não pude aspirar senão dificilmente.

Recobrei, porém, os sentidos.
À letargia sucedeu a exaltação febril.
Tinha sobre o tórax dorido um Etna47 em actividade.

A todos os instantes meu pai me interrogava, com a voz cheia de soluços e carícias:
- Que tens, que procuras, meu François?
Por que agitas assim os braços?
Quanto sofro por te não estar prestando auxílio algum!
Queres tomar o teu calmante?

Pude, pela última vez, balbuciar, num supremo esforço:
- Coragem, meu pai... chegou o momento de vos deixar... mas, não para sempre!
Soou a minha hora derradeira... já vejo seres incorpóreos, que a meu lado esperam minha partida...
É a morte que se aproxima, bem o sei, mas que não nos há-de separar... prometo mais uma vez... proteger-vos... amar-vos... não vos desamparar... jamais...

- Não me fales assim, François;
é a febre que te faz tresvariar!
Acalma-te, meu filho, que ainda hás-de viver longamente para meu consolo!
Foi o excesso que fizeste, de tocar violino no estado de debilidade em que te achas, o que te pôs nesta agitação... Foi...

Não pôde concluir a frase encetada:
apavorado, ele me viu soerguer o busto e golfar pela boca, numa onda espumosa e escaldante, todo o sangue que me restava no organismo, até a última gota.

Passei, então, por um esvaimento, uma tortura rápida e empolgante, ao mesmo tempo que branda anestesia me foi ganhando todo o corpo, paralisando-lhe os membros, tornando-os glaciais, dando-me a sensação de que os músculos se me fizeram de mármore, destacando-se os dos pés e dos braços por uma algidez extrema.

Sobreviera-me, mais intensa, a dispneia e ligeira convulsão me abalou todo o corpo, contraindo as próprias vísceras.
O coração, que até ali palpitara precipite, começou a imobilizar--se, fremindo, por vezes, nas derradeiras sístoles e diástoles.
Afigurava-se-me estar prestes a adormecer profundamente, de um sono que me insensibilizaria por completo, distanciando-me do solo, fazendo-me ténue, leve, flutuante.

A calma aniquiladora em que me via era apenas perturbada pela voz de meu pobre pai a chamar pela Margot, dando-lhe instruções para me acudir e reanimar, prevendo o próximo fim.
Ouvindo-lhe as palavras de tribulação, de dor e de súplicas contínuas e inolvidáveis, com o pensamento alçado ao Criador do Universo, foi que deixei de viver nessa existência em que me chamei François Delavigne.

Lembro-me ainda, nitidamente, das comovedoras exclamações do meu desventurado companheiro de infortúnio ao notar que o alento vital se extinguia em mim.
Foi ouvindo-as que expirei.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 12, 2013 9:35 pm

Exclamava ele:
- Deus meu! O que mais sinto é estar acorrentado ao leito, não me poder levantar para abraçá-lo pela derradeira vez!
É preciso que mo atirem sobre este corpo de pedra, para que lhe possa oscular a morta fronte inspirada!
Não me é dado prestar-lhe os últimos tributos de minha afeição!

Perdoa-me, François!
Meu adorado filho, cumpre o que me prometeste com tanta segurança:
vem lenir as minhas amarguras para que eu não blasfeme até final cumprimento da minha cruel sentença - a de ver partirem para o sepulcro os entes que mais amei neste mundo!

Vai com Deus, meu François, roga-lhe por este infeliz ainda algemado ao corpo, para ser supliciado, e que acaba de perder o último ente idolatrado, que o confortava nas horas da desventura!

Por fim, deixei de ouvi-lo.
Meu corpo se enregelou inteiramente, fez-se rija estátua de gélido alabastro;
minhas pálpebras cerraram-se fortemente numa última contracção, para todo o sempre - como a tela que desce sobre o derradeiro acto de um drama pungente, para ocultar aos espectadores um cenário desolado e sombrio - vendando meus olhos onde só trevas houvera.

Cessara o eclipse para minh'alma, que cumprira uma das suas mais acerbas provações.
Ela fora mondada de todas as urzes nocivas, sulcada pela charrua da dor, arroteada, enfim, para o cultivo de todas as virtudes, para que germinassem em seu seio, como searas divinas, todas as potências psíquicas, flores imortais que desabrocham nos paramos etéreos e que engrinaldam a fronte dos justos, dos habitantes siderais, flores cujas pétalas são feitas da mesma luz inextinguível que jorra do âmago das estrelas.

Findou-se assim a minha existência planetária, aos dezoito anos de idade, dez meses após o passamento de Jeanne.
É que, meu amigo, nossas almas não se adoravam menos que as de Castor e Pólux48 - um dos mais belos símbolos do amor fraterno - e, acendradas pelo sofrimento e pelas lágrimas em caudais fecundas, remidas dos trágicos delitos de suas precedentes encarnações, não mais precisavam das lapidações terrenas.

Aprouve por isso ao Omnipotente, sempre magnânimo, que a nossa separação não fosse longa e, com a sua misericórdia infinita, abençoou, afinal, a nossa inabalável e perpétua aliança!

47 Vulcão da Sicília ( Itália)
48 Heróis mitológicos.
Estes dois nomes são citados muitas vezes para simbolizar a amizade.
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